Resumos
Relatamos o caso de um homem de 20 anos, com diagnóstico de tumor de células germinativas, que apresentou acidente vascular cerebral isquêmico durante quimioterapia com cisplatina, etoposide e bleomicina. Os casos relatados na literatura foram revisados, bem como os diferentes mecanismos fisiopatológicos implicados na toxicidade vascular deste esquema quimioterápico.
cisplatina; bleomicina; etoposide; quimioterapia; toxicidade; acidente vascular cerebral
A 20-year-old man with a germ cell tumor who experienced an ischemic stroke as a complication of cisplatin/etoposide/bleomycin based chemotherapy is reported. The previously reported cases are reviewed as well as the different physiopathologic mechanisms associated with vascular toxicity of this regimen.
cisplatin; etoposide; bleomycin; chemotherapy; toxicity; stroke
Acidente vascular cerebral isquêmico após quimioterapia com cisplatina, etoposide e bleomicina
Relato de caso
Ischemic stroke after chemotherapy with cisplatin, etoposide and bleomycin:
Case report
Adrialdo José SantosI; Suzana Maria Fleury MalheirosI; Lia Raquel Rodrigues BorgesI; Carlos DzikII; Darcio G NalliIII; Alberto Alain GabbaiI
IDisciplinas de Neurologia, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP-EPM) São Paulo SP, Brasil
IIDisciplinas de Urologia, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP-EPM) São Paulo SP, Brasil
IIIDisciplinas de Departamento de Diagnóstico por Imagem, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP-EPM) São Paulo SP, Brasil
Endereço para correspondência Endereço para correspondência Dr. Adrialdo José Santos Disciplina de Neurologia, UNIFESP-EPM Rua Botucatu 740 04023-900 São Paulo SP, Brasil FAX: 55 11 50815005 E-mail: ajsnoncology@hotmail.com.br
RESUMO
Relatamos o caso de um homem de 20 anos, com diagnóstico de tumor de células germinativas, que apresentou acidente vascular cerebral isquêmico durante quimioterapia com cisplatina, etoposide e bleomicina. Os casos relatados na literatura foram revisados, bem como os diferentes mecanismos fisiopatológicos implicados na toxicidade vascular deste esquema quimioterápico.
Palavras-chave: cisplatina, bleomicina, etoposide, quimioterapia, toxicidade, acidente vascular cerebral.
ABSTRACT
A 20-year-old man with a germ cell tumor who experienced an ischemic stroke as a complication of cisplatin/etoposide/bleomycin based chemotherapy is reported. The previously reported cases are reviewed as well as the different physiopathologic mechanisms associated with vascular toxicity of this regimen.
Keywords: cisplatin, etoposide, bleomycin, chemotherapy, toxicity, stroke.
Embora os pacientes com câncer sistêmico apresentem elevado risco de eventos tromboembólicos, estes fenômenos comprometem especialmente o sistema venoso, sendo relativamente incomum o comprometimento da circulação arterial1. Cerca de 90% dos pacientes com câncer podem apresentar alterações da coagulação, tais como aumento da agregação plaquetária, maior atividade de fatores pró-coagulantes como pró-trombinase e fator X, e, por outro lado, menor atividade dos fatores anticoagulantes1. Além destes fatores, também o risco de trombose arterial pode aumentar quando é administrada1,2 a terapia antiblástica. Os esquemas quimioterápicos que incluem a cisplatina e bleomicina são amplamente utilizados no tratamento de tumores sólidos, especialmente nos tumores de células germinativas1. Os principais efeitos colaterais relacionados com estes esquemas são náuseas e vômitos, nefrotoxicidade, hipomagnesemia, neuropatia periférica, ototoxicidade e mielossupressão3-10. Há também relatos de toxicidade vascular manifesta clinicamente por insuficiência coronariana (desde angina até infarto miocárdico), fenômeno de Raynaud e de acidente vascular cerebral, demonstrando que, embora pouco descrita, a toxicidade vascular pode ser importante efeito colateral deste tratamento10-19.
Relatamos o caso de um paciente que apresentou acidente vascular cerebral isquêmico em vigência de esquema quimioterápico com cisplatina, bleomicina e etoposide e revisamos os mecanismos da toxicidade deste esquema quimioterápico.
CASO
Homem de 20 anos, admitido no Serviço de Urologia da Escola Paulista de Medicina em julho/1999 com história de aumento de volume do testículo esquerdo associado a dor local. Posteriormente submeteu-se a orquiectomia inguinal esquerda, com diagnóstico anatomopatológico de tumor de células germinativas misto maligno (carcinoma embrionário e tumor de seio endodérmico). No pós-operatório, realizou tomografia computadorizada de abdome (agosto/1999) que mostrou adenomegalia retroperitoneal no hilo renal, levando a hidronefrose esquerda. O restante da investigação mostrou nível sérico de alfa-feto-proteína de 5.328 IU/ml e de beta HCG menor que 5,0 m/U/ml; hemograma, eletrólitos, função renal e hepática, assim como a radiografia de tórax eram normais. Após o estadiamento, iniciou tratamento com esquema quimioterápico de 3 agentes: cisplatina (20mg/m²), etoposide (100mg/m²), por via endovenosa durante 5 dias, a cada 3 semanas e bleomicina (30UI) semanalmente.
Duas semanas após a realização do segundo ciclo de quimioterapia, o paciente apresentou episódios de hipoestesia e déficit transitório de força em dimídio direito, com duração de até 20 minutos e remissão espontânea. Nesta ocasião, fez tomografia de crânio, que foi normal. Uma semana após o terceiro ciclo, evoluiu com quadro súbito de hipoestesia e hemiparesia à direita e foi internado para avaliação. O paciente não apresentava fatores de risco reconhecidos para doença vascular cerebral. Realizou ressonância magnética do encéfalo, que mostrou área hipodensa frontal esquerda correspondente ao território das artérias cerebrais média e anterior, compatível com acidente vascular cerebral isquêmico (AVCI) (Fig 1). O paciente encontrava-se normotenso e com ritmo cardíaco regular. Com estes achados, foi feita hipótese de trombose de artéria carótida interna esquerda, a qual foi confirmada por estudo angiográfico (Fig 2). Foi iniciada anticoagulação e, após período de hospitalização de 15 dias, o paciente teve alta hospitalar com recuperação parcial do déficit motor. Continuou o tratamento, realizando o terceiro e último ciclo de quimiotertapia em vigência de anticoagulação oral, sem intercorrências. Na última avaliação (32 meses após o AVCI), encontrava-se em remissão, com discreto déficit motor, independente para as suas atividades.
DISCUSSÃO
O tratamento dos tumores de células germinativas dos testículos representou um dos maiores avanços da oncologia no final da década de 7014. Desde o estudo inicial de Einhorn e colaboradores20, a combinação de cisplatina, vinblastina e bleomicina tem sido usada amplamente no tratamento destes tumores em estágio avançado e aproximadamente 70 a 75% dos pacientes conseguem obter remissão e cura14. Como toxicidade deste esquema já foram descritos: supressão de medula óssea, náuseas e vômitos, lesão tubular renal, fibrose pulmonar, mialgia, disfunção gonadal, neuropatia periférica e ototoxicidade5-9,14,20,21. Embora menos comuns que os efeitos anteriormente descritos, também há relatos de toxicidade vascular manifesta como insuficiência coronariana, fenômeno de Raynaud e acidentes vasculares cerebrais1,3,4,7,14.
As complicações arteriais oclusivas observadas em pacientes com câncer podem decorrer de vários mecanismos, incluindo embolização do tumor, estados de hipercoagulabilidade (com a consequente coagulopatia de consumo), endocardite trombótica não-bacteriana, estimulação do sistema nervoso simpático decorrente da infiltração de plexos nervosos pelo tumor (levando a consequente vasoespasmo), precipitação intra-arterial de crioglobulinas e outras proteínas ou diretamente relacionadas com a terapia antineoplásica1,14,22,23.
O fenômeno de Raynaud tem sido observado após administração de bleomicina, da associação de bleomicina e alcalóides da vinca e de esquemas combinados de bleomicina, alcalóides da vinca e cisplatina14. Vogelzang e colaboradores16 relataram a ocorrência deste fenômeno em 21% dos pacientes com tumores testiculares tratados com bleomicina e vinblastina e em até 38% dos casos em que se utilizou o mesmo esquema acrescido de cisplatina14,16.
Também já foram relatados quadros de insuficiência coronariana (clinicamente manifesta como angina instável e até mesmo infarto miocárdico) após o tratamento com alcalóides da vinca, etoposide, combinações de vinblastina e bleomicina e da associação de cisplatina com um desses agentes4,6,9-12,14,15.
Já as complicações vasculares cerebrais decorrentes dos esquemas quimioterápicos com cisplatina são eventos raros5-7,10,14,18,19 (Tabela 1). Nos casos relatados na literatura, a forte associação temporal entre a administração do agente antineoplásico e o evento vascular sugere uma relação causal na maioria dos casos. Além disto, o fato de alguns pacientes serem jovens e sem fatores de risco reconhecidos, como no presente caso, reforça ainda mais este fato5, diminuindo a probabilidade de que esta associação possa ser mera coincidência. A investigação complementar durante a fase aguda do evento vascular é muitas vezes limitada, sobretudo com relação às coagulopatias, especialmente quando se utiliza anticoagulação. No presente caso, assim como na maioria dos casos da literatura, não foi encontrada doença metastática cerebral nem outros fatores de risco, e, portanto, o evento cerebrovascular foi atribuído a efeito colateral da terapia antineoplásica.
O mecanismo exato da toxicidade vascular nos esquemas em que se utiliza cisplatina, bleomicina e alcalóides da vinca, ainda não foi totalmente esclarecido10. Embora existam controvérsias23, é estabelecida relação com alguns fatores como hipomagnesemia, alteração da agregação plaquetária, hipercolesterolemia e elevação dos níveis séricos do fator de von Willebrand, assim como a lesão endotelial5,10,12,14,17,18. Disfunção autonômica tem sido descrita após o tratamento com cisplatina ou alcalóides da vinca14. Deste modo, o aumento do tônus alfa-adrenérgico, bem como a hipomagnesemia (frequentemente observada durante a utilização da cisplatina) poderiam potencializar o espasmo arterial. O magnésio parece ter papel importante na manutenção do tônus da camada muscular dos vasos e já se demonstrou experimentalmente que a deficiência de magnésio pode desencadear espasmo coronariano. O fator de von Willebrand (FvW) é sintetizado e secretado pelas células endoteliais, e os níveis plasmáticos do antígeno do FvW encontram-se normalmente elevados em algumas doenças associadas com lesão endotelial17. De acordo com Licciardello17, a presença de níveis plasmáticos elevados dos antígenos do FvW poderia identificar os pacientes com especial risco de complicações arteriais oclusivas; este autor recomenda a determinação dos níveis do antígeno de FvW antes e durante a quimioterapia com esquemas de cisplatina. Um aspecto que deve ter importância neste mecanismo é o da lesão endotelial. Já foi demonstrado que a administração cumulativa de bleomicina causa alterações endoteliais em capilares e arteríolas, tais como vacuoliazação, necrose e oclusão luminal, conforme demonstrado por estudos com microscopia óptica e eletrônica de amostras de tecido tumoral obtidas após tratamento com bleomicina14. Com base nestes achados, mais recentemente, o endotélio dos vasos tumorais tem sido o alvo potencial da terapia antineoplásica5; como a toxicidade não fica restrita a este tipo de endotélio afetando também o normal, pode ocorrer lesão subclínica. Deste modo, o dano vascular atribuído à administração sequencial da quimioterapia pode adquirir importância, o que é reforçado pelo fato de que, na maioria dos casos relatados, os pacientes receberam mais de um ciclo de terapia antineoplásica antes do evento vascular5,6,7,19.
Embora as complicações cerebrovasculares dos esquemas quimioterápicos para tratamento dos tumores de células germinativas sejam pouco frequentes, elas são de especial interesse clínico porque ocorrem em pacientes jovens, com altas chances de cura. Também são igualmente importantes a identificação e o tratamento precoce já que, além das sequelas, estas complicações podem ser fatais, como descrito por alguns autores5,7. Ainda não há consenso em relação ao tratamento a ser adotado e alguns autores recomendam o uso profilático da heparina nestes pacientes1. No presente caso optamos por anticoagulação e o paciente teve evolução clínica satisfatória.
Recebido 2 Julho 2002, recebido na forma final 27 Agosto 2002
Aceito 10 Setembro 2002.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Abr 2003 -
Data do Fascículo
Mar 2003