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Neurocristopatia no diagnóstico diferencial das apnéias do recém nascido: relato de caso

Neurochristopathy in the differential diagnosis of newborn's apnea: case report

Resumos

OBJETIVO: incluir a neurocristopatia na investigação etiológica das apnéias refratárias do recém nascido e discutir o valor diagnóstico da polissonografia. MÉTODO: relato de caso e discussão crítica da literatura. RESULTADOS: relatamos o caso de um recém-nascido que apresentou disfunção ventilatória nas primeiras horas de vida associada a distensão abdominal, necessitando de ventilação mecânica contínua com piora do quadro respiratório durante o sono. Após o diagnóstico polissonográfico de hipoventilação foi investigado com exames de neuroimagem e biópsia de cólon, positiva para doença de Hirschprung. CONCLUSÃO: a neurocristopatia é uma síndrome neonatal que por vezes pode ter o seu reconhecimento dificultado pelo amplo espectro clínico associado. A polissonografia foi fundamental nesta investigação confirmando a hipoventilação. Este diagnóstico etiológico deve ser considerado na investigação de recém-nascidos com apnéias persistentes durante o sono.

hipoventilação central congênita; doença de Hirschsprung; polissonografia; recém nascido; apnéias


OBJECTIVE: to include neurocristopathy on the etiological workup of neonatal apneas and discuss the importance of polysomnography in this diagnosis. METHOD: case report and critical review of the literature. Results: we report on a newborn that presented respiratory failure in the first hours of life associated to abdominal distention. Continuous ventilatory support was necessary, and the respiratory distress increased during sleep. After polysomnographic confirmation of hypoventilation the newborn was submitted to neuroradiolgic tests and colon byopsy, positive to Hirschsprung's disease. CONCLUSION: Neurocristopathy syndrome can have many different clinical expression, and sometimes the syndrome can be misdiagnosed. Polysomnography confirms central hypoventilation. This diagnosis should be considered in the newborn's persistent apnea workup.

congenital central hypoventilation syndrome; Hirschsprung's disease; polysomnography; newborn; apnea


NEUROCRISTOPATIA NO DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL DAS APNÉIAS DO RECÉM NASCIDO

Relato de caso

Magda Lahorgue Nunes11Professora Adjunta de Neurologia e Pediatria; Serviços de Neurologia e Pediatria–Neonatologia do Hospital São Lucas (HSL) da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre RS, Brasil: Professora Adjunta de Neurologia e Pediatria; 2Professor Assistente de Pediatria; 3Médica Residente do Serviço de Neurologia. , Humberto Holmer Fiori21Professora Adjunta de Neurologia e Pediatria; Serviços de Neurologia e Pediatria–Neonatologia do Hospital São Lucas (HSL) da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre RS, Brasil: Professora Adjunta de Neurologia e Pediatria; 2Professor Assistente de Pediatria; 3Médica Residente do Serviço de Neurologia. , Christine Holzhey31Professora Adjunta de Neurologia e Pediatria; Serviços de Neurologia e Pediatria–Neonatologia do Hospital São Lucas (HSL) da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre RS, Brasil: Professora Adjunta de Neurologia e Pediatria; 2Professor Assistente de Pediatria; 3Médica Residente do Serviço de Neurologia.

RESUMO - Objetivo: incluir a neurocristopatia na investigação etiológica das apnéias refratárias do recém nascido e discutir o valor diagnóstico da polissonografia. Método: relato de caso e discussão crítica da literatura. Resultados: relatamos o caso de um recém-nascido que apresentou disfunção ventilatória nas primeiras horas de vida associada a distensão abdominal, necessitando de ventilação mecânica contínua com piora do quadro respiratório durante o sono. Após o diagnóstico polissonográfico de hipoventilação foi investigado com exames de neuroimagem e biópsia de cólon, positiva para doença de Hirschprung. Conclusão: a neurocristopatia é uma síndrome neonatal que por vezes pode ter o seu reconhecimento dificultado pelo amplo espectro clínico associado. A polissonografia foi fundamental nesta investigação confirmando a hipoventilação. Este diagnóstico etiológico deve ser considerado na investigação de recém-nascidos com apnéias persistentes durante o sono.

PALAVRAS-CHAVE: hipoventilação central congênita, doença de Hirschsprung, polissonografia, recém nascido, apnéias.

Neurochristopathy in the differential diagnosis of newborn's apnea: case report

ABSTRACT - Objective: to include neurocristopathy on the etiological workup of neonatal apneas and discuss the importance of polysomnography in this diagnosis. Method: case report and critical review of the literature. Results: we report on a newborn that presented respiratory failure in the first hours of life associated to abdominal distention. Continuous ventilatory support was necessary, and the respiratory distress increased during sleep. After polysomnographic confirmation of hypoventilation the newborn was submitted to neuroradiolgic tests and colon byopsy, positive to Hirschsprung's disease. Conclusion: Neurocristopathy syndrome can have many different clinical expression, and sometimes the syndrome can be misdiagnosed. Polysomnography confirms central hypoventilation. This diagnosis should be considered in the newborn's persistent apnea workup.

KEY WORDS: congenital central hypoventilation syndrome, Hirschsprung's disease, polysomnography, newborn, apnea.

As cristas neurais são estruturas da membrana ectodérmica, que se originam na porção dorsal média do tubo neural concomitante ou logo após seu fechamento. Migram através de diversas rotas embrionárias e diferenciam-se em estruturas do sistema nervoso central periférico (raízes dorsais) e autonômico (gânglio simpático)1. Como são responsáveis pela formação de diversas estruturas embrionárias, as alterações no seu desenvolvimento estão relacionadas a amplo espectro de malformações com manifestações clínica distintas2 . O termo neurocristopatia foi proposto em 1980 para englobar as alterações clínicas relacionadas aos distúrbios no crescimento, migração ou diferenciação das cristas neurais, figurando entre os mais comuns a associação entre hipoventilação central congênita (HCC), doença de Hirschsprung e neuroblastoma congênito3. Posteriormente foram associados outros achados tais como alterações oftalmológicas, da audição e deglutição além de disautonomia4-6. Devido ao amplo espectro de manifestações clínicas esta síndrome pode algumas vezes ser subdiagnosticada em crianças2.

Apresentamos este relato de caso com o objetivo de incluir a neurocristopatia na investigação etiológica das apnéias persistentes do recém nascido (RN) além de discutirmos o valor diagnóstico da polissonografia na elucidação do diagnóstico.

CASO

RN masculino com peso ao nascer de 3360g. A mãe, de 21 anos, apresentava malformações de mãos e pés e havia realizado acompanhamento pré-natal sem intercorrências. O primeiro filho do casal era normal. O nascimento se deu a termo, por cesariana, a bolsa amniótica era íntegra e o escore de Apgar foi 8 no primeiro minuto e 4 no quinto minuto. O paciente foi transferido para a UTI Neonatal do Hospital São Lucas da PUCRS com 3 horas de vida, em oxigênio a 100% e sem dados de história. Necessitou intubação endotraqueal imediata e ventilação mecânica. Manteve saturação de oxigênio de 100% com parâmetros de pressão de 13x3 cmH2O, freqüência respiratória de 20 e fração de inspiração de oxigênio (FiO2) de 0,21. Hemograma, líquido céfalo-raquidiano e glicemia eram normais. Iniciada antibioticoterapia, permaneceu estável, no ventilador, do ponto de vista respiratório e hemodinâmico. O estado neurológico era de diminuição do nível de consciência com reação breve ao estímulo vigoroso, sendo a primeira impressão de que o RN estava sedado. No segundo dia de vida foi notada distensão abdominal importante com resíduo bilioso, eliminação de mecônio ausente mas com presença de ruídos hidro-aéreos. Foi realizado RX simples de abdomen e sob contraste evidenciando bário no reto e sigmóide. O enema opaco evidenciou desproporção entre cólon ascendente e reto, sem zona de transição. O paciente foi mantido sem alimentação por via oral (NPO). No terceiro dia de vida melhorou a atividade e em vigília o exame neurológico foi considerado normal. Foi tentada a extubação pela primeira vez, todavia após período de 2 horas foi reinstalada a ventilação mecânica devido a acidose respiratória, retornando aos parâmetros ventilatórios anteriores. Realizada ecografia cerebral com resultado normal.

O quadro clínico e neurológico em vigília permaneceram inalterados e o RN foi mantido em ventilação mecânica, NPO e nutrição parenteral. Numa segunda tentativa de extubação foi realizada poligrafia neonatal que evidenciou atividade de base normal, compatível com idade concepcional e ondas agudas positivas registradas em região occipital direita. O padrão respiratório se tornou irregular com hipoventilação e apnéias centrais que progressivamente aumentavam de duração sendo necessário durante o exame, o uso de ventilação com ambu. Durante o sono havia piora do padrão de hipoventilação (Fig 1). O potencial evocado de tronco cerebral evidenciou onda I (nervo auditivo) com latência de 1,9 ms presente bilateralmente, onda III com latência de 5,8 ms em ouvido direito, demais ondas ausentes. A tomografia computadorizada de crânio foi considerada normal e a ressonância nuclear magnética realizada a seguir identificou pequenas lesões hiperintensas na topografia da substância branca periventricular direita. Como persistia com distensão abdominal foi submetido a biópsia de cólon sendo demonstrado, por microscopia convencional, seguimento agangliônico. Entretanto, a manometria anorretal evidenciava em alguns momentos presença de relaxamento do esfíncter anal. Foi realizada ecografia abdominal com resultado normal. O paciente era capaz de manter ventilação adequada enquanto em vigília. Foi tentada a extubação em outras duas ocasiões apresentando falência respiratória em curto período (poucas horas) por hipoventilação.


Com aproximadamente um mês de vida foi realizada traqueostomia, todavia evoluiu para óbito com 1 mês e 11 dias de vida por complicações infecciosas e ventilatórias.

DISCUSSÃO

A primeira descrição da associação entre HCC e doença de Hirschsprung foi publicada em 1978 por Haddad et al.7. Nas descrições que se seguiram alguns autores passam a chamar esta associação de síndrome de Haddad ou síndrome de Hirschsprung–Ondine8,9. Curso de Ondine é epônimo bastante utilizado de HCC e refere-se a uma lenda da mitologia germânica.

Somente 1,5 % dos pacientes com Hirschsprung apresentam HCC; entretanto, 50% dos pacientes com HCC apresentam doença de Hirschsprung5. A associação de neuroblatoma ou ganglioneuroma ocorre em 20% dos casos com HCC-Hirschsprung. No paciente relatado a investigação abdominal foi realizada e não encontramos evidências de neuroblastoma. Outros sintomas associados são relatados com incidência variável; alterações pupilares, palpebrais ou da musculatura extrínseca ocular (21,7%); distúrbios da deglutição ou motilidade esofágica (±20%) e surdez (±10%) . Alguns autores relatam dismorfismo facial mas sem características distintas que poderiam identificar a síndrome5. O paciente relatado apresentava dismorfismo facial inespecífico e potencial evocado auditivo alterado sugerindo lesão bulbar bilateral.

No caso em questão, nossa primeira suspeita diagnóstica foi de HCC, baseados na evidencia clínica de piora do quadro respiratório durante o sono e melhora em vigília. Na história chama atenção a diminuição do escore de Apgar do 1o para o 5o minuto, evidenciando precocemente dificuldade respiratória. Concomitante a investigação do quadro respiratório foi realizada investigação do quadro abdominal com confirmação do diagnóstico de doença de Hirschsprung, sendo levantada a possibilidade de uma neurocristopatia.

A alteração descrita na ressonância magnética foi considerada compatível com zona de micro-hemorragia, assim como o aparecimento de ondas agudas positivas em polissonografia neonatal. A localização anatômica e a diminuta expressão da lesão certamente não justificariam a HCC.

Nos poucos casos relatados na literatura, em que foi realizada necropsia, não foram detectadas alterações anatômicas de sistema nervoso central9. Em nosso caso não obtivemos permissão para necropsia.

A forma de transmissão genética da HCC e da doença de Hirschsprung são desconhecidas , não existindo predominância de sexo. Em alguns pacientes foram realizados estudos cromossômicos que não revelaram alterações4-6. Do ponto de vista embriológico pode-se relacionar a ocorrência destas diferentes lesões, já que o processo migratório das cristas neurais, durante a fase de neurulação, é bastante extenso. Uma hipótese que explicaria a ocorrência simultânea de hipoventilação central e agangliose intestinal estaria relacionada a defeito embrionário da formação de neurônios serotoninérgicos. Estes neurônios tem origem no núcleo da rafe, estrutura mesencefálica situada próximo ao centro do controle cardio-respiratório, por outro lado o plexo mesentérico intestinal também é rico em neurônios serotoninérgicos7. Estudos imuno-histoquímicos de tronco cerebral de crianças afetadas por esta síndrome e que evoluíram para óbito poderiam confirmar a depleção de serotonina.

O prognóstico da neurocristopatia é bastante reservado devido as complicações respiratórias decorrentes da HCC. Os pacientes evoluem para óbito, na maioria das vezes, nos primeiros meses de vida4,5,6,8-11. Nosso paciente manteve-se dependente de ventilação mecânica mesmo após traqueostomia, tendo evoluído para óbito, precocemente, decorrente de complicações infecciosas e respiratórias.

Cruzando os termos hipoventilação central congênita e doença de Hirschsprung a partir de 1980, na Medline, não localizamos qualquer relato de caso de paciente originário do Brasil e possivelmente este seja o primeiro caso descrito no país. Considerando o conceito de neurocristopatia como expressão de uma síndrome insuficientemente conhecida em nosso meio, alertamos neurologistas infantis e neonatologistas para este diagnóstico, já que possivelmente são os primeiros profissionais em contato com estes recém nascidos. A polissonografia é imprescindível para a confirmação diagnóstica da hipoventilação central congênita, assim como os exames de neuroimagem para exclusão de lesões de tronco cerebral ou medulares que poderiam justificar a hipoventilação.

A neurocristopatia deve ser incluída no diagnóstico diferencial de recém nascidos a termo com apnéias persistentes ou disfunção respiratória que piora com o sono.

Agradecimentos - Agradecemos ao Dr. João Arthur Ehlers do Laboratório de Neurofisiologia Clínica do HSL-PUCRS pela realização do PEAT e ao Dr. Maurício Barreira Marques do Serviço de Radiologia do HSL - PUCRS pela colaboração na revisão da literatura.

Recebido 4 Abril 2001, recebido na forma final 12 Julho 2001. Aceito 23 Julho 2001.

Dra. Magda Lahorgue Nunes - Av. Ipiranga 6690/220 - 90610-000 Porto Alegre RS – Brasil. FAX: 51 339 4936. E-mail: magdalahorgue@conex.com.br / nunes@pucrs.br

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  • 1Professora Adjunta de Neurologia e Pediatria;
    Serviços de Neurologia e Pediatria–Neonatologia do Hospital São Lucas (HSL) da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre RS, Brasil: Professora Adjunta de Neurologia e Pediatria; 2Professor Assistente de Pediatria; 3Médica Residente do Serviço de Neurologia.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Nov 2001
    • Data do Fascículo
      Dez 2001

    Histórico

    • Aceito
      23 Jul 2001
    • Revisado
      12 Jul 2001
    • Recebido
      04 Abr 2001
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