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Abraham Arden Brill

IN MEMORIAM

Abraham Arden Brill

A 2 de março faleceu, aos 73 anos de idade, Abraham Arden Brill, o introdutor da obra de Freud em terras da América. Natural da Áustria, emigrou para os Estados Unidos aos quinze anos de idade, chegando só e desprovido de quaisquer recursos, à cidade de Nova York. Nessa imensa cidade conheceu, logo de início, a penosa escola da necessidade imediata da própria subsistência; trabalhava durante o dia e estudava à noite, impulsionado pela profunda ânsia de saber, que dominou inteiramente a sua personalidade; entretanto, por duas vezes, a primeira no curso secundário, e a segunda já no curso médico, viu-se obrigado a interromper por algum tempo os estudos, diante da premência de dificuldades de ordem financeira!

Em 1903, aos 29 anos de idade, concluiu o curso médico pela Universidade de Columbia, passando a trabalhar sob a orientação de Adolf Meyer, no Central Islip Hospital, no qual chegou a ocupar o posto de neuropatologista. Por essa época, a preocupação máxima da psiquiatria era o aspecto neuropatológico dos problemas que surgiam, os recursos terapêuticos se limitando aos sedativos, hipnóticos, aplicações hidroterápicas; do ponto de vista clínico, era o rigor da classificação e da catalogação dos pacientes, que empolgava a atenção dos psiquiatras. Essa situação, relativamente árida, começou a ameaçar o entusiasmo de Brill pela especialidade que abraçara, pelo que, em 1907, dirigiu-se a Paris a fim de buscar, junto aos discípulos de Charcot, respostas às dúvidas que se vinham tornando cada vez mais prementes em seu espírito. Aí, entretanto, o ambiente era pouco diferente do que deixara em Nova York. as mesmas preocupações de ordem neuropatológica, o mesmo excessivo zêlo pelo rigorismo da classificação, o ambiente, enfim, do franco apogeu da era kraepeliniana da psiquiatria. A essa altura, estava Brill pensando seriamente em abandonar a especialidade, e talvez se tornasse mesmo um otorrinolaxingologista, não fora a orientação de um colega americano que se achava em Paris, e que o aconselhara a se dirigir para Zurich, na Suíça.

Entrou Brill em contacto com o grupo dos Bleuler, Jung e Abraham, que, na ocasião, se achavam interessados na verificação da aplicabilidade das teorias de Freud ao estudo das psicoses; percebeu Brill o extraordinário alcance e profundidade dos estudos que estavam sendo realizados e, à luz dessas novas concepções, passou a compreender, retrospectivamente, os quadros que vira no hospital de Nova York e que tão enigmáticos e bizarros lhe pareceram na ocasião. Após ter mantido contacto pessoal com Freud, que lhe confiou a tradução de suas obras para o inglês, voltou a Nova York, desta vez armado com a ciência da qual seria, não apenas o pioneiro e divulgador, mas, ainda, para cujo desenvolvimento concorreria com o brilhantismo de sua inteligência, a serviço de uma cultura profundamente polimorfa e humanística.

O ano de 1908, com o retorno de Brill da Europa, marcou o início da psicanálise no continente americano; nesse ano, iniciou sua clínica psicanalítica e, desde então até sua morte, permaneceu como força diretriz e dominante na afirmação da psicanálise. Durante o período de 1908 a 1910, foi Brill o único psicanalista de Nova York, tendo tido, nessa época, dois discípulos que exerceram funda impressão na ciência psiquiátrica americana: James J. Putnam, da Universidade de Harvard, e Smith Ely Jelliffe, que foi, mais tarde, cognominado por Freud como o pai da medicina psicossomática.

Além das traduções das obras de Freud, que tornaram accessíveis aos povos da língua inglesa o conhecimento das teorias psicanalíticas, publicou Brill, em 1912, o livro "A Psicanálise - suas teorias e aplicações práticas"; em 1922, "Os conceitos fundamentais da Psicanálise"; em 1944, "A contribuição de Freud à Psiquiatria"; em 1946, "Lições de Psiquiatria Psicanalítica". E em todos os seus quarenta anos de atividades científicas, seus trabalhos publicados, em número superior a 150, abrangeram os mais variados setôres de atividades psiquiátricas, psicanalíticas, intelectuais e artísticas, esquadrinhando a personalidade humana e a sua sociedade com a segurança que lhe conferia a extraordinária vivacidade de espírito, a serviço de sólida cultura, profusamente iluminada pela ciência psicanalítica. Dificilmente poderemos destacar um de seus trabalhos, dada a honestidade e o rigor científico característicos de toda a sua obra; a enumeração de alguns poucos temas servirá apenas como índice da diversidade de seus conhecimentos e de suas preocupações. Assim é que se verificam contribuições originais para o estudo da psicopatologia das psicoses à luz da psicanálise, o estudo da participação dos sonhos e dos fatores inconscientes nas neuroses, de certas formas de histeria entre os esquimós, a psicopatologia das dansas modernas, o problema rio ajustamento dos judeus, o estudo de problemas de personalidade ligados ao uso de álcool e fumo, distúrbios da palavra, questões de literatura, estudos sôbre o cinema para crianças, sobre os filmes de Walt Disney, abordando igualmente questões sociais, como o problema da paz permanente, do crime, eutanásia, do exame pré-nupcial.

No início de suas atividades como psicanalista, época em que a psicanálise em sua pátria de origem apenas começava a forçar alguns círculos médicos europeus, Brill, polemista brilhante e apaixonado, soube impôr as teorias de Freud e criar o ambiente que permitiu o seu extraordinário surto de desenvolvimento, tal como o presenciamos em nosso continente, em nossos dias. Em 1911, fundou a Sociedade Psicanalítica de Nova York e, poucos meses mais tarde, a Associação Americana de Psicanálise, tendo, por várias vêzes, exercido a presidência de ambas, foi, igualmente, presidente da Sociedade de Psiquiatria e da Sociedade de Neurologia de Nova York. Quando, pela primeira vez, as portas de uma universidade se abriram para o ensino da psicanálise, foi Brill o escolhido para reger seu ensino, na Universidade de Columbia.

Incansável era o seu interêsse pela formação de novos analistas, exercendo, nesse sentido, atividades didáticas no Instituto Psicanalítico de Nova York. No dia de seu 73.° aniversário, que ocorreu num domingo, deixou a companhia dos parentes e amigos reunidos para festejar a data, a fim de não faltar a um encontro com um discípulo, cujo trabalho clínico estava supervisionando!

Lembrando as palavras proferidas por Brill, por ocasião da inauguração de seu busto em bronze na Biblioteca Abraham Arden Brill da Sociedade Psicanalítica de Nova York, ousamos afirmar que seu plano de vida será eternamente "uma inspiração para todos nós" e que sua obra acompanhará os tempos, "a serviço das futuras gerações de estudiosos dos problemas da mente".

Henrique Mendes

Lido na Secção de Neuro-Psiquiatria da Associação Paulista de Medicina em 5 agosto 1948.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Fev 2015
  • Data do Fascículo
    Mar 1949
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