Resumo
Objetivo Analisar os desafios para o exercício da advocacia em saúde à criança hospitalizada durante a pandemia COVID-19.
Métodos Estudo qualitativo descritivo-exploratório on-line. Participaram 28 profissionais de enfermagem matriculados na disciplina Enfermagem na Atenção à Saúde da Criança e do Adolescente em um Programa de pós-graduação de uma universidade federal do nordeste brasileiro. A coleta de dados ocorreu em junho de 2021 através de roda de conversa e entrevista coletiva. Como instrumentos utilizou-se: o formulário do google forms e roteiro semiestruturado. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa. Como método de análise, foi empregada a Análise Textual Discursiva (ATD). Para a organização dos dados, utilizou-se o software Atlas.ti 8.4.15 (Qualitative Research and Solutions).
Resultados Emergiram duas categorias: 1) Impactos da pandemia para assistência e advocacia pediátrica, constatou-se o isolamento infantil e um cenário de atenção à saúde onde a criança foi colocada em segundo plano. 2) Barreiras existentes que se agravaram com a crise sanitária, identificou-se: sobrecarga de trabalho, precarização da estrutura e dificuldade nas condições de trabalho, que gerou violações nos direitos infantis e agravou o panorama de dificuldades na oferta de serviços pediátricos.
Conclusão Os desafios para o exercício da advocacia em saúde à criança hospitalizada durante a pandemia, evidenciados pelos impactos e barreiras para a assistência, ampliaram o trabalho das equipes de saúde tornando o exercício da advocacia no cuidado pediátrico ainda mais dificultoso. Cabe repensar e ajustar políticas de acesso e atendimento após a pandemia para assegurar que o cuidado infantil não seja restringido.
Advocacia em saúde; Direitos da criança; Criança hospitalizada; COVID-19; Infecções por coronavírus; Pandemias
Resumen
Objetivo Analizar los desafíos para el ejercicio de la defensa en salud de niños hospitalizados durante la pandemia de COVID-19.
Métodos Estudio cualitativo descriptivo exploratorio en línea. Participaron 28 profesionales de enfermería inscriptos en la asignatura Enfermería en Atención a la Salud del Niño y del Adolescente en un programa de posgrado de una universidad nacional del nordeste brasileño. La recopilación de datos ocurrió en junio de 2021 a través de rondas de conversación y entrevista colectiva. Como instrumentos se utilizaron: un formulario de google forms y un guion semiestructurado. El estudio fue aprobado por el Comité de Ética en Investigación. Como método de análisis, se utilizó el Análisis Textual Discursivo (ATD). Para la organización de los datos, se utilizó el software Atlas.ti 8.4.15 (Qualitative Research and Solutions).
Resultados Surgieron dos categorías: 1) Impactos de la pandemia en la atención y en la defensa pediátrica, se verificó el aislamiento infantil y un escenario de atención en salud en la que el niño fue colocado en segundo plano. 2) Barreras existentes que se agravaron con la crisis sanitaria, se identificó: sobrecarga de trabajo, precarización de la estructura y dificultad en las condiciones de trabajo, lo que generó violaciones de los derechos infantiles y agravó el panorama de dificultades en la oferta de servicios pediátricos.
Conclusión Los desafíos para el ejercicio de la defensa en salud de niños hospitalizados durante la pandemia, evidenciados por los impactos y barreras para la atención, ampliaron el trabajo de los equipos de salud, lo que dificultó aún más el ejercicio de la defensa del cuidado pediátrico. Cabe reflexionar y ajustar políticas de acceso y atención después de la pandemia para asegurar que no se restrinja el cuidado infantil.
Defensa de la Salud; Defensa del niño; Niño hospitalizado; COVID-19; Infecciones por coronavirus Pandemias
Abstract
Objective To analyze the challenges for exercising health advocacy to hospitalized children during the COVID-19 pandemic.
Methods This is an online descriptive-exploratory qualitative study. Participants were 28 nursing professionals enrolled in the subject Nursing in Health Care for Children and Adolescents in a graduate program at a federal university in northeastern Brazil. Data collection took place in June 2021 through a conversation wheel and press conference. As instruments, we used Google forms and a semi-structured script. The study was approved by the Research Ethics Committee. As an analysis method, Discursive Textual Analysis (DTA) was used. For data organization, Atlas.ti 8.4.15 software (Qualitative Research and Solutions) was used.
Results Two categories emerged: 1) Impacts of the pandemic on pediatric care and advocacy: child isolation and a health care scenario where children were placed in the background were observed. 2) Existing barriers that worsened with the health crisis: work overload, precarious structure and difficulty in working conditions were identified, which led to violations of children’s rights and aggravated the overview of difficulties in the provision of pediatric services.
Conclusion The challenges for exercising health advocacy for hospitalized children during the pandemic, evidenced by the impacts and barriers to care, have expanded health teams’ work, making the exercise of advocacy in pediatric care even more difficult. It is necessary to rethink and adjust access and care policies after the pandemic to ensure that child care is not restricted.
Health advocacy; Child advocacy; Child hospitalized; COVID-19; Coronavirus infections; Pandemics
Introdução
A advocacia em saúde é definida como a prática de representar as necessidades do usuário e família, assegurando que a tomada de decisões em saúde esteja de acordo com os interesses dos envolvidos.(1) Pode também ser compreendida como a atitude de salvaguardar, informar, valorizar, mediar e defender os direitos dos indivíduos na prestação de cuidados em saúde.(2)
No cuidado infantil, a advocacia em saúde é exercida diariamente por profissionais de enfermagem, que defendem crianças e famílias de situações adversas como dificuldade de acesso, de atendimento em tempo oportuno, além das violações que lhes causam danos, como violência psicológica, física, pela perda de autonomia.(3,4) Esta preocupação torna-se relevante ao considerar que no Brasil, apesar das políticas e leis promulgarem recomendações para assegurar o atendimento à criança nos serviços de saúde, grande parte das dificuldades é respaldada, principalmente, pela significativa redução de leitos de internação pediátrica nos últimos anos, especialmente pela falta de investimentos por parte do Sistema Único de Saúde. De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria, 15,9 mil leitos de internação pediátrica foram fechados no Brasil nos últimos 10 anos, o que vem resultando na peregrinação de crianças nos serviços de saúde.(4,5)
Com efeito, o panorama mundial que acarretou o aumento da demanda de atendimento em serviços de saúde pela COVID-19, ampliou ainda mais o desafio das equipes em garantir o cuidado seguro, livre de violações e maus-tratos para crianças, habitualmente derivado de negligência e violência praticadas nas instituições de saúde. Pesquisas confirmam que profissionais relatam inúmeras dificuldades para prestar o cuidado infantil integral em serviços de saúde durante a pandemia, a exemplo dos problemas de acesso aos serviços de saúde, falta de informação e reduzido investimento no setor pediátrico.(4,6,7)
Estes problemas ocorreram, em parte, devido ao descompasso político administrativo originado pelo aumento da demanda e a real oferta de serviços, que sobrecarregou o sistema de saúde, e levou à ocorrência de violações, materializando a violência institucional (VI) em saúde,(4) como visto em 2021, na falta de oxigênio para tratamento da COVID-19 em Manaus-Brasil.
A VI em saúde pode ser evidenciada pela violação dos direitos das pessoas, que incluem desde a peregrinação do usuário a diversos serviços à procura de atendimento, até os abusos, negligências e proibições durante o período de hospitalização que infringem os direitos dos pacientes, ocasionando maus tratos aos usuários.(8)
A presença de maus-tratos e violações aos direitos infantis em serviços de saúde não são raros, apesar da ínfima quantidade de pesquisas. Na Alemanha, estudo confirmou que este tipo de violência pode variar de um simples desrespeito à privacidade à omissão de cuidados e morte.(9) No Brasil, estudo também constatou a VI à criança, quando esta adentra nos serviços de saúde, pela precarização da estrutura hospitalar, práticas de cuidado abusivas e problemas nas relações entre profissionais, criança e família.(10)
Assim, ao considerar a presença de VI em crianças durante o tempo que estas encontram-se hospitalizadas, e que pesquisas(9-11) apontam que os problemas originados pela dificuldade em prestar o cuidado adequado à criança durante a pandemia COVID-19 pode lhes acarretar danos físicos e psicológicos irreversíveis, faz-se necessário discutir sobre os desafios dos profissionais de enfermagem no exercício da advocacia, uma vez que esta emerge como uma função essencial da equipe de saúde. Nesta perspectiva, o objetivo deste estudo é analisar os desafios para o exercício da advocacia em saúde à criança hospitalizada durante a pandemia COVID-19.
Métodos
Estudo qualitativo, descritivo, exploratório, realizado de forma remota. O campo de pesquisa foi uma Escola de Enfermagem de uma Universidade Federal do nordeste brasileiro.
Participaram do estudo enfermeiros que cursavam a disciplina Enfermagem na Atenção à Saúde da Criança e do Adolescente do Programa de Pós-Graduação da referida universidade. Como critérios de inclusão, os participantes deveriam estar matriculados na referida disciplina e ter tido experiência com cuidado pediátrico durante sua formação/atuação profissional. Utilizou-se como critério de exclusão não pertencer à categoria de enfermagem.
A coleta de dados foi descrita de acordo com os critérios consolidados para pesquisa qualitativa (COREQ). Os dados foram coletados em junho de 2021. Os participantes foram escolhidos por conveniência (por estarem matriculados na disciplina), sendo convidados a participarem de dois encontros em dias e horários estabelecidos previamente no cronograma do componente curricular. Não havia conhecimento prévio entre pesquisadoras e participantes. No primeiro encontro, as pesquisadoras se apresentaram e abordaram a VI à criança, advocacia em saúde e os objetivos da pesquisa. Posteriormente, foram convidados e concordaram em participar da pesquisa, preenchendo o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido via google forms. Os participantes também preencheram um formulário eletrônico para perfil sociodemográfico. Dos 29 estudantes, apenas um não participou da pesquisa por não ser da enfermagem.
No segundo encontro ocorreu uma roda de conversa e entrevista coletiva, conduzida pelas pesquisadoras, na qual os profissionais falaram abertamente sobre suas experiências em advocacia em saúde. Utilizou-se um roteiro para guiar a entrevista coletiva com perguntas: Na sua opinião, quais as barreiras para o exercício da advocacia à criança hospitalizada? E as barreiras para o cuidado infantil durante a pandemia COVID 19? Na sua opinião, como a pandemia afetou o cuidado infantil? Os encontros ocorreram totalmente on-line pela plataforma google meet, foram gravados (totalizando duas horas e trinta e cinco minutos) e os registros do chat, resgatados para compor o corpus da pesquisa. Após a coleta, os dados foram transcritos e organizados.
Durante a leitura exaustiva do material, percebeu-se a saturação deste pela repetição dos enunciados. Para a organização e tratamento dos dados, utilizou-se o software Atlas.ti 8.4.15. O estudo utilizou o método da Análise Textual Discursiva (ATD), que estabelece o exercício da escrita como ferramenta mediadora na produção de significados.(12) Assim, ocorreu a desmontagem dos textos; o estabelecimento de relações; a captura de um novo emergente e a recolocação dos achados em um processo auto organizado.
A pesquisa respeitou os princípios estabelecidos pelas Resoluções do Conselho Nacional de Saúde nº. 466/2012, sendo submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa do campo de estudo e aprovada com CAAE: 45277021.9.0000.5531.
Resultados
Participaram 28 enfermeiros, 89,3% sexo feminino, média de idade 34,7 anos; cor autodeclarada negra (64,3%) e branca (35,7%). Quanto ao estado civil, 50% casados e igual proporção solteiros; maior parte residia na Bahia (85,7%), Sergipe (10,7%), São Paulo (3,6%). Na formação acadêmica, maioria possuía especialização (53,6%), mestrado (28,6%), doutorado (3,6%) e 14,2% apenas cursos de formação complementar. Quanto ao tempo em pediatria, 21,4% possuía até 3 anos, 21,4% entre 4 e 9 anos, 17,8% mais de 10 anos e 39,3% atuou em pediatria apenas durante a graduação. Quanto ao local, 57,1% trabalhavam em hospital, 14,3% atenção básica, 7,1% instituição de ensino superior, 3,6% UTI pediátrica e 17,9% não trabalhavam. Quanto ao vínculo empregatício, 32,1% atuavam em instituições públicas, 21,4% filantrópicas, 17,9% privadas e 28,4% mistas ou terceirizadas. A principal modalidade contratual foi carteira assinada (50%), servidor público (28,6%), contrato temporário (14,3%), prestador de serviço (7,1%). Os discursos dos participantes revelam um cenário de dificuldades para o exercício da advocacia em saúde no âmbito da pediatria, destacando-se em duas categorias: impactos da pandemia para assistência e advocacia pediátrica e as barreiras existentes que se agravaram com a crise sanitária.
Os impactos da pandemia para assistência e advocacia na pediatria
Os impactos da pandemia na advocacia e atendimento infantil emergiram em duas principais questões. Primeiramente, a criança ficou em segundo plano na assistência à saúde, constatado nas situações em que: unidades de pediatria reduziram leitos para atender a necessidade de vagas para adultos; unidades básicas de saúde reduziram os serviços de puericultura e imunização para atender pacientes com COVID-19; quando comorbidades não COVID-19, em crianças internadas com COVID-19, não recebiam o tratamento adequado. Em segundo lugar, constatou-se o isolamento da criança durante a hospitalização - pela implementação das políticas de restrições- que afetaram a humanização do cuidado pediátrico. A figura 1 apresenta um diagrama destas subcategorias com os relatos dos participantes.
Impactos da pandemia COVID-19 para advocacia e assistência pediátrica na perspectiva de enfermeiros
Barreiras existentes para o exercício da advocacia que se agravaram com a crise sanitária
A pandemia ampliou ainda mais as barreiras existentes para o exercício da advocacia à criança hospitalizada. As três barreiras apresentadas pelos enfermeiros foram: condições de trabalho dificultosas, precarização da estrutura, e sobrecarga dos profissionais. A figura 2 apresenta as barreiras para o exercício da advocacia, destacando a forte relação entre elas, configurando uma tríade de difícil enfrentamento.
Barreiras para o exercício da advocacia em saúde durante a pandemia COVID-19 na perspectiva de enfermeiros
Discussão
A pandemia COVID-19 emergiu como um dos maiores desafios na atenção em saúde em todo mundo e, embora crianças não tenham constituído um grupo de risco em evidência, estas sentiram os impactos desta crise sanitária sem precedentes.(7)
Neste estudo, os participantes confirmam que alguns dos principais desafios no exercício da advocacia no cuidado pediátrico foi o modo como as crianças foram colocadas em segundo plano, bem como terem que permanecer isoladas, restritas quando hospitalizadas. Estes entraves ocasionaram falta de assistência e obstáculos para humanização do cuidado, comprometendo a saúde física emocional de crianças e familiares.
A pouca ênfase atribuída à atenção pediátrica durante a pandemia foi abarcada pelo panorama mundial imprevisível e complexo, que resultou na polarização da atenção das principais organizações de saúde, ao priorizar o atendimento aos doentes de COVID-19, em sua maioria, adultos e idosos.(11,13) Igualmente, no Brasil, o reflexo deste ambiente de extrema necessidade da rede de atenção especificamente para indivíduos com COVID-19, de faixa etária elevada, levou a assistência pediátrica a estar em segundo plano, contribuindo para que muitas demandas infantis não fossem atendidas adequadamente.(14)
A atitude de colocar a criança em segundo plano no atendimento de saúde não é um problema exclusivamente ocasionado pela pandemia. Estudo que evidenciou a invisibilidade do cuidado infantil em hospitais confirmou a existência de violações dos direitos infantis, a saber: peregrinação (busca dificultosa por atendimento em saúde), escassez de materiais, equipamentos, recursos humanos e inadequações da estrutura para atendimento infantil.(4) Assim, percebe-se que com a pandemia ocorre, não o surgimento, mas a ampliação da invisibilidade do cuidado infantil, o que acarreta maior risco de VI para a criança nesse período.
Os dados desta pesquisa também evidenciaram a precarização da infraestrutura nos serviços de saúde para atender o público infantil. Realidade semelhante foi encontrada em estudo realizado no Peru, que constatou que os recursos destinados ao atendimento de crianças com COVID-19 são limitados e precisam ser ampliados.(13)
Ademais, com a pandemia, os sistemas de saúde tornaram-se saturados e o acesso aos cuidados básicos de saúde tornou-se restrito. Serviços como puericultura, imunização, acesso a medicamentos especiais e cuidados oncológicos tiveram sua oferta reduzida, por isso a dificuldade para lidar com a demanda reprimida.(12,14)
Outro aspecto constatado como um desafio para o exercício da advocacia em unidades pediátricas foi o isolamento infantil, pela implementação das políticas de restrição de visitas, durante a pandemia como uma estratégia para minimizar a transmissão pelo COVID-19 em hospitais. Essa medida impactou de forma contundente no direito de crianças receberem apoio familiar durante a internação.
Importante salientar que as políticas de restrição são necessárias e vem cumprindo o papel para qual foram instituídas, visto que estudos demonstraram redução significativa de transmissão de infecções respiratórias associadas aos cuidados de saúde durante as restrições de visitas.(15,16) Ademais, a American Academy of Pediatrics recomendou que estabelecimentos de saúde incentivassem a presença limitada da família (uma ou duas pessoas) durante a internação da criança, como forma de garantir a sua segurança. No entanto, o conflito ético em torno dessa questão tornou-se evidente, em razão do aumento do risco de problemas emocionais e psicológicos para crianças e familiares.(17)
Sobre os malefícios do isolamento infantil pelas políticas de restrição de visitas, estudos revelaram consequências não intencionais destas, a saber: problemas físicos (diminuição da ingesta alimentar e atividades de vida diária, aumento da dor e sintomas da doença tratada), problemas emocionais (solidão, sintomas depressivos, agitação, agressão, redução da capacidade cognitiva) e insatisfação geral.(16,18)
Ademais, familiares e cuidadores exercem papel preponderante na advocacia dos direitos da criança, pois além de prestar-lhes cuidados básicos, emocionais, conhecem seu histórico de saúde, sinais de alerta e atuam na tomada de decisão substituta. Logo, a limitação da presença dos familiares potencializa o risco de danos e situações de violência enquanto a criança encontra-se hospitalizada. Assim, é necessário lembrar que apoiar e confortar pacientes na cabeceira do leito reverberam em sensações de bem-estar para crianças e seus cuidadores, tornando a presença de familiares um elemento essencial para assegurar a qualidade do cuidado infantil.(15,17)
Nesse sentido, estudos que discutem a viabilidade das políticas de restrição de visitas em unidades pediátricas propõem que estas ocorram de forma a garantir a presença da família em condições adequadas de permanência, equilibrando riscos e benefícios, trazendo-a também como elo importante para mitigar o risco de contaminação, estabelecendo uma justa colaboração de todos os envolvidos para que a visita ocorra de forma segura.(15,16)
Sobre as barreiras relatadas pelos participantes para o exercício da advocacia no cuidado pediátrico, três importantes aspectos emergiram como características correlacionadas, por isso foram descritas como uma tríade, constituída pela: precarização da infraestrutura hospitalar, condições de trabalho e sobrecarga dos profissionais.
A precarização da infraestrutura, parte dessa tríade, ampliou o contexto das dificuldades na assistência à criança. Os enfermeiros relataram que o déficit de equipamentos e materiais intensificado pela pandemia comprometeu o atendimento infantil. Por conseguinte, o cenário de escassez de recursos reverberou diretamente na precariedade da rede de atenção à saúde infantil em todas as esferas. Essas condições geram insegurança nos profissionais, considerando a falta de controle sobre essas questões.
Estudos apontam que a escassez de materiais resulta em medo e ansiedade por parte dos profissionais, pois estes temem em falhar na proteção de si e do outro.(6,7,13) O medo da contaminação é um fator estressor aos enfermeiros, relacionado ao desafio de evitar a disseminação do vírus, ao mesmo tempo em que presta cuidados de qualidade sem que o paciente seja prejudicado.(19,20) Os profissionais corroboram esta problemática ao mencionarem medo pela falta de equipamentos de proteção individual, testes diagnósticos e conhecimentos/informações relacionados à doença, redução de leitos, insumos e o número reduzido de profissionais de enfermagem.
Assim, a precarização da infraestrutura nos serviços de saúde tem se revelado como um problema crucial e ao mesmo tempo transversal, com desdobramentos em diversos níveis de atenção à saúde, ao evidenciar o caráter estrutural da violência que tem origem nas iniquidades de saúde. Frequentemente, os problemas infra estruturais são responsáveis por situações de intensificação da peregrinação por diversos serviços de saúde, falta de atenção e má qualidade da assistência.(4) Entretanto, a pandemia ratificou que a alocação de recursos para atendimento de saúde é regida pelos interesses políticos, locais e econômicos, o que pôde ser constatado com a abertura de novos hospitais, contratação de profissionais e aquisição de materiais e equipamentos para tratamento da COVID-19, realidade que diverge com o que ocorre no cuidado infantil.
As condições de trabalho precárias que profissionais de enfermagem estão expostos emergiram como uma importante questão, que impactou negativamente no exercício da advocacia. Durante a pandemia, a precariedade das condições de trabalho é refletida pela falta de equipamentos de proteção individual, problemas nas relações de trabalho e contratos de trabalho frágeis, derivados da emergência da crise sanitária e o manejo inadequado desta. Estudos apresentam convergência ao sinalizarem que o déficit de profissionais, o uso de equipamentos de proteção insuficientes e inadequados, sobrecarga de trabalho, excesso de demanda assistencial, formato de contratação trabalhista (com baixa remuneração e longas jornadas), já eram uma prática comum.(20-22)
Estes aspectos estão concomitantemente potencializados, como nunca antes vivenciados no Brasil e no mundo. Esta situação conduziu à exaustão, adoecimento e morte destes profissionais.(20-22) Ressalta-se que, anteriormente à pandemia, a enfermagem já lutava contra o sub-dimensionamento das equipes e a sobrecarga de trabalho, que serão agravadas pelo conteúdo disposto na Medida Provisória (MP) 927/2020. O Cofen impetrou ação judicial contra a Medida Provisória, enfatizando que o documento trata com escárnio aqueles que estão na linha de frente da pandemia, para garantir a assistência à população.(23)
A sobrecarga de trabalho nesse período é causa e consequência; adoece, estressa, afasta os colegas e potencializa o medo do profissional se contaminar e/ou contaminar seus familiares. Semelhantemente, estudo no Canadá confirmou maior prevalência de ansiedade e depressão em enfermeiros durante a pandemia, ocasionados pelo medo e sobrecarga de trabalho.(24) Enfermeiros particularmente sentem-se ansiosos ao cuidar de crianças por estas serem assintomáticas quando infectadas pelo SARS-CoV-2, logo, esta condição aliado à sobrecarga de trabalho potencializa as adversidades enfrentadas durante o cuidado infantil.(25,26)
Quanto às condições e sobrecarga de trabalho, dois aspectos emergem de ambas as problemáticas. Primeiramente, importante destacar que o conhecimento dos elementos que contribuem para o aumento ou a redução da sobrecarga de trabalho, nem sempre pode colaborar para o fortalecimento de aspectos positivos do trabalho e minimização dos aspectos negativos. Assim como, a constatação de que as crianças são menos ou minimamente susceptíveis ao COVID-19, quando comparadas com adultos, não quer dizer, necessariamente que não terão implicações em médio e longo prazo. Ainda que as crianças sejam menos suscetíveis à COVID-19, este estudo evidenciou importantes impactos negativos para o cuidado, que, sobremaneira, vulnerabiliza ainda mais a criança, podendo acarretar em situações de violência institucional.
Este estudo teve como limitação a utilização de apenas um programa de pós-graduação para coleta de dados, o que indica a necessidade de ampliar os estudos sobre essa temática.
Conclusão
O estudo apresentou os desafios para o exercício da advocacia em saúde da criança hospitalizada durante a pandemia pela COVID-19. Os desafios foram descritos em duas categorias: impactos da pandemia para assistência pediátrica e barreiras existentes que se agravaram com a crise sanitária. Dentre os impactos, os participantes destacaram que a criança foi colocada em segundo plano (evidenciado pela redução na oferta de atendimento e cuidados pediátricos) e o isolamento infantil (pela aplicação das políticas de restrições de visitas), o que gerou violações nos direitos das crianças e agravou o panorama de dificuldades na oferta de serviços pediátricos. Quanto às barreiras que se agravaram com a crise sanitária, foi identificado que a sobrecarga dos profissionais, a precarização da estrutura hospitalar e a dificuldade nas condições de trabalho ampliaram o desafio das equipes de saúde e tornaram o exercício da advocacia em saúde no cuidado pediátrico ainda mais dificultoso. O estudo revelou um cenário de dificuldades para o exercício da advocacia em saúde no âmbito da pediatria. Neste estudo foi possível perceber que, apesar da pandemia ter colocado em evidência as limitações dos profissionais no exercício da advocacia em saúde, essa problemática já existia anteriormente, podendo persistir no período pós-pandêmico, pois as necessidades infantis ainda permanecem invisíveis diante da maioria dos envolvidos no atendimento pediátrico. Nesse aspecto, as discussões da advocacia em saúde no cuidado pediátrico contribuem para dar visibilidade ao tema e instrumentalizar profissionais de saúde a exercerem sua prática profissional livre de violações. É necessário repensar e ajustar políticas de acesso, atendimento de saúde durante e após a pandemia da COVID-19, para assegurar que o cuidado infantil não seja restringido. É preciso investir em treinamento da equipe de enfermagem, bem como ampliar a colaboração multiprofissional na formação de equipes de proteção à criança em serviços de saúde, para que os direitos infantis não mais sejam violados.
Agradecimentos
Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio do PROEX-CAPES No 364/2021 pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Agradecemos ao Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CNPq) pela concessão de bolsa em produtividade Pq2, manuscrito vinculado ao macroprojeto do CNPq.
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Editado por
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Editor Associado (Avaliação pelos pares): Rosely Erlach Goldman (https://orcid.org/0000-0002-7091-9691) Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Maio 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
06 Jun 2022 -
Aceito
19 Dez 2022