Open-access Parto de ideias: a epistemologia platônica como metáfora sexual

Giving birth to ideas: Platonic epistemology as sexual metaphor

Resumo:

O artigo investiga o significado da metáfora sexual presente nas caracterizações da arte maiêutica do Teeteto e dos amantes fecundos na psique do Banquete. Embora o “método socrático”, no Teeteto, seja ilustrado como uma prática análoga a um parto e a atividade de Sócrates seja comparada à de uma parteira, o texto também menciona outros estágios sucessivos da reprodução sexual humana, assim como outras funções associadas aos fenômenos eróticos são atribuídas a Sócrates. No Banquete, por seu turno, a personagem de Diotima descreve a prática educacional de dois tipos especiais de amante por meio de uma analogia que também evoca a imagética da reprodução sexual. As duas analogias são expostas detalhadamente e, então, o artigo problematiza o sentido de termos associados ao verbo κυεῖν em passagens dos dois diálogos, mostrando que o sentido varia entre “estar prenhe” e “ser fecundo”. Por fim, propõe-se pensar o objeto de gestação e aborto no nível intelectual a partir da noção de γένος, enquanto no nível ético o amante e aqueles que ele educa concebem e geram as excelências como produto de um processo análogo à fecundidade natural de um casal humano.

Palavras-chave:
Maiêutica; Sócrates; Parto; Ideia; Conceito

Abstract:

This article intends to interpret the meaning of the sexual metaphor present in the characterization of the maieutic art of the Theaetetus as well as in the description of the psychically fecund lovers of the Symposium. Even though the “Socratic method” is illustrated as a practice comparable to birth giving, and Socrates’ activity is compared to midwifery, the text also mentions other successive stages of human reproduction, and other functions related to erotic phenomena are attributed to Socrates. Notably, in the Symposium, the character Diotima describes the educational practice of two special kinds of lovers through an analogy that also alludes to sexual imagery. The two analogies are scrutinized and then the article problematizes the meaning of terms associated with the verb κυεῖν in selected passages of the two dialogues, showing that the meaning varies between “being pregnant” and “being fecund”. Finally, the article presents the object of gestation and abortion at the intellectual level through the notion of γένος, and proposes that, in the ethical level, the educational lover and the one he educates conceive of and generate the excellences as a product of a process analogous to the natural fecundity of a human pair.

Keywords:
Maieutics; Socrates; Birthgiving; Idea; Conception

A analogia com as parteiras

Os leitores dos diálogos de Platão estão familiarizados com a analogia com as parteiras, introduzida em Tht. 149a1-b1, por meio da qual Sócrates caracteriza os exames dialéticos por ele conduzidos como análogos aos partos presididos por sua mãe, Fanerete, com a ressalva de que esta opera sobre o corpo de mulheres, enquanto ele age sobre as psiques de homens jovens (Tht. 150b6-c3). Pelo menos desde o influente artigo de Myles Burnyeat (1977) sobre o assunto, essa analogia tem interessado aos intérpretes recentes dos diálogos de Platão. O objetivo do autor nesse artigo é defender a tese de que a referida analogia não tem origem histórica e é fruto da “inspiração de Platão”. O foco, portanto, não incide sobre o conteúdo filosófico da comparação, característica compartilhada com o artigo de Julius Tomin, que se ocupa sobremodo em defender que a metáfora tem origem histórica (Tomin, 1987, p. 102). Embora não seja o centro de suas atenções, Tomin (1987, p. 99-100) aponta a presença das metáforas do aborto (Tht. 150b1-4) e da casamenteira (Tht. 150a1-6), indicando que a analogia possui outros elementos, embora sem problematizá-los.

Um dos trabalhos que analisa mais amplamente a analogia com as parteiras é o recente artigo de Dylan Futter (2018), que desafia um elemento específico da “interpretação tradicional” da analogia, a saber, a hipótese de que o interlocutor dá à luz “teorias”:

A gestação psíquica é tradicionalmente concebida como um processo no qual um homem jovem desenvolve uma teoria ou ideia em sua psique; um filho intelectual seria, portanto, uma teoria; e o parto intelectual seria o doloroso processo de saída de uma teoria da psique para o mundo do discurso (Futter, 2018, p. 1).

Futter argumenta que essa caracterização, apesar de ser geralmente aceita pelos comentadores (cf. p. 2, n. 3), é incorreta, porque Sócrates diz que Teeteto está em trabalho de parto, mas ao longo da obra homônima o jovem não dá à luz nenhuma teoria - o diálogo é aporético. Segundo Futter (2018, p. 2-3), a compreensão da metáfora exige a distinção entre dois tipos de gestação intelectual, a falsa e a verdadeira, de forma que a caracterização padrão da metáfora descreve adequadamente a variante falsa, que é uma “teoria germinando na mente”, mas não a segunda variante, porque “o verdadeiro filho intelectual de Teeteto não é uma teoria do conhecimento, mas sabedoria em sua psique”, uma vez que suas tentativas de definir a ἐπιστήμη ao longo do diálogo são refutadas por Sócrates.

Durante sua exposição, o intérprete chama a atenção para o desenrolar da metáfora, citando várias passagens em que “Sócrates transfere para o domínio intelectual conceitos hauridos da prenhez física, articulando destarte uma explicação da prenhez psíquica masculina” (Futter, 2018, p. 2). Essas observações são dignas de nota porque, ao apontar que Sócrates cita outras etapas da experiência que culmina no parto durante sua descrição da arte maiêutica, Futter evidencia a limitação das explicações convencionais sobre a analogia com as parteiras, segundo as quais os filhos intelectuais seriam pensamentos, ideias, conceitos ou opiniões, variando de acordo com o comentador, ou com a página em que aparece em dado comentário (Futter, 2018, p. 3, n. 5). Sendo a função de Sócrates ajudar no parto desses “filhos”, i.e., desenvolvê-los até sua completude lógica, no contexto do Teeteto, o parto seria impelir uma teoria do conhecimento ao mundo do discurso. Futter argumenta que as “dores do parto” não funcionam bem na explicação tradicional da metáfora, uma vez que teriam que se dever ao tamanho da boca humana em comparação com o tamanho das teorias (Futter, 2018, p. 3-4).

Ao longo de sua exposição, primeiro, Futter (2018, p. 5) avança uma explicação da prenhez psíquica que exclui a necessidade de produções discursivas, colocando em primeiro plano a atualização da potência para a excelência como aquilo que o interlocutor dá à luz. Segundo o intérprete, Teeteto diz que tenta responder à questão sem que suas respostas ou as dos outros lhe pareçam satisfatórias (Tht. 148e1-5). Sócrates diz, em resposta, que Teeteto não é estéril (κενὸς), mas está prenhe (ἐγκύμων). Futter argumenta que, “se a prenhez intelectual significasse estar desenvolvendo uma teoria do conhecimento, então seria severamente difícil de explicar como Sócrates pode dizer que Teeteto está prenhe (ἐγκύμων) em contraposição à sua vacuidade intelectual”. Citando as passagens Tht. 148e6-7, 160e2-161a4 e 210b4-d2, o intérprete sustenta que todos os filhos intelectuais de Teeteto, de acordo com a interpretação tradicional, teriam que ser “ovos gorados”, i.e., ele não teria nenhum “filho verdadeiro”, e sua gravidez teria que ser explicada como estar carregando filhos falsos. Por conseguinte, todos, ou pelo menos todos os jovens, estariam prenhes, uma vez que todos são capazes de gerar ideias erradas sobre o conhecimento.

Prosseguindo, Futter fornece uma explicação do sentido das “dores do parto”. Para preservar a analogia, o parto de um filho intelectual deve envolver um movimento de saída de uma teoria da mente de Teeteto para o mundo.1 Contudo, Sócrates somente pergunta se o filho primogênito de Teeteto foi gerado depois que suas respostas foram elaboradas nos termos das teorias de Protágoras e Heráclito, e não considera que tenha dado à luz quando o jovem fornece as duas primeiras respostas. Segundo Futter, para dar conta disso, a interpretação tradicional exige que a prenhez intelectual seja identificada ao trabalho de parto, uma vez que o trabalho de parto começaria com as primeiras articulações discursivas (i.e., a definição de Teeteto segundo a qual conhecimento é sensação) e prosseguiria até os refinamentos teóricos subsequentes. A metáfora estaria comprometida, pois Sócrates estaria atribuindo a Teeteto dores de parto antes de o trabalho de parto começar (Futter, 2018, p. 6). Na sequência, Futter (2018, p. 7) assume que nenhum estudioso alguma vez defendeu que uma das implicações da metáfora da parteira, quando interpretada à luz da visão tradicional, implica que as dores do parto são geradas pelo tamanho das teorias que devem sair da boca de quem as pronuncia. Ele adiciona que os comentadores raramente abordam o assunto, mas cita nominalmente Burnyeat, para o qual essas dores seriam as aporias que ocorrem durante “o esforço para fazer nascer um conceito” (Burnyeat, 1992, p. 58). Para Futter, isso de nada explica a razão das dores, e apenas reafirma o fenômeno, sem dar conta do que o texto diz explicitamente: que as dores de Teeteto se devem a ele reconhecer que nenhuma resposta é satisfatória.

O modelo tradicional e o modelo de Futter contêm, ambos, acertos e equívocos, na medida em que são incompletos, ao mesmo tempo em que cada um possui elementos reaproveitáveis. No caso de Futter, um deles é a exposição dos demais elementos da analogia com as parteiras. Ele começa por Tht. 150a6-b9, em que a parteira que cuida dos corpos de mulheres jovens está para o parteiro que cuida das psiques de homens jovens assim como a gestação corpórea feminina está para a gestação psíquica masculina. Na sequência, Futter enfatiza a linguagem da fertilidade empregada por Sócrates quando se refere à definição de Teeteto (conhecimento é sensação) como algo a ser investigado com a finalidade de descobrir se ela é γόνιμον (produtiva, fértil, frutífera) ou ἀνεμιαῖον (“anêmica”, metáfora para “vazia”; Tht. 151e5). Depois de desenvolver a definição de Teeteto, Sócrates pergunta ao jovem se podem considerá-la um recém-nascido (νεογενὲς παιδίον), produto de sua arte maiêutica (ἐμὸν δὲ μαίευμα, Tht. 160e3). Contudo, como todas as “teorias” de Teeteto sejam refutadas, argumenta Futter (2018, p. 11), apenas seus filhos falsos são teorias.

Para Futter (2018, p. 11), não se trata de uma distinção entre dois tipos de discurso, mas entre o discursivo e o não discursivo, analogamente ao que ensina Diotima, no Banquete, quando diz que o contemplador da Beleza gera a verdadeira virtude, e não simulacros, por tratar-se de uma distinção entre a virtude e a não virtude (2018, p. 11-12, n. 19). Citando Tht. 151b2-6, ele lembra que Sócrates associa a geração de simulacros aos sofistas, para os quais encaminha alguns dos jovens com quem dialoga. Adicionalmente, Sócrates diz que sua tarefa é libertar (ἀπολῦσαι) Teeteto do que ele “concebeu a respeito do conhecimento” (ὧν κυεῖ περὶ ἐπιστήμης, Tht. 184b1). Contudo, uma vez que Teeteto é especialmente louvado por Sócrates, ele não pode estar prenhe apenas com filhos intelectuais falsos, mas “com um filho verdadeiro que não é uma teoria do conhecimento”. Seu argumento principal é que há dois tipos de prenhez: um que leva ao parto de teorias falsas, e outro, de um “tipo lógico diferente”, i.e., que não gera uma teoria do conhecimento (Futter, 2018, p. 12-14), mas sabedoria na psique (Futter, 2018, p. 20-23).

Os demais elementos da alegoria sexual

Dito isso, pretende-se apresentar um modelo de compreensão da epistemologia implícita ao método socrático. Em primeiro lugar, parte-se da indicação de que a imagética da reprodução sexual aparece tanto durante a descrição da arte maiêutica do Teeteto como quando a personagem Diotima descreve práticas educacionais de dois tipos especiais de amantes no Banquete. No entanto, o sentido de termos associados ao verbo κυεῖν nas passagens relevantes dos dois diálogos varia entre “estar prenhe”, no primeiro, e “ser fecundo”, no segundo. Em segundo lugar, indica-se que os comentadores não enfatizam suficientemente que a epistemologia pressuposta pela arte maiêutica é expressa por meio de uma alegoria que espelha todas as etapas do processo de reprodução sexual; não articulam a metáfora das parteiras com a formulação do método dialético da República no contexto da distinção entre o método do entendimento e o da inteligência; e não articulam o desenrolar do método socrático com a noção de γένος.

Além do parto, a etapa da inseminação é mencionada em Tht. 149d5-e5, quando Sócrates pergunta a Teeteto se compete à mesma arte discernir qual é o tipo de solo mais apropriado para cada tipo de semente (σπέρμα). Assim, Sócrates sugere uma analogia anterior, qual seja, a comparação entre a fertilidade da terra e a fertilidade humana. Segundo sua exposição, se compete à arte da agricultura selecionar qual semente combina com cada tipo de solo, assim como cultivar e colher os frutos no tempo correto (Tht. 149e3-8),2 compete analogamente às “verdadeiras parteiras” (ὄντως μαίαις, Tht. 150a5) “acasalar homem e mulher” (συναγωγὴν ἀνδρὸς καὶ γυναικός, Tht. 150a2) e determinar as “uniões mais acertadas” (προμνήσασθαι ὀρθῶς, Tht. 150a5-6) para que a fertilidade corpórea do homem e da mulher realize a finalidade de gerar os melhores filhos. Embora a cronologicamente anterior etapa da inseminação seja mencionada por Sócrates, a gravidez parece ser o estágio inicial do processo que culmina no parto, como o sugere Tht. 151a5-b1:

[Sócrates:] - Os que vêm a se associar comigo (οἱ ἐμοὶ συγγιγνόμενοι) sofrem (πάσχουσι) o mesmo que as parturientes (τικτούσαις): ficam cheios de aporia de noite e de dia e sentem dores de parto (ὠδίνουσι) ainda mais agudas que as delas. São essas dores (ὠδῖνα) que minha técnica (ἐμὴ τέχνη) é capaz (δύναται) de despertar (ἐγείρειν) ou parar (ἀποπαύειν).

No entanto, além de mencionar a inseminação, Sócrates também diz assumir a função de casamenteiro em algumas ocasiões nas quais é impedido por seu dêmone de se associar a algum jovem (μοι δαιμόνιον ἀποκωλύει συνεῖναι, Tht. 151a4):

[Sócrates:] - Todavia, Teeteto, se não me parecem (μοι μὴ δόξωσί) estar prenhes (ἐγκύμονες εἶναι), ao perceber que não precisam de mim (γνοὺς ὅτι οὐδὲν ἐμοῦ δέονται), de bom grado me torno casamenteiro (πάνυ εὐμενῶς προμνῶμαι) e, em concordância com o deus (σὺν θεῷ εἰπεῖν), muito competentemente sugiro (πάνυ ἱκανῶς τοπάζω) que se associem a quem lhes possa ser de mais proveito (οἷς ἂν συγγενόμενοι ὄναιντο; Tht. 151b2-5).

Além de parteiro e de selecionador das sementes, Sócrates revela desempenhar a função de pareador ao explicar que entregou a Pródico (ἐξέδωκα Προδίκῳ, Tht. 151b5) e a outros homens sábios e inspirados (σοφοῖς τε καὶ θεσπεσίοις ἀνδράσι, Tht. 151b6) alguns jovens que não lhe pareceram ἐγκύμονες. Entretanto, esse não é o caso de Teeteto: Sócrates veio a querer examiná-lo “por suspeitar que algo aí dentro está no ponto de vir à luz” (ὠδίνειν τι κυοῦντα ἔνδον, Tht. 151b8). A fala de Sócrates levanta uma dúvida: o motivo da recusa dos outros jovens é a falta de fecundidade ou de um estado avançado de gestação? Qual seria, afinal, a primeira etapa do processo de parto: a inseminação, por coerência; ou a prenhez, caso a analogia não tenha pretensão de encaixe perfeito? Embora κυοῦντα nessa passagem implique uma prenhez avançada, a familiaridade de Teeteto com as doutrinas dos sofistas sugere que o motivo de já estar prenhe é sua psique ter sido fecundada previamente quando de seu contato com o ensino de sofistas como Protágoras.

Essa perspectiva adquire plausibilidade com auxílio de uma analogia semelhante presente em outro diálogo platônico, o qual apresenta as figuras dos amantes “fecundos segundo a psique” (κυοῦσιν κατὰ τὴν ψυχήν, Smp. 206c2). Como já apontado por Elisabeth Pender, o ensinamento de Diotima no Banquete inclui, entre os passos 206c1-209c4, uma alegoria em que “copulação, ejaculação, prenhez e nascimento são espelhados no nível intelectual” (Pender, 1992, p. 76). A passagem que inaugura o ensinamento sobre como o amor é capaz de superar a mortalidade é κυοῦσιν γάρ, ἔφη, ὦ Σώκρατες, πάντες ἄνθρωποι καὶ κατὰ τὸ σῶμα καὶ κατὰ τὴν ψυχήν καὶ ἐπειδὰν ἔν τινι ἡλικίᾳ γένωνται, τίκτειν ἐπιθυμεῖ ἡμῶν ἡ φύσις (Smp. 206c1-3). Notavelmente, κυοῦσιν possui a mesma raiz de termos usados por Sócrates no Teeteto3 para descrever o estado psíquico do jovem. Ao abordarem essa passagem, a maioria dos comentadores4 adota a tradução de κυοῦσιν κατὰ τὴν ψυχήν por “prenhes na psique” (pregnant in soul). A razão para tanto pode ser ilustrada pelo seguinte comentário:

Os verbos κυεῖν e κύεσθαι (estar grávida, conceber), por exemplo, são usados apenas para se referir às mulheres, conquanto τίκτειν, γεννάν, τόκος e γέννησις podem ser predicados tanto de homens quanto de mulheres, uma vez que são usados para se referir tanto à “concepção” como à parturição da prole (Corrigan & Glazov-Corrigan, 2004, p. 116-117).

Além de apontar com razão que o léxico da sexualidade é a fonte da qual são extraídas as metáforas que compõem o modelo epistemológico fundamental do discurso de Diotima, os autores apontam a conexão entre o Banquete e o Teeteto ao lembrar que, nessa obra, o saber é expresso via analogia com as dores do parto, citando em nota (p. 117, n. 32) os passos do diálogo em que isso é dito (Tht. 148e-151d; 160e-161a). Embora o comentário citado evidencie o aspecto feminino da analogia, a tradução de κυοῦσιν por “prenhes” tornaria o texto incoerente,5 porque o referido verbo em Smp. 206c1 abarca tanto o corpo quanto a psique, e os homens não engravidam segundo o corpo.6 Essa incoerência parece ter sido notada por León Robin e Carlos Alberto Nunes, que traduzem o verbo por “são fecundos”.7 Uma inspeção de excertos subsequentes, pois, reforça essa interpretação.

Diotima explica ainda que a natureza animal (ζῴῳ ἀθάνατον, Smp. 206c7) participa da imortalidade por meio da “concepção8 e da geração” (ἡ κύησις καὶ ἡ γέννησις, Smp. 206c7-8), as quais só acontecem no que tem beleza. A sequência da descrição evoca de forma vívida e explícita a imagética da estimulação sexual que precede a realização do ato:

[Diotima:] - Por esse motivo, sempre que o ser fecundante (τὸ κυοῦν) se aproxima (προσπελάζῃ) do que tem beleza, fica alegre e bem disposto, concebe e gera (καὶ τίκτει τε καὶ γεννᾷ). Porém, quando se trata de algo feio (αἰσχρῷ), retrai-se aflito e triste (σκυθρωπόν τε καὶ λυπούμενον συσπειρᾶται), recolhe-se em si mesmo e afasta-se sem gerar (καὶ ἀποτρέπεται καὶ ἀνείλλεται καὶ οὐ γεννᾷ), guardando o duro fardo da semente que carrega (ἀλλὰ ἴσχον τὸ κύημα χαλεπῶς φέρει). Assim se explica o múltiplo alvoroço emotivo (πολλὴ ἡ πτοίησις) do ser fecundo (τῷ κυοῦντί) e transbordante de seiva (τε καὶ ἤδη σπαργῶντι), que lhe advém (γέγονε) diante da beleza (περὶ τὸ καλὸν), porque ela o alivia do grande sofrimento da geração (διὰ τὸ μεγάλης ὠδῖνος ἀπολύειν τὸν ἔχοντα, Smp. 206d3-e1).

Como o excerto acima evidencia, o campo semântico de τὸ κυοῦν, τῷ κυοῦντί e τὸ κύημα remete à fecundidade que condiciona a inseminação, algo confirmado pelo comentário adicional de Diotima (Smp. 207a9-b2) de que esse comportamento é observável em “toda sorte de animais que padecem dessa loucura amorosa” (νοσοῦντά τε πάντα καὶ ἐρωτικῶς), primeiro quando copulam (συμμιγῆναι ἀλλήλοις) e, depois, quando se unem para “criar o filho” (τροφὴν τοῦ γενομένου). Ademais, segundo Pender (1992, p. 74), ao usar a palavra τόκος nessa parte do texto, Diotima estaria se referindo à ejaculação do sêmen, posição que ela referenda citando Smp. 206c4, em que se diz que o ser humano é incapaz de gerar (τίκτειν) no que é feio (cf. Smp. 206d3-5). A observação de Pender é reforçada pelo uso de τὸ κύημα na passagem supracitada, que não parece ter o sentido usual de “feto”.9

Glenn Rawson (2006) aborda esse tema ao tratar de uma variação na apresentação da teoria da reminiscência em diferentes diálogos. Para Rawson, o modelo do Mênon seria “não disposicional”, enquanto no Banquete e no Fedro haveria duas variações do modelo “disposicional”. Enquanto o primeiro modelo “implica a posse inata do conteúdo do saber a ser obtido” (Rawson, 2006, p. 137), no segundo a potência para atualizar certos conteúdos cognitivos é inata, mas depende, para tanto, de “tipos específicos de experiências e exercícios mentais” (Rawson, 2006, p. 137). Referindo-se ao Banquete, ele comenta que

No modelo disposicional de prenhez psíquica de Diotima, o conteúdo do saber a ser obtido não está previamente presente na mente do aprendiz; pelo contrário, a exemplo de um embrião em fase de crescimento (κύημα), o vir a saber demanda estágios sucessivos de desenvolvimento a partir de recursos inatos incipientes que estão longe da completude (Rawson, 2006, p. 139).

Amparado por noções aristotélicas de embriologia,10 Rawson usa a noção de κύημα como chave de compreensão do estado inicial da pessoa que passa pelo processo educacional:

As κυήματα psíquicas com as quais o jovem amante inicia [sc. o processo de gestação psíquica] são comparáveis com o início do desenvolvimento embriônico, a “concepção” em vez do feto completamente desenvolvido. Como Aristóteles escreve na Geração dos Animais [728b34-35], “por κύημα entendo a mistura original do macho e da fêmea” na produção de um novo indivíduo (Rawson, 2006, p. 147).

Apesar de não serem apresentadas por Diotima explicitamente como metáforas, as κυήματα, na leitura de Rawson, seriam sementes embrionárias cheias de potência a serem desenvolvidas durante conversas filosóficas - disposição para o saber, portanto, exigindo exercício intelectual para vir a se tornar saber. Essa mesma linha é compartilhada por autores como Corrigan & Glazov-Corrigan (2004), para os quais, ao substituir o modelo homossexual dos discursos anteriores ao seu, o discurso de Sócrates altera o paradigma de intercurso sexual implícito ao Banquete, além de apresentar Diotima como o maior exemplo de sabedoria do diálogo. Outro intérprete que segue caminho similar é Brisson (2007), cujo artigo mostra que Platão opõe, no Banquete, dois modelos educacionais baseados em formas opostas de transmissão do líquido seminal: o pederástico, defendido por Pausânias e Agatão, e o heterossexual, presente no discurso de Sócrates. Segundo a leitura de Brisson (2007, p. 251), o modelo de Diotima é

o da concepção em uma mulher, que deve ser objeto de parto pelo ato de trazer à luz o embrião que ela carrega; a imagem da prenhez (que na antiguidade e nas nossas sociedades está relacionada ao papel da mulher) parece estar ligada, no nível epistemológico, aos temas da reminiscência e da maiêutica.

Enquanto o primeiro modelo, em que um homem mais velho transmite o saber para um jovem em troca de favores sexuais, é rejeitado por Sócrates (Smp. 175d3-e6; Sheffield, 2002, p. 17), o segundo “pensa a educação como a redescoberta de um conhecimento que já estava presente na psique do amante e que deve ser trazido à luz, como no ato do parto” (Brisson, 2007, p. 250-251). Entretanto, esse “conhecimento já presente” não é análogo a um filho pronto para ser parido, e sim à potência para o saber e as demais excelências.11 O trecho Smp. 206c1-3, em que tanto a fecundidade corpórea quanto a psíquica são atribuídas a todos os seres humanos, possui uma continuação (Smp. 208e1-209e4) citada parcialmente pelo próprio Brisson (2007, p. 247), na qual lê-se que os fecundos (ἐγκύμονες) apenas no corpo buscam mulheres para a geração de filhos (παιδογονίας), enquanto os fecundos na psique (οἳ ἐν ταῖς ψυχαῖς κυοῦσιν) voltam-se para aquilo que convém à psique conceber e parir (ἃ ψυχῇ προσήκει καὶ κυῆσαι καὶ τεκεῖν). Dessas três ocorrências de termos associados a κυεῖν, as duas primeiras referem-se ao educador, e a terceira à pessoa sendo educada, sugerindo que ambas as funções implicam uma fecundidade natural análoga à potência para a vida presente de forma embrionária em todos os seres humanos (Sheffield, 2001, p. 15, n. 20).

A despeito de o estado inicial ser a inseminação ou a prenhez, um terceiro evento pertencente à mesma classe de fenômenos é mencionado no Teeteto. Aqueles que filosofam à moda socrática “por conta própria e a partir deles mesmos descobrem e trazem à luz muitas e belas coisas” (αὐτοὶ παρ' αὑτῶν πολλὰ καὶ καλὰ εὑρόντες τε καὶ τεκόντες, Tht. 150d7-8), enquanto os desconhecedores desse aspecto de sua arte, por não darem o devido crédito à divindade, ou por desprezarem Sócrates, ou por se renderem à opinião de terceiros, distanciam-se dele e sofrem um aborto espontâneo (λοιπὰ ἐξήμβλωσαν, Tht. 150e4). Com essa observação, Sócrates compara a uma gestação abreviada aquilo que Sedley denomina “crítica formal de definições”.12 Segundo a explicação de Sócrates (Tht. 150b9-c3), a parte mais elevada (μέγιστον) de sua técnica “é testar (βασανίζειν) de múltiplos modos (παντὶ τρόπῳ) se o entendimento dos jovens (τοῦ νέου ἡ διάνοια) está prestes a parir (ἀποτίκτει) um simulacro e uma falsidade (εἴδωλον καὶ ψεῦδος) ou algo produtivo e verdadeiro” (γόνιμόν τε καὶ ἀληθές). Além do excerto supracitado, Sócrates volta a se referir ao aborto pouco antes de iniciar a prova de fogo do jovem Teeteto (Tht. 151b6-c5):

[Sócrates] - Se te expus tudo isso, meu caro Teeteto, com tantas minúcias, foi por suspeitar que algo aí dentro está no ponto de vir à luz (ὠδίνειν τι κυοῦντα ἔνδον), como tu mesmo desconfias. Entrega-te, pois, a mim, como a filho de parteira que também é parteiro (πρὸς μαίας ὑὸν καὶ αὐτὸν μαιευτικόν), e quando eu te formular alguma questão, procura responder (ἀποκρίνασθαι) a ela do melhor modo possível. E se, no exame de alguma coisa que disseres (σκοπούμενός τι ὧν ἂν λέγῃς), depois de eu verificar que não se trata de um produto legítimo mas de algum fantasma sem consistência (εἴδωλον καὶ μὴ ἀληθές), que logo arrancarei e jogarei fora (ὑπεξαιρῶμαι καὶ ἀποβάλλω), não te enraiveças (μὴ ἀγρίαινε) como as mães de primeira viagem em torno do filho (ὥσπερ αἱ πρωτοτόκοι περὶ τὰ παιδία).

Sócrates solicita que o jovem expresse discursivamente o que aprendeu e se submeta à sua arte maiêutica sem se enraivecer (μὴ ἀγρίαινε) caso o que carrega sucumbir ao exame, o qual, portanto, admite duas classificações, na medida em que pode ser um “simulacro e uma falsidade” (εἴδωλον καὶ ψεῦδος, Tht. 150c2; εἴδωλον καὶ μὴ ἀληθές, Tht. 151c3-5) ou algo “produtivo e verdadeiro” (γόνιμόν τε καὶ ἀληθές, Tht. 150c3) e, caso se enquadre na primeira classificação, precisa ser abortado (Tht. 151c4-5). O trabalho de parto de Teeteto é composto por abortos sucessivos, como o ilustra Tht. 157c4-d5, passagem em que Sócrates volta a opor as duas possibilidades de resultado da investigação, sendo que dessa vez o simulacro é ilustrado como “vazio” (ἀνεμιαῖον), enquanto verdadeiro é descrito novamente como “produtivo” (γόνιμον). As observações de índole ética que Sócrates faz ao findar da obra,13 que aludem ao estado da pessoa que passa pela experiência fundamental da consciência da própria ignorância, apontam para a via alternativa ao aborto, que é o parto bem-sucedido. No entanto, essa possibilidade parece não ocorrer nesse diálogo. Teria, contudo, Sócrates apenas ministrado abortos? Uma possível resposta é que, ao contrário do aborto, o parto bem-sucedido não acontece em tempo real, por assim dizer, mas exige um tipo adicional de experiência, mencionada no Banquete.

A proximidade de conteúdo entre o Teeteto e o Banquete não parece ser acidental: antes, cada diálogo fornece elementos para a compreensão de uma analogia entre a reprodução sexual humana e a educação. No entanto, há uma diferença crucial entre os dois casos: enquanto o Teeteto apresenta a figura do parteiro que executa um procedimento obstetrício em um jovem cuja psique já está prenhe, o modelo educacional delineado no Banquete apresenta dois tipos de amantes que desempenham a função de educadores de jovens. O primeiro tipo procede de forma análoga a um homem que busca uma mulher para, com ela, engendrar um filho, enquanto o segundo concilia a educação de jovens com uma prática ascensional sob a supervisão de uma condutora. Ambos os tipos de amante são descritos via analogia com a imagem do casal que engendra um filho, o que indica haver um caráter dialógico na prática descrita por Diotima. No entanto a arte maiêutica de Sócrates não é mencionada diretamente pela sábia, bem como a metáfora do aborto não aparece no discurso de Diotima. Ela, contudo, menciona o engendramento de filhos psíquicos em três momentos.

O primeiro é no contexto de uma relação educacional descrita na parte final dos Mistérios Menores, ao tratar do primeiro tipo de “jovem fecundo na psique” (νέου ἐγκύμων ᾖ τὴν ψυχήν, Smp. 209b1): tendo chegado a idade adequada, ele “sente desejos de engendrar e procriar” (τίκτειν τε καὶ γεννᾶν ἤδη ἐπιθυμῇ, 209b2) e “busca por toda a parte a beleza para nela gerar” (ζητεῖ δὴ οἶμαι καὶ οὗτος περιιὼν τὸ καλὸν ἐν ᾧ ἂν γεννήσειεν, Smp. 209b2-3). Posto que em Smp. 209b5 se diz de um amante que procura corpos belos em detrimento de feios para neles realizar uma ação, novamente parece pouco plausível que o sentido seja “aquele que está prenhe”. Sendo assim, a passagem sugere que a fecundidade do amante é excitada pela presença da beleza.

Outro termo do mesmo campo semântico aparece nas linhas seguintes, quando Diotima diz: “em contato com a beleza [sc. da psique do jovem sendo educado], segundo penso, e com ela convivendo, engendra e gera o que desde há muito carregava” (ἁπτόμενος γὰρ οἶμαι τοῦ καλοῦ καὶ ὁμιλῶν αὐτῷ, ἃ πάλαι ἐκύει τίκτει καὶ γεννᾷ, Smp. 209c2-3). Os verbos ἁπτόμενος e ὁμιλῶν, relacionados ao contato físico e ao convívio íntimo, sugerem que o sentido do verbo τίκτει é “engendra” e não “dá a luz”; embora seja o mesmo verbo usado para se referir ao parto no Teeteto, seu sentido varia na medida em que descreve tanto a contribuição do pai quanto a da mãe no ato de “fazer um filho”.14 Uma vez que Diotima se refere previamente a “estar carregando algo” no contexto de uma descrição da inviabilidade de uma ejaculação por conta da ausência de beleza no polo receptivo (τὸ κύημα χαλεπῶς φέρει, Smp. 206d7), é mais plausível que o verbo ἐκύει se refira à capacidade de fecundar a psique da pessoa a que são endereçados os discursos educacionais do amante.

O tipo descrito por Diotima possui uma relação transfigurada com a beleza mesmo no nível corpóreo porque busca contemplá-la em seus invólucros carnais, ao invés de se deleitar sexualmente com esses belos corpos, sendo capaz de redirecionar por completo sua potência erótica para a educação da pessoa amada (Smp. 209b8): imediatamente (εὐθὺς), cria espontânea e fluentemente (εὐπορεῖ) discursos (λόγων) sobre a excelência (περὶ ἀρετῆς), incluindo a prudência (φρονῆσεως, Smp. 209a6), a moderação (σωφροσύνη, Smp. 209a8) e a justiça (δικαιοσύνη, Smp. 209a8), bem como sobre os deveres e ocupações de homens nobres (καὶ περὶ οἷον χρὴ εἶναι τὸν ἄνδρα τὸν ἀγαθὸν καὶ ἃ ἐπιτηδεύειν, Smp. 209b8-209c2). Esse amante é fértil com sementes (κυήματα) daquilo que é apropriado à psique conceber, i.e., sabedoria (φρόνησίν) e o resto da excelência (τὴν ἄλλην ἀρετήν, Smp. 209a3-4), sementes essas que são carregadas por poetas (ποιηταὶ) e inventores (γεννήτορες). No entanto, como Pender observa (1992, p. 80), ao falar sobre os “filhos intelectuais” desse amante, Sócrates evita a imagética da semente e enfatiza a contribuição do pai, deixando de lado o papel da mãe: receber a semente e carregar a criança.

O amante dos Mistérios Menores,15 todavia, é superado pelo amante ascensional, que busca a consumação do processo de se tornar humanamente sábio e excelente por meio da ascensão à Ideia da Beleza, que inclui a prática de ações belas, boas e justas. Além dessa atividade, que é denominada “correto amor dos jovens” (ὀρθῶς παιδεραστεῖν, Smp. 211b5-6), o amante ascensional, sob a supervisão de uma “condutora” (ἡγούμενος, Smp. 210a7), realiza uma ascensão que envolve contemplação e generalização (Price, 1990, p. 39) de diferentes níveis de coisas belas (Smp. 210a7-e3), bem como geração de discursos, até o iniciado ser capaz de contemplar a Ideia da Beleza em si mesma. Após descrever a visão e as características da Ideia (Smp. 210e3-211d3), Diotima diz:

[Sócrates] - Não compreendes - acrescentou [Diotima] - que é somente nesse estado, quando contempla a Beleza com o órgão que a deixa visível, que ele [sc. o amante ascensional] fica em condições de gerar (τίκτειν), porém, não simulacros da excelência (οὐκ εἴδωλα ἀρετῆς), porque o seu olhar não se fixa em simulacros (οὐκ εἰδώλου ἐφαπτομένῳ), mas a verdadeira (ἀληθῆ) excelência, fixando-se na verdade? (τοῦ ἀληθοῦς ἐφαπτομένῳ·, Smp. 212a2-7).

Eis a etapa do parto bem-sucedido: conforme Diotima, essa visão espetacular tem por consequência a geração da verdadeira excelência, na medida em que o amante atinge a verdade, e não simulacros. É notável que essa distinção mencione as mesmíssimas palavras da classificação dos filhos psíquicos do Teeteto (εἴδωλα ἀρετῆς é oposta à ἀληθῆ ἀρετῆς, assim como εἴδωλον é oposto a ἀληθές em Tht. 150c2-3). Ao contrário dos simulacros abortáveis, a excelência inspirada pela visão da Beleza seria aprovada pelo exame socrático, pois essa “geração”, embora seja expressa via analogia com a reprodução, acontece em uma esfera que não é a da reprodução humana, na medida em que a Ideia é transcendente.16 Logo, ambos os amantes “mais fecundos na psique” se devotam ao aperfeiçoamento dos jovens (ποιήσουσι βελτίους τοὺς νέους, Smp. 210c2-3) por meio da geração de discursos (Smp. 210a8-9: γεννᾶν λόγους καλούς; 210c1: τίκτειν λόγους; 210d5: λόγους [...] τίκτῃ), no entanto apenas o amante ascensional segue uma prática regrada e supervisionada, além de gerar seus discursos sob inspiração da Ideia da Beleza.

É possível que os verbos γεννᾶν e τίκτειν sejam deliberadamente ambíguos: se são metáforas para os discursos sobre a excelência criados para a educação dos jovens, então, sob certo ponto de vista o amante está parindo os frutos de sua excelência,17 mas da perspectiva do educando esses discursos são análogos a sementes que devem germinar em suas psiques. O casal humano é uma metáfora para a relação dialógica: tanto a fecundidade da pessoa que educa quanto aquela da pessoa educada, ambas necessárias para a aquisição da sabedoria e da excelência, são potências presentes em ambos, e não uma posse restrita ao educador e passível de transmissão ao educando. No entanto, isso não significa que o educando deve se contentar com reproduzir os discursos de seu mestre: a ascensão à Ideia da Beleza é uma experiência paradoxal em que uma condutora (Diotima) orienta a formação de um educador (o jovem Sócrates). O amante ascensional não é o filósofo formado nem o jovem a ser educado, mas um intermediário que está aprendendo a ensinar, sendo esse o possível motivo da ambiguidade entre prenhez e fecundidade como sentidos de κυεῖν. O amante ascensional dá à luz inspirado pela Beleza, mas não sem ter antes sido educado por meio de sementes discursivas - e não sem depois parir filhos intelectuais que são, também, sementes.18

Cumpre apontar, contudo, que esse aspecto sexual é um pano de fundo metafórico e não pode ser interpretado literalmente como se as relações educacionais descritas nas obras citadas fossem algum tipo de “sexo intelectual”. Pelo contrário, sendo a filosofia uma experiência humana que consiste em um tipo de amor e que acontece por meio do diálogo entre duas pessoas, a interação é figurada a partir da prática humana do amor pela beleza em seu nível corpóreo. Por se tratar, contudo, de uma prática educacional, a imagética da reprodução sexual é transferida para a esfera psíquica como forma de indicar que essa relação dialógica mobiliza a mesma potência sexual envolvida na relação amorosa física, ainda que redirecionada para diferentes tipos de beleza, e que instaura na pessoa sendo educada um processo em que recursos embrionários precisam passar por diferentes estágios para atingir maturação.

Por fim, a última etapa equivale ao cuidado para com os filhos intelectuais e sua correta nutrição,19 e parece ser tão crítica quanto as demais, visto ser enfatizada em um excerto que cita nominalmente discípulos cujos filhos intelectuais se tornaram delinquentes:

Sócrates - Muitos, por ignorarem (ἀγνοήσαντες) isso, e presumindo ser eles mesmos a causa (ἑαυτοὺς αἰτιασάμενοι) [das descobertas], ou por me desprezarem, ou persuadidos por terceiros, afastam-se de mim mais cedo do que o devido, indo embora igualmente o que haviam concebido, abortado (ἐξήμβλωσαν) por conta de companhias deletérias (πονηρὰν συνουσίαν), sendo destruído o que por minha ação veio a parto (ἐμοῦ μαιευθέντα) por nutrição inadequada (κακῶς τρέφοντες). Criam com maior abundância falsidades e simulacros do que verdades (ψευδῆ καὶ εἴδωλα περὶ πλείονος ποιησάμενοι τοῦ ἀληθοῦς), vindo a parecer ignorantes (ἀμαθεῖς) para eles mesmos e para estranhos (Tht. 150e1-151a1).

Alguns dos filhos intelectuais engendrados e que Sócrates ajudou a parir, apesar de virem à luz, não vingam da forma esperada, sendo três as razões para tanto: (i) má companhia; (ii) falta de alimentação adequada; e (iii) um erro de valoração que faz o estudante pensar ser mais digno de cuidado um produto enganoso do que os frutos verdadeiros, observação cujo sentido provavelmente se refere ao mau uso dos ensinamentos retóricos de Sócrates. Não obstante, a importância da nutrição (τρέφειν) dos rebentos intelectuais volta a ser mencionada em Tht. 160e5-161a4. No Banquete, essa etapa é mencionada a propósito do amante dos Mistérios Menores, quando Diotima diz que o rebento gerado é criado em comum com essa pessoa (καὶ τὸ γεννηθὲν συνεκτρέφει κοινῇ μετ' ἐκείνου, Smp. 209c4) a quem a educação é endereçada, e que esse filho psíquico é “mais belo e mais imortal” (καλλιόνων καὶ ἀθανατωτέρων παίδων, Smp. 209c6-7) do que os gerados pelo corpo, o que novamente indica uma produção em conjunto, e não a parturição de um filho que já estava pronto.

À luz do que foi explicitado na exposição precedente, uma observação natural concerne a uma peculiar regularidade linguística encontrada em três obras que compartilham o detalhe de não ter Sócrates como protagonista, a saber, Parmênides, Timeu e Sofista, nos quais as palavras ἰδέα, εἶδος e γένος são usadas como sinônimos. Notavelmente, nessas obras a noção de “ideia” é entendida como “um sobre muitos” (cf. ἓν ἐπὶ πολλοῖς, Prm. 131b9; ἐκ πολλῶν [...] εἰς ἓν, Phdr. 249c1-2).20 Salta aos olhos, e.g., a expressão τὰ γένη τε καὶ εἴδη, enunciada por Parmênides no diálogo homônimo (Prm. 135a8). A noção de γένος se encaixa perfeitamente como um elemento adicional da alegoria sexual de que trata este artigo. A palavra γένος deriva do verbo γίγνεσθαι e, originalmente, significa “raça” (race), “cepa” (stock) ou “parentesco” (kin), podendo ser definida como “origem comum de um indivíduo pertencente a uma linhagem”. Além de estar implicada nas genealogias, é a palavra usada por Hesíodo para distinguir a “geração” dos deuses e a dos seres humanos (cf. Thg. 21; 33; 44: θεῶν γένος αἰδοῖον πρῶτον κλείουσιν ἀοιδῇ).21

Segundo a explicação de Sócrates (Tht. 150b9-c3), a parte mais elevada (μέγιστον) de sua técnica “é testar (βασανίζειν) de múltiplos modos (παντὶ τρόπῳ) se o entendimento dos jovens (τοῦ νέου ἡ διάνοια) está prestes a parir (ἀποτίκτει) um simulacro e uma falsidade (εἴδωλον καὶ ψεῦδος) ou algo produtivo e verdadeiro (γόνιμόν τε καὶ ἀληθές). Note-se bem que a palavra vertida por “entendimento” é διάνοια, a mesma que é associada aos objetos matemáticos e demais procedimentos dependentes de hipóteses na Linha Dividida (Resp. 510d6; 511a3-b2; 511d2-5). Logo, a presença de termos como “testar” ou “pôr à prova” (βασανίζειν) e “entendimento” (διάνοια) possibilitam que o Teeteto seja abordado à luz da distinção entre entendimento e inteligência (νοῦς) da República, estendendo uma ponte que conecta as duas obras máximas de Platão sobre a ἐπιστήμη.22 Uma possível conclusão permitida pela exposição precedente é que os objetos do parto socrático no nível intelectual, principalmente durante o exercício da função abortiva de sua arte maiêutica, são as produções hipotéticas da διάνοια, o que costuma-se denominar “conceito” ou “concepção”, possíveis traduções para γένος - o objeto do parto socrático, devidamente contextualizado pela metáfora sexual com que é apresentada a epistemologia platônica, bem como diferenciado das Ideias transcendentes.

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  • TORRANO, J. (1991). Hesíodo. Teogonia (tradução). São Paulo, Iluminuras.
  • 1
    Futter diz “mundo” (2018, p. 6), mas anteriormente ele havia oscilado entre “mundo do discurso” e “mundo” (2018, p. 4).
  • 2
    A palavra σπέρμα também é citada em Phdr. 277a1.
  • 3
    Por exemplo: ἐγκύμονες (Tht. 151b2); κυοῦντα (Tht. 151b8); κυεῖ (Tht. 184b1).
  • 4
    Ver Sheffield (2002, p. 2; 5): “all human beings are pregnant in both body and soul”. Ver ainda Scott & Welton (2008, p. 127): “So, the sex drive in men seems to be connected with male fertility, which is treated here as a kind of pregnancy”. O Lexicon Platonicum (1835, p. 591) aponta gravidus e praegnans como traduções, listando como ocorrências três passagens do Teeteto (148e, 151b e 210b) e uma do Banquete (210b).
  • 5
    Embora não mencione o problema, Price (1990, p. 28, n. 19) o dribla ao propor que a pessoa sendo educada torna-se “pai adotivo” do rebento.
  • 6
    Robin (1938, p. 61, n. 2) concorda com esse ponto clara e distintamente: “Fecondité, procréation (ici et infra), comme plus haut (b c) enfantement, on, en raison sans doute de leur application à l’âme comme au corps (cf. 208 sqq.), un sens tout à fait général et indépendant de la fonction propre de chaque sexe. Autrement, le passage de d s. fin. et sq. deviendrait inintelligible”.
  • 7
    Ver a tradução de Robin para o passo Smp. 206c1-2 : “Une fecondité, vois-tu, Socrate, existe, dit-elle, chez tous les hommes : fecondité selon le corps, fecondité selon l’âme […]" (Robin, 1938, p. 60).
  • 8
    A TLG apresenta o sentido de κύησις como “conception, joined with γέννησις”. O Lexicon Platonicum (1836, p. 222) também apresenta o sentido de conceptio, mas não lista esse verso.
  • 9
    Esse é sentido apontado no Lexicon Platonicum (1836, p. 222), que lista exatamente o verso 206d para ilustrar a ocorrência da palavra traduzida por fetus. León Robin (1938, p. 61) traduz o verso por “mais il garde le penible fardeau de sa fecondité" (Smp. 206d7).
  • 10
    Contra a interpretação de Pender (1992): cf. Rawson (2006, n. 26, p. 146).
  • 11
    Sheffield (2001, p. 15) descarta a inseminação, mas sua posição é ponderada: “κυεῖν indica especificamente o estado de fecundidade intermediário entre a fertilidade e o nascimento. O sentido da metáfora é que, mais do que ter a capacidade de gerar filhos e, no nível psíquico, poemas e leis, os recursos essenciais para a vida existem previamente no ser humano. Trata-se de um estágio adicional de desenvolvimento físico ou psíquico quando comparado à mera fertilidade” (itálico no original).
  • 12
    “[...] Sócrates nos foi apresentado em exercício em uma área da dialética em que ele é um mestre, como sabido pelos leitores de Platão, a crítica formal de definições” (Sedley, 2004, p. 26).
  • 13
    “Se acontecer de tentares novamente conceber (ἐγκύμων ἐπιχειρῇς γίγνεσθαι), ficarás cheio de melhores frutos, graças à presente investigação. Mas se continuares vazio (κενὸς), serás menos incômodo aos de tua companhia, porque mais dócil e sensato (σωφρόνως), por não presumires saber o que não sabes” (οὐκ οἰόμενος εἰδέναι ἃ μὴ οἶσθα, Tht. 209b11-210c4).
  • 14
    “Os pais” são οἱ τεκόντες, sendo ὁ τεκών “o pai”, e ἁ τεκοῦσα, “a mãe (TLG). Ver ainda Corrigan & Glazov-Corrigan (2004, p. 116-117).
  • 15
    Enquanto o amante psiquicamente fecundo dos Mistérios Menores busca a imortalidade no interior do devir - por meio de poemas, leis e invenções que hão de mantê-lo na memória daqueles que serão melhorados por suas obras (Smp. 209a3-d1), sendo esses os exemplos de parto bem-sucedido dos rebentos desse tipo de amante - a exemplo de figuras como Homero e Hesíodo, Licurgo e Sólon (Smp. 209d1; d4; d7) -, o amante ascensional supera os limites impostos pela temporalidade ao criar obras inspiradas pela Beleza transcendente. Para uma visão ponderada sobre essa diferença, ver Sheffield (2002, p. 7-10).
  • 16
    Ver Smp. 211e1: αὐτὸ τὸ καλὸν ἰδεῖν εἰλικρινές. Ver Sheffield (2002, p. 17): […] a beleza age como uma ocasião para o amante parir (to bring forth his pregnancy) e não é uma parceira geracional”.
  • 17
    Ou seja, contra a interpretação da Futter (2018), também haveria parto de produções discursivas, como atestam as passagens citadas.
  • 18
    A metáfora da semente reaparece no Fedro, em que simboliza precisamente discursos semeados na psique de outrem (Phdr. 276e5-277a4).
  • 19
    Esse aspecto da analogia é enfatizado por David Sedley (2004, p. 5).
  • 20
    “Platão usa com frequência γένος e εἶδος como sinônimos, mormente nos diálogos tardios, para se referir às Formas inteligíveis” (Granieri, 2021, p. 1, n. 3).
  • 21
    Para um uso em sentido semelhante, cf. Phdr. 246d7: τὸ τῶν θεῶν γένος οἰκεῖ. Ver D’Antuono (2019, p. 516ss).
  • 22
    Esse tópico conecta as duas obras ao Banquete. O amante deve ser conduzido, antes da visão final da Ideia da Beleza, à contemplação da beleza das ciências (ἐπὶ τὰς ἐπιστήμας ἀγαγεῖν, ἵνα ἴδῃ αὖ ἐπιστημῶν κάλλος, Smp. 210c6-7). Quando descreve a etapa da revelação da Beleza, Diotima diz, na tradução de C. A. Nunes, que o amante vê a Beleza com o “órgão que a deixa visível” (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν, Smp. 212a2-5), sendo esse “órgão” - termo inserido por Nunes para facilitar a tradução - o νοῦς, a faculdade relativa ao segmento superior do domínio inteligível, capaz de ver o que é livre de hipóteses (ver Sheffield, 2002, p. 24, n. 34). Termos para visão abundam em referência à Ideia: κατόψεταί (210e4); θεωμένῳ (211d2); κατιδεῖν (211e4); βλέποντος (212a1). Por fim, na medida em que as etapas que precedem a revelação final da Ideia da Beleza são “generalizações sobre a qualidade da beleza em cada nível” (Sheffield, 2002, p. 19-20), a distinção entre entendimento e inteligência também está implicada, porque as generalizações são produtos da διάνοια (ver. συγγενές, Smp. 210c5).
  • BAIL, R. (2025). Parto de ideias: a epistemologia platônica como metáfora sexual. Archai 35, e03512.
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  • Editora:
    Pilar Spangenberg

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2024
  • Aceito
    13 Jan 2025
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