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Demandas de saúde mental: percepção de enfermeiros de equipes de saúde da família

Demandas de salud mental: percepción de enfermeros de equipos de salud de la familia

Resumos

OBJETIVO: Descrever como são identificadas e acolhidas as necessidades de saúde mental (SM) por equipes de saúde da família, conforme a concepção de enfermeiros. MÉTODOS: Estudo exploratório, descritivo de caráter qualitativo. Utilizaram-se entrevistas semiestruturadas junto a cinco enfermeiros e a interpretação foi norteada pelas preconizações do Ministério da Saúde Brasileiro sobre a inclusão das ações de SM na atenção básica. RESULTADOS: Identificou-se que a falta de indicadores no Sistema de Informações da Atenção Básica (SIAB) afeta o planejamento das ações de SM e que outras doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, são prioritárias para as equipes. As ações de SM vêm sendo incorporadas gradativamente no processo de trabalho das equipes de saúde da família, e a consultoria de psiquiatria exerce importante papel nisso. CONCLUSÃO: Reconhece-se a necessidade de educação permanente, revisão do SIAB e, sobretudo, criação de projetos terapêuticos sistematizados e à disposição para novos modos de cuidar.

Necessidades e demandas de serviços de saúde; Saúde mental; Percepção; Equipe de enfermagem; Atenção primária à saúde; Saúde da família


OBJETIVO: Describir cómo identifican y acogen las necesidades de salud mental (SM) los equipos de salud de la familia, conforme la concepción de enfermeros. MÉTODOS: Estudio exploratorio, descriptivo de carácter cualitativo. Se utilizaron entrevistas semiestructuradas aplicadas a cinco enfermeros y la interpretación fue norteada por lo que preconiza el Ministerio de Salud Brasileño sobre la inclusión de las acciones de SM en la atención básica. RESULTADOS: Se identificó que la falta de indicadores en el Sistema de Informaciones de la Atención Básica (SIAB) afecta a la planificación de las acciones de SM y que otras enfermedades crónicas, como la diabetes e hipertensión, son prioritarias para los equipos. Las acciones de SM vienen siendo incorporadas gradualmente en el proceso de trabajo de los equipos de salud de la familia, y la consultoría de psiquiatría ejerce un papel importante en eso. CONCLUSIÓN: Se reconoce la necesidad de educación permanente, revisión del SIAB y, sobre todo, creación de proyectos terapéuticos sistematizados y la disposición para nuevos modos de cuidar.

Necesidades y demandas de servicios de salud; Salud mental; Percepción; Grupo de enfermería; Atención Primaria de salud; Salud de la familia


OBJECTIVE: To describe how the needs of mental health (MH) of family health teams are identified and embraced, according to the conception of the nurses. METHODS: This was an exploratory, descriptive study, of qualitative character. We used semi-structured interviews with five nurses, and interpretation was guided by proclaimations of the Brazilian Ministry of Health about the inclusion of the actions of MH in primary care. RESULTS: We identified that the lack of indicators in the Information System of Primary Care (ISPC) affected the planning of the actions for MH and other chronic diseases, such as diabetes and hypertension, that are priorities for the teams. The actions of MH have been gradually incorporated in the work process of family health teams, and consulting psychiatry plays an important role. CONCLUSION: We recognize the need for continuous education revision of ISPC and, especially, creation of systematized therapeutic projects and the provision for new ways of caring.

Health services needs and demand; Mental health; Perception; Nursing, team; Primary health care; Family health


ARTIGO ORIGINAL

Demandas de saúde mental: percepção de enfermeiros de equipes de saúde da família* * Trabalho realizado na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo - USP - Ribeirão Preto (SP), Brasil.

Demandas de salud mental: percepción de enfermeros de equipos de salud de la familia

Jacqueline de SouzaI; Margarita Antonia Villar LuisII

IDoutora em Ciências. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo - USP - Ribeirão Preto (SP), Brasil

IIProfessora Titular, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo - USP - Ribeirão Preto (SP), Brasil

Autor Correspondente Autor Correspondente: Jacqueline de Souza Av. dos Bandeirantes, 3900 - Monte Alegre CEP 14040-902 - Ribeirão Preto (SP), Brasil Email: jacsouza2003@usp.br

RESUMO

OBJETIVO: Descrever como são identificadas e acolhidas as necessidades de saúde mental (SM) por equipes de saúde da família, conforme a concepção de enfermeiros.

MÉTODOS: Estudo exploratório, descritivo de caráter qualitativo. Utilizaram-se entrevistas semiestruturadas junto a cinco enfermeiros e a interpretação foi norteada pelas preconizações do Ministério da Saúde Brasileiro sobre a inclusão das ações de SM na atenção básica.

RESULTADOS: Identificou-se que a falta de indicadores no Sistema de Informações da Atenção Básica (SIAB) afeta o planejamento das ações de SM e que outras doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, são prioritárias para as equipes. As ações de SM vêm sendo incorporadas gradativamente no processo de trabalho das equipes de saúde da família, e a consultoria de psiquiatria exerce importante papel nisso.

CONCLUSÃO: Reconhece-se a necessidade de educação permanente, revisão do SIAB e, sobretudo, criação de projetos terapêuticos sistematizados e à disposição para novos modos de cuidar.

Descritores: Necessidades e demandas de serviços de saúde; Saúde mental; Percepção; Equipe de enfermagem; Atenção primária à saúde; Saúde da família

RESUMEN

OBJETIVO: Describir cómo identifican y acogen las necesidades de salud mental (SM) los equipos de salud de la familia, conforme la concepción de enfermeros.

MÉTODOS: Estudio exploratorio, descriptivo de carácter cualitativo. Se utilizaron entrevistas semiestructuradas aplicadas a cinco enfermeros y la interpretación fue norteada por lo que preconiza el Ministerio de Salud Brasileño sobre la inclusión de las acciones de SM en la atención básica.

RESULTADOS: Se identificó que la falta de indicadores en el Sistema de Informaciones de la Atención Básica (SIAB) afecta a la planificación de las acciones de SM y que otras enfermedades crónicas, como la diabetes e hipertensión, son prioritarias para los equipos. Las acciones de SM vienen siendo incorporadas gradualmente en el proceso de trabajo de los equipos de salud de la familia, y la consultoría de psiquiatría ejerce un papel importante en eso.

CONCLUSIÓN: Se reconoce la necesidad de educación permanente, revisión del SIAB y, sobre todo, creación de proyectos terapéuticos sistematizados y la disposición para nuevos modos de cuidar.

Descriptores: Necesidades y demandas de servicios de salud; Salud mental; Percepción; Grupo de enfermería; Atención Primaria de salud; Salud de la familia

INTRODUÇÃO

Aproximadamente 14% dos gastos globais com saúde vêm sendo atribuídos aos transtornos mentais em razão da natureza crônica da depressão, esquizofrenia, dependência de álcool e drogas e outras doenças psíquicas. Tal estimativa ressalta a importância da saúde mental no âmbito da saúde pública e pressupõe a necessidade de abordagens que articulem os problemas de saúde mental às outras condições de saúde (1).

O portador de transtornos mentais tem maior risco para doenças e agravos, por outro lado, muitas condições de saúde potencializam a vulnerabilidade para os transtornos mentais. Assim, a conscientização sobre a importância da saúde mental deve ser incorporada a todo o contexto da saúde, planejamento do sistema e oferta de cuidados primários e secundários, bem como na política social (1).

Conforme as concepções e diretrizes das atuais políticas de saúde, a articulação entre saúde mental e atenção básica pressupõe um modelo de redes de cuidado, adotando como princípios a noção de território, a intersetorialidade, a reabilitação psicossocial e a interdisciplinaridade em prol da promoção da cidadania dos usuários (2).

O programa de agentes comunitários de saúde (PACS) e o de saúde da família (PSF) são programas implementados em grande parte do território nacional, com o propósito de estender as ações básicas de saúde a segmentos da população que não tinham acesso a esses serviços. Sua criação deu-se primeiramente no nível regional e depois municipal, no qual adquiriu feições variadas em consonância com as necessidades locais(3).

Partindo dessas premissas, o artigo visou descrever como são identificadas e acolhidas as necessidades de saúde mental por equipes de saúde da família, de acordo com a concepção dos enfermeiros.

MÉTODOS

Estudo exploratório, descritivo realizado na perspectiva qualitativa utilizando a técnica de entrevista semiestruturada(4,5) para a coleta de dados. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (Protocolo nº 426/2010) e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Foram entrevistados cinco enfermeiros de cinco equipes de saúde da família de um município do interior paulista. Utilizou-se a entrevista semiestruturada, que é uma estratégia de coleta de dados qualitativa em que o pesquisador pergunta ao informante uma série de questões, predeterminadas, mas, abertas (6). O roteiro das entrevistas tinha seis questões sobre as famílias com demandas de saúde mental e a organização da equipe para acolhê-las. Foram incluídos no estudo todos os enfermeiros das cinco equipes. As entrevistas foram realizadas individualmente em sala reservada no próprio serviço de saúde, tais entrevistas foram gravadas, transcritas e procedeu-se à análise dos dados, seguindo cinco passos metodológicos (7): Compilação; Desconstrução (disassembling); Reconstrução (reassembling); Interpretação e Conclusão.

Após a transcrição de cada entrevista (compilação), foram feitas leituras e releituras sucessivas dos dados. Na desconstrução dos dados, as informações foram fragmentadas de acordo com as questões a que se referiam. Já na reconstrução, foram consideradas as falas que se referiam aos mesmos assuntos e os dados foram codificados e reordenados, tendo como base os seguintes padrões que emergiram dos fragmentos: saúde mental como prioridade da equipe; estrutura do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), como limitador, capacitação da equipe, consultoria e assessoria de saúde mental; dicotomia integralidade versus especialidades.

A interpretação dos dados foi norteada pelas três preconizações estratégicas do Ministério da Saúde Brasileiro quanto à inclusão das ações de saúde mental na atenção básica, a saber: O apoio matricial da saúde mental às equipes da atenção básica; A formação profissional para implementação das ações de saúde mental; e Inclusão da saúde mental no SIAB (2).

O apoio matricial da saúde mental às equipes da atenção básica é descrito como um arranjo organizacional para aumentar a capacidade resolutiva dos problemas de saúde e ampliar a clínica da equipe local, entendendo "ampliação da clínica" como o resgate e a valorização de outras dimensões além da biológica e dos sintomas, isto é, incorporando aspectos psicossociais (2).

A formação como estratégia prioritária para inclusão da saúde mental na atenção básica preconiza cursos e capacitações coerentes com os princípios da Reforma Psiquiátrica e que se entrelacem com o apoio matricial de modo a conformar linhas de formação continuada e em serviço (2).

A inclusão da saúde mental no SIAB é considerada estratégica para avaliação e planejamento em saúde, logo, aponta-se a necessidade de sua reformulação incluindo indicadores relacionados à saúde mental, como por exemplo, os problemas de uso prejudicial de álcool e outras drogas e demais transtornos mentais (2).

Os dois eixos de ações de saúde mental com potencial de desenvolvimento na atenção básica são: detecção das queixas relativas ao sofrimento psíquico e promoção de escuta qualificada a estas queixas; lidar com os problemas detectados oferecendo tratamento na própria atenção básica ou encaminhamento desses pacientes para serviços especializados (8).

RESULTADOS

Quanto aos enfermeiros sujeitos do estudo, todos eram formados há mais de oito anos, com média de idade 39 anos e com tempo de atuação nos respectivos serviços de quatro anos ou mais. Três dos cinco enfermeiros possuem pós-graduação.

Com base nos eixos mencionados, os resultados foram organizados para apresentação em duas grandes categorias: "Identificação das demandas de saúde mental" e "Acolhimento das necessidades de saúde mental", conforme a Figura 1.


Em cada uma destas categorias, foram incorporados os padrões decorrentes da reconstrução dos dados, resultando no fluxo de informações apresentado nos Quadros 1 e 2.



No Quadro 1, estão apresentadas a categoria e as subcategorias referentes ao Eixo I, que dizem respeito às formas de detecção das queixas relativas ao sofrimento psíquico e promoção de escuta qualificada a estas queixas. Conforme pode ser observado, os resultados encontrados foram: visitas domiciliares demandam espontânea do usuário e identificação das demandas de saúde mental concomitante às outras consultas.

No Quadro 2, foram reunidas as falas das entrevistas referentes ao Eixo II, a saber: lidar com os problemas detectados, oferecendo tratamento nas unidades da atenção básica ou encaminhamento desses pacientes para serviços especializados. Os resultados encontrados, conforme pode ser observado abaixo foram: consultoria de psiquiatria, reunião de equipe, capacitações e treinamentos, escuta, consulta, medicação e encaminhamento para serviços especializados.

DISCUSSÃO

A abordagem das demandas de saúde mental pela equipe de atenção básica consiste em um potente marcador que sinaliza a incorporação prática do conceito ampliado do processo saúde-doença, deslocando-se de uma atuação pautada na "queixa-conduta" para a ação intersetorial e articulação com recursos comunitários(8).

Os dados apontam que os entrevistados estão conscientes da importância da inserção das ações de saúde mental na atenção básica e, por isso, entendem que a equipe deve estar sensível a essa demanda. Quanto à identificação das demandas nos serviços estudados (Quadro 1), apesar de considerar a saúde mental como um aspecto importante, o depoimento da entrevista 5 denotou uma percepção que prioriza outras condições clínicas (como diabetes, hipertensão), isto é, as questões de saúde mental são consideradas secundárias às demais prioridades listadas pela equipe, embora haja diversos aspectos psicossociais envolvidos nessas mesmas enfermidades.

O fato pode estar relacionado à própria história da implementação da Estratégia de Saúde da Família, pois o PACS, estabelecido em 1991, e, posteriormente, o PSF, em 1994, foram as primeiras iniciativas do Ministério da Saúde para alterar a organização da atenção à saúde com ênfase na Atenção Primária. Tais iniciativas estavam associadas à ação do governo federal para enfrentar os altos índices de morbidade e mortalidade infantil e algumas epidemias da Região Nordeste do Brasil, depois se estenderam prioritariamente às áreas de maior vulnerabilidade social(9,10).

Por outro lado, as demais falas (Quadro 1) descrevem o serviço como sensível às demandas psicológicas, tanto quanto as outras situações de doença, destacando a espontaneidade dos pacientes em comunicar suas necessidades psíquicas.

O fato do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB) não possuir um indicador específico para as demandas de saúde mental, mais comuns, foi apontado pelos enfermeiros como uma fragilidade que impede a sistematização das demandas específicas de saúde mental no território (Quadro 1).

Ao passo que o SIAB tem os indicadores de diabetes, hipertensão, gestantes e crianças, facilita o levantamento e localização das famílias com tais necessidades. Já no caso da saúde mental, isto não é uma realidade.

A inclusão da saúde mental nesse Sistema parece ser uma demanda urgente das equipes. Este tipo de indicador é fundamental para o planejamento das ações de saúde, tanto no nível local como para a tomada de decisões políticas relacionadas à saúde no nível federal.

Apesar dessa crítica legítima, na ficha A do SIAB, no item doenças referidas existe a opção "alcoolismo" (11) que também é uma condição de saúde mental, mas, que não foi citada por nenhum dos entrevistados.

Observa-se, com base nos resultados, que o SIAB tanto atua como balizador das ações como serve como pretexto para o "engessamento" da equipe em relação às especificidades locais. A ausência de um indicador do Sistema de Informação não pode ser uma justificativa para a não sistematizar os cuidados a uma demanda específica, que é identificada no território. Um exemplo de que podem ser inseridas mudanças independentes do sistema, foi a inclusão dos pacientes acamados em um controle interno da equipe, quando houve interesse da mesma (Quadro 1, entrevista 4).

Outra consequência da ausência de indicadores de saúde mental no SIAB é a questão das subnotificações epidemiológicas, lembrando que alguns indicadores de saúde mental específicos foram implementados em decorrência do Pacto pela Vida (taxa de cobertura de CAPS/100.000 habitantes e taxa de cobertura do Programa de Volta pra Casa); no entanto, a saúde mental na atenção básica não foi contemplada, embora já haja propostas nesse sentido(8).

A necessidade de capacitação da equipe apareceu como um aspecto importante para o acolhimento das demandas de saúde mental; os enfermeiros entendem que a capacitação é estratégica para a ampliação da clínica das equipes e, portanto, uma necessidade constante (Quadro 2).

Diante disto, o enfermeiro demonstra ter papel essencial junto aos demais profissionais que estão sob sua supervisão, a saber, os agentes comunitários de saúde e os auxiliares de enfermagem.

A falta de capacitação para lidar com os problemas de saúde mental produz grande sofrimento psíquico e compromete a resolutividade da intervenção (12). Nas equipes estudadas, além das capacitações feitas por médicos e enfermeiros há a consultoria que também foi citada, como um modo de efetivação da proposta de educação permanente.

Além de instrumento de capacitação, a consultoria foi descrita como uma importante estratégia de acolhimento das demandas de saúde mental. Tal consultoria é realizada por um psiquiatra e uma enfermeira, ambos vinculados a uma instituição de ensino superior de caráter público. Proporciona o atendimento conjunto (equipe-residentes-consultores-paciente) e a discussão dos casos considerados mais complexos, visando à instrumentalização da equipe nesta questão.

A psiquiatria de consultoria e ligação nas equipes de saúde da família estudadas é uma situação pioneira no município; no entanto, esta iniciativa restringe-se aos serviços que são conveniados à instituição de ensino superior a qual os consultores (médico e enfermeira) são vinculados.

A presença de uma enfermeira na equipe de consultoria permite um enfoque mais adaptado às competências e realidade desse profissional e corrobora a proposta de interdisciplinaridade preconizada pelas orientações do Guia de Matriciamento do Ministério da Saúde (13).

Entende-se, portanto, que há necessidade desse arranjo ser institucionalizado como processo de cuidado no âmbito do município, isto é, que formalizado como apoio matricial pelos gestores locais seja estendido às demais unidades básicas de saúde. Isso certamente promoveria o empoderamento das equipes para atender à crescente demanda de saúde mental na atenção primária. No âmbito da enfermagem, seria traduzida em uma ampliação de saberes e práticas e incremento das tecnologias de trabalho psicossociais.

A psiquiatria de ligação, em seus primórdios, surgiu como uma estratégia para integrar a intervenção psiquiátrica nos hospitais gerais; sob forte influência da Psiquiatria Social e da Psicossomática, incluía o apoio clínico aos serviços, ensino sobre saúde mental e aspectos psicossociais aos residentes e estudantes de medicina visando à articulação entre os serviços (especializados ou não), vista como essencial para a continuidade dos cuidados (14).

A consultoria consiste na presença de um especialista em psiquiatria na unidade ou serviço geral, por solicitação de um profissional de outra especialidade, para avaliar e indicar o tratamento específico. Já a ligação diz respeito a uma vinculação mais estreita entre esse profissional especializado e a equipe que passam a compartilhar de reuniões, discussões e cuidados (15).

A ideia de apoio matricial surge como proposta de superação da lógica de consultoria e ligação ao propor o empoderamento das equipes pela troca de saberes, ampliação da escuta e construção conjunta de novos modos de lidar com as subjetividades dos usuários, objetivando que os profissionais lidem com a totalidade desses sujeitos (14). Este arranjo pauta-se no compartilhamento dos casos, na corresponsabilização, discussões e intervenções conjuntas estimulando gradativamente a interdisciplinaridade e ampliação da clínica da equipe (2,13).

Sendo assim, no que diz respeito ao acolhimento das necessidades de saúde mental nas equipes de saúde da família estudadas, é fato que está subsidiado pela consultoria de psiquiatria que funciona nos moldes do matriciamento. De modo geral, entende-se que, por meio desse apoio, as equipes estão instrumentalizadas para o atendimento individual, visita domiciliar, atendimento da demanda espontânea, consulta especializada e acompanhamento com profissionais de referência. Estes resultados corroboram vários estudos que apontam o apoio matricial na atenção primária, como recurso importante na promoção de ações articuladas de saúde, por proporcionarem retaguarda assistencial e intercâmbio de conhecimentos, enriquecendo as práticas e propiciando a conexão com a rede de cuidados (16-18). Além disso, o matriciamento vem sendo apontado como uma possibilidade de arranjo da gestão com potencial para ampliar a clínica das equipes interdisciplinares (19).

Tanto o PACS como o PSF têm a proposta de assumir a família e a comunidade, como norteadores da organização da atenção à saúde, assumindo a responsabilidade sobre o território pela atenção continuada, intersetorial e resolutiva em detrimento da tradicional abordagem individual centrada na doença (12).

Embora assumindo essa noção de ampliação da clínica e a preocupação de integrar os cuidados de saúde mental com as demais necessidades de saúde, observa-se certa ambiguidade no discurso desses trabalhadores que concebem os atendimentos dentro de uma proposta de atenção integral, mas apresentam discursos dicotômicos no tocante à visão integral x divisão em especialidades (Quadro 2, entrevistas 4 e 1).

Conforme apresentado nos resultados, os enfermeiros descrevem que reconhecem e priorizam essas demandas, porém, não possuem o mapeamento dos casos ou um levantamento mais sistematizado das famílias com necessidades de saúde mental, indicando que não existe um projeto terapêutico específico para o atendimento/ acolhimento e acompanhamento dessa demanda.

Entende-se o projeto terapêutico como uma proposta de intervenções, objetivos terapêuticos e avaliação dos resultados para determinada demanda. Consiste em um processo estruturado que compreende aspectos relacionados à gestão do cuidado e ao planejamento do conjunto de tecnologias, saberes e modos de agir em saúde que conformem as ações cuidadoras, visando a atender determinadas necessidades de saúde dentro de uma proposta de humanização (20,21).

A busca ativa aparece como aspecto central para a consolidação da estratégia de saúde da família e, conforme os enfermeiros, tanto a visita domiciliar como a demanda espontânea consiste em fluxos de acolhimento para as demandas de saúde mental (Quadro 1, entrevistas 2, 3 e 4).

As falas sugerem que a identificação e as ações de acolhimento mostram-se como partes de um mesmo processo. Assim, há apreciação do caso, avaliação das possibilidades de abordagem no serviço e tomada de decisão em relação a manter o cuidado na atenção primária ou encaminhá-lo à especialidade (Quadro 2).

Na percepção dos enfermeiros, a atenção primária deve se responsabilizar pelos casos considerados "leves". O manejo dos mais complexos é apontado como "exceção", pois entendem que estes pacientes devem ser encaminhados aos serviços especializados (Quadro 2).

Os principais desafios e fragilidades do PSF têm relação com a própria vulnerabilidade do Sistema Único de Saúde, isto é, marcas de um sistema fragmentado com poucas articulações entre os serviços e ações desintegradas, além do acesso desigual aos diferentes níveis de atenção, ou seja, há carência de instrumentos de apoio organizacional para resolução e/ou encaminhamento das necessidades dos usuários (8-9). No âmbito da saúde mental, os reflexos são os mesmos produzindo uma lacuna também entre os dispositivos de saúde mental.

Os resultados sugerem que a implementação de estratégias na atenção primária para evitar a internação não decorrem de um projeto terapêutico calcado na reabilitação psicossocial, e sim em um arranjo por parte da equipe em consequência da falta de leitos ou dificuldades de referenciação. Isto é, estas lacunas no fluxo de referência-contra-referência, muitas vezes, têm "forçado" as equipes da atenção básica a criar novos processos de acolhimento e cuidados às necessidades de saúde mental, tanto as consideradas leves como as mais graves que exigem consultoria.

CONCLUSÃO

Apesar de todas as ressalvas em relação ao modo como as ações de saúde mental vêm sendo inseridas na atenção primária, com base no presente estudo pode-se sugerir que esta inclusão, venha se dando de forma gradativa e, certamente, a consultoria de psiquiatria e ligação têm importante papel em sua inserção. Contudo, os enfermeiros reconhecem a necessidade de educação permanente e continuada no âmbito da saúde mental para ampliar a clínica na lógica da integralidade das ações na atenção primária e ressaltam a urgência de revisão dos indicadores do SIAB. Sobretudo, é mister a criação de projetos terapêuticos sistematizados e a disposição e criatividade das equipes para novos modos de cuidar que superem a dicotomia integralidade x divisão em especialidades.

Como limitações do estudo, destacam-se que os dados foram restritos à percepção dos enfermeiros. Estudos posteriores serão empreendidos com coordenadores, agentes comunitários de saúde e usuários das respectivas unidades para ampliar as possibilidades de análise.

Artigo recebido em 29/07/2011 e aprovado em 02/05/2012

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  • Autor Correspondente:
    Jacqueline de Souza
    Av. dos Bandeirantes, 3900 - Monte Alegre
    CEP 14040-902 - Ribeirão Preto (SP), Brasil
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    Trabalho realizado na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo - USP - Ribeirão Preto (SP), Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      29 Jul 2011
    • Aceito
      02 Maio 2012
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