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Aplicações do curare em neuro-psiquiatria

NOTA PRÁTICA

J. A. Caetano da Silva Jr

Assistente de Neurologia na Fac. Med. Univers. S. Paulo (Prof. A. Tolosa)

O primeiro europeu que teve conhecimento da ação do curare parece ter sido Walter Raleigh que, em 1595, em sua expedição à América do Sul, na região do Orinoco e Alto Amazonas, obteve dos índios pequena quantidade da droga. Longo tempo se passou antes que fosse possível obter dos aborígenes o segredo da obtenção e preparação dessa droga de que se utilizavam contra os inimigos e que conservavam inaccessível aos estrangeiros. Waterton e Brodie, em 1815, demonstraram que a asfixia era a causa da morte produzida pelo curare. Boussingault e Roulin, em 1824, prepararam um alcalóide, a curarina. Em 1844, Schomburg demonstrou a sua proveniência da Strichnos toxifera. Em 1844, Claude Bernard fêz os primeiros estudos científicos sôbre o curare, demonstrando sua ação paralisante sôbre a sinapse neuromuscular, confirmando que a morte se dava por asfixia.

A utilização clínica do curare foi dificultada por vários fatores, entre os quais sobressaiam as dificuldades na obtenção do produto e de sua preparação e purificação; -daí decorria o desconhecimento de sua exata posologia, de suas qualidades farmacodinâmicas e, conseqüentemente, de sua ação terapêutica. Com os melhoramentos que foram, aos poucos, introduzidos na sua obtenção, purificação, padronização e dosagem, tornou-se mais segura e accessível sua utilização, dando mais possibilidades a seu emprego na clínica. Até há cêrca de dez anos, o curare utilizado era de procedência, qualidade e pureza desconhecidas. Em 1938, Richard C. Gill1 1 . Gill, R. C. - White Water and Black Magic. New York, Henry Holt & Company, 1940. numa expedição ao Amazonas, obteve grande quantidade de curare, aprendendo simultaneamente todos os segredos de sua preparação.

O curare pode ser obtido do suco de cipós de várias Strichnaceae, como a S. toxifera, S. Schomburghii, S. Castelnaea, S. Cogens, S. uraniana. A concentração e cocção dêste suco fornece uma substância resinosa, negra ou vermelho escura que, quando reduzida a pó, apresenta-se de côr pardacenta e sabor amargo; é solúvel na água e nos humores, precipitável pelo éter e terebentina, têrmo-resistente. Seu princípio ativo, a curarina, é uma substância córnea, higroscópica e solúvel.

Em virtude das dificuldades encontradas na obtenção da matéria prima necessária à preparação de produtos clinicamente utilizáveis foi tentada a síntese do princípio ativo do curare. Cabe aqui rápido estudo das substâncias assim chamadas curarizantes porque são capazes de determinar no organismo efeitos iguais ou semelhantes àqueles produzidos pelo curare. De modo geral, o radical metila (CH8), confere propriedades curarizantes às moléculas às quais é adicionado2 2 . Limongi, J. P. - O curare. Estudo etnológico, químico e farmaco-dinámico. An. Fac. Med. Univ. S. Paulo, XIV, 1938. . Assim, nas moléculas de morfina, stricnina e quinina, a substituição de um átomo de H por CH8, produzirá respetivamente, a metil-morfina, a metilstricnina e a metilquinina, que são curarizantes. O nitrogênio, fósforo, arsênico e antimonio têm leve ação curarizante quando integram moléculas como pentavalentes e não a têm quando trivalentes. O cloridrato de tetrametilamonio é uma substância curarizante. O sulfato de magnésio tem também tal ação; Otávio Couto, em 1924, verificou os efeitos de inibição e depressão centrais e periféricos, dessa droga, considerando-os semelhantes aos do curare. A própria quinina tem ação curarizante, como já foi verificado na miotonia congênita e na distonia muscular deformante e, também, como o curare, é fator agravante na miastenia. Bennett3 3 . Bennett, A. E. - Curare: A preventive of traumatic complications in convulsive shock therapy. Am. J. Psychiat. 97:1040-1060 (março) 1941. usou o sulfato de quinina sem resultados. King4 4 . King, H. - Nature 135:469, 1935, cit. in Harvey 7. conseguiu demonstrar a existência, no curare, de bases amoniacais terciárias e obteve o cloreto de metilquinina, outra substância de ação curarizante, como foi demonstrado por Harvey5 5 . Harvey, A. M. - The action of quinine methichloride on neuromuscular transmission. Bull. John Hopkin's Hospital, 66:52-59 (Janeiro) 1940. mesmo com o uso por via oral, o que não se dá com o curare. Bennett usou uma solução dessa substância com 0,0.18 grs. por cc. em paralisias espasmódicas, verificando ação benéfica após uma injeção intravenosa de 10 a 15 mgrs. por quilo de pêso. Não há, entretanto, certesa sôbre a sua margem de segurança; esta substância causa sempre uma apnéia prolongada e grave embaraço respiratório, além de queda na tensão arterial. É, também, como o curare, de ação fugas. Das sementes da Erythrina coralloides, foi obtido a eritroidina, poderoso paralisante motor, com toxidês c eficiência inferiores ao curare. Burman6 6 . Burman, M. S. - Therapeutic use of curare and erythroidine hidro-chloride for spastic and dystonic states. Arch. Neurol, a. Psychiat. 41:307-327 (fevereiro) 1939. usou o cloridrato de eritroidina por via intravenosa em 5 casos, obtendo, em dois deles, efeito terapêutico. Pareceu-lhe ser mais segura que o curare e apresentar maiores facilidades de obtenção e ensaio. Além das drogas já referidas, outras há em que já foi verificada maior ou menor ação curarizante, tais como certas aminas e amidas, a colina, muscarina, venenos de cobra, a piridina, a quinoleina, a talina, drogas das séries aromáticas e nicotínicas, a piperidina, ptomaínas putrefativas e produtos do metabolismo muscular.

Claude Bernard, demonstrando a ação paralizante do curare sôbre a sinapse neuromuscular, verificou que tanto o músculo como o nervo conservavam sua excitabilidade, embora em graus diversos. Lapicque demonstrou, em 1908, que o curare diminui de metade a excitabilidade muscular, mantendo-se inalterada a do nervo. Rompido, assim, o isocronismo nervo-muscular pelo aumento da cronaxia dêste último, seria interceptada a passagem dos influxos nervosos ao nível da placa mioneural. É sabido que, em condições normais a substância que mantém o isocronismo neuromuscular facilitando a transmissão do influxo nervoso é a ace-tilcolina, cuja ação é neutralizada pelo curare. A ação do curare no organismo é seletiva. Age sôbre todos os músculos esqueléticos, atingindo primeiro os pequenos músculos dos olhos e da face, depois os da cabeça e região cervical, daí passando a agir nas extremidades, chegando finalmente aos músculos intercostais e diafragma. Produz paralisia flácida, de tipo periférico, afetando as terminações nervosas, primeiro as de elevada cronaxia, tais como as dos motores oculares e músculos da deglutição e fonação. No entanto, conquanto diminuam, os reflexos não ficam abolidos. O coração não é diretamente afetado e as funções sensoriais permanecem intatas. Nas doses letais, variáveis com o pêso e a espécie do animal, a asfixia é devida à paralisia dos músculos respiratórios; a morte pode ser evitada pelo emprego de respiração artificial. Experiências feitas em cães utilizando êsse meio, permitiram a administração de doses 15 vezes superiores à letal sem produzir a morte.

Após a injeção intravenosa, os efeitos são imediatos e perduram de 15 a 20 minutos. Com a injeção intramuscular, eles surgem após 15 a 20 minutos. Ü curare é eliminado pelos rins, rapidamente, em 10 a 15 minutos. Influe na sua ação a velocidade com que é feita a injeção intravenosa. Grandes quantidades podem ser bem toleradas desde que injetadas lentamente. Sua ação só se verifica quando passa diretamente à circulação, pelas vias intravenosa ou intramuscular. É inócuo pela via oral, talvez porque sua eliminação se faça, então, mais rapidamente que a absorção. No homem, a quantidade necessária para produzir a cura-rização, corresponde a 65-75%. da dose letal. Uiha nova dose, aplicada 1 a 5 horas mais tarde, será mais eficiente, mesmo em menor quantidade, o que indica que sua ação se prolonga mesmo sem sinais clínicos de curarização.

A questão relativa à persistência dos seus efeitos tem dado margem a opiniões discordantes. Burman sustenta que a ação do curare é prolongada, no que não crê Bennett. Segundo aquele autor, êle teria uma ação relaxadora prolongada sôbre os músculos hipercinéticos ou espásticos, mesmo depois de desaparecido o seu efeito tóxico desacetilcolinizante. Para Bennett, a única evidência que há de um prolongamento da sua ação é que uma segunda injeção intravenosa, feita de 1 a 5 horas depois, é mais eficiente em menor dose. Temos a impressão de que tal discordância é conseqüência mais do tipo de curare utilizado que do maior ou menor tempo de ação da droga. Êsses pesquizadores usaram drogas de procedência diversa, ao que atribuímos a diversidade dos resultados que obtiveram. As primeiras preparações dé" curare continham impurezas que determinavam uma queda na tensão sangüínea, espasmo brônquico, palidês, eritema e urticária, fenômenos êsses que Burmann atribuiu à curina.

Há certo número de drogas, como a acetilcolina que têm antagonismo fisiológico em relação ao curare, Essa e outras drogas como a adrenalina, a pros-tigmina e o cardiazol são verdadeiros antídotos do curare, sendo utilizados para eliminar a sua ação.

A posolgia do curare depende de sua titulagem. O método mais difundido é o do "head-drop" (inércia da cabeça) feito em coelhos. Faz-se uma injeção da solução a titular na. veia auricular do animal, até que êle se torne incapaz de elevar a cabeça do plano horizontal; êste é o limiar fisiológico. Essa quantidade é relacionada ao pêso corporal. O primeiro produto titulado a ser lançado foi o Intocostrin, fabricado por E. R. Squibb & Sons, que é uma solução aquosa contendo 20 mgrs de princípio ativo por centímetro cúbico sendo que 1 cc curariza, em média, 35 a 40 libras de pêso (15,5 a 18 quilos). Para a purificação e contrôle da droga é aproveitado o antagonismo entre o curare e a acetilcolina. Êle só deve ser aplicado quando convenientemente controlado e titulado, devendo ser utilizado o método de Holaday (head-drop). Burmann utilizou curare fornecido pelo Merck Institute of Therapeutic Research cuja dose letal para o camondongo branco é de 4,4 mg. por quilo, sendo apresentado em ampolas de 10 cc, com 50 mgs.

A injeção intravenosa de curare em dose útil, produz, após 1 a 2 minutos, o aparecimento de sintomatologia mais ou menos uniforme. A descrição de Bennett aponta, no início, uma sensação de turvação e deslumbramento ao que se segue ptose bilateral acompanhada de movimentos nistagmóides, relaxamento da musculatura da face e hebetude, com relaxamento da mandíbula. Logo depois sobrevem sensação de constricção esofágica, aspereza da voz, iniciando-se, a seguir, fraqueza dos músculos do pescoço e dificuldade em elevar a cabeça, seguida de fraqueza e completa paralisia dos músculos espinhais. Por último, há lentidão respiratória por enfraquecimento dos músculos intercostais e diafragma. Na convul-soterapia, é êste o momento aproveitado para a aplicação do cardiazol; em virtude da ação do curare sôbre os músculos respiratórios, devem ser tomadas precauções especiais depois da crise e antes da volta à consciência; em caso de dificuldade respiratória, o que é raro, deve ser usada adrenalina, respiração artificial ou prostigmina; certos casos exigem intubação, para remover a excessiva salivação. A crise cardiazólica, após a injeção de curare, é mais moderada, causa menos desconforto, menos dôres, menos náuseas e menos cansaço, além de diminuir, segundo alguns pesquizadores, a possibilidade de se instalar o pavor. O curare não se acumula e não gera resistência, não sendo, pois, necessário modificar as doses. Há um fator individual de suscetibilidade na sua ação, pelo que devem sempre ser tomadas precauções no tocante às doses iniciais.

Importa ressaltar que a ação do curare pode ser notada nos músculos es-pásticos pela redução da rigidez sem levá-los à flacidês, mesmo antes de ser atingido o limiar de sua ação sôbre os músculos normais. Dessa maneira, êle pode tornar um músculo, inutilizado pela rigidês, em um órgão capaz de certos movimentos voluntários; verifica-se uma diminuição na intensidade das respostas reflexas e dos clonos nos estados espásticos.

Nos pacientes em que é usado o curare os sintomas desagradáveis para o lado dos nervos craneanos são discretos e duram cêrca de 1 hora. Passados êsses sin-timas, os efeitos benéficos, podem ser observados durante muito tempo, havendo mesmo doentes que necessitam apenas de uma injeção semanal (Burmann).

Segundo Bremer7 7 . Bremer, F. e Titeca, J. - Compt. Rend. Soc. Biol. 97, 1927. e Ozorio de Almeida e Moussatché,8 8 . Almeida, O. e Moussatché, J. - Compt. Rend. Soc. Biol. 117, 1934. os impulsos tonígenos causadores da rigidês reflexa são impulsos de alta freqüência e amplitude sub-normal, mais fácilmente bloqueáveis pelo curare. Os impulsos fásicos, de baixa freqüência e maior amplitude, embora utilizem a mesma via que os primeiros, não seriam detidos pelas doses curarizantes iniciais. Decorre daí, a capacidade de manutenção dos movimentos voluntários, após uma curarização em que se reduza a hipertonia muscular.

Jousset, Desmine e Busch (1867), foram os primeiros a tentar aplicações clínicas do curare, utilizando-o no tratamento das convulsões, dos tics, da coréia e da intoxicação pela estricnina. Novos estudos foram levados a efeito por Hoche (1894) e Cash (1901). Tsokanakis (1924) aplicou-o na paralisia espástica. Bremer, em 1927, provou sua ação seletiva na redução da espasmodicidade tetânica localizada e da rigidês descerebrada. West9 9 . West, R. - Intravenous curarine on treatment of tetanus. Lancet 1:12-16, 1936. e Cole10 10 . Cole, F. - Staff Meet. Bull. Hosp. University Minnesota 15:359, 1944. , obtiveram resultados parciais na melhora de espasmos tetânicos, da rigidês parkinsoniana, da causalgia e de pa-raplegias espásticas. Burman relatou os efeitos relaxadores nos estados espásticos, atetóticos e distônicos, de rigidês muscular e tremor. Baseado no fato de que o curare bloqueia o influxo nervoso ao nível da sinapse neuromuscular, Bennett utilizou-o para diminuir a intensidade dos espasmos tônicos e clônicos nos choques cardiazol icos.

Os estudos sôbre a aplicação do curare em neuropsiquiatria prosseguem e constituem, principalmente em neurologia, uma esperança para os pacientes espasmódicos e hipercinéticos, no sentido não só de minorar-lhes os males como também de permitir-lhes a aplicação de uma fisioterapia em melhores condições. Ainda no terreno neurológico é de interesse no diagnóstico da miastenia. Em psiquiatria o seu uso tende a generalizar-se e constituiu sem dúvida o mais seguro avanço no sentido de preservar os acidentes da convulsoterapia elétrica ou cardiazólica. Em cirurgia o seu emprego permite um melhor relaxamento da musculatura, melhorando as condições operatórias. O desenvolvimento dos estudos no sentido da síntese do curare ou de seu alcalóide, da descoberta de novas drogas curarizantes e no prolongamento da ação das substâncias portadoras de tais ações virá, sem dúvida, melhorar o arsenal terapêutico da neurologia.

  • 1
    . Gill, R. C. - White Water and Black Magic. New York, Henry Holt & Company, 1940.
  • 2
    . Limongi, J. P. - O curare. Estudo etnológico, químico e farmaco-dinámico. An. Fac. Med. Univ. S. Paulo, XIV, 1938.
  • 3
    . Bennett, A. E. - Curare: A preventive of traumatic complications in convulsive shock therapy. Am. J. Psychiat. 97:1040-1060 (março) 1941.
  • 4
    . King, H. - Nature 135:469, 1935, cit. in Harvey
    7 7 . Bremer, F. e Titeca, J. - Compt. Rend. Soc. Biol. 97, 1927. .
  • 5
    . Harvey, A. M. - The action of quinine methichloride on neuromuscular transmission. Bull. John Hopkin's Hospital, 66:52-59 (Janeiro) 1940.
  • 6
    . Burman, M. S. - Therapeutic use of curare and erythroidine hidro-chloride for spastic and dystonic states. Arch. Neurol, a. Psychiat. 41:307-327 (fevereiro) 1939.
  • 7
    . Bremer, F. e Titeca, J. - Compt. Rend. Soc. Biol. 97, 1927.
  • 8
    . Almeida, O. e Moussatché, J. - Compt. Rend. Soc. Biol. 117, 1934.
  • 9
    . West, R. - Intravenous curarine on treatment of tetanus. Lancet 1:12-16, 1936.
  • 10
    . Cole, F. - Staff Meet. Bull. Hosp. University Minnesota 15:359, 1944.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 1945
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