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Associação da espiritualidade, qualidade de vida e depressão em familiares de idosos com demências

Relación entre la espiritualidad, calidad de vida y depresión en familiares de adultos mayores con demencias

Resumo

Objetivo

Associar a espiritualidade com a qualidade de vida e a depressão de cuidadores familiares e compreender a dinâmica familiar quando há um integrante com demência no domicílio.

Métodos

Estudo misto, com estratégia sequencial exploratória. Na etapa quantitativa, foram usados os instrumentos questionário sóciocontextual, World Health Organization Quality of Life – BREF, Inventário de Depressão de Beck e World Health Organization Quality of Life – spirituality, religiousness and personal beliefs. Na etapa qualitativa, 35 participantes responderam a uma entrevista semiestruturada. As duas etapas foram on-line na plataforma Google Forms e Meet.

Resultados

A amostra foi composta de 100 participantes, dos quais 83% eram do sexo feminino com idade entre 18 e 76 anos. Na correlação entre WHOQOL-BREF, WHOQOL-SRPB e BDI os resultados evidenciaram que quanto menor o escore de depressão, maiores os escores de espiritualidade e qualidade de vida. Dos resultados das entrevistas emergiram três categorias: Reorganização familiar na promoção do cuidado à pessoa com demência; Espiritualidade e suas implicações no enfrentamento da demência; Espiritualidade e rede de apoio como fator de proteção à saúde do cuidador familiar.

Conclusão

A espiritualidade configurou-se como importante fator de enfrentamento para os cuidadores familiares de idosos com demência, bem como um fator redutor do risco de depressão e de melhora da qualidade de vida.

Espiritualidade; Demência; Família; Cuidadores; Qualidade de vida

Resumen

Objetivo

Relacionar la espiritualidad con la calidad de vida y la depresión de cuidadores familiares y comprender la dinámica familiar cuando hay un integrante con demencia en el domicilio.

Métodos

Estudio mixto, con estrategia secuencial exploratoria. En la etapa cuantitativa, se usaron los siguientes instrumentos: cuestionario socio-contextual, World Health Organization Quality of Life – BREF, Inventario de Depresión de Beck y World Health Organization Quality of Life – spirituality, religiousness and personal beliefs. En la etapa cualitativa, 35 participantes respondieron a una entrevista semiestructurada. Las dos etapas fueron virtuales en la plataforma Google Forms y Meet.

Resultados

La muestra fue compuesta por 100 participantes, de los cuales el 83 % era de sexo femenino, de entre 18 y 76 años. En la correlación entre WHOQOL-BREF, WHOQOL-SRPB y BDI, los resultados demostraron que cuanto menor era la puntuación de depresión, mayor era la puntuación de espiritualidad y calidad de vida. A partir de los resultados de las entrevistas, surgieron tres categorías: Reorganización familiar en la promoción del cuidado a personas con demencia, Espiritualidad y sus consecuencias en el afrontamiento a la demencia, Espiritualidad y red de apoyo como factor de protección de la salud del cuidador familiar.

Conclusión

La espiritualidad se configuró como un importante factor de afrontamiento para los cuidadores familiares de adultos mayores con demencia, así como un factor reductor del riesgo de depresión y de mejora de la calidad de vida.

Espiritualidad; Demencia; Familia; Cuidadores; Calidad de vida

Abstract

Objective

To associate spirituality with the quality of life and depression of family caregivers and understand the family dynamics when there is a member with dementia at home.

Methods

Mixed method study with a sequential exploratory strategy. The following instruments were used in the quantitative phase: the socio-contextual questionnaire, World Health Organization Quality of Life – BREF, Beck Depression Inventory and World Health Organization Quality of Life – spirituality, religiousness and personal beliefs. In the qualitative phase, 35 participants responded to a semi-structured interview. The two phases were performed online by means of the Google Forms and Meet platform.

Results

The sample consisted of 100 participants, of which 83% were female aged between 18 and 76 years. In the correlation between WHOQOL-BREF, WHOQOL-SRPB and BDI, the results showed that the lower the depression score, the higher the spirituality and quality of life scores. Three categories emerged from results of the interviews: Family reorganization in the care for the person with dementia; Spirituality and its implications for coping with dementia; Spirituality and support network as a health protection factor for the family caregiver.

Conclusion

Spirituality was as an important coping factor for family caregivers of older adults with dementia, and a factor that reduces the risk of depression and improves quality of life.

Spirituality; Dementia; Family; Caregivers; Quality of life

Introdução

Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), até 2050, uma em cada cinco pessoas terá mais de 60 anos.(11. Organização Mundial da Saúde (OMS). Resumo. Relatório mundial de envelhecimento e saúde. Genebra: OMS; 2015 [citado 2022 Fev 15]. Disponível em: https://sbgg.org.br/wp-content/uploads/2015/10/OMS-ENVELHECIMENTO-2015-port.pdf
https://sbgg.org.br/wp-content/uploads/2...
) Espera-se que o número de pessoas que vivem com demência aumente de 55 milhões para 139 milhões até 2050.(22. Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Mundo não está conseguindo enfrentar desafio da demência. Washington: OPAS; 2021 [citado 2022 Fev 15]. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/2-9-2021-mundo-nao-esta-conseguindo-enfrentar-desafio-da-demencia
https://www.paho.org/pt/noticias/2-9-202...
) O tipo mais comum é a doença de Alzheimer, que, no mundo, atingirá 75 milhões, em 2030, e 132 milhões, em 2050.(33. Canal Saúde. OMS: número de pessoas afetadas por demência triplicará no mundo até 2050. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2017 [citado 2022 Fev 15]. Disponível em: https://www.canalsaude.fiocruz.br/noticias/noticiaAberta/oms-numero-de-pessoas-afetadas-por-demencia-triplicara-no-mundo-ate-2050-2017-12-12
https://www.canalsaude.fiocruz.br/notici...
)

O envelhecimento traz implicações importantes na dinâmica familiar, principalmente na manutenção da qualidade de vida, da saúde da população idosa e da preservação de sua permanência junto à família, sobretudo quando há um integrante com demência.(44. Ferreira LN, Feitosa AN, Silva ML, Ferreira MF, Araújo WA, Toledo MA, et al. Envelhecimento e qualidade de vida em idosos da Atenção Básica de Saúde. Rev Bras Educ Saúde. 2018;8(1):9-14.)

A demência é definida como um distúrbio cognitivo progressivo, que leva à perda da função independente.(55. Radue R, Walaszek A, Asthana S. Neuropsychiatric symptoms in dementia. Handb Clin Neurol. 2019;167:437–54.) Além de outros danos, os défices cognitivos e motores das demências influenciam na dificuldade de realização das Atividades da Vida Diária e na capacidade de administração do ambiente, o que torna o idoso cada vez mais dependente de seus familiares.(55. Radue R, Walaszek A, Asthana S. Neuropsychiatric symptoms in dementia. Handb Clin Neurol. 2019;167:437–54.) Os cuidados de saúde que o idoso com demência necessita provocam alterações no modo de vida da família e mudanças nos papéis familiares, os quais incluem o que cada um é, como é visto e o que é esperado de cada um.(66. Walsh F. Processos normativos da família: diversidade e complexidade. 4th ed. Porto Alegre: Artmed; 2016. 608 p.)

A família constitui um sistema dinâmico, que contém outros subsistemas inter-relacionados, desempenhando papéis importantes na sociedade, como o afeto, a educação, a socialização e a função reprodutora. Assim, a família, como sistema, contribui na construção de soluções integradoras de seus subsistemas, influenciando na compreensão do processo saúde-doença e do cuidado.(77. Saad M, Masiero D, Battistella LR. Espiritualidade baseada em evidências. Acta Fisiátrica. 2001;8(3):107–12.)

A vivência familiar com um integrante acometido por demência passa por transformações nas relações e em sua dinâmica, envolvendo sentimentos e emoções. Por esse motivo, o cuidador familiar torna-se vulnerável à sobrecarga, potencialmente promotora de estresse, ansiedade, depressão, medo, sofrimento e dificuldade de comunicação, podendo evoluir para um processo de rompimento do equilíbrio familiar.(88. Rangel RL, Santos LB, Santana EL, Marinho MS, Chaves RN, Reis LA. Avaliação da sobrecarga do cuidador familiar de idosos com dependência funcional. Rev Atenção Saúde. 2019;17(60):11-8.

9. Tramonti F, Bonfiglio L, Bongioanni P, Belviso C, Fanciullacci C, Rossi B, et al. Caregiver burden and family functioning in different neurological diseases. Psychol Health Med. 2019;24(1):27–34.
-1010. Silva CF. Relacionamento intergeracional entre idosos e adultos jovens da mesma família: caracterização e repercussões [tese]. Pernambuco: Universidade Católica de Pernambuco; 2019.)

Com o avanço dos quadros demenciais, surge a necessidade da reorganização da estrutura familiar.(1010. Silva CF. Relacionamento intergeracional entre idosos e adultos jovens da mesma família: caracterização e repercussões [tese]. Pernambuco: Universidade Católica de Pernambuco; 2019.) Nesse sentido, algumas estratégias podem contribuir para a recuperação do equilíbrio familiar perante todas as dificuldades do cuidado, destacando-se o apoio da espiritualidade.(1111. Kamada M, Augusto JV, Silva CM, Silva PM, Fonseca AP. O papel da espiritualidade no enfrentamento da doença de Alzheimer. Rev Soc Bras Clin Med. 2019;17(1):21–4.)

A espiritualidade é definida pela OMS como um conjunto de emoções e convicções de natureza não material, pressupondo que há mais do que pode ser percebido ou plenamente compreendido, remetendo o indivíduo a questões como o significado e o sentido da vida.(1212. World Health Organization (WHO). WHOQOL and Spirituality, Religiousness and Personal Beliefs (SRPB). Department of mental health. Geneva: WHO; 1998 [cited 2022 Apr 17]. Available from: https://apps.who.int/iris/handle/10665/70897
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)É a busca de significado para a vida, por meio de conceitos que transcendem o tangível, que se manifesta na vida do ser humano de acordo com idade, religião, cultura e estado de saúde.(1313. Dias FA, Pereira ER, Silva EM, Medeiros AY. Espiritualidade e saúde: uma reflexão crítica sobre a vida simbólica. Research. Soc Dev. 2020;9(5):e52953113.) A espiritualidade configura-se como parte integrante daqueles que prestam cuidados, com caráter benéfico na saúde e na qualidade de vida.(1313. Dias FA, Pereira ER, Silva EM, Medeiros AY. Espiritualidade e saúde: uma reflexão crítica sobre a vida simbólica. Research. Soc Dev. 2020;9(5):e52953113.) Nesse sentido, acredita-se que esse fator é fonte de força e amparo para lidar com a realidade de familiares cuidadores de idosos com demências, bem como inspiração para sentimentos de gratidão e satisfação.

Na busca por estratégias de enfrentamento na situação de cuidado, o cuidador familiar do idoso com demência encontra na equipe de enfermagem o apoio técnico-científico e emocional, visto que a enfermagem é a ciência do cuidado e auxilia no bem-estar físico e espiritual das pessoas.(1414. Coelho NH. Grau de dependência do idoso com Alzheimer, carga do familiar cuidador e papel da enfermagem. Cogitare; 2020. p. 46.)

Historicamente, na prática da enfermagem como profissão, a dimensão espiritual está presente, desde Florence Nightingale, e foi se modificando, passando de uma tendência de ver a espiritualidade atrelada à religião para reflexões de caráter ético, bioético e filosófico, além da tentativa de compreender os fenômenos da espiritualidade dos pacientes como também do próprio enfermeiro.(1515. Brandão JL, Gomes AM, Mota DB, Thiengo PC, Fleury ML, Dib RV, et al. Spirituality and religiosity in the context of comprehensive care: reflections on comprehensive health and nursing care. Res Soc Dev. 2020;9(10):e5499108780.)

Embora o foco deste estudo não tenha sido investigar a atuação de enfermagem, destaca-se sua importância ao cuidado integral do cuidador familiar do idoso com demência, pois o profissional de enfermagem é capaz de identificar suas dificuldades no cuidado prestado ao idoso com demência e implementar intervenções específicas, levando em consideração todo o contexto familiar. Ele também pode incentivar o cuidador familiar a cuidar de si próprio, buscando estratégias e mecanismos para manutenção de sua boa qualidade de vida e saúde mental, como, por exemplo, a realização de terapia, prática de esportes e conexão com sua espiritualidade.

Observa-se uma lacuna de estudos relacionando à espiritualidade, à qualidade de vida e à depressão de familiares cuidadores de idosos com demências, buscando a compreensão das dificuldades, das limitações do cuidado e das percepções desses cuidadores familiares. Assim, acredita-se ser importante esta investigação, considerando que familiares cuidadores de idosos com demências necessitam de atenção dos profissionais de saúde, pois possuem maior risco de adoencimento devido à sobrecarga de cuidados e ao desgaste emocional e físico.

Este estudo teve por objetivo associar a espiritualidade com a qualidade de vida e a depressão de cuidadores familiares e compreender a dinâmica familiar quando há um integrante com demência no domicílio.

Métodos

Trata-se de um estudo de método misto, com estratégia sequencial exploratória. A etapa quantitativa utilizou delineamento descritivo e analítico, e a coleta de dados ocorreu por meio de formulários web enviados via e-mail. Na etapa qualitativa, os dados foram coletados após preenchimento dos instrumentos da etapa quantitativa em entrevistas on-line na plataforma Google Meet, em respeito às recomendações de distanciamento físico em decorrência da pandemia da doença pelo coronavírus 2019.

O estudo foi realizado em diferentes municípios do Brasil, por meio de divulgação nas mídias digitais, redes sociais e page Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A coleta de dados foi realizada de forma on-line e teve duração entre março e outubro de 2020. A amostra foi composta de 100 familiares, com pelo menos um integrante familiar com diagnóstico de demência, acima de 18 anos e com recursos tecnológicos (acesso à internet). Na etapa qualitativa, foram convidados aleatoriamente 35 cuidadores familiares que participaram da primeira etapa.

Na etapa quantitativa foram aplicados os seguintes instrumentos validados no Brasil: questionário sociocontextual, para caracterização da amostra e dos dados sociais, econômicos e de saúde;(1616. Creswell JW. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. 2a ed. Porto Alegre: Art Med. 2007. 264 p.) World Health Organization Quality of Life – BREF (WHOQOL-BREF), para avaliação de questões pessoais, bem-estar emocional e incapacidades, considerando os domínios físico (7 a 35 pontos), psicológico (6 a 30 pontos), relações sociais (3 a 15 pontos) e meio ambiente (8 a 40 pontos). Quanto maior a pontuação, melhor é a qualidade de vida.(1717. Kluthcovsky AC, Kluthcovsky FA. O WHOQOL-bref, um instrumento para avaliar qualidade de vida: uma revisão sistemática. Rev Psiquiatr. 2009;31(3 Supl):1-12.)

Foram utilizados também os instrumentos: Inventário de Depressão de Beck (BDI), para investigação de sinais de depressão pela autopercepção e cuja pontuação pode variar de zero a 63 pontos – quanto maior a pontuação, maior é o grau de depressão (nenhuma depressão, depressão leve, moderada e grave);(1818. Paranhos ME, Argimon II, Werlang BS. Propriedade psicométricas do Inventário de Depressão de Beck-II em adolescentes. Aval Psicol. 2010;9(3):383–92.) World Health Organization Quality of Life and Spirituality, Religiousness and Personal Beliefs (WHOQOL-SRPB), para investigação de crenças espirituais, religiosas e pessoais, que afetam a qualidade de vida em oito facetas, as quais contemplam questões físicas, psicológicas, de relação social e ambiente, e cuja pontuação pode variar entre 4 e 20 – quanto maior a pontuação, melhor é a qualidade de vida.(1919. Panzini RG, Rocha NS, Bandeira DR, Fleck MP. Qualidade de vida e espiritualidade. Arch Clin Psychiatry. 2007;34(1):105–15.)

As análises estatísticas foram realizadas utilizando o Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 21.0. Para a análise descritiva das variáveis categóricas, calcularam-se frequência e percentual. Nas variáveis contínuas, calcularam-se média, desvio-padrão, mediana, mínimo e máximo. Comparou-se o escore dos domínios de espiritualidade com os dos domínios da qualidade de vida e da depressão; e os escores dos domínios de espiritualidade, domínios da qualidade de vida e da depressão com as variáveis sociocontextuais contínuas, utilizando o coeficiente de correlação de Spearman. Os escores dos domínios de espiritualidade, da qualidade de vida e da depressão foram comparados com as variáveis sociocontextuais categóricas, por meio do teste de Mann-Whitney (duas categorias) e do teste de Kruskal-Wallis (três ou mais categorias). Foi utilizado um nível de significância de 5% (valor de p <0,05). Para os cruzamentos, devido à baixa frequência, algumas variáveis tiveram suas categorias agrupadas.

Na etapa qualitativa, as entrevistas foram conduzidas pelas pesquisadoras com expertise em intervenção com família. Os participantes conheceram as pesquisadoras antes da entrevista, bem como foram esclarecidos do projeto.

Os dados foram coletados por meio de uma entrevista semiestruturada on-line, com a gravação de áudio autorizada pelos participantes para futura transcrição do conteúdo, a partir da seguinte pergunta norteadora: Como a espiritualidade contribuiu para o enfrentamento da doença de Alzheimer ou de outra demência de seu familiar?”

Os dados resultantes das transcrições das entrevistas foram submetidos à análise de conteúdo, tendo como base a análise temática, proposta por Bardin, utilizando o software MAXQDA.2020.(2020. Bardin L. Análise de conteúdo. Tradução Reto LA, Pinheiro A. 70th ed. São Paulo: Editora Edições; 2011. 280 p.,2121. Kuckartz U. Qualitative text analysis: a guide to methods, practice & using software. Nova York: SAGE Publications Ltd; 2014. 192 p.) Foram criadas categorias e subcategorias a partir do referencial da codificação aberta baseada em dados, isto é, os temas abordados pelos entrevistados foram selecionados, e seus trechos de falas foram codificados.(2121. Kuckartz U. Qualitative text analysis: a guide to methods, practice & using software. Nova York: SAGE Publications Ltd; 2014. 192 p.) Posteriormente, foram executadas as codificações axial e seletiva, em que foi possível a criação de códigos-temas por meio da ferramenta MAXMaps, gerando as seguintes categorias a partir da árvore de codificação: Reorganização familiar no cuidado da pessoa com demência; Espiritualidade e suas implicações no enfrentamento da demência; Espiritualidade e rede de apoio como fator de proteção à saúde do cuidador do cuidador familiar.

Após as análises, os resultados foram articulados, a fim de responder os objetivos, por meio das informações que permitiram compreender o fenômeno de como a família utiliza a espiritualidade no enfrentamento do cuidado da pessoa idosa com demência.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sob número 3.924.288. Os participantes receberam instruções e esclarecimentos sobre os objetivos da pesquisa no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido on-line. Visando à garantia de anonimato, o entrevistado deu um nome que caracterizasse sua família, e, na temática do nome familiar, foram escolhidos os nomes fictícios dos participantes (Certificado de Apresentação de Apreciação Ética: 27544819.3.0000.5505).

Resultados

A amostra foi composta de 100 participantes, dos quais 83% eram do sexo feminino, com idade entre 18 e 76 anos, 50% eram casadas, 50% tinham formação superior completa, 51% estavam empregadas e 61% possuíam filhos. Quando questionados sobre seu estado de saúde, 84% se autoavaliaram como saudáveis e 54% como sem problema de saúde. O tempo médio de conhecimento do cuidador principal sobre o diagnóstico de demência de seu familiar idoso foi de 7,4 anos, e 66,3% relataram ter apenas um familiar com demência. No WHOQOL-SRPB, nas oito facetas, as médias foram: 15,71 para conexão com ser ou força espiritual; 17,06 para Sentido da vida; 16,04 para Admiração; 15,15 para Totalidade/integração; 16,36 para Força interior; 14,81 para Paz interior/serenidade/harmonia; 15,63 para Esperança/otimismo; 16,62 para Fé. No WHOQOL-BREF, nos quatro domínios, as médias foram: 70,24 para domínio físico; 67,34 para psicológico; 65,57 para relações sociais; 65,34 para meio ambiente. No BDI, a média de escore total foi de 9,56 pontos, sendo 79% categorizados com nenhuma depressão, 9% com depressão leve, 6% com depressão moderada e 6% com depressão grave. Da correlação das variáveis contínuas por escore do BDI, facetas da WHOQOL-SRPB e domínios da WHOQOL-BREF, quanto maior a idade, menor foi o escore do BDI (zero a 39 pontos) e maior o escore de Totalidade/integração (cinco a 20 pontos) e de Paz interior/serenidade/harmonia (cinco a 20 pontos). Quanto maior a quantidade de filhos (zero a cinco), maior foi o escore de Força interior (quatro a 20 pontos), Esperança/otimismo (quatro a 20 pontos) e Fé (quatro a 20 pontos). Correlacionando o escore total do BDI com facetas da WHOQOL-SRPB e domínios da WHOQOL-BREF (Tabela 1), constatou-se que quanto menor o escore total de BDI, maiores os escores das escalas WHOQOL-SRPB e WHOQOL-BREF.

Tabela 1
Correlação entre os dados do Inventário de Depressão de Beck, as facetas da World Health Organization Quality of Life and Spirituality, Religiousness and Personal Beliefs e o World Health Organization Quality of Life – BREF

Nos resultados qualitativos das 35 entrevistas, o agrupamento dos códigos finais na ferramenta MAXMaps gerou três categorias e subcódigos relacionados à organização familiar do cuidado com a pessoa com demência na família e a espiritualidade como estratégia de enfrentamento no cuidado. Foram extraídos os cógidos mais significativos que responderam aos objetivos do estudo.

Reorganização familiar no cuidado da pessoa com demência

A demência promoveu mudanças significativas na família da maioria dos participantes. As repercussões na família foram tanto positivas quanto negativas: reorganização de tarefas, aproximações e afastamentos de relações, atribuições de responsabilidade e cuidados, sobrecarga do cuidador principal, conflitos e readequação de papéis.

No final de semana todo mundo esquece que mamãe tem que receber uma visita ou que eu preciso tomar um ar... Somos em cinco... Para elas isso não é uma prioridade, e eu não consigo entender como elas conseguem fazer isso. (Abalone, F. Mar)

A gente percebeu que essa situação da minha mãe afastou um pouco a família. Porque ninguém quer esse peso. (Estímulo, F. Espiritualizada)

Para alguns entrevistados, o papel de cuidador principal do idoso com demência foi uma escolha própria, como uma forma de retribuir o cuidado recebido ao longo da vida.

Eu não vejo como uma opção, é uma coisa que é simples e não vejo como um dever. É intrínseco, ela é parte de mim! Eu não consigo pensar em abandoná-la... Foi decisão minha que ela morasse comigo. (Paciência, F. Persistência)

Para outros entrevistados, a reestrutura da dinâmica familiar e a decisão da escolha do cuidador familiar principal foram decisões conjuntas.

Eu tinha que me dividir entre ela e os meus filhos e meu marido... Então para mim foi mais conveniente trazer ela para minha casa... Com a minha aposentadoria eu também sofri, eu me aposentei para ficar com a minha mãe. (Carinho, F. Linda)

Foi uma decisão conjunta porque não quiseram levar (mãe), então vou levar (para casa). (Energia, F. Fogo)

Espiritualidade e suas implicações no enfrentamento da demência

A maioria dos familiares entrevistados relatou que a espiritualidade foi essencial na manutenção do equilíbrio socioemocional da família, na redução dos conflitos, no enfrentamento da demência e no autoconhecimento.

Não dá para negar que com todos os conflitos que a gente tem entre irmãs, cunhados, sobrinhos, se não fosse espiritualidade, a gente não teria passado por tudo isso... O que mais uniu a família é a espiritualidade. (Abalone, F. Mar)

Eu já me senti mais abalada em ter que falar sobre isso, tinha uma época que eu chorava bastante, já mudou com o apoio da espiritualidade me conhecendo e aceitando. (Ânimo, F. Fogo)

A espiritualidade favoreceu o fortalecimento, o entendimento, a aceitação, o amparo e a tranquilidade no núcleo familiar.

Muitas coisas que eu aprendi no espiritismo... Me faz bem, dá conforto e alento. Acredito que tudo que acontece nessa vida tem um motivo, é para aprender alguma coisa, vivenciar algo, para ter alguma experiência nova. Isso me dá um conforto. (Companheirismo, F. Encontro)

Para nossa saúde mental, a espiritualidade é um ponto-chave, porque ela faz com que a gente entenda e consiga administrar os sentimentos, não é fácil passar por tudo isso. Sem eu entender por que estou passando por isso, eu seria uma pessoa revoltada, angustiada, com depressão, talvez com síndrome do pânico, talvez eu não conseguisse cuidar dele (pai). (Cuidado, F. Apoio)

Para a família, a espiritualidade auxilia na promoção do cuidado, à medida que a crença foi uma motivação diante dos desafios e da convivência.

Para mim contribuiu muito me segurando na fé, orando sozinha e com ela (mãe), fazendo o evangelho no centro. As cuidadoras (formais) também eram bem religiosas, me ajudou muito, me fortaleceu muito. (Estranheza, F. Esquisita)

Espiritualidade e rede de apoio como fator de proteção à saúde do cuidador do cuidador familiar

Alguns dos cuidadores principais relataram mudança na qualidade de vida e na saúde mental, além de restrição para autocuidado, sono e vida pessoal, fatores que dificultam o enfrentamento da doença, mas que são atenuados pela espiritualidade.

É difícil conseguir cuidar de mim mesma, hoje bem menos! Eu fazia academia três, quatro vezes por semana e faz 1 ano que eu não piso na academia. Eu vou na terapia toda semana porque eu falei que disso eu preciso, se não a minha cabeça vai enlouquecer. É complicado, às vezes isso me gera um pouco de culpa. (Paciência, F. Persistência)

A espiritualidade é a união de experiências boas e ruins. Ela também alerta para pensar em você amanhã, pensar em qualidade de vida... (Esforço, F. Força)

O cansaço e o esgotamento fazem parte, mas o fortalecimento da espiritualidade a gente recebe a cada dia. (Companheirismo, F. Acolhimento)

Também foram relatados casos de depressão e sentimentos de exaustão e culpa diante da família com a responsabilidade do cuidado com o idoso.

É só falar desse assunto que eu começo a chorar. Hoje, mesmo tomando remédio para depressão, eu ainda estou muito delicada. É o peso da responsabilidade. (Carinho, F. Linda)

Eu não me sinto mal de cuidar da minha mãe, mas me esgota, me deixa cansada, eu me sinto péssima às vezes. Eu não vou falar que eu lido com isso de boa, me revolta, me dá raiva, mas eu tenho que viver, pensar melhor e cuidar da minha mãe! Eu não sou feliz em ficar cuidando da minha mãe 24 horas. (Unidade, F. Unida)

Os familiares trouxeram a importância da rede de apoio familiar, social e de saúde como fator de proteção da saúde mental do cuidador principal na melhoria da qualidade de vida.

Eu faço terapia toda semana, porque a minha vida mudou muito. Eu tinha uma liberdade total e absoluta, eu morava sozinha e hoje moro só com a minha mãe dependente. (Paciência, F. Persistência)

Minha tia-avó (enfermeira) veio para ajudar e prestar atendimento. Cada um fazia o que podia, e todo mundo aqui sempre ajudou. Todas as pessoas do entorno ajudaram a gente. (Intimidade, F. Ligação)

A rede de apoio familiar e de saúde também promoveu a união e o alívio na sobrecarga de cuidado.

Esse apoio que eu tenho do meu marido eu dou muito valor! Meus filhos me ajudam. Então nessa hora eu fico muito sensibilizada, porque eu nunca imaginei que para cuidar de uma pessoa idosa eu ia precisar de tanta gente. (Carinho, F. Linda)

Nós contratamos uma enfermeira, à noite minha irmã ficava e aos finais de semana meus irmãos. Não foi pesado para ninguém, foi preocupante! (Força, F. Religiosa)

A gente consegue lidar bem com a situação, a gente cuida muito bem dele, eu tenho cuidadora (formal). A gente se sente bem, porque temos recursos para cuidar dele, material e espiritual. (Cuidado, F. Apoio)

A minha rede é o Centro-Dia (privado), ela (mãe) passa 5 dias da semana lá, durante esse período eu posso fazer outras coisas e quando meus irmãos vêm para cá, eles me ajudam a levar em médico e dentista. (Resguardo, F. Discrição)

Tenho ajuda três vezes por semana de uma cuidadora (formal), meu irmão ajuda muito na parte financeira porque ele não pode estar mais presente. Minha irmã, quando pode, fica, ajuda no final de semana e eu saio para algum lugar. (Companheirismo, F. Encontro)

Discussão

Os resultados dos dados sociocontextuais constataram que majoritariamente os cuidadores familiares são do sexo feminino, casados e com filhos. Culturalmente, no Brasil, o cuidado voltado para um idoso familiar é de responsabilidade das mulheres, que ocupam papéis de esposas, irmãs, filhas ou netas.(2222. Ferreira CR, Isaac L, Ximenes VS. Cuidador de idosos: um assunto de mulher? Estud Interdiscip Psicol. 2018;9(1):108–25.)

Como uma construção histórica e social, mulheres são ensinadas desde a infância a cuidar de seus familiares. O cuidado com o idoso soma-se a todas as jornadas de trabalho feminino, aumentando a sobrecarga emocional e física e podendo gerar o adoecimento e o isolamento social.(2222. Ferreira CR, Isaac L, Ximenes VS. Cuidador de idosos: um assunto de mulher? Estud Interdiscip Psicol. 2018;9(1):108–25.,2323. Mendes PN, Figueiredo ML, Santos AM, Fernandes MA, Fonseca RS. Sobrecargas física, emocional e social dos cuidadores informais de idosos. Acta Paul Enferm. 2019;32(1):87–94.) Neste estudo, os resultados evidenciaram que 83% das cuidadoras principais eram mulheres, e a maioria relatou ter deixado em segundo plano a vida pessoal, o cuidado com a própria saúde e o lazer; algumas mencionaram ainda o abandono da carreira profissional. A prestação do cuidado pode dificultar as relações familiares e vínculos de amizades, o lazer e as práticas religiosas. Portanto, a rede de apoio é essencial para que o cuidador familiar principal não adoeça (mental e fisicamente) e mantenha ao máximo sua rotina pessoal.(2424. Carvalho EB, Neri AL. Uso do tempo por cuidadores familiares de idosos com demência. Rev Bras Enferm. 2018;71(2):948–59.)

O diagnóstico de demência repercute modificações na vida dos familiares, que podem ser desfavoráveis, uma vez que o processo de cuidar se desenvolve a partir das experiências do cuidador principal e é incorporado a partir da realidade familiar e da necessidade do idoso, mas, em geral, é um processo de grandes dificuldades e mudanças.(2525. Cesário LM, Chariglione IP. A percepção de familiares cuidadores frente às mudanças ocorridas após um diagnóstico de demência. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2018;21(6):768–80.,2626. Garcia CR, Cipolli GC, Santos JP, Freitas LP, Braz MC, Falcão DV. cuidadores familiares de idosos com a doença de alzheimer. Rev Kairó Gerontol. 2017;20(1):409-26.) Neste estudo, os resultados evidenciaram que 66,6% dos participantes vivenciavam a experiência com a demência pela primeira vez. Os familiares cuidadores relataram ter tido suas vidas completamente modificadas a partir do diagnóstico ou da moradia conjunta com o idoso, visto que sua rotina, suas preocupações e suas ações voltaram-se para o cuidado.

Em relação ao cuidador principal, 21% da amostra tinha depressão, variando de leve a grave. Nas entrevistas, alguns participantes mencionaram alterações emocionais e utilizaram como estratégias de enfrentamento terapia, atividade física, rede apoio social e familiar. Estudos mostram que essas estratégias diminuem o risco de isolamento social e depressão, reduzem o nível de ansiedade e auxiliam na promoção do bem-estar.(2626. Garcia CR, Cipolli GC, Santos JP, Freitas LP, Braz MC, Falcão DV. cuidadores familiares de idosos com a doença de alzheimer. Rev Kairó Gerontol. 2017;20(1):409-26.) Nesse aspecto, torna-se relevante a criação de políticas públicas que integrem a família como unidade de cuidado, visando reduzir a sobrecarga e os níveis de depressão dos cuidadores principais.(2727. Schuck LM, Antoni CD. Resiliência e Vulnerabilidade nos sistemas ecológicos: Envelhecimento e Políticas Públicas. Psicol Teor Pesqui. 2018;34:e3442.)

Outro dado relevante que emergiu dos dados deste estudo refere-se a ter filhos como um fator positivo para a redução da sobrecarga do cuidado, pois é um potencial para promover cuidado e ajuda mútua. Segundo os relatos, esse fator reduz a sobrecarga do cuidador principal, visto que os filhos participam da divisão da responsabilidade do cuidado e fornecem apoio emocional. Estudo realizado ressalta que a relação afetiva entre avós e netos favorece a futura relação de cuidados entre netos e avós, incluindo os netos na divisão de cuidados e tornando-os cuidadores informais em auxílio ao cuidador principal.(2828. Reis AR. Quando os netos se tornam cuidadores dos avós [dissertação]. Portugual: Instituto Politécnico de Viana do Castelo; 2018.)

Ao analisar o BDI, a WHOQOL-SRPB e a WHOQOL-BREF, contatou-se que os cuidadores familiares possuíam menores níveis de depressão e melhores índices de qualidade de vida quando associados aos seus vínculos com a espiritualidade. A sobrecarga emocional e física dos familiares de idosos com demência afeta a vida social e pessoal, bem como a própria saúde, porém valores e a prática da espiritualidade são fortalecedores para o bem-estar físico e emocional, para o enfrentamento das dificuldades e para a autopercepção da melhora da qualidade de vida.(1313. Dias FA, Pereira ER, Silva EM, Medeiros AY. Espiritualidade e saúde: uma reflexão crítica sobre a vida simbólica. Research. Soc Dev. 2020;9(5):e52953113.,1818. Paranhos ME, Argimon II, Werlang BS. Propriedade psicométricas do Inventário de Depressão de Beck-II em adolescentes. Aval Psicol. 2010;9(3):383–92.,2323. Mendes PN, Figueiredo ML, Santos AM, Fernandes MA, Fonseca RS. Sobrecargas física, emocional e social dos cuidadores informais de idosos. Acta Paul Enferm. 2019;32(1):87–94.) A espiritualidade se configurou como importante fator de enfrentamento individual e familiar em 93% dos entrevistados, o qual ampara aspectos emocionais e dá sentido à vida.(2929. Oliveira SG, Sartor SF, Morais ES, Maya NF, Gervini CM, Morales CP. Spirituality, religiosity and terminality: possible topics in homecare visits carried out with family caregivers. Rev Enferm UFPI. 2017;6(2):69–73.)

A correlação entre WHOQOL-SRPB e WHOQOL-BREF com dados sociocontextuais mostrou a espiritualidade como eficiente fator para a manutenção da qualidade de vida e melhor autoavaliação para a própria saúde.(3030. Pereira CR, Sobral GL, Maia GL, Bedor CN. A espiritualidade enquanto estratégia de enfrentamento para o cuidador familiar frente a terminalidade. Rev NUPEM. 2020;12(25):124–33.) Segundo estudo em consonância aos conceitos da OMS sobre espiritualidade e qualidade de vida, a espiritualidade pode ser uma dimensão da saúde mental, um fator protetivo de saúde e um vetor indicativo de qualidade de vida.(3131. Tonil R. Atas do espírito: a Organização Mundial da Saúde e suas formas de instituir a espiritualidade. Anuário Antropológico. 2017;42(2):267–99.) Os entrevistados relataram que as práticas e os ritos espirituais auxiliam a família a se sentir bem física e emocionalmente, na redução de conflitos e na manutenção das relações. Nesse sentido, a espiritualidade ecumênica(3232. Netto P. Os mortos não morrem. São Paulo: Elevação; 2018. 528 p.) (vinculada à religião ou não), que acentua crenças familiares e valores humanos, como misericórdia, respeito e amor fraterno, também influencia nas relações entre si e na promoção do cuidado, auxiliando na saúde mental dos cuidadores principais e no convívio familiar.(3333. Couto AM, Caldas CP, Castro EA. Cuidador familiar de idosos e o cuidado cultural na assistência de Enfermagem. Rev Bras Enferm. 2018;71(3):959–66.)

Os resultados das entrevistas evidenciaram a espiritualidade como fator de fortalecimento e de enfrentamento efetivo para a manutenção do equilíbrio socioemocional da família, uma vez que auxilia na promoção do cuidado, atenuando sentimentos e conflitos provenientes da convivência do cuidado. Isso corrobora dados do estudo que ressalta que os valores e a crença motivam e dão significado para as ações dos familiares, que, pautados por sua espiritualidade, exercem suas novas funções.(3131. Tonil R. Atas do espírito: a Organização Mundial da Saúde e suas formas de instituir a espiritualidade. Anuário Antropológico. 2017;42(2):267–99.)

Outros relatos ressaltam que a espiritualidade atenua suas dificuldades pessoais, à medida que os auxilia a lidar com seus desafios, sentimentos e frustações em ver seu familiar necessitando de cuidados básicos. Muitos familiares mencionaram ter que aprender a lidar com sentimentos de angústia, preocupação e abdicação, visto que passaram a dedicar todo seu tempo livre ao idoso. Estudo aponta que quanto maior é dependência do familiar em relação às Atividades da Vida Diária, maiores são o tempo gasto no cuidado, a privação da vida pessoal e a abdicação para o bem-estar do cuidador principal.(3434. Carvalho EB, Neri AL. Padrões de uso do tempo em cuidadores familiares de idosos com demências. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2019;22(1):e180143.) Nesse sentido, faz-se importante o apoio do profissional de enfermagem, para planejar e reorganizar a rotina de cuidado; encontrar, em conjunto com o familiar, possíveis redes de apoio (familiar ou social); identificar potencialidades a serem desenvolvidas no idoso, buscando sua autonomia, e elaborar estratégias que auxiliem no enfrentamento do cuidador principal.(1414. Coelho NH. Grau de dependência do idoso com Alzheimer, carga do familiar cuidador e papel da enfermagem. Cogitare; 2020. p. 46.,3535. Lima KB, Tavares IC, Souza AR, Silva LC, Souza LA, Sousa AT, et al. O enfermeiro como educador frente aos aspectos emocionais do familiar que cuida do portador de Alzheimer. Rev Eletr Acervo Saúde. 2021;13(2):e5918.)

O acompanhamento e o apoio profissional também foram citados como importantes estratégias de enfrentamento pelos familiares. Desse modo, a enfermagem tem papel fundamental na prestação de cuidados e serviços à essas famílias, atuando como uma rede de apoio profissional técnico-científico importante para a orientação desses familiares. Sua atuação pode ser efetiva para o estímulo à participação dos demais familiares no processo de cuidar, incentivando a autonomia e as potencialidades do idoso, além de incluir a família como unidade do cuidado, que, na maioria dos casos, deixa sua saúde em segundo plano.(1414. Coelho NH. Grau de dependência do idoso com Alzheimer, carga do familiar cuidador e papel da enfermagem. Cogitare; 2020. p. 46.,3333. Couto AM, Caldas CP, Castro EA. Cuidador familiar de idosos e o cuidado cultural na assistência de Enfermagem. Rev Bras Enferm. 2018;71(3):959–66.,3535. Lima KB, Tavares IC, Souza AR, Silva LC, Souza LA, Sousa AT, et al. O enfermeiro como educador frente aos aspectos emocionais do familiar que cuida do portador de Alzheimer. Rev Eletr Acervo Saúde. 2021;13(2):e5918.)

Os questionários utilizados mostraram-se de fácil aplicação, possibilitando a caracterização da amostra, a avaliação e mensuração da qualidade de vida e a investigação de sinais de depressão e como crenças espirituais/religiosas/pessoais contribuem para as relações familiares e a promoção do cuidado. Por meio das entrevistas, foi possível compreender a realidade e a dinâmica da família com um idoso com demência em domicílio.

O estudo limitou-se por representar o discurso pontual de um número reduzido de famílias, não permitindo a generalização dos achados e nem o acompanhamento dentro de um período, inviabilizando a apreensão da dinâmica familiar.

Conclusão

A espiritualidade se mostrou um importante fator de enfrentamento e fortalecimento para o cuidador familiar diante das dificuldades encontradas e dos desgastes emocionais e físicos desencadeados pelo cuidado com a pessoa com demência. A autopercepção de saúde para o bem-estar pode ser atrelada à prática da espiritualidade, a qual auxilia na manutenção da boa saúde mental dos familiares cuidadores de idosos com demências, reduzindo os riscos para desenvolvimento de depressão. A rede de apoio familiar e social, bem como o cuidado especializado profissional, colabora para a redução da sobrecarga física e emocional e dos riscos de depressão, possibilitando a melhora da qualidade de vida do cuidador principal. Outra contribuição do estudo foi sua possível utilização como subsídio aos profissionais de saúde para o cuidado humanizado e expandido do indivíduo à sua família. Novos estudos que investiguem a espiritualidade como fator de enfrentamento para famílias diante do cuidado com o idoso dependente com demência/doença de Alzheimer são necessários.

Agradecimentos

Agradecimento ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq; bolsa de iniciação científica), Edital Universal Processo 407978/2016-0, Brasil.

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Editado por

Editor Associado (Avaliação pelos pares): Thiago da Silva Domingos. (https://orcid.org/0000-0002-1421-7468). Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2021
  • Aceito
    14 Jul 2022
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