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Iatrogenia em traumatologia

ARTIGO DE REVISÃO

Iatrogenia em traumatologia

Fernando Baldy dos ReisI; Akira IshidaII; José Laredo FilhoIII

IProfessor Livre-Docente, Chefe do Grupo de Trauma

IIProfessor Livre-Docente, Chefe do Departamento

IIIPró-Reitor de Administração e Professor Titular

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Departamento de Ortopedia e Traumatologia Rua Napoleão de Barros, 715 - 1º andar - Vl. Clementino São Paulo - SP - CEP: 04024-002

A traumatologia evoluiu paralelamente ao desenvolvimento científico e tecnológico da humanidade. Tiveram grande importância para este ramo da medicina o desenvolvimento e o aprimoramento da anestesiologia, microbiologia, radiologia e metalurgia. As duas primeiras áreas contribuíram para o avanço da cirurgia de forma geral, enquanto que as duas últimas afetaram a traumatologia ósteo-articular de forma direta.

A descoberta dos Raios X em 1895 por Roentgen permitiu maior precisão e certeza no diagnóstico das fraturas. Desta forma, a aplicação clínica para o estudo, controle de reduções e seu seguimento tornou-se uma consequência imediata. Houve um grande impulso no tratamento incruento e aprimoramento nos estudos sobre a formação do calo ósseo. O diagnóstico por imagem teve novo impulso com o desenvolvimento da Tomografia Computadorizada (TC) e recentemente da Ressonância Nuclear Magnética.

O emprego de intensificadores de imagens possibilitou melhora na qualidade das reduções incruentas e cruentas trazendo benefícios no tocante ao tempo das operações. Algumas reduções abertas passaram a contar com a possibilidade de se realizar fixações percutâneas e de minimizar a abordagem das partes moles adjacente às fraturas.

Por fim, o aspecto biocompatibilidade foi resolvido satisfatoriamente, permitindo o desenvolvimento de diversos modelos e aplicações de materiais de síntese. O desenvolvimento tecnológico da metalurgia, com o preparo de ligas metálicas especiais que reduziram as reações orgânicas ao metal.

A iatrogenia é a sequela ou complicação de tratamento cuja causa é a falha essencial e exclusivamente médica quando da condução ou orientação de um diagnóstico ou uma terapêutica, quer clínica, quer cirúrgica.

Quando nos encontramos diante de lesões iatrogênicas devemos analisar os vários aspectos que levaram o especialista em ortopedia a cometer tais deslizes, evitando sempre fazer comentários deselegantes, maldosos e que por vezes não revelam a verdadeira situação do paciente.

O MÉDICO ORTOPEDISTA

Atualmente, com as subespecialidades, temos especialidades ortopédicas que abrangem todo o aparelho locomotor e dentro de cada uma delas, o Trauma especificamente. O traumatologista deve ser capaz de tratar não só fraturas isoladas, mas também tratar o paciente politraumatizado e polifraturado, considerando o mesmo como um todo, priorizando o atendimento aos aparelhos vitais e fazendo um planejamento racional do tratamento das diversas fraturas. Dessa forma estamos, nos grandes centros ortopédicos, evidentemente que por força do mercado de trabalho, formando profissionais que se subespecializam e tratam "segmentos do paciente", com possibilidade de erros.

A tendência atual pode ser a subespecialidade em certas áreas, o que pode trazer benefícios para o paciente embora nem sempre isso aconteça. Quanto ao atendimento do paciente politraumatizado e polifraturado, devemos manter traumatologistas treinados e atualizados, principalmente porque, no interior do país, 80% dos casos ortopédicos são de fratura.

A consolidação das fraturas é um processo reparativo natural e deve ser auxiliado pelo médico. Ações intempestivas pro falta de conhecimento ou por má técnica cirúgica podem vir a prejudicar sua evolução.

O DIAGNÓSTICO

Embora pareça óbvio, nem sempre o diagnóstico é feito adequadamente; os vários casos de pacientes cujos diagnósticos iniciais foram inadequados, acabam por evoluir com inúmeras complicações. Sabemos que o exame clínico é fundamental e, muitas vezes, o médico ortopedista faz o diagnóstico das fraturas pelas radiografias. Assim podemos afirmar: "trate o paciente e não a radiografia".

A história objetivando antecedentes, mecanismo de produção da lesão, tempo de evolução, o aspecto local bem como as possíveis lesões associadas diferenciam o médico ortopedista que assiste a um paciente. Sabemos que fraturas em diferentes idades podem e devem, na maioria das vezes, ser tratadas de forma diferente.

A imagem radiográfica inicial pode não nos permitir fazer o diagnóstico preciso. Os pacientes por ocasião do atendimento de urgência são submetidos a exames nem sempre muito elucidativos. Em fraturas diafisárias femorais, por exemplo, foi constatado que em 10% dos casos a imagem da fratura inicial não correspondia a imagem no intra-operatório, necessitando de incidências especiais oblíquas ou até planigrafias(1).

Algumas fraturas, para melhor esclarecimento do diagnóstico, necessitam de exames tais como: tomografias computadorizadas nas fraturas de calcâneo, imagens em 3D nas fraturas de anel pélvico e até mesmo fraturas osteocondrais que podem ser diagnosticadas precocemente, antes da imagem radiográfica, através de Ressonância Nuclear Magnética.

As lesões associadas passam muitas vezes despercebidas, sendo as seqüelas destas lesões, na maioria das vezes mais importantes que a própria fratura, que sendo mais evidente, foi diagnosticada. Isso pode ser observado nas fraturas de calcâneo associada à fratura da coluna; estas muitas vezes não diagnosticada. Se for instável pode levar a seqüelas neurológicas gravíssimas e irreversíveis(2).

Diante do exposto, o médico ortopedista deve ter conhecimento suficiente para saber quando, após a suspeita clínica, deve solicitar e quais os exames necessários para fazer o diagnóstico adequado, bem como não se esquecer dos aspectos anatômicos de cada fratura, pois podem estar associados a lesões circulatórias e evoluirem para necrose do fragmento ou até de segmentos articulares, como na fratura do colo de fêmur, escafóide e talo.

O TRATAMENTO

Após estudo cuidadoso poderemos ter o conhecimento da "personalidade das fraturas", analisando todos os aspectos que envolvem, não esquecendo o conjunto das lesões e da situação geral do paciente para então escolher a melhor forma de tratamento para cada fratura e paciente, com a utilização de materiais de síntese especiais para aquele casos e até montagens complexas de fixação externa.

O planejamento prévio(3), em especial do ato operatório, possibilita melhor desempenho do médico ortopedista, menor tempo cirúrgico e, em consequência resultados mais satisfatórios. Não podemos esquecer dos aspectos biológicos no tratamento das fraturas e na execução de uma técnica atraumática, com pouca lesão das partes moles, que são vitais para a consolidação das fraturas.

Quando o médico ortopedista não tem experiência com o método de tratamento escolhido e não possui condições no seu local de trabalho para desenvolvê-lo é muito importante encaminhar o paciente para outro colega que possa realizar o tratamento em local e condições adequadas. Diante da impossibilidade de encaminhamento, o tratamento não operatório ou até mesmo a escolha de outro método que tenha condições de realizá-lo será preferível.

Na reabilitação observamos que diante da insegurança, muitas vezes pela falta de conhecimento e experiência, alguns colegas retardam a reabilitação e, em consequência, prejudicam o tratamento preconizado. Lembramos que a reabilitação funcional após a cirurgia eliminou a chamada doença da fratura.(3)

ASPECTOC SÓCIO - ECONÔMICO

Os aspectos abordados são atingidos diretamente pela situação sócio-econômica que afeta a saúde em nosso país. A ausência de condições para o desempenho profissional adequado também pode ser responsável por lesões iatrogênicas.

A falta de condições hospitalares adequadas, a dificuldade de se utilizar materiais de implante adequados são fatores que podem ocasionar maus resultados.

Ao médico traumatologista cabem as responsabilidades das sequelas tais como: falta de consolidação, infecção, deformidades residuais angulares, rotacionais e de encurtamento. Como lidamos com lesões em pacientes que na maioria das vezes são hígidos, o índice de mortalidade é muito baixo.

Embora a Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia venha insistindo na reciclagem dos seus profissionais filiados e ainda não tenhamos que responder legalmente pelas lesões que são decorrentes de má atuação pelas várias razões já citadas, o médico ortopedista estará nos próximos anos diante de uma realidade de responsabilidade legal.

ASPECTO MÉDICO - LEGAL "PRIMUM NON NOCERE"

Sob o aforismo acima muito se poderia discorrer, pois se em primeiro lugar o médico não deve fazer mal, o que falar das ocorrências como:

1- Omissão?

2- Negligência?

3- Imperícia?

4- Incompetência?

São estes os atos geradores das maiores iatrogenias na prática diária, podendo ser imputadas aos médicos mais responsabilidades que se possa imaginar.

O fato de deixar de ser feita uma boa avaliação do acidentado, por exemplo resultando em sequelas, sugere omissão, negligência e imperícia.

Alegar que a sequela ocorreu devido ao sistema de saúde por não propiciar os recursos necessários ao bom atendimento, não isenta o médico de ser conivente, passando a ser agente da incompetência e da imperícia ao tratar determinada doença.

Praticar ato operatório sem estar devidamente treinado ou preparado em instrumental ou técnica, pode significar incompetência ou imperícia.

Vemos que a iatrogenia está liberada em nosso meio e com os melhores métodos de avaliação e a crítica dos próprios pacientes poderá agravar a situação da responsabilidade civil e criminal dos médicos pela maior incidência de sequelas iatrogênicas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Brumback, R.J.; Reilly, J.P.; Poka, A, et al: Intramedullary nailing of femoral shaft fractures. Part I: Decision-making errors with interlocking fixations. J. Bone Joint Surg, 70 A: 1441-1452,1988.

2. Harkess, J.W.; Ramsey, W.C.: Principles of fractures dislocations. In: Rockwood, C.A. & Green, D.P.: Fractures in adults, 3TM ed. New York, Lippincott, 1991, pag 1 a 180.

3. M¸ller, M.E., Allgower, M.; Schneider, R.; Willenegger, H: Manual of internal fixation fo fractures. Technique recommended by the AO-ASIF group, 3rd ed. Berlin, Springer Verlag, 1991.

Trabalho recebido em 20/03/2001. Aprovado em 27/11/2001

Trabalho realizado no Departamento de Ortopedia e Traumatologia da UNIFESP/EPM

  • Endereço para correspondência

    Departamento de Ortopedia e Traumatologia
    Rua Napoleão de Barros, 715 - 1º andar - Vl. Clementino
    São Paulo - SP - CEP: 04024-002
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Mar 2002
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