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Adaptação transcultural do instrumento Attitudes about Poverty and Poor People para estudantes de Enfermagem

Adaptación transcultural del instrumento Attitudes about Poverty and Poor People para estudiantes de Enfermería

Resumo

Objetivo

Realizar a adaptação transcultural da escala Attitudes about Poverty and Poor People para estudantes de enfermagem brasileiros.

Métodos

Trata-se de um estudo metodológico de adaptação transcultural. Seguiram-se as fases: tradução, síntese, retrotradução, reunião com tradutores, reunião com peritos, validação de conteúdo, pré-teste e entrevistas cognitivas. A amostra de aplicação da escala foi composta de dez estudantes de enfermagem de uma instituição pública de ensino superior. Foi adotado índice de validade de conteúdo maior que 0,8. Foi verificada a confiabilidade do pré-teste a partir do alfa de Cronbach e split-half (par e ímpar).

Resultados

Os itens da escala traduzida para o português brasileiro passaram pela avaliação de equivalências semântica, idiomática, experiencial e conceitual. Dois itens apresentaram índice de validade de conteúdo menor que 0,8. Eles sofreram ajustes e passaram por uma segunda rodada de avaliação, com alcance de índice de validade de conteúdo igual a 1. Os valores de confiabilidade do pré-teste foram 0,839 (alfa de Cronbach) e 0,859 (split-half). As entrevistas cognitivas revelaram problemas relacionados principalmente à interpretação.

Conclusão

A escala adaptada culturalmente para o português brasileiro apresenta validade de conteúdo para a amostra testada. É importante verificar outras evidências de validade, como baseada no processo de resposta, na estrutura interna, na relação com outras variáveis e na consequência da testagem.

Pobreza; Estudantes de enfermagem; Educação em enfermagem; Estudo de validação; Inquéritos e questionários

Resumen

Objetivo

Realizar la adaptación transcultural de la escala Attitudes about Poverty and Poor People para estudiantes de enfermería brasileños.

Métodos

Se trata de un estudio metodológico de adaptación transcultural. Se realizaron las siguientes fases: traducción, síntesis, retrotraducción, reunión con traductores, reunión con especialistas, validación de contenido, prueba piloto y entrevistas cognitivas. La muestra de aplicación de la escala fue formada por diez estudiantes de enfermería de una institución pública de enseñanza superior. Se adoptó el índice de validez de contenido superior a 0,8. Se verificó la fiabilidad de la prueba piloto a partir del alfa de Cronbach y el split-half (par e impar).

Resultados

Los ítems de la escala traducida al portugués brasileño pasaron por la evaluación de equivalencias semántica, idiomática, experiencial y conceptual. Dos ítems presentaron un índice de validez de contenido inferior a 0,8. Fueron mejorados y pasaron por una segunda ronda de evaluación y alcanzaron un índice de validez de contenido igual a 1. Los valores de fiabilidad de la prueba piloto fueron 0,839 (alfa de Cronbach) y 0,859 (split-half). Las entrevistas cognitivas revelaron problemas relacionados principalmente con la interpretación.

Conclusión

La escala adaptada culturalmente al portugués brasileño presenta validez de contenido en la muestra probada. Es importante que se verifiquen otras evidencias de validez, como la que se basa en el proceso de respuesta, en la estructura interna, en la relación con otras variables y en la consecuencia de la prueba.

Pobreza; Estudiantes de enfermeira; Educación en enfermería; Estudio de validación; Encuestas y cuestionarios

Abstract

Objective

To carry out cross-cultural adaptation of the Attitudes about Poverty and Poor People scale for Brazilian nursing students.

Methods

This is a methodological study of cross-cultural adaptation. The following phases were carried out: translation, synthesis, back-translation, meeting with translators, meeting with experts, content validity, pre-test and cognitive interviews. The scale application sample consisted of ten nursing students from a public higher education institution. A Content Validity Index greater than 0.8 was adopted. Pre-test reliability was verified from Cronbach’s alpha and split-half.

Results

The scale items, translated into Brazilian Portuguese, underwent an assessment of semantic, idiomatic, experiential and conceptual equivalence. Two items had a Content Validity Index lower than 0.8. They underwent adjustments and underwent a second round of assessment, with a Content Validity Index equal to 1. Pre-test reliability values were 0.839 (Cronbach’s alpha) and 0.859 (split-half). Cognitive interviews revealed problems mainly related to interpretation.

Conclusion

The scale culturally adapted to Brazilian Portuguese has content validity for the sample tested. It is important to verify other evidence of validity, such as based on the response process, the internal structure, the relationship with other variables and the consequence of testing.

Poverty; Students, nursing; Education, nursing; Validation study; Surveys and questionnaires

Introdução

A pobreza é um problema mundial e relaciona-se com a saúde.(11. Pitombeira DF, Oliveira LC. Poverty and social inequality: tensions between rights and austerity and its implications for primary healthcare. Cien Saude Colet. 2020;25(5):1699-708. Review.,22. Buss P, Tobar S. Para promover la salud es preciso enfrentar la pobreza. Rev Salud. 2017;12(58):46-50.) Pessoas que vivem em situação de pobreza possuem acessos reduzidos a serviços de saúde, medicamentos e vacinas. Além disso, seus gastos com cuidados de saúde podem levá-las à extrema pobreza.(33. World Bank Group. Tracking universal health coverage: 2017 global monitoring report. Washington, D.C.: World Bank Group; 2017 [cited 2021 Dec 10]. Available from: http://documents.worldbank.org/curated/en/640121513095868125/Tracking-universal-health-coverage-2017-global-monitoring-report
http://documents.worldbank.org/curated/e...
) Também há evidências do aumento da pobreza e da desigualdade de renda durante pandemias, incluindo a atual da doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19).(44. United Nations publication. Economic Commission for Latin America and the Caribbean. Social Panorama of Latin America 2020. Santiago: United Nations publication; 2021 [cited 2021 Dec 11]. Available from: http://hdl.handle.net/11362/46688
http://hdl.handle.net/11362/46688...
,55. Furceri D, Loungani P, Ostry JD, Pizzuto P. Will Covid-19 affect inequality?: evidence from past pandemics. Inter Monetary Fund Working Paper. 2021;(WPIEA2021127):1-45.)

Enfermeiros que possuem compreensão estrutural da relação entre pobreza e saúde podem estar mais atentos às necessidades de saúde das pessoas que vivem nessa situação.(66. Reutter LI, Sword W, Meagher-Stewart D, Rideout E. Nursing students’ beliefs about poverty and health. J Adv Nurs. 2004;48(3):299-309.)Instrumentos que avaliam atitudes sobre a pobreza podem ajudar na identificação de crenças tanto de uma perspectiva estrutural quanto individualista e moralista em relação à pobreza.

Estudos internacionais sobre a educação em enfermagem têm utilizado esses instrumentos para examinar crenças de estudantes, antes e após a aplicação de estratégias de ensino, como aprendizagem em serviço,(77. DeBonis R. Effects of Service-Learning on Graduate Nursing Students: care and advocacy for the impoverished. J Nurs Educ. 2016;55(1):36-40.,88. Ritten A, Waldrop J, Wink D. Nurse practitioner students learning from the medically underserved: impact on attitude toward poverty. J Nurs Educ. 2015;54(7):389-93.)curso(99. Scheffer MM, Lasater K, Atherton IM, Kyle RG. Student nurses’ attitudes to social justice and poverty: An international comparison. Nurse Educ Today. 2019;80:59-66.,1010. Vliem S. Nursing students’ attitudes toward poverty: does experiential learning make a difference?. Nurse Educ. 2015;40(6):308-12.) e simulação.(1111. Garrett-Wright D, Haughtigan K, Link K. Interactive poverty simulation: nursing students’ perceptions of poverty. Nurs Educ Perspect. 2021;42(6):380-2.

12. Meaux JB, Ashcraft PF, Gillis L. The effect of the poverty simulation on BSN student attitudes toward poverty and poor people. Nurse Educ Today. 2019;83:104192.
-1313. Turk MT, Colbert AM. Using simulation to help beginning nursing students learn about the experience of poverty: a descriptive study. Nurse Educ Today. 2018;71:174-9.) Estudo realizado com 740 estudantes de enfermagem revelou que aqueles que participaram de um curso sobre pobreza e saúde possuíam atitudes mais positivas em relação às pessoas em situação de pobreza e estavam mais propensos a apoiar uma explicação estrutural.(66. Reutter LI, Sword W, Meagher-Stewart D, Rideout E. Nursing students’ beliefs about poverty and health. J Adv Nurs. 2004;48(3):299-309.)

No Brasil, não foram identificados instrumentos utilizados para avaliação de atitudes de estudantes de enfermagem em relação à pobreza. Foi identificado apenas um estudo que avaliou as atitudes dos estudantes de odontologia em relação às pessoas em situação de pobreza e sua associação com a disposição em tratar essa população em sua prática futura,(1414. Dos Santos BF, Madathil S, Zuanon AC, Bedos C, Nicolau B. Brazilian dental students’ attitudes about provision of care for patients living in poverty. J Dent Educ. 2017;81(11):1309-16.)por meio da escala Attitudes about Poverty and Poor People.(1515. Atherton RC, Gemmel RJ, Haagenstad S, Holt DJ, Jensen LA, O’Hara DF, et al. Measuring attitudes toward poverty: a new scale. Social Work Res. 1993;29(4):28-30.) Na literatura internacional da educação em enfermagem, estudos também têm utilizado essa escala.(66. Reutter LI, Sword W, Meagher-Stewart D, Rideout E. Nursing students’ beliefs about poverty and health. J Adv Nurs. 2004;48(3):299-309.,88. Ritten A, Waldrop J, Wink D. Nurse practitioner students learning from the medically underserved: impact on attitude toward poverty. J Nurs Educ. 2015;54(7):389-93.,1616. Phillips KE, Roberto A, Salmon S, Smalley V. Nursing student interprofessional simulation increases empathy and improves attitudes on poverty. J Community Health Nurs. 2020;37(1):19-25.,1717. Jarrell K, Ozymy J, Gallagher J, Hagler D, Corral C, Hagler A. Constructing the foundations for compassionate care: how service-learning affects nursing students’ attitudes towards the poor. Nurse Educ Pract. 2014;14(3):299-303.)

O objetivo deste estudo foi realizar a adaptação transcultural da escala Attitudes about Poverty and Poor People para estudantes de enfermagem brasileiros.

Métodos

Trata-se de um estudo metodológico de adaptação transcultural da escala Attitudes about Poverty and Poor People. A escala foi construída no ano 1993 por sociólogos professores da Universidade do Alabama, nos Estados Unidos, com a finalidade de auxiliar o trabalho de profissionais do serviço social; ajudar professores do serviço social a avaliar atitudes de estudantes em relação à população em situação de pobreza e aplicar a escala em pesquisas.(1515. Atherton RC, Gemmel RJ, Haagenstad S, Holt DJ, Jensen LA, O’Hara DF, et al. Measuring attitudes toward poverty: a new scale. Social Work Res. 1993;29(4):28-30.) É uma escala do tipo Likert (cinco pontos) de 37 itens e avalia atitudes em relação à pobreza e foi testada com 98 estudantes do serviço social e da sociologia.(1515. Atherton RC, Gemmel RJ, Haagenstad S, Holt DJ, Jensen LA, O’Hara DF, et al. Measuring attitudes toward poverty: a new scale. Social Work Res. 1993;29(4):28-30.)

Foi adotado o referencial metodológico de Beaton et al.,(1818. Beaton DE, Bombardier C, Guillemin F, Ferraz MB. Guidelines for the process of cross-cultural adaptation of self-report measures. Spine (Phila Pa 1976). 2000;25(24):3186-91. Review.) seguindo as etapas: tradução; síntese das traduções; retrotradução; adaptação cultural, incluindo análises das equivalências semântica, idiomática, experiencial e conceitual; e pré-teste.

A tradução foi realizada de forma independente por dois tradutores brasileiros bilíngues e com áreas de formação diferentes, sendo o primeiro graduado em psicologia e o segundo em letras. Ressalta-se que apenas o primeiro tradutor teve conhecimento dos conceitos e objetivos da pesquisa.

Na síntese das traduções, foram identificados os pontos convergentes e divergentes entre as duas traduções. Os pontos divergentes foram discutidos e reformulados em consenso com os dois tradutores.

A retrotradução foi realizada de forma independente por dois tradutores nativos na língua da escala original, o inglês estadunidense. Eles foram instruídos a não efetuarem pesquisas em documentos semelhantes ou do mesmo tema.

A adaptação cultural foi realizada em uma reunião com os quatro tradutores. O objetivo foi identificar palavras que não ficaram claras no idioma-alvo. Para isso, foi realizada a comparação entre a escala original, a versão de síntese e as retrotraduções. Após essa checagem e análise, chegou-se a uma versão consensual.

Posteriormente, foi selecionado um comitê de peritos para validação de conteúdo da versão consensual. A seleção do comitê de peritos foi por conveniência e constituiu-se de uma equipe multidisciplinar de sete peritos: um profissional linguístico, um profissional metodológico com experiência em pesquisas de validação e adaptação transcultural e cinco docentes de enfermagem.

Os docentes de enfermagem foram escolhidos seguindo os critérios: ser graduado em enfermagem e docente da graduação; ter nacionalidade brasileira; trabalhar com as temáticas educação em enfermagem, pobreza, desigualdades ou vulnerabilidades; e ter, no mínimo, 1 ano de atuação em sua região. Foram escolhidos docentes de enfermagem das cinco regiões geográficas do país, a fim de aproximar a avaliação das equivalências realizada pelos peritos das realidades culturais e sociais de cada região do Brasil. A busca e a seleção desses docentes foram realizadas na plataforma Lattes.

Para validação de conteúdo, foi verificada a representatividade dos itens da escala, por meio de análises das equivalências semântica, idiomática, experiencial e conceitual. Para isso, foi calculado o índice de validade de conteúdo dos itens por equivalências. Foi utilizada uma escala do tipo Likert com pontuação de um a quatro; sendo um para item não representativo, dois para item que necessita de grande revisão para ser representativo, três para item que necessita de pequena revisão para ser representativo e quatro para item representativo. Para cálculo, considerou-se a soma de concordância dos itens marcados com três ou quatro pelos peritos, dividida pelo número total de respostas. Foram solicitadas aos peritos uma justificativa e uma sugestão de reformulação para os itens pontuados com um ou dois. Foi adotado um índice de validade de conteúdo maior que 0,8. Em pesquisas com seis ou mais peritos é indicado um índice não inferior a 0,78.(1919. Rubio DM, Berg-Weger M, Tebb SS, Lee ES, Rauch S. Objectifying content validity: conducting a content validity study in social work research. Soc Work Res. 2003;27(2):94–104.)

Os dados quantitativos foram apresentados por meio do software Statistical Package for the Social Sciences na versão 19.0. Para análise desses dados, utilizaram-se métodos estatísticos descritivos como frequências simples e percentuais, desvio-padrão, média, índice de validade de conteúdo, alfa de Cronbach e split-half (par e ímpar).

A escala foi aplicada a uma amostra de dez estudantes de um curso de graduação em enfermagem, e foram realizadas entrevistas cognitivas conduzidas seguindo um roteiro baseado no método Three-Step Test-Interview.(2020. Hak T, Veer K van der, Jansen H. The three-step test-interview (TSTI): an observation-based method for pretesting self-completion questionnaires. Surv Res Methods. 2008;2(3):143-50.) O roteiro permite ao entrevistador realizar perguntas estruturadas e relevantes para acessar o processo psicológico e as operações cognitivas dos entrevistados.(2020. Hak T, Veer K van der, Jansen H. The three-step test-interview (TSTI): an observation-based method for pretesting self-completion questionnaires. Surv Res Methods. 2008;2(3):143-50.,2121. Padilla JL, Benítez I. Validity evidence based on response processes. Psicothema. 2014;26(1):136-44.) A entrevista consistiu em três etapas. Na primeira, observação do comportamento de resposta e pensamento em voz alta, solicitaram-se ao entrevistado que ele preenchesse a escala como em uma situação real e pensasse em voz alta (“Por favor, diga em voz alta o que você pensa.”).(2020. Hak T, Veer K van der, Jansen H. The three-step test-interview (TSTI): an observation-based method for pretesting self-completion questionnaires. Surv Res Methods. 2008;2(3):143-50.,2121. Padilla JL, Benítez I. Validity evidence based on response processes. Psicothema. 2014;26(1):136-44.) Na segunda etapa, sondagem do comportamento, foram consideradas apenas as verbalizações de pensamentos, observados na etapa anterior, que geraram dúvidas (“Você parou um pouco aí, o que fez você pensar?”).(2020. Hak T, Veer K van der, Jansen H. The three-step test-interview (TSTI): an observation-based method for pretesting self-completion questionnaires. Surv Res Methods. 2008;2(3):143-50.,2121. Padilla JL, Benítez I. Validity evidence based on response processes. Psicothema. 2014;26(1):136-44.) A terceira etapa, debriefing, foi a única em que o entrevistado poderia adicionar comentários, sentimentos e explicações.(2020. Hak T, Veer K van der, Jansen H. The three-step test-interview (TSTI): an observation-based method for pretesting self-completion questionnaires. Surv Res Methods. 2008;2(3):143-50.,2121. Padilla JL, Benítez I. Validity evidence based on response processes. Psicothema. 2014;26(1):136-44.)

As entrevistas foram transcritas na íntegra com auxílio do software InqScribe e organizadas de acordo com os itens que apresentaram dificuldade de compreensão pelos estudantes no software MaxQDA Analytics Pro 2020 20.4.0.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o número de parecer CAAE 29548020.8.0000.5149, e foi autorizada a tradução da escala pela Oxford University Press, instituição de domínio da escala.

Resultados

Os peritos participantes da pesquisa avaliaram as equivalências semântica, idiomática, experiencial e conceitual dos itens da escala. Em relação ao conhecimento da língua inglesa, a maioria dos peritos declarou proficiência avançada e fluente (n=5). Na tabela 1, foram apresentados os índices de validade de conteúdo dos itens da escala, sendo que dois apresentaram índice de validade de conteúdo menor que 0,8 (“4. Qualquer pessoa pode crescer neste país” e “24. Pessoas pobres não devem ser responsabilizadas pelo seu azar”) nas equivalências semântica, idiomática e conceitual.

Tabela 1
Índice de validade de conteúdo dos itens da escala por equivalências semântica, idiomática, experiencial e conceitual na primeira rodada

Os itens 4 e 24 foram reformulados a partir das sugestões dos peritos (Quadro 1) e passaram por uma segunda rodada para avaliação de equivalências.

Quadro 1
Sugestões dos peritos nos itens que apresentaram um índice de validade conteúdo insatisfatório na primeira rodada

Na segunda rodada, os itens “4. Qualquer pessoa pode progredir neste país” e “24. Pessoas pobres não devem ser responsabilizadas pelo seu infortúnio” apresentaram índice de validade de conteúdo igual a 1 nas equivalências semântica, idiomática, experiencial e conceitual, o qual indicou 100% de concordância entre os peritos. Mesmo após o item “24. Pessoas pobres não devem ser responsabilizadas pelo seu infortúnio” ter apresentado um índice de validade de conteúdo igual a 1, o perito docente da Região Nordeste sugeriu substituir a palavra “responsabilizadas” por “culpadas”, e justificou que há uma assimilação de culpa nas construções sociais que tratam da temática desigualdade. Dessa forma, ainda nessa rodada, foi considerada essa sugestão, e a palavra “responsabilizadas” foi substituída por “culpadas”. Após a validação de conteúdo da escala, foi realizado o pré-teste com dez estudantes de enfermagem da Região Sudeste do Brasil. A maioria dos estudantes se autodeclarou do sexo feminino (n=7) e da cor parda (n=6). Os dez estudantes viviam em zona urbana, a maioria residia com três ou mais pessoas (n=9) e possuía uma renda familiar entre dois e dez salários mínimos (n=6) – o valor do salário mínimo do ano de 2021 foi de R$ 1.100,00.

Foram entrevistados estudantes de diferentes períodos do curso de graduação. Não houve representantes do sétimo e do décimo períodos do curso. A maioria dos estudantes já tinha cursado disciplinas que abordaram a temática pobreza, desigualdades ou vulnerabilidades (n=9), principalmente na disciplina de saúde coletiva (n=8). Em relação aos estágios, quatro estudantes já passaram por campos onde perceberam a pobreza, desigualdades ou vulnerabilidades. A pontuação total variou entre 120 e 169 (média de 150,2; desvio-padrão de 13,68). O item 8, “Pessoas pobres são desonestas”, foi o único que os estudantes marcaram a mesma opção (“discordo plenamente”), ou seja, não houve variação de pontuação (média de 5; desvio-padrão de 0). Os valores da confiabilidade do pré-teste foram 0,839 (alfa de Cronbach) e de 0,859 (split-half).

Os resultados das entrevistas cognitivas revelaram sobretudo problemas relacionados à interpretação, principalmente no item “10. A maioria das pessoas pobres é membro de um grupo minoritário”. Nesse item, oito estudantes interpretaram o item de maneira divergente uns dos outros. “Grupos minoritários” foram interpretados de três formas diferentes. Uma delas, presente em quatro entrevistas, foi a compreensão de que as pessoas que vivem em situação de pobreza são a maioria no Brasil, isto é, entenderam como grupos majoritários. Além disso, outros três estudantes exemplificaram os grupos minoritários como mulheres, pessoas negras, pessoas LGBTQ+ e indígenas, mas não apresentaram em suas falas a relação de dominação que colocou essas pessoas em situação de subalternidade. Também, eles expressaram incerteza acerca desse conceito. Ademais, um estudante exemplificou e representou o grupo minoritário como uma mulher negra, transgênero e periférica inferiorizada e discriminada por um sistema opressor e dominante. Após a identificação de problemas nas entrevistas cognitivas, os itens da escala sofreram ajustes. A escala adaptada para a amostra estudantes de enfermagem encontra-se apresentada no anexo 1.

Discussão

Os estudantes apresentaram pontuação alta na escala. Essas pontuações indicam crença de que os determinantes estruturais são as principais causas da pobreza, enquanto as pontuações baixas indicam explicação individualista da pobreza;(2222. Yun SH, Weaver RD. Development and Validation of a Short Form of the Attitude Toward Poverty Scale. Adv Social Work. 2010;11(2):174-87.) ou seja, quanto maior a pontuação, mais favorável a atitude em relação às pessoas que vivem em situação de pobreza, sendo 37 a pontuação mínima e 185 a máxima.(1515. Atherton RC, Gemmel RJ, Haagenstad S, Holt DJ, Jensen LA, O’Hara DF, et al. Measuring attitudes toward poverty: a new scale. Social Work Res. 1993;29(4):28-30.) No estudo-piloto de Atherton et al.,(1515. Atherton RC, Gemmel RJ, Haagenstad S, Holt DJ, Jensen LA, O’Hara DF, et al. Measuring attitudes toward poverty: a new scale. Social Work Res. 1993;29(4):28-30.)desenvolvedores da escala, o teste apresentou alfa de Cronbach de 0,93 e split-half (par e ímpar) de 0,87.

É importante que as diferenças presentes nas pontuações sejam decorrentes de mudanças reais no construto a ser avaliado e não devido a uma compreensão equívoca.(2323. Estefania CC, Zalazar-Jaime MF. Entrevistas cognitivas: revisión, directrices de uso y aplicación en investigaciones psicológicas. Aval Psicol. 2018;17(3):362-70.) Para não haver heterogeneidades de interpretação e viés de reposta, os entrevistados precisam recorrer ao significado pragmático da pergunta.(2424. Schwarz N. Cognitive aspects of survey methodology. Appl Cogn Psychol. 2007;21:277–87.) O item 10 apresentou variação de pontuação devido a interpretações divergentes. Dessa forma, quaisquer comparações entre as respostas poderão não ser válidas.(2525. Collins D. Pretesting survey instruments: an overview of cognitive methods. Qual Life Res. 2003;12:229–38.) Para esse tipo de problema, é importante fornecer definições de palavras, termos ou expressões que geraram dúvidas,(2626. Tourangeau R. The survey response process from a cognitive viewpoint. Qual Assurance Educ. 2018;26(2):169-81.)processo que foi adotado neste estudo e encontra-se no anexo.

A pontuação do item 10 no estudo de Atherton et al.(1515. Atherton RC, Gemmel RJ, Haagenstad S, Holt DJ, Jensen LA, O’Hara DF, et al. Measuring attitudes toward poverty: a new scale. Social Work Res. 1993;29(4):28-30.)é um ponto para concordo plenamente, dois pontos para concordo, três pontos para sinto-me neutro, quatro pontos para discordo e cinco pontos para discordo plenamente. No entanto, recomenda-se que este item seja pontuado inversamente, devido à dimensão que o conceito “grupo minoritário” pode possuir para além de numérico – como um grupo da população discriminado que ocupa uma posição não dominante, considerado inferior e que compartilha das mesmas características.(2727. Séguin E. Justiça ambiental e o etnodesenvolvimento. Rev Interd Direito. 2017;10(1):133-50.)

Recomenda-se a ampliação da aplicação da escala a estudantes de enfermagem dos diversos estados brasileiros e oriundos de instituições privadas de ensino. Em países com raízes culturais heterogêneas e grandes dimensões territoriais, termos ou expressões podem ser compreendidos em uma determinada região país, porém, em uma outra, seu uso pode não ser apropriado.(2828. Reichenheim ME, Moraes CL. Operacionalização de adaptação transcultural de instrumentos de aferição usados em epidemiologia. Rev Saude Publica. 2007;41(4):665-73.)

É importante verificar outras evidências de validade, como as baseadas no processo de resposta, na estrutura interna, na relação com outras variáveis e na consequência da testagem. Em relação à estrutura interna, Atherton et al.(1515. Atherton RC, Gemmel RJ, Haagenstad S, Holt DJ, Jensen LA, O’Hara DF, et al. Measuring attitudes toward poverty: a new scale. Social Work Res. 1993;29(4):28-30.)identificaram apenas uma estrutura fatorial e concluíram que a escala apresentava fator único. No entanto, Yun e Weaver(2222. Yun SH, Weaver RD. Development and Validation of a Short Form of the Attitude Toward Poverty Scale. Adv Social Work. 2010;11(2):174-87.) realizaram a análise fatorial e identificaram três fatores: deficiência pessoal, estigma e perspectiva estrutural. Ademais, propuseram uma forma abreviada da escala de 21 itens. Dessa forma, recomenda-se testar estrutura interna dessa escala, por meio da Análise Fatorial Exploratória e Confirmatória, uma vez que houve divergência das técnicas utilizadas para retenção fatorial entre os estudos, e isso pode ter interferido na estrutura fatorial identificada.

A escala adaptada para estudantes de enfermagem pode contribuir para identificação de atitudes sobre a pobreza e, principalmente, o reconhecimento daquelas preconceituosas, que obstaculizam o atendimento às pessoas que vivem em situação de pobreza. Ela poderá ser aplicada antes e após estratégias de ensino relacionadas à pobreza. Essas estratégias podem fazer parte de uma disciplina curricular, obrigatória ou não, de uma atividade de extensão e de uma pesquisa. Nos estudos identificados,(66. Reutter LI, Sword W, Meagher-Stewart D, Rideout E. Nursing students’ beliefs about poverty and health. J Adv Nurs. 2004;48(3):299-309.,88. Ritten A, Waldrop J, Wink D. Nurse practitioner students learning from the medically underserved: impact on attitude toward poverty. J Nurs Educ. 2015;54(7):389-93.,1616. Phillips KE, Roberto A, Salmon S, Smalley V. Nursing student interprofessional simulation increases empathy and improves attitudes on poverty. J Community Health Nurs. 2020;37(1):19-25.,1717. Jarrell K, Ozymy J, Gallagher J, Hagler D, Corral C, Hagler A. Constructing the foundations for compassionate care: how service-learning affects nursing students’ attitudes towards the poor. Nurse Educ Pract. 2014;14(3):299-303.) a escala foi aplicada para estudantes de diferentes períodos, tanto de estágios iniciais quanto finais.

Reitera-se a importância de abordar, na formação em enfermagem, a relação entre pobreza e saúde, principalmente os fatores estruturais que contribuem para a reprodução da pobreza e suas consequências negativas para a saúde. Essa abordagem pode ser tanto em nível individual, como atendimento das pessoas em situação de pobreza, quanto comunitário, de defesa de políticas públicas.(66. Reutter LI, Sword W, Meagher-Stewart D, Rideout E. Nursing students’ beliefs about poverty and health. J Adv Nurs. 2004;48(3):299-309.)

A escala, disponibilizada no Brasil, será relevante para comparar resultados de estudos futuros com aqueles realizados em outros países e que aplicaram a mesma escala. Ademais, a escala possibilitará a identificação de crenças preconceituosas a respeito da população que vive na pobreza. É importante reconhecer que essa visão moralista, que coloca as pessoas que vivem em situação de pobreza como inferiores e as responsabilizam pela sua própria condição social, ainda é presente e persistente e traz consequências para a vida dos mais pobres.

Conclusão

A escala adaptada para o português brasileiro apresentou validade de conteúdo para a amostra testada. Na entrevista cognitiva, os estudantes de enfermagem revelaram sobretudo problemas de interpretação. É importante verificar ainda outras evidências de validade em estudos futuros, como as baseadas no processo de resposta, na estrutura interna, na relação com outras variáveis e na consequência da testagem.

Referências

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Editado por

Editor Associado (Avaliação pelos pares): Thiago da Silva Domingos (https://orcid.org/0000-0002-1421-7468) Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo, SP, Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2022
  • Aceito
    27 Set 2022
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