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Aumento da dislogia do discurso em narrativa emocionalmente carregada na esquizofrenia

Emotionally-loaded narrative increases dyslogia in schizophrenics

Resumos

Testamos o grau de desagregação dislógica do discurso de dez pacientes esquizofrênicos não medicados que narravam fatos carregados emocionalmente ou neutros. As "narrativas emocionais" mostraram-se bem mais dislógicas do que as "narrativas neutras" e, para explicar estes fatos, evocamos: 1)Uma disjunção das conexões fronto-têmporo-límbicas que impediria um tratamento cognitivo adequado das emoções que seriam, desta forma, altamente disruptivas sobre os processos lógicos. 2)Uma disfunção da memória de trabalho/sistema supervisor atencional que induziria tanto a uma perda das conexões normais entre os fragmentos do discurso como a uma ausência de planificação estratégica das linhas globais do enunciado.

esquizofrenia; transtornos do pensamento; neuropsicologia; psicopatologia; dislogia


We tested the degree of dyslogia in the narrative of ten schizophrenic non-medicated outpatients while they narrated emotionally-loaded or neutral facts. The "emotional narratives" were much more dyslogic than the "neutral narratives". In order to explain these facts we evoke: 1. A fronto-temporo-limbic connection dysfunction would disturb an adequate cognitive treatement of emotions that would be, in this way, highly disruptive over logical processes. 2. A working memory/supervisory attentional system dysfunction that would produce both a loss of the normal conections among the fragments of speech and a lack of global strategical planning of the thought.

schizophrenia; thought disorders; neuropsychology; psychopathology; dyslogia


AUMENTO DA DISLOGIA DO DISCURSO EM NARRATIVA EMOCIONALMENTE CARREGADA NA ESQUIZOFRENIA

MARCELO CAIXETA* * Médico Psiquiatra-Assistente do Centro Médico-Hospitalar ASMIGO, Médico Psiquiatra-Pesquisador da Universidade Federal de Goiás (UFGO); ** Assistente-Médico do Serviço de Psiquiatria ASMIGO (Divisão de Neuropsicologia); *** Médico pós-graduando do Serviço de Neurologia (HC/USP). Aceite: 13-abril-1999. , MOYSÉS CHAVES** * Médico Psiquiatra-Assistente do Centro Médico-Hospitalar ASMIGO, Médico Psiquiatra-Pesquisador da Universidade Federal de Goiás (UFGO); ** Assistente-Médico do Serviço de Psiquiatria ASMIGO (Divisão de Neuropsicologia); *** Médico pós-graduando do Serviço de Neurologia (HC/USP). Aceite: 13-abril-1999. , LEONARDO CAIXETA*** * Médico Psiquiatra-Assistente do Centro Médico-Hospitalar ASMIGO, Médico Psiquiatra-Pesquisador da Universidade Federal de Goiás (UFGO); ** Assistente-Médico do Serviço de Psiquiatria ASMIGO (Divisão de Neuropsicologia); *** Médico pós-graduando do Serviço de Neurologia (HC/USP). Aceite: 13-abril-1999. ,OSIRES REIS** * Médico Psiquiatra-Assistente do Centro Médico-Hospitalar ASMIGO, Médico Psiquiatra-Pesquisador da Universidade Federal de Goiás (UFGO); ** Assistente-Médico do Serviço de Psiquiatria ASMIGO (Divisão de Neuropsicologia); *** Médico pós-graduando do Serviço de Neurologia (HC/USP). Aceite: 13-abril-1999.

RESUMO - Testamos o grau de desagregação dislógica do discurso de dez pacientes esquizofrênicos não medicados que narravam fatos carregados emocionalmente ou neutros. As "narrativas emocionais" mostraram-se bem mais dislógicas do que as "narrativas neutras" e, para explicar estes fatos, evocamos: 1)Uma disjunção das conexões fronto-têmporo-límbicas que impediria um tratamento cognitivo adequado das emoções que seriam, desta forma, altamente disruptivas sobre os processos lógicos. 2)Uma disfunção da memória de trabalho/sistema supervisor atencional que induziria tanto a uma perda das conexões normais entre os fragmentos do discurso como a uma ausência de planificação estratégica das linhas globais do enunciado.

PALAVRAS-CHAVE: esquizofrenia, transtornos do pensamento, neuropsicologia, psicopatologia, dislogia.

Emotionally-loaded narrative increases dyslogia in schizophrenics

ABSTRACT - We tested the degree of dyslogia in the narrative of ten schizophrenic non-medicated outpatients while they narrated emotionally-loaded or neutral facts. The "emotional narratives" were much more dyslogic than the "neutral narratives". In order to explain these facts we evoke: 1. A fronto-temporo-limbic connection dysfunction would disturb an adequate cognitive treatement of emotions that would be, in this way, highly disruptive over logical processes. 2. A working memory/supervisory attentional system dysfunction that would produce both a loss of the normal conections among the fragments of speech and a lack of global strategical planning of the thought.

KEY WORDS: schizophrenia, thought disorders, neuropsychology, psychopathology, dyslogia.

A esquizofrenia foi durante muito tempo, a partir de Bleuler1, considerada como doença destituída de sintomas cognitivos primários, sendo como um transtorno cujo acometimento basal era afetivo ou volitivo (perda das "conexões vitais" de Minkowski, "atimormia" de Dide e Guiraud)2. No entanto, observa-se hoje que esta concepção está seguramente ultrapassada e sabe-se a contento que estes doentes têm grandes dificuldades intelectuais.

Os transtornos formais do pensamento na esquizofrenia só foram claramente elevados a um rol de importância diagnóstica a partir dos estudos de Schneider3, que descreveu com proficiência de detalhes a "barragem", o descarrilamento, a disfluência. Para Kraepelin, o sintoma fundamental da esquizofrenia era a apatia e a desvitalização4, ao passo que para Bleuler, o segundo grande teórico da doença, os sintomas cognitivos eram fruto secundário de um atentado mais profundo do eu (os sintomas primários). Schneider5 cunhou o conceito de sintomas de primeira ordem na esquizofrenia, cuja base era o sentimento que o paciente vivenciava de uma ação externa de alguém sobre seu psiquismo, comprometendo assim a "atividade do eu". Para um dos autores principais da escola francesa6, o sintoma primário era a "discordância" ou a dissociação entre instâncias cognitivas e afetivas, em uma posição patogênica próxima (mas com importantes diferenças) à de Bleuler. Para este último, a discordância tinha uma base afetiva, e este autor procurou explorá-la valendo-se de alguns instrumentos teóricos que emprestou da psicanálise.

Dentre os transtornos formais do pensamento, o pensamento vago é um dos que mais reflete a condição esquizofrênica, não obstante ser bem confusa sua delimitação psicopatológica. A própria nomenclatura da condição é confusa e vários conceitos a ela se sobrepõem: pensamento desagregado, derreísta, dislógico, vago, pensamento esquizofrênico7. A condição também é pouco explorada neuropsicologicamente, sendo escassos os estudos que se referem a ela. Estes transtornos do pensamento se interpenetram inclusive com os distúrbios de linguagem, sobretudo quando se apresentam com gravidade maior ("salada de palavras", esquizofasia). No pensamento vago as relações conceituais estão totalmente desarticuladas e nos casos mais severos há mesmo perda da formação adequada dos conceitos7. Um nosso paciente diz por exemplo que "está sendo arrebatado pelo processo de trânsito transalpino de pigmentos". Quando então lhe perguntamos o que eram estes pigmentos, ele diz: "é o balala-rai que fizeram rock comigo".

Em relação aos processos linguísticos alterados na esquizofrenia, Frith conclui que "... as estruturas léxico-sintáticas estão intactas..." mas que há "... um problema na estrutura do discurso em um nível mais alto..."8. Hoffman9 fala da perda do plano executivo da narrativa como um defeito na construção do plano interno, um plano cognitivo abstrato que precede a produção do discurso e atua como um guia, um fio condutor da ação narrativa. Na gênese desta condição, vários autores parecem estar de acordo com os mecanismos provavelmente em jogo, sobretudo a incapacidade de ligação imediata de um conceito a outro, o que faz pensar em uma disrupção da memória de trabalho, ou seja, a desagregação seria fruto de uma incapacidade ou disfunção da memória de trabalho em manter o fluxo do discurso coerente tanto por falta de uma "fôrma" estratégica geral sobre a qual correria o discurso, quanto da incapacidade de articular conceitos adjacentes entre si10-14. O paciente parece então presa exclusiva de seus processos idiossincráticos e imediatos de sensação, cognição e afetividade. Falta-lhe o fio condutor, e as "amarras" entre os blocos cognitivos. É evidente que se está a lidar aqui com o conceito de memória de trabalho, mas vê-se ao mesmo tempo a inadequação deste conceito enquanto "memória". Na verdade é uma função executiva que, neste caso, tem muito pouco a ver com o conceito corrente de "memória". É uma função que mantém temporalmente o fluxo do pensamento e ao mesmo tempo arregimenta e busca em diferentes áreas cerebrais os elementos necessários à montagem do discurso10,11. Sua função é, então, mais de um "orquestrador" (dirige o fluxo global e a atenção específica de cada elemento ao mesmo tempo) do que o de um "armazenador"; alguns autores denominaram-na de "sistema supervisor atencional"13,15. Weinberger15 acredita que este sistema exerce controle consciente e deliberado sobre ações não-automatizadas, em particular aquelas relacionadas a situações novas que requerem forte carga atencional. Em contraposição a estas situações estão aquelas outras, ditas automatizadas, que não necessitam de energia atencional para se realizar, pois são controladas por esquemas já pré-engramados, podendo mesmo ser realizadas ao mesmo tempo que outra tarefa qualquer. Este sistema atencional supervisor executivo é um sistema de atenção seletivo, exercendo função muito próxima àquela que se convenciona denominar de "memória de trabalho" em neuropsicologia convencional e que está ligado anatomicamente à área lateroinferior-prefrontal medial anterior e cingular. Alterações neste sistema podem levar também a déficit da capacidade de utilizar informações contextuais para selecionar um comportamento adaptado. A manutenção de uma representação interna da tarefa a se realizar é muito necessária à supressão de respostas emocionais ou cognitivas inapropriadas. Com a falência funcional da memória de trabalho, há também enfraquecimento da utilização das experiências passadas13, uma falência da capacidade de utilizar conhecimentos "internos" para guiar o comportamento na ausência de elementos externos10. Isto talvez possa explicar porque os doentes esquizofrênicos têm dificuldades maiores em ações intencionais do que em ações rotineiras.

A "working memory" é uma função basicamente frontal mas que tem muitas conexões e relações com áreas temporolímbicas11. Não é, portanto, de se estranhar que esta função esteja tão comprometida na esquizofrenia, uma condição em que são encontradas, de modo consistente, alterações funcionais e estruturais das regiões de contato e conexão fronto-temporais8,16,17.

Gray e col.13 falam de uma integração anormal da memória de fatos passados (memória explícita e não implícita; esta, na maioria dos estudos mostra-se intacta) com programas cognitivos ou mesmo motores em curso (dificuldades no Stroop/Wisconsin). Neste estudo, aventamos e testamos clinicamente a hipótese de que, dentre estes fatos passados que os esquizofrênicos têm dificuldade em integrar ao fluxo de atividades atual, os fatos carregados afetivamente comprometem mais a atividade cognitiva em curso do que as memórias emocionalmente neutras.

Há algumas parcas e esparsas evidências de que a inter-relação de elementos cognitivos e afetivos tem poder de disrupção bem maior sobre esta função do que as tarefas que evocam elementos majoritariamente cognitivos (não-afetivos). Em dois estudos recentes, Frith e seu grupo de Londres18,19 testaram a capacidade de pacientes esquizofrênicos de evocar informações subreptícias e implícitas após serem submetidos à escuta de uma narrativa. Os autores notaram que os pacientes com esquizofrenia tinham mais tendência à confabulação do que os pacientes controles, mostrando assim a dificuldade que eles têm em "editar" aquelas respostas que não estão óbvias em uma narrativa18. Em estudo mais específico no que nos interessa, Frith e col. narraram estórias em que havia componentes afetivos e subjetivos dos personagens e que pacientes esquizofrênicos tinham muito mais dificuldade em recontar estes elementos do que os controles, dando a entender que, assim como os autistas, talvez os esquizofrênicos também tenham um problema com a teoria da mente19. Uma outra série de estudos mostra que pacientes esquizofrênicos têm grande dificuldade em lidar com emoções expressas por terceiros e com a repercussão destas sobre o seu próprio psiquismo, sobretudo quando muito pejorativas20. Neste estudo relaciona-se a presença de sintomas positivos (delírios, alucinações) com a propensão a se ter os processos cognitivos perturbados por afetos emocionalmente desagradáveis. No entanto, não são feitas correlações entre o grau de disrupção cognitiva e os conteúdos do pensamento (se mais ou menos afetivos). Há também estudos que relacionam déficits mnésicos e transtornos formais do pensamento na esquizofrenia mas nestes, do mesmo modo, não há diferenciação ou testagem comparativa entre memórias afetivo-emocionais e neutras21.

MÉTODO

Dez pacientes esquizofrênicos do sexo masculino diagnosticados de acordo com os Critérios de Pesquisa Diagnóstica da Classificação Internacional de Doenças (RDC - ICD - World Health Organization)22 com instrução escolar entre o 1º grau completo e o fim do segundo grau, idade entre 16 e 23 anos (Tabela 1) e com esquizofrenia de forma paranóide em primeiro surto, não-medicados, foram instados a fazer uma narrativa envolvendo fatos afetivo-pessoais (falar sobre a infância e suas relações com adultos e crianças) e fatos não afetivo-pessoais, (o descobrimento do Brasil). Cada relato foi registrado durante 5 minutos e depois avaliado por 3 psiquiatras que colocaram o grau de dislogia do discurso sobre escala analógica visual que era cotada desde um pólo de "muita dislogia" até o pólo "pouca dislogia" (Fig 1). A avaliação foi realizada de maneira "cega" tanto em relação ao diagnóstico dos pacientes quanto à natureza do estudo em questão. Cada resultado foi assinalado como um ponto sobre a escala visual sobre a qual foi aplicada então um software (MacBride - KLMP) de regressão dos resultados a um único ponto, que seria a média ponderada dos demais.


Damos a seguir o exemplo de um fragmento de relato afetivo-pessoal e neutro de um mesmo paciente, Adilson (Caso 2).

Relato pessoal: "...eu era pequeno, ouvi falar que era Maria e que as pessoas que sabiam como retirar os órgãos dos outros podiam fazer isso. Então o N. (tio do paciente), que pensava que era anjo, foi até o céu e voltou com oito cachorros que fizeram buracos em todo meu corpo. Mas aí minha mãe que é santíssima Maria que está no céu ou nos sete infernos dos olhos negros dos chineses (a mãe morrera há sete anos), me disse que Deus podia fazer uma máquina de consertar cérebros e coração...".

Relato neutro (descobrimento do Brasil): "... naquela história dos povos americanos que Colombo contou, tinha o Pedro, não sei se era o Caminha ou o outro, e depois ele trouxe as capitanias que eram modificadas para dentro do mapa, que ele também estava cheio de olhos. Estes corações eram os dos bandeirantes Borba e o Gato que também tentaram me levar com eles..."

RESULTADOS

O resultado da avaliação dos juízes é apresentado na Figura 1.

DISCUSSÃO

O tamanho da amostra impossibilita um tratamento estatístico mais avançado dos dados, pelo que optamos por sua representação visual que nada mais é do que a concretização gráfica de nossa impressão clínica, que poderia até ter sido feita com um só relato de caso, sendo este bem aprofundado23. Consideramos pois, estes dados como qualitativos, apenas dando-lhes um tratamento instrumental um pouco melhor que o estudo de um caso clínico individual, ou seja, temos consciência de que este não é um desenho de pesquisa experimental e sim clínico e é sob este título que o podemos julgar.

Diz Ajuriaguerra24 que "em neuropsicopatologia clínica é quase sempre mais importante elucidar a estrutura de uma cognição ou uma conduta do que medir-lhe os resultados; sendo assim, propor um modelo não-psicométrico em estudos neuropsicológicos é retornar ao método clínico. Este, evidentemente, não é quantificável com precisão mas, liberado das amarras do exame psicométrico, permite um aprofundamento estrutural que seria impraticável de outra forma". Nosso estudo portanto não tem a pretensão de se arvorar como um estudo quantitativo, seja pela falta de aplicação de escalas clínicas psiquiátricas seja pela ausência de um tratamento quantitativo de dados neuropsicológicos.

Constatações neuropsicológicas "qualitativas" como as que apresentamos neste estudo, (apesar de reconhecermos o grande surto psicométrico-estatístico que atravessa a área), podem ter um valor heurístico23 pelos motivos seguintes:

1º) São mais manipuláveis e utilizáveis por outros médicos clínicos na prática diária;

2º) Estimulam um conhecimento mais "estrutural" de cada transtorno porque as doenças são "estruturas nosográficas" em que cada elemento semiológico-patogênico ajuda a esclarecer o outro;

3º) A postura pragmática da clínica médica diária permite estar atento apenas a sintomas clínicos que são observáveis com certa facilidade na prática. Desta forma, são de pouca utilidade para a "linha de frente"os pesados dados estatístico-psicométrico-instrumentalizados que lhe fornece, majoritariamente, a neuropsicologia atual;

4º) O contato repetido e profundo que os médicos têm com seus pacientes pode lhes fornecer dados que dificilmente estão acessíveis aos pesquisadores de protocolos puramente de testagem quantititiva.

Por outro lado, não foram aplicados questionários específicos porque, pelo que sabemos, não há instrumentos padronizados para a pesquisa de dislogia em narrativas afetivas e não-afetivas.

Pudemos observar que enquanto os esquizofrênicos fizeram uma narrativa neutra do ponto de vista afetivo (por exemplo, falar sobre a história da descoberta do Brasil), os transtornos do pensamento que observamos (sobretudo o pensamento disfluente) são muito menos severos do que aqueles que se apresentam nestes pacientes quando eles falam de assuntos que possuem forte carga emocional (p. ex., falar de sua infância, ou de relações intra-familiares). Quando o paciente faz um relato verbal puramente cognitivo, não-afetivo (elocuções não-pessoais), as interações fronto-límbicas são relativamente menos numerosas e dispendiosas e o transtorno de pensamento mostra-se bem reduzido nestas circunstâncias.

Nestes casos de alteração do pensamento esquizofrênico, uma patologia exclusivamente córtico-frontal parece poder ser afastada, pelo menos de um ponto de vista exclusivamente clínico, já que em sua maioria esmagadora os pacientes com doenças primárias degenerativas corticais do lobo frontal (demências frontais) não apresentam tais alterações linguísticas25 . De fato, as alterações linguísticas esquizofrênicas estão a larga distância de transtornos disfásicos do tipo não-fluente ou dinâmico como se encontra nas demências fronto-temporais (DFTs) ou outras afecções de acometimento predominante cortical. A disrupção dislógica do discurso no esquizofrênico é muito mais pontuada de ocorrências delirantes e emergências afetivas anômalas ou paratímicas que perturbam também o comportamento global. Esquizofrênicos também geralmente não têm os problemas de agramatismo ou dissintaxia apresentados pelos DFTs. Por outro lado, pacientes cérebro-lesados por traumatismo crânio-encefálico apresentam incidência maior de transtornos do pensamento do tipo esquizofrênico, provavelmente porque têm, além de lesões corticais, acometimentos axonais subcorticais que cursam com uma síndrome disconectiva que, no entender de muitos autores, é uma das fortes candidatas à fisiopatologia da esquizofrenia26. Esta conectividade fronto-temporal é de fundamental importância para a memória de trabalho (donde a proximidade de sua área frontal com o lobo temporal) já que no decorrer de uma atividade, o frontal tem de acessar contínua, atentiva e dinamicamente a região hipocâmpica e outras áreas límbicas para se fazer uma correta correlação cognitivo-afetivo-emocional entre as experiências já vivenciadas e aquelas em curso15.

A análise dos transtornos lógico-executivos é muito complexa na esquizofrenia, uma vez que estes pacientes (pelo menos os não comprometidos gravemente) aparentemente não apresentam problemas de raciocínio lógico intrínseco ou formação de hipóteses como os cortico-lesados frontalmente27. De fato, doentes com lesões puramente frontais de convexidade (sem comprometimento maior temporolímbico ou da conectividade fronto-temporal) apresentam dificuldades executivas no processamento cognitivo (paralogias, disfluência) em tarefas nas quais há uma carga afetiva no discurso mas também mesmo nas tarefas que fazem evocar somente elementos cognitivos não-afetivos e não-pessoais (como observamos em nossa própria experiência, além da literatura a respeito deste assunto27-29). Já os pacientes esquizofrênicos, quando não severamente acometidos (por uma hebefrenia, por exemplo), motivados e fixados atencionalmente conseguem raciocinar logicamente e mesmo fazer hipóteses novas plausíveis quando têm de utilizar conhecimentos previamente adquiridos30. No entanto, esta tarefa se complica quando o paciente tem de utilizar um feedback contínuo entre dados externos que lhe estão sendo oferecidos e a reformulação da estratégia e do raciocínio em curso, quando então tem-se que operacionalizar conjuntamente: 1º - dados internos cognitivos, 2º - situações novas externas e 3º - o tratamento afetivo-cognitivo destes "inputs" externos (checar se já foram vividos ou não; se a situação se encaixa ou não com estratégias anteriores; se é uma situação neutra, prazerosa ou desagradável, - como exemplos) e aí o processo conjunto é rompido. Mais uma vez, uma dissinergia fronto-límbica (sobretudo fronto-hipocâmpica)31 é evocada para se explicar global e articuladamente estes fatos.

Neste estudo estivemos às voltas com um problema nosográfico: a classificação destes pacientes esquizofrênicos agudos com importantes transtornos formais do pensamento. De acordo com as especificações do DSM IV e CID X, estas alterações do pensamento seriam fortemente sugestivas de um subtipo hebefrênico de esquizofrenia. No entanto, estes pacientes, uma vez passado o surto, têm uma apresentação e uma evolução muito mais enquadradas dentro da forma paranóide da doença. Por outro lado, faz parte de nossa experiência clínica, a desorganização formal (assim como do conteúdo) do pensamento de pacientes esquizo-paranóides agudizados, e isto, ao nosso ver, não justifica a classificação destes pacientes entre os hebefrênicos neste período transitório da evolução de sua doença. Uma vez debelado o surto, e mesmo antes deste, não têm as características mais distintivas dos hebefrênicos, a nomear: início bem mais precoce, alterações cognitivas bem mais pronunciadas e do tipo de desinibição ou quadros moriformes frontais, alterações neuroimaginológicas mais importantes e geralmente presentes (aumento ventricular, aumento do espaço subaracnóideo sobretudo frontal), grande comprometimento funcional posterior nas esferas cognitiva, laboral, afetiva e social. Por estes motivos, ao invés de classificarmos nossos pacientes como hebefrênicos, pensamos ser mais justificada sua colocação entre os pacientes paranóides agudizados e, portanto, mais comprometidos quanto ao especto formal do pensamento.

De acordo com a hipótese levantada neste estudo, os elementos mais disruptores do discurso esquizofrênico seriam os elementos afetivo-emocionais e, evidentemente, novos trabalhos deveriam ser operacionalizados para testarem mais quantitativamente ou aprofundarem mais qualitativamente esta linha de raciocínio.

Dr. Marcelo Caixeta - Rua J-45 Q86,L 16, Setor Jaó - 74673-620 Goiânia GO - Brasil.

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  • *
    Médico Psiquiatra-Assistente do Centro Médico-Hospitalar ASMIGO, Médico Psiquiatra-Pesquisador da Universidade Federal de Goiás (UFGO);
    **
    Assistente-Médico do Serviço de Psiquiatria ASMIGO (Divisão de Neuropsicologia);
    ***
    Médico pós-graduando do Serviço de Neurologia (HC/USP). Aceite: 13-abril-1999.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Dez 2000
    • Data do Fascículo
      Set 1999

    Histórico

    • Aceito
      13 Abr 1999
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