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Siringomielia lombo-sacra e anomalias congênitas: Estado disráfico. A propósito de um caso

Assistente de Clínica Neurológica na Fac. Med. Univ. S. Paulo (Prof. Adherbal Tolosa)

RESUMO

O autor apresenta um caso de siringomielia lombo-sacra familial acompanhado de várias anomalias congênitas, entre as quais espinha bífida sacra oculta, genu valgum, pelve hipoplástica, deformação da articulação coxofemural, pés valgos, lordose lombar anormalmente acentuada e alargamento das bainhas nervosas das raízes da cauda equina. A moléstia passou desapercebida até aos 7 anos de idade, quando surgiram as dificuldades na marcha, a qual lembrava a do miopático. Os exames complementares, afora as anomalias acima descritas, nada mais revelaram de importante.

SUMMARY

The author reports a case of familial lumbo-sacral syringomyelia associated to the following other congenital anomalies: sacral spina bifida occulta, genu valgum, hypoplastic pelvis, deformity of the hip joint, pes valgus, lumbar lordosis and widening of the nerve-sheaths of the cauda equina roots. The disease only became apparent at the age of 7 years, when the difficulties at walking started; presently, the gait assumed the myopathic feature. The laboratory tests evidenced nothing besides the aforementioned anomalies.

A siringomielia é afecção medular progressiva que se carateriza anátomo-patologicamente pela formação, em plena massa cinzenta central da medula ou do bulbo raquidiano, de cavidades tubulares, que soem ser acompanhadas por uma proliferação de tecido neuróglico nas suas circunvizinhanças. Do mesmo modo que a maioria das enfermidades nervosas de causa desconhecida, são inúmeras as hipóteses tendentes a explicar a etiopatogenia da siringomielia sem, entretanto, resolverem este problema. Barraquer Ferré e Bordas1 1 . Barraquer Ferré, L. e Bordas, B. - Etiopatogenia de la siringomielia. Rev. Esp. Oto-neuroftalmol. y Neurocirugía, 3: 26-226 (janeiro) 1945. , em trabalho recente e completo sobre o assunto, classificam esta enfermidade em 2 grupos: a hereditária ou essencial e as síndromes siringomiélicas secundárias. Estas últimas seriam síndromes clinicamente individualizadas e produzidas por causas conhecidas (os agentes capazes de destruir a zona cinzenta central da medula), como os tumores, traumatismos, alterações vasculares, infecções e intoxicações. As formas essenciais não apresentam um agente etiológico evidente e, para a maioria dos autores, seriam hereditárias. O seu fundamento ontogenético seria representado por uma anomalia no fechamento da goteira nervosa primitiva. Foi deste fato que nasceu o conceito de disrafia, emitido por Bremer e Bielchowsky




Observação

T. N., japonês, solteiro, com 13 anos de idade, procedente de Marília, internado no Hospital das Clínicas (Serviço do Prof. Adherbal Tolosa), em 21 de maio de 1945. Anamnese - Dificuldade para andar há 6 anos. Refere que o início da moléstia foi insidioso, sendo atingida, inicialmente, a perna esquerda. Algum tempo depois, começou a sentir o mesmo embaraço na perna direita, durante a deambulação. Enurese noturna periódica. Dores localizadas na região sacro-coxígea desde o início da enfermidade. Antecedentes familiais - Pais e irmãos vivos e sadios. Não há moléstias nervosas ou deformidades em qualquer membro de sua família, segundo afirmação do enfermo. Antecedentes pessoais - Nada sabe informar sobre as condições de seu nascimento. Relata que até aos 7 anos de idade foi sadio, andando e correndo bem. Cursou escola primária, tendo aprendido a ler e escrever.

Exame físico geral e especial - Paciente desnutrido e com mucosas visíveis levemente descoradas. Acentuada lordose lombar, obliquidade da bacia, joelhos e pés valgos. Pressão arterial 115 e 70 mms. Hg.; pulso 78 batimentos por minuto, isócrono e rítmico. Os demais órgãos e aparelhos acham-se normais.

Sistema nervoso - Psiquismo íntegro. Equilíbrio prejudicado pela paresia das pernas; entretanto, o paciente consegue permanecer de pé e andar sem apoio; na posição de pé, alarga a base de sustentação e os joelhos ficam acolados um ao outro, mantendo-se o direito em semiflexão (fig. 1). Durante a marcha acentua-se o genu valgum e nota-se melhor a tendência dos pés a se desviarem para fora, sendo este defeito mais nítido no pé direito; ainda por ocasião da marcha, verifica-se que o paciente arrasta a extremidade anterior dos pés no chão, enquanto a bacia báscula para um e outro lado, e a coluna lombar se projeta para a frente, dando a impressão da marcha do miopático. Os músculos lombares e paravertebrais do mesmo segmento permanecem intensamente contraídos, tornando as regiões lombares muito escavadas, aparentando atrofia local dos músculos. Acentuada escoliose e lordose lombar, com desvio oblíquo da bacia (fig. 2). Paresia dos artelhos, pés e pernas, e muito limitada nas coxas. Força muscular diminuída em todos os segmentos dos membros inferiores. Exaltação dos reflexos patelares e aquilianos; clono intenso e inesgotável nos pés e facilmente esgotável nas rótulas. Sinais de Babinski e de Rossolimo presentes em ambos os pés. Não há os sinais de Mendel-Bechterew e do leque. Manobras para sincinesia e coordenação estão prejudicadas nos membros inferiores e normais nos superiores. Reflexos cutâneo-abdominais presentes e vivos. Cremastéricos abolidos à direita e presentes, mas muito diminuídos à esquerda. Reflexos mucosos normais. Enurese noturna periódica. Pequenas áreas de hipo e anestesia termodolorosa nas pernas e pés (fig. 4). Demais formas de sensibilidade normais.


Exames complementares - Líquido cefalorraquidiano - Punção lombar em decúbito lateral; pressão inicial 20 (manômetro de Claude); provas manométricas de Stookey normais; líquor límpido e incolor; citologia 0,8 células por mm3; proteínas totais 0,20 grs. por litro; r. Pandy negativa; r. benjoim coloidal 00000. 00000.00000.0; r. Takata-Ara negativa; r. Wassermann negativa com 1 cm3. (J. M. Taques Bittencourt). Exame de sangue - Reações de Wasserman e Kahn negativas (A. Cunha). Eletrodiagnóstico - Os músculos do tronco e da cintura pélvica reagem normalmente ao excitante galvânico. Não há reações de degeneração (J. A. Caetano da Silva Jr.). Exame otoneurológico - Aparelho vestibular: Nistagmo espontâneo ausente; não há desvio espontâneo do índex nem ataxias dos membros superiores. Prova calórica para canais horizontais: OD - nistagmo com latência de 30 segundos e duração de 50 segundos; OE - nistagmo com latência de 20 segundos e duração de 58 segundos. Movimentos reacionais presentes e normais. Aparelho coclear: sinais de Weber, Rinne e Schwabach normais; voz cochichada audível nas dimensões da sala de audiometria. Conclusão: Ausência de sintomas de irritação do sistema vestibular; ligeiro enfraquecimento nas respostas; aparelho coclear normal (Rafael da Nova). Radiografia da coluna lombo-sacra. (Fig. 2): espinha bífida oculta de S1 (F. Secaf). Mielografia descendente: Feita com pantopaque injetado no segmento lombar, mostrou rápida e grande infiltração do contraste nas bainhas das raízes lombo-sacras (fig. 3), permitindo concluir que estas bainhas estavam anormalmente dilatadas; a passagem do contraste no canal raquidiano se fez sem obstáculos e em tempo normal. Radiografias da coluna lombo-sacra e bacia, feitas 8 dias após a injeção de pantopaque, mostraram contraste muito mais infiltrado nas bainhas radiculares e bastante esparso. O último exame radiológico, feito 30 dias depois, evidenciou o mesmo quadro anterior, não havendo aumento da infiltração. Na mesma época, o exame radiológico dos membros inferiores visando verificar uma possível infiltração do contraste nas bainhas do nervo ciático, resultou negativa. Nas radiografias nota-se osteoporose, pelve hipoplástica (especialmente à esquerda) e deformação da articulação coxofemural dos dois lados.

Comentários

Além da relativa raridade do caso em apreço, chamam a atenção as numerosas anomalias congênitas, principalmente do esqueleto. Tais malformações só se manifestaram nos segmentos inferiores do tronco e da cabeça. O mesmo fato se verificou em relação às disrafias nervosas, por isso que as cavidades siringomiélicas tinham localização baixa, e foram acompanhadas de provável dilatação das bainhas nervosas das raízes mais inferiores, isto é, lombo-sacras. Possivelmente, pelo menos as alterações ósseas, já deviam existir antes do início aparente da enfermidade e foram-se constituindo lentamente, do mesmo modo que a vacuolização da substância cinzenta central da medula lombar. Clinicamente, o que chamou a atenção do doente e dos seus familiares foi o distúrbio da marcha aos 7 anos de idade, havendo, pois, aparentemente, prolongada latência do transtorno disráfico. Possivelmente, este foi-se estabelecendo muito lentamente desde o quarto mês do desenvolvimento embrionário do sistema nervoso, quando o fechamento da goteira nervosa e a progressão da neuróglia se processaram de modo anormal. O presente caso ainda vem demonstrar a íntima relação entre as alterações morfológicas corpóreas e a síndrome siringomiélica, o que fala mais em favor da teoria disráfica da enfermidade.

Rua Albuquerque Lins, 904 - São Paulo.

Trabalho apresentado à Secção de Neuro-Psiquiatria da Associação Paulista de Medicina em 19 março 1946.

  • Siringomielia lombo-sacra e anomalias congênitas. Estado disráfico. A propósito de um caso

    José Lamartine de Assis
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    2. Cit. Barraquer Ferré, L., Gispert Cruz e Vendrell - Tratado de las enfermedades nerviosas. Tomo I, pág. 910. Salvat Edit., Barcelona, 1936. . Estes autores julgam que o estado disráfico nada mais seja que um fator predisponente congênito, o qual formaria o processo siringomiélico por influência de causas exógenas, atuando desde a fase intra-uterina. No quarto mês do desenvolvimento embrionário do sistema nervoso, ao se iniciar a diferenciação da glia, pode-se processar alteração no crescimento da neuróglia e no fechamento da goteira nervosa, resultando então a siringomielia e outras disrafias. A oclusão imperfeita ou o não fechamento da goteira vai provocar a emigração tardia da glia primária ou esponglioblástica, a qual se dirige para a zona ventral do cordão posterior e se difunde em forma da chamada gliose, que, por vezes, se multiplica e constitui a gliomatose ou espongioblastose. Esta se estende no sentido longitudinal. Mais tarde a gliose sofre a formação da cavidades centrais, que nada têm a ver com o canal do epêndima. Tais vazios tendem a se alargar, e isto, segundo Spatz
    3 1 3. Cit. Barraquer Ferré e Bordas. , seria o elemento mais importante para diferençar a siringo da hidromielia. Llorca e Martinez
    3 1 3. Cit. Barraquer Ferré e Bordas. , de um lado, e Fishel
    3 1 3. Cit. Barraquer Ferré e Bordas. , de outro, demonstraram experimentalmente a possibilidade de se obter cavidades siringomiélicas em animais, modificando o desenvolvimento do tubo nervoso primitivo. O estado disráfico compreende não só o processo siringomiélico como também outras anomalias congênitas. Dentre estas, os autores citam as seguintes: cifoscoliose, espinha bífida, costelas cervicais, síndrome de Klippel-Feil (deformação do atlas e fusão das vértebras cervicais), occipitalização do atlas, neurofibromatose de Recklinghausen, enurese noturna, apofisomegalia, espondilolistesis, hipoplasia vertebral, planiespondilia, lombarização de S
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    , sacralização de L
    5, mal perfurante plantar familial, esteólise, sin e polidactilia, pés chatos, escavados ou curtos, hipoplasias musculares, anisomastia, úlceras, cistos dermóides, hipertricoses, luxações congênitas, platibasia, malformação de Arnold-Chiari (prolongamento da ponte e do bulbo com hérnia do cerebelo no canal espinhal) e hidrocefalia. Para a maioria dos autores, a íntima relação entre as modificações morfológicas corpóreas e a síndrome siringomiélica, constitui um dos fundamentos mais sólidos em prol da disrafia na gênese da enfermidade. Ao conjunto das anomalias congênitas, acompanhadas ou não da síndrome siringomiélica, é que Bremer
    2 2. Cit. Barraquer Ferré, L., Gispert Cruz e Vendrell - Tratado de las enfermedades nerviosas. Tomo I, pág. 910. Salvat Edit., Barcelona, 1936. denominou status dysraphicus. A terminologia, neste terreno, é muito variada: myelodysplasia de Fuchs
    4 4 . Cit. Austregésilo Filho, A. - Neurodisplasias. Arq. Neuro-Psiquiat. (São Paulo), 1: 234-270 (dezembro) 1943. , trophopathia pedis myelodysiplastica de Kienbock
    5 5 . Cit. Van Bogaert, L. - Sur les arthropathies mutilantes symmétriques des extrémités inférieures et leurs rapports avec la syringomyelic. Presse méd., 48: 1026-1030 (dezembro) 1940. , dysplasia neuroectodérmica de Van Bogaert
    6 6 . Van Bogaert, L. - Dysplasies neuroectodermiques congénitales. Rev. Neurol., 63: 353-398 (março) 1935. . Os ingleses preferem o termo mielodisplasia, enquanto os franceses referem-se quase sempre à siringomielia lombo-sacra familial. Austregésilo Filho
    7 7 . Austregésilo Filho, A. - Loc. cit. 4. , em trabalho recente, faz extensa revisão das disrafias, status dysraphicus, espinha bífida oculta e mielodisplasia, reunindo-os numa denominação única: neurodisplasia; considera-a como representando alterações morfológicas ou funcionais dependentes de modificações da embriogênese, em que podem concorrer também influências hereditárias. A observação que ilustra este trabalho, além da síndrome siringomiélica lombo-sacra. apresenta as seguintes anomalias: espinha bífida oculta sacra, tendência ao genu valgum, pelve hipoplástica com menor desenvolvimento à esquerda, osteoporose generalizada, deformação da articulação coxofemural, tendência ao pé valgo, acentuada lordose lombar e provável alargamento das bainhas nervosas das raíses da cauda eqüina. Esta última deformação pôde ser evidenciada graças ao emprego de pantopaque injetado por via lombar. Sobre tal anomalia, não encontramos referências na literatura. O presente caso, além de raro, vem, com seu cortejo de malformações congênitas, entre as quais a provável dilatação das bainhas radiculares da cauda, aumentar o grupo daqueles que apoiam a teoria disráfica da siringomielia.
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    . Barraquer Ferré, L. e Bordas, B. - Etiopatogenia de la siringomielia. Rev. Esp. Oto-neuroftalmol. y Neurocirugía,
    3: 26-226 (janeiro) 1945.
  • 2.
    Cit. Barraquer Ferré, L., Gispert Cruz e Vendrell - Tratado de las enfermedades nerviosas. Tomo I, pág. 910. Salvat Edit., Barcelona, 1936.
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    3. Cit. Barraquer Ferré e Bordas.
  • 4
    . Cit. Austregésilo Filho, A. - Neurodisplasias. Arq. Neuro-Psiquiat. (São Paulo),
    1: 234-270 (dezembro) 1943.
  • 5
    . Cit. Van Bogaert, L. - Sur les arthropathies mutilantes symmétriques des extrémités inférieures et leurs rapports avec la syringomyelic. Presse méd.,
    48: 1026-1030 (dezembro) 1940.
  • 6
    . Van Bogaert, L. - Dysplasies neuroectodermiques congénitales. Rev. Neurol.,
    63: 353-398 (março) 1935.
  • 7
    . Austregésilo Filho, A. - Loc. cit.
    4.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Jun 1946
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