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Lupus eritematoso sistêmico associado a miastenia gravis: relato de caso

Systemic lupus erythematosus and myasthenia gravis: case report

Resumos

Os autores descrevem o caso de uma mulher branca de 24 anos de idade admitida com lupus eritematoso sistêmico (com 4 anos de evolução de doença) e início recente de miastenia gravis. São discutidos os principais diagnósticos diferenciais para a fraqueza muscular e a fadiga apresentadas por esta paciente. Uma revisão de literatura abordando a associação de miastenia gravis e lupus eritematoso é feita, com ênfase às características clínicas desses pacientes e ao papel do timoma e timectomia no desenvolvimento de lupus eritematoso em pacientes previamente miastênicos.

lupus eritematoso sistêmico; miastenia gravis


We report the case of a 24-year-old white woman admitted with a four year diagnosis of systemic lupus erythematosus and the recent onset of myasthenia gravis discussing the main differential diagnosis of weakness and fatigue in this patient. A review of literature approaching the association of myasthenia gravis and systemic lupus erythematosus is also done with emphasis on the clinical characteristics of these patients and the role of thymoma and thymectomy in the development of systemic lupus erythematosus in myasthenic patients.

systemic lupus erythematosus; myasthenia gravis


LUPUS ERITEMATOSO SISTÊMICO ASSOCIADO A MIASTENIA GRAVIS

RELATO DE CASO

MARCIO F. DE CARVALHO* * Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Universitário Antônio Pedro, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil: Médico da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Antônio Pedro; ** Chefe da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Antônio Pedro. Aceite: 10-outubro-1997. , TERESA C. M. ABRAHÃO* * Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Universitário Antônio Pedro, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil: Médico da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Antônio Pedro; ** Chefe da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Antônio Pedro. Aceite: 10-outubro-1997. , MOUNIR ASSAF** * Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Universitário Antônio Pedro, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil: Médico da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Antônio Pedro; ** Chefe da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Antônio Pedro. Aceite: 10-outubro-1997.

RESUMO - Os autores descrevem o caso de uma mulher branca de 24 anos de idade admitida com lupus eritematoso sistêmico (com 4 anos de evolução de doença) e início recente de miastenia gravis. São discutidos os principais diagnósticos diferenciais para a fraqueza muscular e a fadiga apresentadas por esta paciente. Uma revisão de literatura abordando a associação de miastenia gravis e lupus eritematoso é feita, com ênfase às características clínicas desses pacientes e ao papel do timoma e timectomia no desenvolvimento de lupus eritematoso em pacientes previamente miastênicos.

PALAVRAS-CHAVE: lupus eritematoso sistêmico, miastenia gravis.

Systemic lupus erythematosus and myasthenia gravis: case report

ABSTRACT - We report the case of a 24-year-old white woman admitted with a four year diagnosis of systemic lupus erythematosus and the recent onset of myasthenia gravis discussing the main differential diagnosis of weakness and fatigue in this patient. A review of literature approaching the association of myasthenia gravis and systemic lupus erythematosus is also done with emphasis on the clinical characteristics of these patients and the role of thymoma and thymectomy in the development of systemic lupus erythematosus in myasthenic patients.

KEY WORDS: systemic lupus erythematosus, myasthenia gravis.

O lupus eritematoso sistêmico (LES) e a miastenia gravis (MG) são doenças pouco frequentes, mas não raras. A prevalência de LES é de 1,5 a 5 casos para cada 10000 habitantes enquanto a MG ocorre pelo menos uma vez em cada 10000 indivíduos. Desta forma, a probabilidade de um paciente desenvolver uma associação dessas duas doenças é extremamente baixa, mesmo quando recordamos que pacientes acometidos por uma primeira doença autoimune apresentam maior propensão para o desenvolvimento de uma segunda afecção desse mesmo grupo. Embora a associação de LES e MG tenha sido descrita na literatura, sua ocorrência não foi claramente explicada por estudos epidemiológicos.

RELATO DO CASO

Uma mulher branca de 24 anos de idade foi admitida no hospital com insuficiência respiratória aguda. Visão dupla, alteração da fala e dificuldade para deglutir estavam presentes nos dois meses que precederam a admissão. Quatro anos antes desta internação, foi feito diagnóstico de lupus eritematoso sistêmico através da detecção de lesões discóides cutâneas (Fig 1 ), fotossensibilidade, anticorpo antinuclear positivo com título de 1:640 e padrão homogêneo, proteinúria não seletiva de 0,72g/L/24h e uma preparação positiva para pesquisa de célula LE. Ela vinha sendo tratada com cloroquina e glicocorticosteróides tópicos mas utilizava as medicações de maneira irregular. A paciente negava o uso de álcool ou drogas recreacionais.


Um exame oftalmológico recente não revelou anormalidades da córnea ou retina. O exame físico de admissão evidenciou ptose palpebral bilateral, face miastênica (Fig 2) e fraqueza muscular afetando os músculos proximais das cinturas escapular e pélvica. Hipersensibilidade muscular à palpação, sinal de Gottron e heliotropo não foram observados.


A glândula tireóide não era palpável. Reflexos profundos e sensibilidade periférica eram normais. Murmúrio vesicular reduzido e estertores crepitantes no terço inferior do hemitórax direito foram as únicas anormalidades adicionais observadas neste mesmo exame físico.

Na admissão, as dosagens séricas de eletrólitos e complementos foram normais. A prova do látex, Waler Rose, proteina C reativa e VDRL foram todos negativos. Uma gasometria arterial evidenciou hipoxemia, hipercapnia e gradiente alvéolo-arterial de oxigênio normal corroborando o diagnóstico de hipoventilação pulmonar. As dosagens de creatinofosfoquinase, aldolase, aspartato aminotransferase, tiroxina, triiodotironina e hormônio tireostimulante foram normais. Telerradiografias do tórax evidenciaram atelectasia basal do pulmão direito. O teste com neostigmine foi claramente positivo. A eletroneuromiografia demonstrou padrão miastênico e o nível sérico de anticorpos antirreceptor da acetil colina foi 1,90 nmols/L (normal: < 0,80 nmol/L ). Uma tomografia computadorizada não demonstrou anormalidades no mediastino anterior. Baseados nesses dados, fizemos diagnóstico de miastenia gravis, estágio III da classificação de Osserman e Oosterhuis. Após administração de piridostigmina e glicocorticosteróides a paciente apresentou melhora progressiva e recebeu alta hospitalar em uso das referidas medicações.

Dois meses mais tarde, foi readmitida em crise miastênica. Nesta ocasião, a paciente foi submetida a sessões de plasmaferese, recebeu azatioprina e foi submetida a timectomia. O exame patológico do timo demonstrou hiperplasia dos centros germinais do órgão. Após a cirurgia, a paciente foi mantida num regime terapêutico que incluiu piridostigmina, glicocorticosteróides e azatioprina. Em função do tempo mínimo necessário para eficácia da cirurgia, não foram feitas modificações das doses (máximas) destes medicamentos. Recebeu alta do Centro de Tratamento Intensivo após desmame prolongado do suporte ventilatório.

DISCUSSÃO

Existem muitas causas de fraqueza muscular e fadiga em pacientes com lupus eritematoso sistêmico. As principais são as associações com polimiosite, dermatomiosite, mistenia gravis ou doenças da tireoide, uso de glicocorticosteróides, miopatia por cloroquina e o próprio LES. Uma associação entre a síndrome de Eaton-Lambert e o LES já foi descrita1. Na nossa paciente, entretanto, após avaliação clínica, apenas a miopatia por cloroquina e a MG permaneceram como possíveis diagnósticos definitivos.

A cloroquina é um antimalárico frequentemente prescrito para lupus cutâneo-articular. Uma síndrome miopática similar a miastenia gravis secundária ao uso deste medicamento pode originar padrão decremental de contração muscular e induzir a produção de anticorpos antirreceptor de acetilcolina. Estes achados são considerados virtualmente diagnósticos de MG. No mais, a cloroquina pode produzir um efeito pré-sináptico similar àquele observado com alguns anestésicos, um efeito musculoesquelético similar ao do curare, neuropatia periférica e uma miopatia vacuolar associados ou não com a síndrome miopática similar a miastenia gravis. A histopatologia típica da miopatia por cloroquina mostra vacuolização, autofagia e corpos mielóides e curvilineares no interior de fibras musculares. A miosite é rara, mas fendas subneurais atróficas podem ser encontradas. Entretanto, um teste claramente positivo com anticolinesterásicos não é observado e a interrupção da administração da cloroquina leva a regressão completa do problema. Além do mais, a hiperplasia tímica não é vista no contexto da miopatia por cloroquina2. Nós enfatizamos que, após suspensão da cloroquina, nossa paciente não melhorou. Uma biópsia muscular, embora contemplada, não foi realizada por esta razão.

Nossa revisão evidenciou 28 casos de associação de LES com MG3. A literatura médica publicada em outras línguas que não o Inglês ou Francês, revela outros 5 casos nos últimos 10 anos, os quais não abordaremos4-8 pela acessibilidade e por não modificarem nossas conclusões sobre o assunto. O LES precedeu o diagnóstico de MG em metade dos pacientes. Ciaccio et al9 ,em 1989, descreveram 42 pacientes com a associação LES/MG. Entretanto, quando reclassificados de acordo com os critérios propostos pela Associação Americana de Reumatologia para o diagnóstico de LES (1992), critérios estes aceitos mundialmente e responsáveis pela padronização do diagnóstico da doença, muitos desses pacientes não apresentavam os pré-requisitos necessários para o diagnóstico de lupus. Ressaltamos que a Associação Americana de Reumatologia determinou que para diagnóstico de lupus eritematoso sistêmico deveriam estar presentes pelo menos quatro dos doze critérios clínicos e laboratoriais propostos pela entidade.

Existe muita controvérsia a respeito da prevalência exata da associação LES/MG. Thorlacius et al.10 e Oesterhuis11 relataram que 2,2 a 8,3% dos pacientes com MG desenvolveram LES. A prevalência de MG em pacientes com LES não é conhecida. Uma predominância de pacientes do sexo feminino (26/28) e pico de incidência na segunda e terceira décadas de vida foram observados. Os sinais e sintomas de LES ou MG não foram diferentes daqueles observados em pacientes com formas puras das duas doenças. Todavia, pacientes com MG usualmente apresentaram formas mais severas de doença10.

A literatura sugere que alguns pacientes, principalmente os idosos, com a associação LES/MG, têm incidência elevada de timoma. A baixa expectativa de vida e a idade média elevada dos pacientes com timoma não permite uma conclusão final pois não há tempo suficiente para determinar se ele irão desenvolver ou não LES no futuro10.

A relação causal entre timectomia e o desencadeamento de LES é, da mesma forma, matéria de grande debate. As alterações pós-timectomia na função imune do linfócito "T" supressor - possivelmente por uma redução no número de células circulantes - têm sido implicadas na patogênese do LES e alguns casos sugerindo isto têm sido registrados12.

Timectomia, quando realizada em pacientes com LES13 ou experimentalmente em camundongos normais ou propensos ao lupus14,15, resultou em consequências variáveis, o que faz com que permaneça obscuro o papel da timectomia na gênese ou piora do LES. Vaiopoulus et al.3 acreditam que há uma série de alterações tímicas que podem ser responsáveis por um mecanismo imunopatogenético comum para as duas doenças, determinando sua associação. Alterações moleculares e predisposição genética também poderiam estar envolvidas no desencadeamento do problema.

Concluindo, a associação de LES e MG é rara. Este caso deve lembrar os profissionais atuantes na área da saúde que pacientes com LES, fraqueza muscular e fadiga devem ser sempre investigados a fim de que se confirme ou exclua a coexistência de MG.

Agradecimentos - Os autores agradecem ao Dr. Felix Zyngier, M. Sc., pela revisão e comentários relacionados a este manuscrito.

Dr. Marcio F. de Carvalho - Av. Alda Garrido 130 / 102 - 22621-000 Rio de Janeiro RJ - Brasil.

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  • *
    Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Universitário Antônio Pedro, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil:
    Médico da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Antônio Pedro;
    **
    Chefe da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Antônio Pedro. Aceite: 10-outubro-1997.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Nov 2000
    • Data do Fascículo
      Mar 1998

    Histórico

    • Aceito
      10 Out 1997
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