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Marcação imunoistoquímica da expressão astrocitária de proteína glial fibrilar ácida e de vimentina no sistema nervoso central de cães com cinomose

Immunohistochemical staining of the astrocytic expression of glial fibrillary acidic protein and vimentin in the central nervous system of dogs with canine distemper

Resumos

Uma vez que muitos dos aspectos envolvidos na patogenia dos processos desmielinizantes do sistema nervoso central (SNC) são ainda pouco esclarecidos e que os astrócitos parecem estar envolvidos na mediação de tais processos, este estudo analisou morfologicamente a participação astrocitária na desmielinização do SNC por meio da marcação imunoistoquímica de duas proteínas dos filamentos intermediários astrocitários - a proteína glial fibrilar ácida (GFAP) e a vimentina (VIM) -, comparando amostras de cerebelo e de tronco encefálico de oito cães com cinomose e de dois cães normais, de diferentes raças e com idades entre um e quatro anos. Cortes histológicos dos tecidos foram submetidos à marcação pelo método indireto da avidina-biotina-peroxidase (ABC) e a reatividade astrocitária, observada em microscopia de luz, foi quantificada em um sistema computacional de análise de imagens. Observou-se, na maioria dos cortes de animais doentes, a presença de lesões degenerativas compatíveis com desmielinização. A marcação para a GFAP e para a VIM foi mais intensa nos animais com cinomose do que nos animais normais, especialmente nas regiões circunventriculares e nas adjacentes às áreas de degeneração tecidual. Não houve diferença significativa entre a imunomarcação (GFAP e VIM) dos animais com cinomose com e sem infiltração inflamatória da substância branca do cerebelo. O aumento da imunorreatividade dos astrócitos para a GFAP e a reexpressão de VIM nas áreas lesionais indicam o envolvimento astrocitário na resposta do tecido nervoso às lesões desmielinizantes induzidas pelo vírus da cinomose (CDV) no SNC.

astrócitos; desmielinização do SNC; cinomose canina; GFAP; vimentina


Considering that many aspects involved in the pathogenesis of the central nervous system (CNS) demyelinating diseases are still poorly understood and that astrocytes seem to mediate such processes, this study analyzed the participation of astrocytes in the demyelinating processes of CNS by using immunohistochemical staining of two astrocytic proteins - glial fibrillary acidic protein (GFAP) and vimentin (VIM) -, comparing samples of cerebellum and brainstem from eight dogs with canine distemper and from two healthy dogs, from different breeds and ages varying from 1 to 4 years old. Histological sections were submitted to the avidin-biotin-peroxidase indirect method of immmunohistochemical staining (ABC) and the astrocytic reactivity, observed in light microscopy, was quantified in a computer system for image analysis. It was possible to notice, on most of the sections from sick animals, degenerative lesions that indicate demyelination. The immunostaining for GFAP and VIM was more intense on animals with canine distemper, specially around the ventricules and near degenerated sites. There was no significant difference between the immunostaining (GFAP and VIM) of animals with canine distemper with and without inflammatory infiltrate of the cerebellar white matter. The increased immunoreactivity of astrocytes for GFAP and the VIM reexpression in injured areas indicate the astrocytic involvement on nervous tissue response to the demyelinating lesions induced by the canine distemper virus (CDV) in the CNS.

astrocytes; CNS demyelination; canine distemper; GFAP; vimentin


ARTIGOS

Marcação imunoistoquímica da expressão astrocitária de proteína glial fibrilar ácida e de vimentina no sistema nervoso central de cães com cinomose

Immunohistochemical staining of the astrocytic expression of glial fibrillary acidic protein and vimentin in the central nervous system of dogs with canine distemper

Heloísa OrsiniI; Eduardo Fernandes BondanII; Melissa SanchezIII; Maria Anete LalloIV; Paulo César MaiorkaV; Maria Lúcia Zaidan DagliVI; Dominguita Luthers GraçaVII

IMestranda em Medicina Veterinária na Universidade Paulista (2005-2006), Professora Auxiliar da Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo SP, Brasil (UNICSUL)

IIProfessor Titular da Universidade Paulista, São Paulo SP, Brasil (UNIP) e da UNICSUL

IIIProfessora Auxiliar da UNIP e da UNICSUL

IVProfessora Titular da UNIP e da UNICSUL

VProfessor Assistente, Departamento de Patologia Animal da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de São Paulo, São Paulo SP, Brasil (FMVZ/USP)

VIProfessora Titular, Departamento de Patologia Animal da FMVZ/USP

VIIProfessora Titular, Departamento de Patologia da Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria RS, Brasil (UFSM). Apoio Financeiro: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

RESUMO

Uma vez que muitos dos aspectos envolvidos na patogenia dos processos desmielinizantes do sistema nervoso central (SNC) são ainda pouco esclarecidos e que os astrócitos parecem estar envolvidos na mediação de tais processos, este estudo analisou morfologicamente a participação astrocitária na desmielinização do SNC por meio da marcação imunoistoquímica de duas proteínas dos filamentos intermediários astrocitários – a proteína glial fibrilar ácida (GFAP) e a vimentina (VIM) –, comparando amostras de cerebelo e de tronco encefálico de oito cães com cinomose e de dois cães normais, de diferentes raças e com idades entre um e quatro anos. Cortes histológicos dos tecidos foram submetidos à marcação pelo método indireto da avidina-biotina-peroxidase (ABC) e a reatividade astrocitária, observada em microscopia de luz, foi quantificada em um sistema computacional de análise de imagens. Observou-se, na maioria dos cortes de animais doentes, a presença de lesões degenerativas compatíveis com desmielinização. A marcação para a GFAP e para a VIM foi mais intensa nos animais com cinomose do que nos animais normais, especialmente nas regiões circunventriculares e nas adjacentes às áreas de degeneração tecidual. Não houve diferença significativa entre a imunomarcação (GFAP e VIM) dos animais com cinomose com e sem infiltração inflamatória da substância branca do cerebelo. O aumento da imunorreatividade dos astrócitos para a GFAP e a reexpressão de VIM nas áreas lesionais indicam o envolvimento astrocitário na resposta do tecido nervoso às lesões desmielinizantes induzidas pelo vírus da cinomose (CDV) no SNC.

Palavras-chave: astrócitos, desmielinização do SNC, cinomose canina, GFAP, vimentina.

ABSTRACT

Considering that many aspects involved in the pathogenesis of the central nervous system (CNS) demyelinating diseases are still poorly understood and that astrocytes seem to mediate such processes, this study analyzed the participation of astrocytes in the demyelinating processes of CNS by using immunohistochemical staining of two astrocytic proteins – glial fibrillary acidic protein (GFAP) and vimentin (VIM) –, comparing samples of cerebellum and brainstem from eight dogs with canine distemper and from two healthy dogs, from different breeds and ages varying from 1 to 4 years old. Histological sections were submitted to the avidin-biotin-peroxidase indirect method of immmunohistochemical staining (ABC) and the astrocytic reactivity, observed in light microscopy, was quantified in a computer system for image analysis. It was possible to notice, on most of the sections from sick animals, degenerative lesions that indicate demyelination. The immunostaining for GFAP and VIM was more intense on animals with canine distemper, specially around the ventricules and near degenerated sites. There was no significant difference between the immunostaining (GFAP and VIM) of animals with canine distemper with and without inflammatory infiltrate of the cerebellar white matter. The increased immunoreactivity of astrocytes for GFAP and the VIM reexpression in injured areas indicate the astrocytic involvement on nervous tissue response to the demyelinating lesions induced by the canine distemper virus (CDV) in the CNS.

Key words: astrocytes, CNS demyelination, canine distemper, GFAP, vimentin.

Diversos eventos patológicos possuem como efeito final a desmielinização do sistema nervoso central (SNC)1,2. Muitos dos fatores envolvidos nos processos de perda e de reparo mielínico, no entanto, são ainda pouco esclarecidos3-6. Na tentativa de elucidar os eventos celulares envolvidos nos processos de desmielinização e de remielinização do SNC e de buscar estratégias terapêuticas que solucionem ou previnam os danos gerados, têm sido desenvolvidos estudos empregando modelos experimentais de desmielinização1, e a cinomose – grave doença viral de cães e outros carnívoros4,5,7 – pode ser considerada como um importante modelo para auxílio no esclarecimento de tais questões3-6. As lesões desmielinizantes causadas pelo vírus da cinomose (CDV) no SNC se assemelham, em muitos aspectos, às geradas em doenças desmielinizantes humanas, tais como a esclerose múltipla4,5,8 e a panencefalite esclerosante subaguda9. Nos estudos dos mecanismos envolvidos nos processos de desmielinização e de remielinização do SNC diversos tipos celulares têm sido avaliados. Alguns desses estudos revelaram que, apesar da existência de infecção de oligodendrócitos pelo CDV, evidências de replicação viral não são encontradas nessas células, descartando a possibilidade de a desmielinização ser gerada por ação direta dos vírus neste tipo celular6,10. O acometimento neuronal pelo CDV também é muito pequeno para desencadear a perda maciça de mielina observada nas lesões desmielinizantes11. A participação de células inflamatórias é sugerida por outros autores como causa de desmielinização; entretanto, tais células encontram-se presentes apenas na fase crônica das doenças desmielinizantes3,8,12,13. Assim, a desmielinização aguda deve estar relacionada à ação de outros tipos celulares, tais como a micróglia14,15 e os astrócitos6,10,14.

Os astrócitos, componentes da macróglia e responsáveis por diferentes funções de controle da homeostasia no interior do SNC6,16-18, são sugeridos como mediadores dos processos de desmielinização do tecido nervoso, visto que respondem prontamente a uma ampla variedade de estímulos agressores7,16,18,19 e desempenham funções imunológicas3, como, por exemplo, fagocitose, apresentação de antígenos12,14,18,20,21 e liberação de fatores tóxicos e citocinas pró-inflamatórias e antiinflamatórias10,16,18,21. A reatividade astrocitária se manifesta com proliferação (astrocitose) e hipertrofia (astrogliose)7,18, expressando-se com aumento na quantidade de filamentos intermediários e de suas proteínas constituintes, tais como a proteína glial fibrilar ácida (GFAP) e a vimentina (VIM), contidas no citoplasma celular16,22,23. A GFAP é o principal componente estrutural dos astrócitos de indivíduos adultos e a VIM é predominante no período embrionário, sendo perdida conforme ocorre o amadurecimento celular16,18,23,24. Nas lesões do SNC, é comum a expressão de GFAP tornar-se muito intensa7,25-28, e a VIM, antes perdida, ser reexpressa23,25,28.

Este estudo teve como objetivo investigar a resposta morfológica e a distribuição dos astrócitos frente ao processo desmielinizante do SNC na cinomose canina, por meio da marcação imunoistoquímica da reatividade da GFAP e da VIM, com o intuito de inferir aspectos relativos ao comportamento destas células na patogenia da desmielinização do SNC.

MÉTODO

Com a intenção de avaliar a desmielinização gerada em processos naturais, não induzidos experimentalmente, este trabalho utilizou material proveniente de arquivos de necropsia. Amostras de cerebelo e de tronco encefálico de cães que vieram a óbito com diagnóstico histopatológico de cinomose e de cães clinicamente normais (sem lesões observáveis no SNC) foram analisadas neste estudo; entretanto, somente amostras que se adequavam a critérios de preservação antigênica e tecidual previamente determinados foram selecionadas. Foram examinadas apenas amostras recentes, que não permaneceram por mais de uma semana no método de fixação, e provenientes de animais que apresentavam características histológicas semelhantes na análise do material em microscopia de luz – no caso dos animais doentes, amostras com vacuolização tecidual e algum nível de infiltração inflamatória perivascular, ou seja, de animais que morreram na fase crônica da desmielinização. Foram utilizadas neste estudo oito amostras de cerebelo e cinco de tronco encefálico de oito cães com cinomose, de diferentes raças e idade entre um e quatro anos, e duas amostras de dois cães clinicamente normais, com as mesmas características de raça e idade. As amostras, previamente fixadas em formol tamponado a 10% e incluídas em parafina, foram submetidas à marcação imunoistoquímica da GFAP e da VIM, pelo método indireto do complexo avidina-biotina-peroxidase (ABC). Cortes histológicos (de 5 µm de espessura) foram submetidos à coloração por hematoxilina e eosina (HE), servindo como controle histopatológico. Para a marcação imunoistoquímica da GFAP e da VIM, cortes histológicos das amostras foram coletados em lâminas silanizadas (Stairfrost®-Objektträger, Medite Medizintechnik).

A marcação das proteínas gliais seguiu o método utilizado por Bondan et al.25 e Sanchez et al.28 nos seus estudos com ratos Wistar. Os cortes colhidos em lâminas silanizadas foram desparafinados em xilol e hidratados em uma seqüência decrescente de etanóis. Foram, então, incubados durante 24 horas, a 4ºC, com o anticorpo primário policlonal anti-GFAP (Rabbit anti-cow GFAP, code number ZO334, DAKO) ou com o anticorpo monoclonal anti-VIM (Mouse anti-swine VIM, code number MO725, DAKO), padronizados, respectivamente, nas diluições 1:1000 e 1:200. Posteriormente, foram incubados por uma hora com o anticorpo secundário biotinilado anti-imunoglobulinas de coelho e anti-imunoglobulinas de camundongo (Novostain Super ABC Kit, Novocastra), na diluição 1:100 e, após, com o conjugado estreptavidina-biotina-peroxidase (Novostain Super ABC Kit, Novocastra) por mais uma hora. A imunorreatividade foi visualizada pela aplicação sobre os cortes de diaminobenzidina (DAB, Sigma) a 0,1% como cromógeno e peróxido de hidrogênio a 0,5%. Os cortes foram contracorados com hematoxilina, desidratados, diafanizados e montados com resina sintética sob lamínula. Todas as reações foram acompanhadas por lâminas de controle negativo, submetidas a todas as etapas do procedimento, exceto à aplicação do anticorpo primário.

Áreas de 302.952,5 µm2 dos cortes submetidos à prova imunoistoquímica foram analisadas em microscopia de luz (com objetiva de 10X), para avaliação da imunorreatividade das células marcadas para a GFAP ou para a VIM (coradas em castanho). Foram tomadas medidas de cada uma das três regiões cerebelares selecionadas, seguindo o critério utilizado por Headley et al.26: R-1 (constituída pela substância branca abaixo das folias cerebelares), R-2 (composta pela base das folias, contendo, além da substância branca, as camadas granular e molecular) e R-3 (contendo as mesmas estruturas de R-2, mas obtida da extremidade distal das folias cerebelares). A imunorreatividade das proteínas gliais também foi avaliada na substância branca do cerebelo dos animais doentes nas condições de presença e ausência de infiltração inflamatória perivascular e nas condições de presença e ausência de degeneração tecidual. Do tronco encefálico, medidas dos animais normais e dos animais com cinomose foram tomadas de duas regiões selecionadas: uma imediatamente abaixo do epêndima (r-I) e outra mais ventral (r-II). Comparações intergrupos e intragrupo foram estabelecidas.

A reatividade astrocitária foi determinada por colorimetria em um sistema computacional de análise de imagens, o Image-Pro Plus 4.5 (Media Cybernetics, Silver Spring, EUA), quantificando, em µm2, a área marcada em castanho contida na área total de 302.952,5 µm2. Os resultados numéricos obtidos no software foram submetidos à análise estatística pelos métodos não-paramétricos de Mann-Whitney e Kruskal-Wallis, utilizando-se a mediana como estimador da medida de posição e o intervalo interquartil (diferença entre os valores dos percentis 75 e 25) como estimador da medida de dispersão. A significância estatística para todas as provas foi aceita em a < 0,05.

Este estudo foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Paulista (UNIP) – São Paulo, 2005.

RESULTADOS

Observou-se, na análise histopatológica dos cortes corados por HE dos animais com cinomose, a presença de degeneração (caracterizada por microcavitações teciduais) em todas as amostras, variando em intensidade e extensão (Fig 1A). Lesões degenerativas mais intensas foram encontradas na substância branca e nas regiões circunventriculares do cerebelo e do tronco encefálico. A infiltração de células inflamatórias (linfócitos e monócitos) foi observada em todos os cortes, especialmente nas regiões perivasculares da substância branca (Fig 1B); entretanto, apresentaram variações no número de camadas de células inflamatórias que compunham os manguitos. Corpúsculos de inclusão eosinofílicos intranucleares foram encontrados em astrócitos. Nas amostras obtidas de animais normais, não foram observadas quaisquer alterações estruturais ou celulares no tecido nem a presença de infiltrados inflamatórios.


Na análise da marcação para a GFAP, os cortes provenientes de animais com cinomose apresentaram células positivas para a proteína distribuídas de forma difusa por toda a extensão do tecido, especialmente na substância branca, nas áreas circunventriculares do cerebelo e do tronco encefálico e nas proximidades das áreas com degeneração. Dentre as regiões selecionadas para a quantificação computacional, R-1 do cerebelo (composta apenas pela substância branca) e r-I do tronco encefálico (constituída pela região imediatamente abaixo do epêndima) obtiveram marcação mais intensa. A imunorreatividade astrocitária foi maior no grupo de animais doentes do que no de animais normais (Fig 2A e 2B). As células marcadas para a GFAP nos animais com cinomose apresentaram aumento no volume do citoplasma e na extensão dos prolongamentos celulares, além de coloração mais intensa do citoplasma.


A marcação imunoistoquímica da VIM nos cortes provenientes de animais doentes revelou que as células positivas para a proteína estavam presentes em grandes quantidades nas regiões com degeneração e nas proximidades do quarto ventrículo. As regiões sem alterações teciduais visíveis não apresentaram marcação ou a marcação foi escassa. Outros tipos celulares, tais como células endoteliais, ependimárias, meníngeas, glia de Bergmann no cerebelo e células monocíticas fagocitárias nos animais que continham infiltração inflamatória, apresentaram-se marcados para a VIM. Da mesma forma que a marcação para a GFAP, a marcação para a VIM foi maior nos animais com cinomose do que nos animais normais (Fig 3A e 3B). Nos animais normais, apenas alguns astrócitos apresentaram marcação positiva para a VIM. Tais astrócitos estavam presentes predominantemente na região subependimal e, em comparação aos animais com cinomose, o citoplasma de tais células mostrou-se muito menos abundante, assim como a extensão dos seus prolongamentos.


Nas regiões do cerebelo com infiltração inflamatória, especialmente ao redor de manguitos perivasculares com mais de cinco camadas de células inflamatórias, a marcação para a GFAP foi menos intensa do que em outras regiões da substância branca (Fig 4A). Por outro lado, e ao contrário do observado na marcação da GFAP, as regiões próximas a manguitos perivasculares apresentaram células morfologicamente compatíveis com astrócitos marcadas para a VIM, especialmente quando os manguitos continham um número maior de camadas de células inflamatórias. Nestas condições, o citoplasma das células positivas também se mostrou mais volumoso (Fig 4B e 4C).


A análise estatística das regiões cerebelares (R-1, R-2 e R-3) revelou diferença significativa (p<0,0010) entre os animais com cinomose e os animais normais, sendo os valores obtidos, na marcação para a GFAP e para a VIM, menores nos animais normais. Observou-se, ainda nessa análise, diferenças importantes (p=0,0160) entre as regiões R-1 e R-3 em relação à VIM, sendo a marcação para a VIM maior em R-1 do que em R-3 (Tabela 1). Na análise da substância branca do cerebelo quanto à presença ou não de infiltração inflamatória, constatou-se que os animais normais apresentaram menor marcação para a GFAP e para a VIM (p<0,0001) do que os animais doentes, independentemente de, nestes, o tecido apresentar ou não infiltração inflamatória. Na comparação intragrupo (animais doentes com e sem infiltração inflamatória), nenhuma diferença considerada significativa foi observada (Tabela 2). A análise da substância branca do cerebelo quanto à marcação para a GFAP e para a VIM, na presença ou ausência de degeneração tecidual, demonstrou que tal marcação foi significativamente menor (p<0,0001) nos animais normais, independentemente da presença ou não de degeneração nos doentes. Além disso, a marcação para a VIM indicou diferença entre as situações com e sem degeneração – a marcação foi significantemente maior (p=0,0033) nas regiões com degeneração (Tabela 3). Em relação às regiões selecionadas do tronco encefálico (r-I e r-II), observou-se que a marcação para a GFAP e para a VIM foi significativamente menor (p< 0,0010) nos animais normais em comparação aos animais doentes. Nenhuma diferença significativa foi encontrada na análise intragrupo (comparação das regiões r-I e r-II) da marcação para a GFAP e para a VIM no tronco encefálico dos animais com cinomose e dos animais sadios (Tabela 4).

DISCUSSÃO

Este estudo teve por objetivo avaliar a resposta morfológica e a distribuição dos astrócitos na desmielinização do SNC na cinomose – importante doença infecciosa de cães e outros carnívoros4,5 –cuja desmielinização promovida no SNC se assemelha, em vários aspectos, à desenvolvida em diversas doenças desmielinizantes humanas4,5,8,9.

Uma vez que os astrócitos são células que respondem prontamente a ampla variedade de insultos ao tecido nervoso7,17,18,20,22,23 e que correspondem à principal célula infectada pelo CDV10,13, o estudo do comportamento astrocitário nas lesões desmielinizantes do SNC mostra-se importante, especialmente na inferência de possíveis funções dessas células na mediação do processo inflamatório relacionado à desmielinização.

Neste estudo, amostras de cerebelo e de tronco encefálico de animais que vieram a óbito por cinomose foram avaliadas por meio da marcação imunoistoquímica da GFAP e da VIM (proteínas componentes dos filamentos intermediários dos astrócitos, cujo aumento durante os processos de injúria do tecido nervoso sinaliza reatividade astrocitária)16,22,23. A escolha do cerebelo e do tronco encefálico baseou-se em informações anteriores de que tais regiões são bastante acometidas por lesões desmielinizantes provocadas pelo CDV5,14.

É sabido que frente às lesões do SNC ocorre um aumento na expressão astrocitária de GFAP e a VIM, presente nos astrócitos apenas durante os períodos embrionário e pós-natal23,24, pode voltar a se expressar23. O aumento na expressão da GFAP e a reexpressão da VIM, seguidos à injúria, foram relatados nos experimentos de Bondan et al.25 e Sanchez et al.28 nas regiões adjacentes às lesões desmielinizantes promovidas no tronco encefálico de ratos Wistar. O aumento da GFAP também foi referido por Headley et al.26 em cães com cinomose e por Lemos e Alessi27 em cavalos com leucoencefalomalácea (LEM), que constataram inclusive um aumento na expressão de GFAP em regiões sem alterações visíveis nos animais doentes, sugerindo a participação astrocitária na patogenia da LEM.

No presente trabalho, o aumento da expressão da GFAP e a reexpressão da VIM em células morfologicamente compatíveis com astrócitos foram observados não apenas nos sítios imediatos às lesões degenerativas, mas também em diferentes locais por toda a extensão do tecido. Observou-se também que a imunorreatividade das proteínas astrocitárias nas três regiões cerebelares (R-1, R-2 e R-3) foi maior nos animais com cinomose do que nos animais normais, especialmente em R-1. Tal resultado foi compatível com o obtido na marcação imunoistoquímica da GFAP no cerebelo de cães com cinomose por Headley et al.26, que notaram diferenças significativas entre as três regiões, sendo a marcação maior em R-1 e menor em R-2 e R-3, respectivamente.

Uma vez que R-1 corresponde apenas à substância branca do cerebelo e que a mesma é tida como um local importante de replicação viral e de desmielinização na cinomose5,14, conclui-se que o aumento da reatividade astrocitária demonstrado nesta região acompanha o processo desmielinizante do SNC pelo vírus. Essa constatação na referida doença pode ser embasada pela observação feita, nos animais doentes, de que regiões da substância branca com áreas de degeneração, compatíveis com desmielinização, apresentaram marcação significantemente superior para a VIM do que as áreas sem degeneração. Além disso, a marcação da GFAP e da VIM na substância branca do tronco encefálico foi maior nos animais com cinomose do que nos animais normais.

Com base na descrição de que citocinas (tais como o IFN-g e o TNF-a), potencialmente deletérias à mielina ou aos oligodendrócitos, são liberadas por astrócitos21, a reatividade astrocitária (observada neste estudo pelo aumento na expressão das fibrilas gliais) pode estar relacionada ao desencadeamento do processo de desmielinização. Assim, no caso da cinomose canina, a infecção do SNC, ou apenas dos próprios astrócitos, pelo CDV poderia ativar funções inflamatórias astrocitárias, que causariam a desmielinização do SNC como efeito secundário à tentativa de combate ao vírus por essas células.

Neste estudo, a análise das regiões subependimárias e mais ventrais do tronco encefálico e a análise da substância branca do cerebelo (nas condições de presença e ausência de infiltração inflamatória perivascular) dos animais com cinomose também foram realizadas. Observou-se que a marcação da GFAP e da VIM foi maior nas regiões subpendimárias do tronco encefálico e que a marcação da VIM na região perivascular do cerebelo foi mais evidente quando o infiltrado era maior (com maior número de camadas de células inflamatórias). Apesar de nenhuma diferença estatisticamente significante ter sido obtida para os resultados acima mencionados – o que pode ser devido à alta variabilidade de resultados encontrados nas amostras –, tal observação permite uma especulação a respeito da reatividade astrocitária frente à infecção do SNC pelo CDV ou ainda sobre a sua ação no processo inflamatório do tecido nervoso.

Alguns autores relatam em seus experimentos a possibilidade de o CDV se dispersar por meio do líquor3,4,11,14. O aumento da reatividade astrocitária, bem como o da degeneração tecidual, nas regiões subependimárias (que apresentam contato com o líquor) poderia indicar uma relação entre a presença do vírus, a ação astrocitária e a desmielinização dessa região. Além disso, sabe-se que o CDV é um vírus que se dissemina pelo sangue4,5 e que a penetração de células inflamatórias no SNC também se dá pela circulação sangüínea5,7,13. Uma vez que os astrócitos desempenham diferentes funções de proteção do tecido nervoso16,17,18, o aumento da reatividade astrocitária perivascular poderia estar relacionado à função de proteção do SNC por essas células (mediando o processo inflamatório) ou à ativação dessas células pelo próprio vírus ou mesmo por elementos do sistema imunológico. A comunicação entre os elementos do sistema imunológico e os astrócitos é sugerida por alguns autores como mediadora dos processos inflamatórios20,21 e poderia estar relacionada também à desmielinização.

Uma vez que os astrócitos possuem a habilidade de liberar mediadores pró-inflamatórios16,17,18,21, a ação deste tipo celular no desencadeamento de uma reação inflamatória seguida à infecção do SNC pelo CDV, com conseqüente desmielinização do tecido nervoso, pode ser sugerida. Por outro lado, ações antiinflamatórias também são descritas em astrócitos15,21. Assim, da mesma forma que a micróglia, os astrócitos poderiam exercer funções mediadoras da resposta inflamatória antiviral, realizando fagocitose e liberando citocinas pró-inflamatórias, tais como o TNF-a e o IFN-g, que promovem como efeito indireto a destruição das bainhas de mielina10,16, assim como liberando mediadores antiinflamatórios (TGF-b, por exemplo) como mecanismo de contra-regulação inflamatória, na tentativa de promover o retorno à homeostasia15.

Com base na acentuada diferença encontrada na imunorreatividade astrocitária entre os animais doentes e os normais, independentemente de se definir qual a função exata do aumento da reatividade astrocitária nas lesões desmielinizantes, é possível concluir que a resposta astrocitária participa ou está envolvida com as lesões desmielinizantes induzidas pelo vírus da cinomose no SNC.

Recebido 15 Fevereiro 2007, recebido na forma final 29 Maio 2007. Aceito 30 Julho 2007.

Dra. Heloísa Orsini de Souza - Avenida Clavásio Alves da Silva 820 / ed. 3 / apto 154 - 02722-030 São Paulo SP - Brasil. E-mail: helorsini@yahoo.com.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2007

Histórico

  • Revisado
    29 Maio 2007
  • Recebido
    15 Fev 2007
  • Aceito
    30 Jul 2007
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