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Sexualidade vivida por mulheres de diferentes gerações e soropositivas para o HIV

Sexualidad vivida por mujeres de diferentes generaciones VIH-positivas

Resumo

Objetivo

Analisar as representações sociais de mulheres de diferentes gerações e que vivem com HIV sobre sua sexualidade.

Métodos

Pesquisa de abordagem qualitativa, com referencial teórico-metodológico baseado na Teoria das Representações Sociais, desenvolvida em um serviço de atenção especializada, no Estado da Bahia, região Nordeste do Brasil, com 39 mulheres. As entrevistas foram processadas pelo software Iramuteq, o qual gerou a Análise Fatorial de Correspondência e Classificação Hierárquica Descendente.

Resultados

As representações revelaram (im)possibilidades que permeiam a intimidade afetivossexual entre as mulheres de meia-idade; a busca por novas estratégias para vivenciar a sexualidade para mulheres com idade de 30-44 anos; a reafirmação do medo das idosas em revelar o diagnóstico; e, perpassando todas as gerações, a manutenção do tratamento como demonstração de afeto ao parceiro.

Conclusão

O recorte geracional revelou aspectos distintos das representações sociais sobre a vivência da sexualidade. Ratifica-se a necessidade de novos estudos sobre a temática.

HIV; Grupos populacionais; Mulheres; Sexualidade

Resumen

Objetivo

Analizar las representaciones sociales de mujeres de diferentes generaciones que viven con el VIH sobre su sexualidad.

Métodos

Estudio de enfoque cualitativo, con marco referencial teórico-metodológico basado en la teoría de las representaciones sociales, llevado a cabo en un servicio de atención especializada en el estado de Bahia, región Nordeste de Brasil, con 39 mujeres. Las encuestas fueron procesadas por el software Iramuteq, que generó el análisis factorial de correspondencia y la clasificación jerárquica descendiente.

Resultados

Las representaciones revelan (im)posibilidades que se impregnan en la intimidad afectiva-sexual de las mujeres de mediana edad, en la búsqueda de nuevas estrategias para vivir la sexualidad en mujeres entre 30 y 44 años, en la reafirmación del miedo de las mujeres mayores a revelar el diagnóstico y en mantener el tratamiento como demostración de afecto al compañero, que abarca a todas las generaciones.

Conclusión

El recorte generacional reveló distintos aspectos de las representaciones sociales sobre la vivencia de la sexualidad. Se confirma la necesidad de nuevos estudios sobre esta temática.

Grupos de población; Mujeres; Sexualidad; VIH

Abstract

Objective

To analyze women’s social representations of different generations that live with HIV about their sexuality.

Methods

Qualitative research with theoretical and methodological framework based on Social Representations theory carried out in a specialized attention service, in Bahia state, northeast Brazilian region, with 39 women. We processed the interviews with the Iramuteq software, which generated the Correspondence Factorial Analysis and the Descending Hierarchical Classification.

Results

The representations revealed (im)possibilities that pervade the sexual and affective intimacy between middle-aged women, the search for new strategies to experience sexuality for women of 30-44 years; the reaffirmation of fear of older women in revealing the diagnosis; and, through all generations, the treatment maintenance as a demonstration of affection to the partner.

Conclusion

The generational cutout revealed distinct aspects of social representations about sexuality experience. We highlight the necessity of new studies about the theme.

HIV; Population groups; Women; Sexuality

Introdução

A sexualidade como fenômeno complexo é construída e comporta múltiplas dimensões que, de acordo com o contexto social, cultural e religioso sofre variações e promove alterações da concepção e vivências individuais. Nas sociedades contemporâneas, a sexualidade está assentada em representações culturais disponíveis e distintas, dentre elas, as aportadas pela biomedicina que reforçam a (cis)heteronormatividade como padrão no que se refere às condutas e práticas sexuais.(11. David CM, Silva HM, Ribeiro R, Lemos SS. Desafios contemporâneos da educação. São Paulo: UNESP; 2015.)

Desde sua descoberta, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) está estreitamente vinculada à sexualidade, configura-se como um fenômeno global por causar danos de grande intensidade à saúde da população e desencadeou, na sociedade, o debate sobre valores pertinentes à liberdade sexual, à moral e às relações de gênero.(22. Calais LB, Jesus MA. Desvelando olhares: infância e AIDS nos discursos da sociedade. Psicol Soc. 2011;23(1):85-93.) A epidemia é dinâmica e está relacionada às condições de vida, gênero, composições etárias e étnicas das populações atingidas.(33. Santos NJ. Mulher e negra: dupla vulnerabilidade às DST/HIV/aids. Saúde Soc. 2016;25(3):602-18.) A vulnerabilidade social que margeia essa realidade, perpassa por questões relacionadas ao exercício da cidadania e aos direitos humanos. Nesse aspecto, as pessoas que vivem com Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) se confrontam com um conjunto de problemas específicos, dentre eles, o preconceito e a discriminação.(44. Villela WV, Monteiro S. Gênero, estigma e saúde: reflexões a partir da prostituição, do aborto e do HIV/aids entre mulheres. Epidemiol Serv Saúde. 2017;24(3):531-40.)

A maior vulnerabilidade das mulheres à infecção pelo HIV transcorre por questões complexas, que vão desde o comportamento sexual “esperado” para cada gênero, os papéis sociais a serem cumpridos por homens e mulheres, até mesmo a dinâmica de poder entre os gêneros.(33. Santos NJ. Mulher e negra: dupla vulnerabilidade às DST/HIV/aids. Saúde Soc. 2016;25(3):602-18.) Nesse sentido, as mulheres continuam com a autonomia sexual comprometida, mantendo-se na desigualdade entre os gêneros e assimetria das relações, o que potencializa e sobrepõem as vulnerabilidades.

Por conseguinte, reduzir a feminização da aids “implica em ampliar e aprofundar o debate em torno da sexualidade e dos dilemas vivenciados a respeito desse assunto, de forma aberta e não preconceituosa”.(55. Conejeros I, Emig H, Ferrer L, Cabieses B, Ianelli R. Conocimentos, actitudes y percepciones de enfermeiros y estudiantes de enfermeira VIH/Sida. Invest Educ Enferm. 2010;28(3):345-54.) Pois, a menor decisão nas relações afetivossexuais e o mito das relações estáveis ainda se configuram como situações de risco ampliado para o HIV, independentemente da idade/geração.(66. Carrara S. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no BRASIL contemporâneo. Mana. 2015;21(2):323–45.)

Na América Latina, nos últimos anos, houve acentuado desenvolvimento de análises socioantropológicas com foco na geracionalidade que buscava interlocuções com temáticas de gênero e sexualidade. No entanto, os estudos se concentram em temas relacionados a velhice, gerações e homossexualidade masculina.(77. Henning CE, Braz C, organizadores. Gênero, sexualidade e curso de vida: diálogos latino-americanos. Goiânia: Editora da Imprensa Universitária; 2017.)Por reconhecer tal lacuna, buscou-se por meio deste estudo conhecer as representações sociais de mulheres com o intuito de apreender sobre o fenômeno da sexualidade.

Frente a essa perspectiva, sua realização também se justifica pela necessidade de compreender a sexualidade sob o ponto de vista de mulheres, considerando os aspectos geracionais, com vistas ao fortalecimento e manutenção de vínculos junto aos serviços de saúde. Esse aspecto poderá facultar o reconhecimento por profissionais ao levarem em consideração que a sexualidade se constitui como demanda para o cuidado em saúde, por apresentar especificidades e necessitar de maior atenção no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

O estudo teve como objetivo analisar as representações sociais de mulheres de diferentes gerações e que vivem com HIV sobre sua sexualidade. Trata-se de um recorte da tese intitulada: “Sexualidade de mulheres de diferentes gerações após o diagnóstico de HIV” vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e Saúde, da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Métodos

Pesquisa exploratória, com abordagem qualitativa, fundamentada na Teoria das Representações Sociais (TRS) por utilizar ferramentas mentais que operam experiências individuais em variados contextos. Embora as representações sejam acessadas por meio do discurso, elas são elucidadas pelos nexos que estabelecem com o entorno social.(88. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 5a ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2012.)

Participaram do estudo mulheres que vivem com HIV e são acompanhadas em um Serviços de Atendimento Especializado (SAE) de um município de grande porte da região Nordeste no Estado da Bahia, Brasil. O respectivo município é caracterizado por ser a maior cidade do interior nordestino em população; a sexta maior cidade do interior do país e com uma população maior que oito das capitais brasileiras.

Foram selecionadas por amostragem do tipo conveniência, desde que atendessem aos critérios pré-definidos: ter mais de 18 anos e estar em uso de tratamento antiretroviral (TARV). Como critérios de exclusão: aquelas que estavam em uso de medicamentos como medida profilática da transmissão vertical do HIV.

As participantes foram convidadas pela equipe de enfermagem para integrar a pesquisa, sendo abordadas enquanto aguardavam atendimento profissional. A amostra foi composta por 39 mulheres. O critério de saturação foi adotado para finalização da coleta.(99. Minayo MC. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis (RJ): Vozes; 2016. 95p.)

A produção dos dados se deu com a utilização do formulário de caracterização do perfil social e por meio da entrevista semiestruturada. Os dados foram coletados em sala reservada da instituição, no período de setembro a novembro de 2018, guiadas por um roteiro que comportou questões norteadoras relacionadas a vivência da sexualidade e sua relação com o diagnóstico de HIV. Os depoimentos foram gravados e transcritos na íntegra para a construção do corpus e realização da análise. A fim de preservar o anonimato, as participantes foram identificadas com a letra “P”, seguida da sequência cronológica de participação, idade em anos e tempo de positividade para o HIV.

No processamento dos dados empregou-se o auxílio do Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires) que é um software livre para análises de conteúdo e lexicometria.(1010. Camargo BV, Justo AM. Tutorial para uso do software IRAMUTEQ. França: Iramuteq; 2016 [citied 2021 Mar 12]. Available from: http://www.iramuteq.org/documentation/fichiers/Tutorial%20IRaMuTeQ%20em%20portugues_17.03.2016.pdf
http://www.iramuteq.org/documentation/fi...
)Assim, para análise definiu-se a Classificação Hierárquica Descendente (CHD), que classifica os textos em função de seus respectivos vocábulos. O respectivo software organizou os dados em um dendograma fornecendo resultados que permitiram a descrição de cada uma das cinco classes(1111. Camargo BV, Justo AM. IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol. 2013;21(2):513-8.)e possibilitou a construção de quarto categorias empíricas.

Posteriormente, procedeu-se a organização dos trechos de falas extraídas das entrevistas com a identificação das ideias centrais, em complementaridade aos achados da CHD e a análise de contraste de modalidades de variáveis por meio da Análise Fatorial de Correspondência (AFC). Na AFC, o primeiro fator (F1) explica 34,9 % da inércia total, o segundo fator (F2) explica 26,2% possibilitou a apresentação das variáveis, dentre elas a geração.

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da UFBA (Parecer nº 2.776.570/2017).

Resultados

As 39 participantes deste estudo, tinham idade que variaram entre 22 e 74 anos, com média de 43 anos. O tempo médio de diagnóstico de HIV foi de nove anos, e a maioria se mantinham por meio do próprio trabalho e/ou dependiam de auxílio-doença ou renda do companheiro. Quanto à escolaridade, 11 possuíam o ensino fundamental, 21 ensino médio e sete ensino superior. Após a lematização, as entrevistas compuseram o corpus que o software separou em 898 segmentos de texto, a partir das unidades de contexto iniciais (UCI) com aproveitamento de 91,65%. Adotou-se a CHD composta apenas por termos com p ≤ 0,0001 em cada uma das classes. Com base na CHD analisou-se o conjunto de palavras presentes em cada uma das classes e sua relação com o objeto de pesquisa para a denominação das categorias. Fundamentando-se na TRS, realizou-se a identificação das ideias centrais para cada categoria, como exposto na figura 1.

Figura 1
Estrutura temática sobre a representação da sexualidade de mulheres após o diagnóstico de HIV

A disposição das classes revelou que o material sofreu partições resultando em quatro eixos temáticos: o primeiro relaciona desejos/vontades (classe 5); o segundo, compreende duas classes e relacionam às novas formas de viver a sexualidade e a ausência de autocuidado (classes 2 e 3); o terceiro, engloba o contexto familiar e as relações cotidianas (classe 4); e, o quarto aponta para questões diretamente relacionadas à saúde/tratamento (classe 1).

Categoria 1 – Entre o querer e o fazer: novos caminhos na vivência da sexualidade

Essa categoria, composta pela classe 5, comportou vocábulos que se ancoraram em desejos e vontades cotidianas da vivência da sexualidade após o conhecimento do diagnóstico. Nos depoimentos, as expressões-chave condensaram-se no núcleo “gosto/querer/vontade/homem”. Essa organização foi apontada pelas participantes como importante base de sustentação de uma sexualidade pautada pela cisheteronormatividade, com (im)possibilidades e/ou diferenças percebidas, evidenciando a fragilidade que permeia a intimidade afetivossexual e a busca por novas estratégias.

“Para esse paquerinha sou uma coisa nova, mas já não vejo ele diferente de mim.” (P 05, 56 anos, positiva há 4)

“Fica esse sentimento de querer ou não um companheiro, no começo não quis.” (P 13, 62 anos, positiva há 16).

Categoria 2– Novas formas de viver a sexualidade e o sexo sem proteção

A construção dessa categoria abarcou as classes 2 e 3, cujos conteúdos transcenderam as dificuldades cotidianas, o enfrentamento a preconceitos e os impactos no relacionamento afetivo, ampliando-os ao contexto social. O escore atribuído aos termos “usar-camisinha/não-usar-camisinha/relação/vírus/complicado” parece ter expressado negligência em relação ao autocuidado presente nas relações sexuais.

“Antes do vírus realmente a gente não pensa na gente.” (P 03, 26 anos, positiva há 3).

“Não usava camisinha, não pensava em gravidez, depois é que você vai descobrir.” (P 02, 33 anos, positiva há 8).

Categoria 3- Contexto familiar e as relações cotidianas na (con)vivência com o HIV

Os vocábulos pertencentes a essa categoria, provenientes da classe 4, destacaram-se por ter um caráter mais pessoal e intimista, tendo em vista que os conteúdos abordaram a rede afetiva e a dinâmica familiar. As palavras “mãe/filho/neto/irmão” reafirmaram a importância da convivência com familiares, tendo em vista a manutenção de segredos e o medo da revelação do diagnóstico e de suas práticas sexuais.

“Meu sofrimento foi quando falei para meus dois filhos [...] me abati muito.” (P 20, 52 anos, positiva há 16).

“Me sinto meio revoltada porque minha família e meus filhos ficaram muito revoltadas.” (P 14, 69 anos, positiva há 10).

Categoria 4 - Cuidado pautado na dimensão físico-biológica

Essa categoria, comportou os termos da classe 1, apontando para mudanças e dificuldades vivenciadas pelas participantes no decorrer do diagnóstico. Ademais, revelou aspectos concernentes a rotinas, sobretudo, aquelas relacionadas à realização de exames e tratamento medicamentoso. Este eixo se afasta de conteúdos subjetivos e emocionais ancorando-se em objetos reais sobre o cuidado/tratamento da infecção pelo HIV.

“É um cuidando do outro [...] ele lembra que tem que tomar o remédio.” (P 06, 22 anos, positiva há 4).

“É difícil, tudo muda na rotina do dia-a-dia, tem que ter horário de tomar medicação.” (P 02, 33 anos, positiva há 8).

“Estar nas consultas, fazer os exames, sempre venho.” (P 27, 57 anos, positiva há 12).

“Fiz o exame porque eu paquero muito.” (P 15, 64 anos, positiva há 30).

Como possibilidade de demonstrar possíveis contrastes entre as modalidades de variáveis instituídas nesse estudo, como: indivíduos, idade e tempo de diagnóstico na AFC (Figura 2), utilizou-se a redução dos vocábulos nos seguintes termos (ind, ida e dia). As variáveis estudadas apresentaram consonância com a composição de cada uma das classes na CHD, e as expõem distribuídas em quadrantes. Assim, nos quadrantes à esquerda, estão alocadas as contribuições da categoria 1, com tendência de aproximação na ordenada Y; nos quadrantes inferiores à esquerda, a categoria 2 assume oposição à categoria 4, agrupada mais à direita; em oposição direta e assumindo a centralidade da abcissa, encontra-se a categoria 3.

Figura 2
Análise Fatorial de Correspondência da modalidade de variáveis por categoria

Na figura 2 percebe-se que na categoria 1 se concentram, numericamente, mais participantes com idade (ida) entre 45-59 anos. Na categoria 2 se apresenta o maior número de participantes, com idade entre 30-44 anos. Para a categoria 3, a maior participação de mulheres foi daquelas com idade acima de 60 anos. A categoria 4 destacou-se das demais por comportar participantes com tempo de diagnóstico que variou ente 6 e 15 anos, porém sem contribuição específica para grupos etários, indicando participação de todas as faixas etárias.

Discussão

Desde o século XX, com o advento da aids, é possível conceber a sexualidade como um dos elementos-chave da experiência humana. Nesse sentido, faz-se necessário compreendê-la para o enfrentamento de problemas decorrentes da epidemia.

A caracterização do perfil social das participantes desse estudo revelou que 29 (74%) delas possuíam ensino médio/superior. Pesquisa realizada em Pernambuco com 256 pessoas vivendo com HIV apontou que 21,9% destas possuíam o referido grau de escolaridade.(1212. Moraes DC, Oliveira RC, Prado AV, Cabral JR, Corrêa CA, Albuquerque MM. El conocimiento de las personas que viven con el VIH/SIDA acerca de la terapia antirretroviral. Enferm Global. 2018;49(1):111-26.)

Com relação a primeira categoria, exposta no dendograma da figura 1, evidencia-se a fragilidade que permeia a intimidade afetivossexual de mulheres que vivem com HIV. Os elementos constitutivos apontam para um distanciamento entre o que as mulheres desejam e aquilo que elas vivenciam na sexualidade, além de apontar para a heteronormatividade.

A sexualidade feminina ainda se apresenta como relevante, na sociedade brasileira, por ser percebida como objeto de controle masculino atravessada pelas questões de gênero.(1313. Parker R. Reflexões sobre a sexualidade na sociedade Latino-America: implicações para intervenções em face do HIV/AIDS. Physis: Rev. Saúde Coletiva. 1997;7(1):99-108.) Nesse estudo, as palavras mais evocadas (Categoria 1) revelaram problemas na vida afetivossexual que podem repercutir nas dimensões afetiva, física, psíquica e social de mulheres e seus parceiros. Observarmos as mulheres com idades entre 45-59 anos (meia-idade) foram as que mais contribuíram para a conformação dessa categoria. Ressaltamos, em suas falas, a presença do ‘desejo’ e/ou da ‘negação do desejo’ associada ao medo de revelar sua condição sorológica.

Assim, em que pese todos os movimentos na busca da liberdade sexual para as mulheres, o discurso moderno, ainda, sustenta a repressão do exercício da sexualidade. Diante disso, na medida em que se fala de e/ou sobre o sexo, a repressão conota certa deliberação de transgressão.(1414. Foucault M. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal; 2007. 178p.) Nesse sentido, a fala das participantes que compõem a categoria 1 ancorou-se na oposição entre exprimir o desejo ou negá-lo. Esses aspectos reafirmam as dificuldades vivenciadas, como se em função de sua positividade para o HIV, a abstenção para a prática sexual fosse a regra para esse grupo geracional.

A opressão das mulheres pelos homens tem enfatizado o modo de reprodução da vivência da sexualidade, da violência sexual e da subtração dos direitos das mulheres, de modo que a diferença entre os sexos e gêneros só deixará de ser estrutural na medida em que se modificar o exercício do poder. Nesse sentido, o feminismo é uma importante caixa de ferramentas que serve para a análise das mudanças, contradições, limites, possibilidades e objetivos da revolução política e cultural iniciada no século XIX.(1515. Ferreira SL, Nascimento ER, Paiva MS. O pensamento feminista e os estudos de gênero: experiências na Escola de Enfermagem da UFBA. Salvador: EDUFBA:/EIM; 2012. 156p.)

A segunda categoria, nominada “novas formas de viver a sexualidade e o sexo sem proteção”, se organizou em oposição a anterior ao agrupar falas das participantes com idades entre 30-44 anos (Figura 2). Para esse grupo geracional, suas dificuldades e os preconceitos vividos no âmbito familiar e nos relacionamentos afetivossexuais, apontam uma objetivação da sexualidade em suas representações por meio dos termos ‘complicado’ e ‘sem-camisinha’.

As experiências relatadas expõem as assimetrias das relações e as dificuldades enfrentadas na negociação do uso do preservativo, bem como a resistência ao seu uso por parte do parceiro. Esse aspecto pode indicar a relação de poder/gênero e em que circunstâncias as práticas sexuais acontecem sem o uso do preservativo. Assim, na vivência da sexualidade as mulheres se depararam com a falta de informação sobre a infecção e perspectivas de prevenção que afetam diretamente a qualidade de vida. Em suas falas, mulheres adultas revelaram que o conhecimento sobre prevenção/proteção relativas ao HIV antes do início do tratamento, praticamente não existia.

A dificuldade de prevenção durante o ato sexual coaduna com os achados em pesquisa com mulheres jovens que reconheceram ser o preservativo feminino uma tecnologia que proporciona autonomia e protege de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), no entanto, relataram desconforto e estranhamento.(1616. Moraes AA, Suto CS, Oliveira EM, Paiva MS, Ferreira CS, Barreto MA. A look at female condoms from public school students. Rev Gaúcha Enferm. 2019;40:e20180277.) Vale salientar que o enfrentamento da aids no Brasil e o manejo das IST na população sexualmente ativa se constituem em desafios, considerando a redução do uso de preservativo.(1717. Streck VS. A feminização do HIV/AIDS: narrativas que interpelam as estruturas de poder na sociedade e igreja. Estudos Teológicos. 2012;52(2):345-56.)

Outro aspecto revelado na categoria 2 foi o preconceito que se faz presente, sobretudo, em sua intimidade afetivossexual. Nesse sentido, estudo com mulheres assintomáticas com idades entre 27 e 37 anos e acompanhadas em um SAE em Recife, também evidenciou trajetórias marcadas pela discriminação nas vivências do cotidiano desde o diagnóstico levando-as à ocultação de sua condição sorológica.(1818. Renesto HM, Falbo AR, Souza E, Vasconcelos MG. Coping and perception of women with HIV infection. Rev Saude Publica. 2014;48(1):36–42.)

Em nosso estudo, a terceira categoria intitulada “contexto familiar e as relações cotidianas na (con)vivência com o HIV” teve como característica a participação das mulheres com idade de 60 e mais anos (idosas). Essas mulheres, ao falarem sobre a sexualidade, denotaram aspectos concernentes às relações familiares por meio dos vocábulos ‘mãe/filho/neto/irmão’. A mulher, em grande parte, ainda é vista como “mãe/jovem/esposa”, aspecto que restringe a abrangência de outras possibilidades e exclui mulheres que não se enquadram nesse perfil.

Observa-se, na manifestação da aids, múltiplos sentidos ou determinações, inclusive pela tendência de maior longevidade das pessoas que vivem com HIV.(1919. Silva KG, Silva RP, Barbosa JM, Moura IS. Clinical-nutritional profile of HIV patients in a referral hospital in the northeast of Brazil. J Bras Doenças Sex Transm. 2016;28(2):50-5.,2020. Rocha S, Vieira A, Lyra J. Silenciosa conveniência: mulheres e Aids. Rev Bras Ciênc Política. 2013;11(11):119–41.)Ao abordar os efeitos do processo de envelhecimento na vivência da sexualidade e do gênero de sujeitos com idades entre 52 e 82 anos, referidos como homens com condutas homossexuais, os autores observaram que há uma “relação indócil entre envelhecimento e sexualidade” e analisaram a tendência desses sujeitos de se transformarem em “senhores mais discretos”.(77. Henning CE, Braz C, organizadores. Gênero, sexualidade e curso de vida: diálogos latino-americanos. Goiânia: Editora da Imprensa Universitária; 2017.) Com relação às participantes desse estudo (mulheres) suas representações sociais parecem revelar que tal fenômeno é fortemente identificado.

Atualmente, no Brasil, a epidemia da aids é enfrentada com auxílio de serviços de referência, tecnologia para prevenção e tratamento. No entanto, sua implementação no SUS ainda é baixa, principalmente na maioria das cidades do interior do Nordeste. Essa realidade aponta lacunas que possibilitam visibilizar os limites da descentralização e da integralidade como dificultadores do acesso aos serviços de saúde e da universalidade do SUS nos últimos 30 anos.(2020. Rocha S, Vieira A, Lyra J. Silenciosa conveniência: mulheres e Aids. Rev Bras Ciênc Política. 2013;11(11):119–41.,2121. Silva CL, Cubas MR, Silva LL, Cabral LP, Grden CR, Nichiata LY. Diagnósticos de enfermagem associados às necessidades humanas no enfrentamento do HIV. Acta Paul Enferm. 2019;32(1):18–26.)

Considerando a quarta categoria deste estudo, que aborda “cuidado pautado na dimensão físico-biológica”, sua composição revelou elementos dos discursos de mulheres de 22-74 anos. Os conteúdos retrataram, basicamente, sobre o tratamento terapêutico do HIV e apontou que mesmo quando o acesso é garantido, o desconforto de chegar e permanecer no SAE foi algo constrangedor. Pois, esse aspecto pode se constituir em elementos que possibilita a revelação de sua condição (pessoa vivendo com HIV) para a comunidade.

Nessa categoria estão presentes elementos que denotaram as modificações ocorridas na rotina das mulheres soropositivas para o HIV, na medida em que vivenciam a sexualidade, uma vez que o cuidado com a doença passou a ser primordial. Os relatos das participantes elucidaram que as idas ao serviço de saúde, a realização de exames e o abandono de práticas sexuais, antes não pensadas, tornaram-se uma constante em suas vidas.

As categorias estudas, com recorte geracional, revelaram aspectos distintos das representações sociais sobre a vivência da sexualidade. À vista disso, mulheres com idade entre 30-59 anos revelaram a sutileza entre o querer e o fazer na busca de novos caminhos para a vivência da sexualidade, ao desenvolverem estratégias e driblarem o sexo sem proteção. Para as participantes com idade acima de 60 anos o contexto familiar e as relações cotidianas se sobrepõem à sexualidade. No entanto, independentemente da idade a representação também perpassa pelo cuidado pautado na dimensão físico-biológica à medida que se distanciou de conteúdos subjetivos e emocionais.

As Representações Sociais (RS) se constituem em processos dinâmicos que abarcam aspectos subjetivos, afetos e cognições que influenciam na mudança de atitudes e/ou práticas de sujeitos em um dado contexto social.(88. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 5a ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2012.) Assim, por um lado, a vivência da sexualidade pode comportar crenças e opiniões construídas e compartilhadas por indivíduos e grupos. Por outro, pode resultar na interpretação do universo simbólico e social do grupo investigado em seu ambiente e/ou meio social, na medida em que propicia a manutenção e/ou ressignificação de comportamentos e práticas sociais de mulheres vivendo com HIV.

Conclusão

As representações sociais de mulheres que vivem com HIV sobre sexualidade apresentaram divergências entre as gerações. Revelaram (im)possibilidades e/ou fragilidades que permeiam a intimidade afetivossexual de mulheres de meia-idade; mulheres adultas buscando novas estratégias para o vivenciar a sexualidade; mulheres idosas reafirmando o medo em revelar o diagnóstico e suas práticas sexuais para parceiros/familiares. A rotina diária de cuidado/tratamento imprimiu um lugar de destaque na vida das mulheres, independentemente da geração. Nessas circunstâncias, a representação da sexualidade perpassa por ocultar as vontades/desejos e priorizar a melhoria da qualidade de vida e das relações estabelecidas que impactam em apoio. As questões geracionais se destacaram por ocupar espaços distintos na contribuição e conformação das categorias representacionais. Ratifica-se, assim, a necessidade de novos estudos que abordem a temática e privilegiem a categoria geracionalidade.

Agradecimentos

Apoio financeiro: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia, por meio de bolsa: BOL0396/2018.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2019
  • Aceito
    23 Mar 2021
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