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Espongioblastoma do cererelo

REGISTRO DE CASOS

Espongioblastoma do cererelo

J. A. Caetano da Silva Jr.I; Orlando AidarII; A. M. Cardoso de AlmeddaIII

IAssistente de Clínica Neurológica da Fac. Med. da Univ. de São Paulo (Prof. Adherbal Tolosa)

IIAssistente de Neuranatomia (Dept. Anatomia - Prof. R. Locchi) e Neuropatologia (Dept. Anatomia Patológica - Prof. L. Cunha Motta) da Fac. Med. da Univ. de São Paulo

IIIAssistente do Departamento de Anatomia Patológica da Fac. Med. da Univ. de São Paulo (Prof. L. Cunha Motta)

Julgamos interessante a divulgação desta observação, não só pelo quadro sintomático, como pelos resultados dos exames complementares e do estudo anátomo-patológico. Infelizmente, o tumor não pôde ser extirpado cirùrgicamente, vindo o paciente a falecer algum tempo após a intervenção; a necroscopia demonstrou a inoperabilidade do neoplasma, dadas as suas dimensões e localização.

Observação - J. V., branco, brasileiro, com 13 ahos de idade, internado em 25 de junho de 1945 na Clínica Neurológica do Hospital das Clínicas. O início da doença datava de 2 meses, com dor na região cervical, acompanhada de cefaléia e endurecimento do corpo (sic). Concomitantemente, surgiram vômitos freqüentes, intensos, bruscos. Os sintomas agravaram-se até a internação. Nada havia digno de nota nos antecedentes hereditários e pessoais. Exame geral - Desenvolvimento precário da musculatura dos membros; cabeça enorme, globosa; midríase bilateral e acentuada exoftalmia. Tensão arterial, 110-70; pulso com 104 batimentos por minuto. Exame títíurológico - Psiquismo: apresentava-se em estado de sonolência profunda, quase torpor. Linguagem e praxia normais. Facies: predomínio dos traços fisionômicos à esquerda, mais evidente quando falava ou sorria. Astasia; o equilíbrio em decùbito dorsal era normal. Realizava bem, embora com certa lentidão, todos os movimentos dos membros, tronco e segmento cefàlico; diminuição ligeira da força de oclusão das pálpebras à direita; diminuição global da força muscular nos membros, mais acentuada nas extremidades. Dismetria nos membros superiores, parecendo haver também certo erro de direção; no membro inferior esquerdo, fenômenos atáxicos semelhantes. Discreto tremor na fase final dos movimentos. Adiadococinesia nas mãos. Hipotania muscular generalizada. Marcha impossível sem auxilio; amparado, executava passos desmedidos, batendo fortemente com os calcanhares, sem direção; não conseguia manter o peso do corpo sobre os membros inferiores. Fala normal. Referia que os líquidos deglutidos davam a impressão de ser demasiadamente espessos. Mastigação normal. Ausência de hipercinesias. Reflexo cutaneoplantar sem resposta nítida à esquerda; à direita, obtinha-se ligeira flexão do pé, com contração do tensor da fascia lata. Cutâneo-abdominais abolidos à direita, produzindo-se, às vezes, à esquerda. Cutaneopalmares com resposta em adução e semiflexão do polegar, nítida à esquerda e esboçada à direita. Medioplantares e aquileus nítidos à direita e de difícil obtenção à esquerda; mediopúbicos com resposta inferior normal à direita e viva à esquerda; patelar exaltado à direita e normal à esquerda; reflexos dos adutores com resposta viva à esquerda, produzindo reflexo contralateral de Pierre-Marie, e viva apenas à direita; bicipitais e estilo-radiais vivos à direita e normais à esquerda;cubitopronadores e tricipitais normais. Clono da rótula direita. Automatismo medular esboçado à direita. Sensibilidade normal. Nervos cranianos: edema papilar bilateral, diminuição acentuada da acuidade visual; motricidade extrínseca ocular normal, porém, notava-se certa dificuldade na manutenção das posições extremas dos globos oculares, que oscilavam de um ponto a outro, lembrando os movimentos de um amaurótico; pupilas isocóricas em midríase ampla, com reflexos à luz e à acomodação lentos; paresia facial direita; demais nervos normais. Hipotrofia muscular generalizada. Sinal do pote rachado, sem manifestações meningíticas. Alguns dias depois, notamos diminuição da paresia facial direita; instalou-se déficit, tanto no desvio conjugado do olhar à direita, como na convergência.

Resumindo rapidamente a sintomatologia acima, teremos: sindrome hipertensiva intracraniana, datando de 2 meses; aumento de volume do crânio; sonolência; exof-talmo; astasia; ataxia de tipo predominantemente cerebelar; hipotonia muscular; sindrome piramidal de libertação à direita; edema papilar bilateral e diminuição da acuidade visual; midríase; reflexos pupilares lentos; paresia facial direita. À base desse quadro clínico, impunha-se o diagnóstico de hipertensão intracraniana por provável neoplasia da fossa posterior e mais especialmente cerebelar. Dois exames complementares fortaleceram o diagnòstico presuntivo. O exame do liqüido cefalorra-queano (28-6-45) colhido por punção lombar, em posição sentada, mostrou: pressão inicial 65 (manòmetro de Claude) ; pressão final 30 (após retirada de 10 ml) ; Qr. 4,6, Qrd. 3,5; liquor límpido e incolor; 2,4 células por mm3; 0,40 g de albumina por litro; reações de Pandy e Nonne positivas; reação de benjoim 00000.12221. 00000.0; reação de Takata-Ara positiva, tipo parenquimatoso; reações de Wassermann e Steinfeld negativas com 1 mL A craniografia mostrou sinais radiologics de acentuada hipertensão intracraniana (impressões digitais, impressões vasculares, disjunção das suturas) ; sela turca algo aumentada e deprimida ; platibasia; manchas de calcificação alongadas, tortuosas, localizadas no lado direito, ao nível da região cerebelar; osteoporose da abóbada (fig. 1).


Êstes resultados sugeriam fortemente a existência de neoplasia na fossa posterior; a imagem calcificada levava a localizá-la no lado direito. A ventriculografia com lipiodol revelou hidrocefalia enorme dos ventrículos laterais e 3.0 ventriculo; aqueduto de Sylvius com impressão tumoral direta, com desvio acentuado para a esquerda; pequenas gotas de lipiodol na cisterna magna e no espaço subaracnóideo medular; provável tumor do hemisfério cerebelar direito. Confirmava-se assim o raciocínio clínico, aliás quase obrigatório.

Operação - Realizada pelo Dr. Rolando A. Tenuto. À palpação do hemisfério cerebelar direito, foi encontrada, junto à porção inferior do verme, uma formação dura, aderente, de que se retirou material tumoral, lardáceo e resistente à curetagem. Ao nível da cisterna magna havia grande cisto, provável conseqüência de aracnoidite, o qual foi desfeito. Na impossibilidade de retirar o tumor, foram refeitos os diversos planos, sendo boas as condições gerais do paciente ao fim do ato cirúrgico.

Evolução - Uma semana depois, apresentou convulsões clónicas no hemicorpo esquerdo, sem perda da consciência, entrando, porém, no dia seguinte, em estado de torpor, que melhorou após punção ventricular. Uma semana mais tarde o paciente apresentava dificuldade em deglutir, crises convulsivas na face e hemicorpo esquerdos, que por momentos se estenderam ao lado direito. Hipertermia de 39,5* C; tensão arterial 130-75. Logo a seguir, apresentou-se inconsciente. Instalou-se rigidez da nuca, trismo e contratura dos membros superiores em flexão. Estava sendo medicado desde a intervenção com penicilina e permaneceu com alternativas de melhora e piora durante mais um mês, sem convulsões, até que, após convulsões generalizadas, o seu estado se agravou e, em acentuado grau de caquexia, faleceu em 2 de setembro.

Exame anátomo-patológico - A necroscopia revelou, além de pronunciada caquexia, uma ùlcera na primeira porção do duodeno. Crânio com parede óssea adel-gaçada, medindo em certos pontos 1 a 2 mm. Foram retirados da cavidade ventricular cêrca de 400 ml de líquor aparentemente normal. Na fossa posterior, externamente às meninges, havia derrame fibrino-purulento de côr amarelada, que se estendia ao canal medular. No cérebro verificou-se apenas grande dilatação uniforme do sistema ventricular; o aqueduto cerebral apresentava-se moderadamente dilatado. Cerebelo aumentado de volume, mais acentuadamente à esquerda. Na face superior do verme e porção adjacente dos hemisférios havia massa nodular relativamente lisa, clara, de consistência quase lenhosa, recoberta pela pia-máter e medindo cêrca de 5 cm de diâmetro; repousava sôbre a face posterior do tronco encefálico. Ao corte sagital mediano, a neoplasia apresentava contôrno oval, bem definido, medindo 30X37 cm; a face de corte apresentava aspecto fasciculado, com entrecruzamentos em várias direções; era de coloração cinza-clara em algumas áreas e branco-leitosa em outras, com pequenos pontos esparsos cinza-negros. A massa tumoral substituía topogràficamente o verme superior, que se achava comprimido e deslocado para trás e para baixo, completamente deformado (fig. 2). O corte do hemisfério esquerdo mostrava que a expansão tumoral para este lado sofrerá transformação cistica, que se apresentava globosa, com cerca de 45 mm de diâmetro, paredes lisas, contendo liqüido claro. A parede desse cisto estava em grande parte fundida à substância nervosa cerebelar. Essa cavidade não entrava em comunicação com a cavidade ventricular, nem com o espaço subaracnóideo. O 4.e ventrículo apresentava ligeira dilatação difusa na sua porção cranial, porém, a metade caudal estava obliterada à direita por massa de aspecto neoplástico. O estudo histopatológico do tumor cerebelar revelou tratar-se de tecido ricamente celular e pouco vascularizado. De mistura com áreas de elementos íntegros havia outras em diversas fases de desintegração. Já com pequeno aumento observava-se acentuado polimorfismo celular, com predomínio de grandes células fusiformes dispostas em fileiras paralelas. Com aumento maior, essas células mostravam citoplasma abundante, bem corado pela eosina, prolongado em extensões polares, com aspecto que lembrava o de fibroblastos, porém maiores e seus núcleos mais ricos em cromatina. Estas e outras células menores representavam fases diversas de diferenciação da macroglia, isto é, de espongioblastos a astrócitos. Não se encontraram figuras mitóticas, porém, era regular a quantidade de células multi-nucleadas. Diagnóstico: espongioblastoma polar.


COMENTÁRIOS

Da observação que acabamos de relatar, ressalta, em primeiro lugar, o início brusco da doença, com sintomatologia que poderia ser enquadrada numa sindrome meningítica: dor na região cervical, cefaléia, hipertonia e vômitos, Esse início não deve ter coincidido com o da formação tumoral, de crescimento lento no caso, sendo mais provável que alguma intercorrência tivesse desencadeado aquele conjunto sintomático. De fato, o exame do liqüido cefalorraquidiano obtido por punção lombar forneceu um dado que merece menção especial: a pressão. A pressão inicial era de 65 mm e, após retirada de 10 ml, desceu para 30 mm. Houve, evidentemente, queda menor que a geralmente encontrada nos tumores cerebrais, especialmente nos da fossa posterior. Isto faz pensar que, além do aumento do continente, observável nas neoplasias, havia também aumento do conteúdo. Deveria ter havido uma aracnoidite (meningite serosa) condicionando tal aumento e a intervenção cirúrgica confirmou essa possibilidade; a formação dessa aracnoidite certamente coincidia com o aparecimento súbito dos sintomas. E' interessante ainda o confronto entre o resultado da iodoventriculografia e os dados manométricos citados. Naquela, o aqueduto cerebral apresentava-se dilatado, sugerindo a existência de um bloqueio quase total a jusante, o qual, se realmente existisse, impediria a obtenção de uma pressão final de 35 mm. Só um aumento global da quantidade de liquor em todo o espaço subaracnóideo poderia condicionar tais resultados.

Outro sintoma parcialmente relacionado com a hipertensão é o torpor apresentado pelo doente, e que poderia ser imputado à intensa hipertensão.

Mas são de observação corrente os casos dessa natureza, mesmo com pressões superiores à de nosso caso, acompanhadas de cefaléia e papiledema, porém, sem alterações da lucidez mental. Estaria a localização da neoplasia relacionada com o aparecimento desse sintoma? Sua intensidade era tal que, de certo modo, ao lado dos outros sintomas do paciente, lembrava a antiga tríade de sintomas cerebelares - atonia, astasia e astenia - da qual os dois primeiros elementos eram muito patentes em nosso caso.

Hospital das Clinicas (Clinica Neurológica) - São Paulo, Brasil

Trabalho apresentado ao Departamento de Neuropsiquiatria da Associação Paulista de Medicina, em 5 janeiro 1947.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2015
  • Data do Fascículo
    Mar 1951
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