Resumo:
Na Antiguidade greco-romana, notadamente no bojo do pensamento filosófico, o sonho constitui a interface entre o mítico-religioso e o psíquico-racional, geralmente indicando seu lugar de intersecção. Por isso, tendem a ser beneficentes, prevendo tragédias ou inclusive permitindo a aplicação de terapias curativas; no entanto, podem remeter simplesmente às vicissitudes próprias da psique, indicando um estado de confusão e tanto do ponto de vista de um desvio ou obnubilação da razão desperta, quanto, e como seu corolário, da incapacidade de exercer o conhecimento e acessar o real. Sêneca, demonstrar-se-á aqui, é o porta-voz dessa última perspectiva.
Palavras-chave:
Sêneca; sonho; conhecimento
Abstract:
In Greco-Roman antiquity, particularly within the realm of philosophical thought, dreams represent the interface between the mythical-religious and the psychic-rational, generally showing their point of intersection. As such, they tend to be beneficent, foreseeing tragedies or even enabling the application of healing therapies. However, they may also simply reflect the vicissitudes inherent to the psyche, indicating a state of confusion - either from the standpoint of a deviation or clouding of waking reason or, as its corollary, the inability to exercise knowledge and access reality. Seneca, as will be demonstrated here, is the spokesperson for this latter perspective.
Keywords:
Seneca; dream; knowledge
Premissa à questão do sonho em Sêneca
Determinar a natureza e a função dos sonhos na obra de Sêneca parece ser, à primeira vista, um empreendimento pouco promissor. Isso se deve tanto à escassa recorrência do tema em seus escritos quanto, principalmente, ao seu desinteresse em atribuir aos sonhos qualquer valor positivo ou propositivo para o sujeito. Essa postura se manifesta tanto na rejeição de uma possível conexão dos sonhos com o mundo divino quanto na negação de seu caráter puramente humano salutar, seja como instrumento de aprimoramento psíquico ou psicofísico em benefício da pessoa.
Com efeito, em Sêneca, os sonhos não possuem qualquer aspecto sagrado, divinatório ou interveniente com o mundo dos deuses ou com entidades espirituais menores. Eles não operam, portanto, como um meio capaz de conectar o ser humano a forças externas que possam orientá-lo, perturbá-lo ou transportá-lo para uma realidade espaço-temporal diferente daquela em que vive - limitada, ab initio, à condição presente do sujeito. Não obstante, quando perscrutados sob a perspectiva interna- isto é, compreendido enquanto imagens oniricamente dispostas, em contraposição à vida desperta, moldada pelas percepções e sensações exteriores-, o sonho é visto por Sêneca como ocasião para o autoengano e para a fantasia, um epifenômeno que leva ao afastamento e à distorção do real, sobretudo pela não exação da razão e de seu juízo hegemônico. Como um desdobramento desse aspecto, o sonho tampouco será terapêutico como consideraram alguns pensadores (como se verá na sequência) da Antiguidade, pois, mais do que acusar as enfermidades da alma para seu cuidado, é o próprio sonho que as permite.
Diante dessas considerações preliminares e ainda gerais, pensamos ser imperativo abordar a concepção do sonho no mundo greco-romano - mesmo que de modo panorâmico-, a fim de precisar não apenas sua natureza polissêmica, mas afirmá-lo desde uma perspectiva em que o fenômeno onírico possa ser uma experiência tão própria do dormente quanto do desperto. Daí as polissêmicas interpretações oferecidas pelos pensadores do período clássico e helenístico que influenciaram Sêneca.
Em qualquer caso, a análise preliminar dos sonhos na Antiguidade que aqui se propõe permitirá compreender melhor não apenas suas múltiplas manifestações por parte da literatura antiga, como também os diversos juízos que sobre elas foram construídos ao longo do tempo. Por intermédio desse percurso, poder-se-á alcançar Sêneca e, a partir de seu pensamento, entender o fenômeno do sonho em sua maior complexidade no interior de sua obra.
Os sonhos no mundo greco-romano. Da experiência “objetiva” sagrada à crítica filosófica.
Considerado ora como uma ilusão ou engano, ora como uma experiência reveladora de realidades ou de uma sabedoria oculta, os sonhos são, para os gregos antigos, um desafio. Constituíam-se como um enigma a ser interpretado e compreendido quando a razão consciente ver-se-ia confrontada com um fenômeno de natureza diversa ou mesmo alheia à sua lógica (Guidorizzi, 1988a, p. VII). Apesar disso, a conexão causal e/ou necessária entre o mundo onírico do dormente e a realidade da vigília era amplamente aceita na Antiguidade. Isso se justificava porque os sonhos permitiam uma revisitação dos sentidos experenciados em vigília, ou seja, agora apropriados, ou melhor, revisitados pela lógica própria da experiência onírica. Muitas vezes eles se constituíam como um ponto de relação entre o sagrado e o humano. É nesse último aspecto que se insere o exemplo paradigmático da incubatio, ritual praticado no templo de Asclépio - entre outros santuários -, no qual os sonhos assumiam um papel revelador e, não raro, terapêutico:
Em relação aos sonhos, a atitude dos antigos parece ter sido considerada de maior participação emotiva; geralmente o sonho (ao menos certos sonhos) via-se acompanhado a estados de ânsia ou angústia da parte de quem o experienciava; além disso, os sentimentos descritos são de terror, alegria, exaltação, e o choque emotivo provado por muitos pacientes durante um sonho incubatório era tal que poderia produzir a cura de doenças psicossomáticas, como gravidez histérica, paralisia, perda da elocução. (Guidorizzi, 1988a, p.IX).1
A intersecção entre a realidade desperta e a onírica poderia ver-se melhor anuída pelos sonhos coletivos, isto é, sonhos que se acreditavam participados por diversos indivíduos e confirmados por transmitirem uma mesma revelação de caráter premonitório. (Guidorizzi, 1988a, p. VII).
Evento psíquico ou sobrenatural - decorrente das condições da existência interior ou fruto de uma determinação divina ou demoníaca -, o sonho deveria ser interpretado não só em relação ao seu conteúdo, mas quanto à origem e à natureza causal de seu fenômeno. Poder-se-ia, então, definir que, no mundo antigo, dois seriam os modos principais de compreender os sonhos: 1) O psicobiológico, fenômeno devido à própria compleição psíquica do indivíduo; 2) O sobrenatural, como “fato objetivo” (Dodds, 2002, p.107) em que se permitia entrar em contato com o mundo dos espíritos ou dos deuses (Miller, 2002, p. 63). Dois modos particulares de interpretação, todavia, não excludentes, sobretudo em função de sua polissemia e suas diversas formas de compreensão. Embora o sonho objetivo, de origem divina, fosse o mais característico na época arcaica - atestado pela poesia homérica-, uma vez que, nesse período, o fenômeno onírico é quase sempre devido a intervenção de um ente divino, ele também não deixou de ser assim aceito em épocas posteriores, como veremos. Ou seja, essa concepção dos sonhos, como manifestação divina ou demoníaca, sobreviveria posteriormente e inclusive em meio às reflexões filosóficas, especialmente as mais racionalistas, e em ambientes de cunho “científico”, como os círculos médicos.
Isso se verifica inclusive entre os estóicos antigos, que em sua maioria negavam a existência para além da corporeidade, sutil ou material (Gourinat, 2017, pp. 26-27). Portanto, uma realidade que se configurava necessariamente como fenômeno físico ou psíquico-físico, sendo o sonho entendido como uma outra forma de aferição do real, notadamente em contraposição à realidade fenomênica. Isto é, se admitia a presença ou a incursão de imagens ou entes oriundos do mundo divino ou supra-humano. Este é o caso de Posidônio - de quem ainda falaremos aqui - e do estoico romano Marco Aurélio, que faz referência em suas Meditações à capacidade do deus Asclépio (Esculápio, entre os romanos) de prescrever exercícios para a cura de uma enfermidade (M. Aur., 5,1,8).
Em todo caso, a perspectiva do sonho como visitação de um ente divino ou do espírito de um ente morto, colocava o sujeito em uma posição de intersecção entre dois mundos e, assim, entre duas categorias existenciais estranhas entre si, mas não distintas. Portanto, negar a realidade sobrenatural ou divina do sonho, é confinar o homem a um só mundo. E dado que a Antiguidade não só não negava a existência do mundo divino senão o afirmava por sua relação quase sempre causal e ordinária no mundo humano -excetuando algumas escolas como o epicurismo que, se não negava a existência dos deuses, afirmava a sua não vinculação com o mundo humano-, somente um número reduzido de pensadores afirmou que os sonhos não teriam nenhuma relação com o divino, ou seja, era um fenômeno de todo dependente da condição humana e de suas propriedades, fossem psíquicas ou físicas. Aristóteles foi, talvez, o único ou o mais explícito pensador grego, da época clássica, que, tendo cuidado do fenômeno do sonho, negou-lhe origem e natureza sobrenatural e, logo, o explicou segundo um processo de ordem psicobiológica (Miller, 2002, p. 64). Para tanto, escreveu ao menos três opúsculos sobre o sono e o sonho, contidos na obra Parva Naturalia, entre eles, o tratado “De divinatione per somnum” que dá especial destaque à natureza divinatória dos sonhos. Em paralelo, adiantemo-nos em dizer que Platão oscilou entre ambas as perspectivas, ou seja, a perspectiva humana e psíquica e a que entende o sonho como fenômeno sobrenatural. Portanto, a concessão platônica do sonho como sendo de ordem divina, não é unívoca, por isso mesmo, não é coerente diante do seu corpus, isto é, tendo em vista seus diferentes Diálogos (Vegleris, 1988, p. 103).
Pode-se dizer que, em Platão, o sonho possui uma natureza ambígua do ponto de vista das condições para sua efetuação, embora não necessariamente distinta. No primeiro caso, o fenômeno onírico aparece como produto da mente humana, que se apresenta em estado dormente. No segundo, verifica-se como uma espécie de torpor durante o estado desperto, contudo, indicativo de um afastamento ou de uma confusão mental em relação à realidade sensível, da maneira como ela é experimentada e conhecida em estado de vigília, seja pela via da percepção ou do pensamento. Portanto, o fenômeno onírico, em qualquer caso, se refere a um estado de afastamento duplo do real, ou seja, das ideias suprassensíveis alcançáveis, ainda que indiretamente, pelo pensamento racional desperto, mas, também, por sua incapacidade de melhor ajuizar sobre sua participação no mundo fenomênico que é uma cópia saída do modelo devido às ideias arquetípicas. Consequentemente, e em qualquer um dos casos, o sonho é afastamento do real, conforme Platão sugere no seguinte excerto:
Quem aceita a existência das coisas belas, porém nem acredita que possa existir a beleza em si mesma, nem admitiria que o levassem até esse conhecimento, és de opinião que vive a sonhar, ou que esteja acordado? Reflete um pouco: sonhar, para alguém, quer esteja dormindo quer esteja desperto, não consiste em tomar a imagem de alguma coisa, não pelo que ela é como imagem, mas pela própria coisa em si como aparece?
Eu, pelo menos, respondi, direi que um indivíduo nessas condições está sonhando (Pl., Resp., 476c).
O real é, para Platão, a ideia que se encontra nas coisas por participar de sua imagem, ou seja, não participando efetivamente da sua realidade sensível ela mesma (Mattéi, 2010, p. 71). Por isso, no sonho, quer em estado de torpor ou de sono propriamente dito, o que parece como verdadeiro é a imagem das coisas não fundamentadas pelo conhecimento racional. Logo, se pela percepção passiva do que é físico o verdadeiro real não é atingido, pois só pode ser verdadeiramente via o logos, no sonho, esse afastamento dá-se de forma ainda mais grave, pois será o próprio sensível apresentado pelo irracional. Portanto, o real é atingido pelo pensamento que acessa a essência das coisas e que só é possível ao homem desperto e duplamente desperto. Ou seja, enquanto por seu estado vigilante e nele capaz de ir além da simples percepção das coisas e dos eventos imediatamente apresentados pelo sensível. É imperativo aqui fazermos um adendo, para chamar a atenção para o fato de que a metafísica transcendentalista platônica, claramente exposta nesse excerto como sendo o fundamento de todo conhecimento verdadeiro ou do real, dará lugar, em Sêneca, a uma metafísica da imanência. O pensador romano atribuirá também ao sonho um valor negativo ou de afastamento do real, mas, nesse caso, determinando o melhor acesso ao real ao próprio intelecto -ratio- humano e não devido a um intelecto divino e transcendente.
Por tudo isso, Platão considera “o sonho como uma opinião falsa, como um juízo que se deixa enganar pela aparência, e por isso se opõe ao conhecimento” (Vegleris, 1988, p.105). Segue-se que, tanto em estado de vigília quanto em estado de sono, não se está diante do real, mas somente de sua imagem, embora em estado desperto em melhor possibilidade de atingi-la pelo pensamento eficiente. Logo, a vida desperta e a vida onírica não diferem por encerrarem, embora em graus distintos como vimos, uma mesma ambiência fundada na opinião ou na impossibilidade de se chegar à verdade. Verdade que é da ordem da ideia pura e não do sensível, fruto da pura afetação, ou inclusive, do pensamento enquanto abstração pela singular subjetivação devida ao aparelho psíquico-cognitivo humano. Essa parece ser a consequência extraída do diálogo entre Teeteto e Sócrates, diante da sempre imperativa questão sobre os meios e os limites impostos pelo mundo sensível, com o objetivo de se chegar à verdade ou ao conhecimento puro das ideias (Pl., Tht., 158c).
Já nos Diálogos, Críton (44b) e Fédon (60e), Platão também considera o sonho como passível de revelar algo escondido, prever acontecimentos futuros e comunicar-se com os deuses. Aqui reaparece a categoria dos “sonhos objetivos”, testemunhando a receptividade, senão a passividade do sujeito que sonha em relação a uma força ou entidade estrangeira que se impõe (Fronterotta, 2020, p. 61; Vegleris, 1988, p. 111), ou que se manifesta geralmente como um oráculo (Cavini, 2009, p. 746). Entretanto, prevalece nos diálogos platônicos, do ponto de vista de uma discussão que implica uma axiologia que vai da realidade transcendente até seu manifestar-se nos sonhos, passando pelo sensível, a asserção de que a absoluta capacidade de conhecer o real, só se daria no âmbito da transcendência, enquanto nos sonhos ela esvair-se-ia o mais completamente. É por isso que as imagens dos sonhos se conjugam, por sua natureza, com aquelas dos pintores e dos poetas para Platão (Fronterotta, 2020, p. 74).
Também os estóicos antigos, especialmente Crisipo, atribuíam aos sonhos uma falsa representação do real, ou um afastamento mais grave dele. Enquanto a representação mental, fosse a cataléptica ou a racional (Alesse, 2018, p.151), confirmava a realidade ora pela via da percepção compreensiva da coisa em si, ora pela representação ela mesma como causa final, a razão hegemônica a apresentava por sua natureza e valor moral, que é o que importava para os estóicos, pois contribuíam efetivamente para o bem ou o mal do sujeito, tornando-o, aliás, mais agente do que paciente nesta relação (Sen., Ep., 66, 35). Destarte, a representação dos sonhos não possuía nenhuma dessas naturezas, nem eficiente para o conhecimento da realidade sensível, nem no sentido de atingir e modificar a existência interior do humano para seu melhor incremento moral.
A apresentação difere da imaginação arbitrária. Esta última é na realidade uma visão falsa da mente como acontece nos sonhos, ao passo que a apresentação é impressão na alma, ou seja, um processo de modificação, como admite Crisipo no segundo livro de sua obra Da Alma. (D.L. VII, 50).
Entretanto, o mesmo Crisipo, segundo Cícero, teria concedido um valor propositivo ao sonho, sobretudo acerca da sua natureza premonitória. Segundo o pensador romano, Crisipo se expressou da seguinte maneira: “a interpretação dos sonhos: é a capacidade de identificar e explicar isto que os deuses querem comunicar aos homens nos sonhos” (SVF II, 1189). Se haveria uma conexão necessária entre a razão divina e a humana na medida em que ambas poderiam coparticipar de uma mesma razão, tal relação com o divino poderia ser também de uma ordem mais que causal, consubstancial (Burnet, 2019, pp. 26-27). Disso advém a concepção de que o homem estava constituído por uma alma toda ela racional, sendo praticamente um deus presente na condição humana (SVF II, 1198). Crisipo havia escrito ainda um livro sobre os sonhos em que, pelo que se aduz das informações de Cícero, se concedia algum valor à sua capacidade divinatória, como concluiu William Harris (2018, p.181). Por sua vez, os representantes do estoicismo médio, Panécio de Rodes e Posidônio de Apaméia, não estiveram de acordo quanto à natureza divina ou exterior dos sonhos. Enquanto Panécio pareceu negar ou duvidar seriamente dela, Posidônio com ela assentiu.2
Ao vislumbrarmos mais de perto agora a época romana, sem dúvida é Cícero o autor sobejo no que respeita ao tratamento dos sonhos e de sua natureza. No seu tratado Da adivinhação (De divinatione) Cícero retoma muitos pontos de vista de filósofos e escolas de filosofia anteriores, para, em qualquer caso, refutar a origem divina dos sonhos e seu caráter premonitório. Os sonhos são, de fato, eventos psíquicos, e para tal asserção Cícero apresenta particularmente os argumentos de Aristóteles (Miller, 2002, p. 65). Por conseguinte, no tratado Da adivinhação, o sonho é definido por Cícero como um fenômeno puramente natural do ponto de vista da condição humana, isto é, devido a sua constituição psicofísica e não outra.
Chamo natureza a condição pela qual a alma, nunca em repouso, não pode ser sem agitação e movimento. Quando, pelo cansaço do corpo, a alma não pode fazer uso nem dos membros nem dos sentidos, incorre em visões variadas e confusas, que derivam, como disse Aristóteles, da persistência dos traços disto que fez ou pensou durante a vigília. Da mistura incoerente destas recordações surgem muitas vezes estranhíssimas imagens no sonho; se alguns desses sonhos são falsos, outros, verdadeiros, serei de verdade curioso de saber com qual critério se possa discernir uns dos outros. Se um tal critério não existe, por que irmos a consultar os intérpretes? Se, ao invés, existe um, ansiarei de saber qual é (Cic., Div., 2,128).3
Cícero estende sua crítica aos adivinhos dos sonhos, que afirmam que o fenômeno onírico é um meio ou um lugar privilegiado para a comunicação com os deuses ou entes suprafísicos. O pensador romano conclui que, se está nas mãos de tais pessoas a interpretação dos significados dos sonhos, sem outra possibilidade de critério ou verificação, e se tratando os adivinhos de reconhecidos charlatões, tais interpretações seriam mais devidas a invenção destes que usam de má fé e não, de fato, de uma comunicação efetiva para com o mundo divino. Aliás, segundo Cícero, um e outro devem ser rechaçados, ou seja, a causa divina dos sonhos e sua afirmação charlatã proferida pelos adivinhos.
Em função dessa negativa da origem divina e oracular dos sonhos, Cícero explica posteriormente que, esses são resultados de um movimento da alma quando dada a sua própria e interna satisfação - motu proprio. Durante o sono, defende o filósofo, a alma nunca está em repouso absoluto, nem mesmo durante a noite, quando há, na verdade, uma mudança na sua dinâmica, e não cessação de todo seu movimento, como, também, observa Sêneca (Ep.,56,6). Portanto, a alma voltada a si quando em estado de sono, gestaria imagens internas que obedeceriam a lógica natural deste estado dormente, devidas sobretudo aos impulsos internos suscitados por imagens, também elas internas, em lugar dos impulsos suscitados pelas imagens externas. Tudo isso, além, é claro, de encontrar-se à parte do poder de asserção ou concertação pela razão.4
Não sem óbice, e embora o retórico romano rechace o caráter divino - ou, mais precisamente, divinatório - dos sonhos, ele retoma autores que creditam tal manifestação, concedendo-lhes espaço e atenção às suas perspectivas e posições. Exemplos disso são aqueles que defendiam o caráter terapêutico dos sonhos, os quais poderiam revelar doenças e, assim, prosseguir com sua cura (Cic., Div., 2,123). Todavia, e dado que abundam os exemplos e as críticas de Cícero a respeito dos sonhos premonitórios e de seus respectivos tratamentos, tomamos por bem citar um excerto que possa ser modal para os demais. Nele, revela-se um curioso ponto de vista de Posidônio, indicando que, segundo o estoico, os sonhos premonitórios estariam sobretudo em poder dos moribundos. Como pode ser destacado no excerto abaixo:
Que os moribundos possuam a capacidade divinatória demonstra também Posidônio aduzindo o famoso caso: uma pessoa de Rodes pronta a morrer deu a saber os nomes de seis coetâneos e disse qual desses morreria por primeiro, qual em segundo, e, assim, em seguida, de todos os demais. De três modos, de resto, acredita Posidônio que os homens sonhem por impulso divino: no primeiro, porque a alma prevê de si, uma vez que é unida em parentela com os deuses; no segundo, porque o ar é cheio de almas imortais, nas quais se revelam signos da verdade, por assim dizer, claramente impressos; no terceiro, porque os deuses mesmos falam com os dormentes. E que as almas possam predizer o futuro, é facilmente aceitável por aquelas que estão por morrer, como disse agora. (Cic., Div., 1,64).5
Na sequência, Cícero afirma que tal crença já se encontrava entre os gregos antigos, destacando Homero como o mais proeminente exemplo. Quanto a Posidônio, Cícero retoma suas justificativas, dentre as quais, destacamos a primeira delas: a alma humana é ela mesma divina pela razão; logo, por esta sua condição essencial, poderia desenvolver uma capacidade natural de possuir ou relacionar-se com o plano do divino. Ademais, o ar está cheio de almas imortais, portanto, capazes de acessar a alma dos vivos por intermédio de sua natureza similar. Por fim, os deuses falam com os dormentes, que, especialmente os próximos da morte, se veem ainda mais sensíveis ao mundo divino pela possibilidade de sua urgente contemplação.
Para além de Cícero, deve-se citar, à época de Sêneca, a perspectiva naturalística ou fisiológica, dos sonhos, por parte de Plínio o Velho, que, no seu tratado História Natural, recorre a Aristóteles. Por conseguinte, o pensador dá uma definição que insiste muito mais na natureza interior - ou, psíquica - do sonho, do que na sua relação a partir dos eventos sobrenaturais ou intercomunicante com eles: “o sonho não é outra coisa que a alma retirada em seu próprio interior” (Plin, HN,10, 98, 212). Vale dizer que a referência que faz Plínio ao sonho não nos permite uma análise mais estendida por duas razões: sua própria referência marginal a esse fenômeno e, e sua menção ser, da nossa parte, somente mais um endosso da perspectiva “objetiva do sonho.”
O triunfo da perspectiva gnosiológica e moral no tratamento do sonho em Sêneca
Tendo em vista o sonho como fenômeno capital para a vida humana por sua relação com o mundo divino e suas determinações beneficentes ou não, tal como vimos para a Grécia do período arcaico ou mesmo do período clássico, o sonho tendeu a revelar-se como um condutor privilegiado para a comunicação com os deuses. Isso servia para antever acontecimentos cruciais à segurança e à manutenção da vida humana pessoal ou coletiva, ora evitando infortúnios, ora acessando favores.
Por sua vez, esse estado de coisas, referente ao caráter divino dos sonhos não se assiste em Sêneca. O pensador romano não só não assente com o caráter divino dos sonhos, que tendia quase sempre a ser positivo, quanto nega-o como uma forma salutar para o tratamento ou o conhecimento da vida psíquica, permitindo, por exemplo, uma terapêutica das emoções. Na verdade, será todo o contrário, pois, para Sêneca, o sonho se verá como uma manifestação concorrente para um estado malsão da alma.
Portanto, e sempre de um ponto de vista filosófico, Sêneca replicará a perspectiva platônica que concorda que o sonho é uma forma de se alienar do real. Essa concepção, não obstante, promove um “lugar” de exceção e de maior afastamento da verdade e de sua possível verificação, uma vez que, durante o sonho, a razão é colocada de lado, logo, permitindo que os ímpetos passionais ganhem força e espaço na alma.
Nas Naturales quæstiones, assim como no De providentia, as quais citaremos mais baixo, e em consonância com o De divinatione de Cícero, Sêneca nega que Deus intervenha na vida humana com sinais particulares, uma vez que isso implicaria que Deus -Razão Universal- deveria rever sua própria lógica e dinâmica. Isso seria impossível porque, para os estóicos, a ordem universal é inescapável e imutável. O indivíduo está necessariamente inscrito em sua dinâmica, ou seja, está à mercê do fatum ditado e conduzido pela razão cósmica, cuja “vontade” enlaça e dispõe desde sempre todos os seres nela imersos.
Embora o homem veja-se inscrito na dinâmica desde sempre estabelecida pelo cosmos, ele pode, pela razão, determinar os modos que trilhará e compreenderá sua singular participação nessa dinâmica imperativa na perspectiva de uma existência autodeterminada também pelo si de razão. Logo, Deus enquanto razão cósmica, isto é, que não assiste um caráter pessoal, mas confuso ao todo Universo, não dá sinais particulares de possíveis ocorrências que indicariam uma mudança na dinâmica do Universo que é ele mesmo em ato a favor de uma ordem perfeita e desde sempre estabelecida. Ele não pode mudar a ordem que estabeleceu e que sustenta até sua existência final que, aliás, implica no retorno do mesmo em função da conflagração universal. Portanto, não permite ou não pode mesmo permitir que os eventos futuros sejam previstos para serem alterados em função desta ou daquela vontade individual, geralmente requerida pelo estulto, pois os “males” não estão na natureza, mas no próprio indivíduo enquanto haurido ou desprovido da capacidade de perceber e representar o mundo segundo o princípio da razão e, por ele, de sua bondade essencial.
Daqui que Sêneca nega sinais particulares que a Natureza (Deus)6 poderia dar em relação ao impedimento ou à mudança de uma dinâmica que acusa aquela de seu próprio ser nela estabelecido. Não há, em definitivo, qualquer ato interveniente de Deus a favor deste ou daquele sujeito em particular, o que significa dizer: agindo contra a própria ordem que é Ele mesmo em potência e ato. Observar, por exemplo, o voo das aves ou suas entranhas abertas (ritos típicos divinatórios), não passa de estultícia segundo Sêneca. Desse modo, tanto atribuir a Deus uma tal ação interventora na existência particular dos homens em função de certas contingências próprias e consoantes ao Todo, quanto a qualquer divindade particular (também elas passionais), era converter Deus (Razão Cósmica) “em um ser ocioso, encarregado de pequenos assuntos sem importância: preparar os sonhos a uns, dispor coisas a outros” (“Nimis illum otiosum et pusillae rei ministrum facis,si aliis somnia, aliis exta disponit”), (Sen., QNat, II, 32, 3). Pensar que Deus intervém a favor das vontades particulares contra sua própria ordem, desde sempre estabelecida e imutável, seria ir contra sua própria razão.
Sêneca, em suas tragédias, que são textos poéticos e bebem fundamentalmente em narrativas que apresentam personagens e narrações míticas no seu melhor sentido de explorar o fabuloso, também aí nega aos sonhos qualquer natureza sobrenatural ou serem eles um lugar privilegiado para a comunicação com o mundo divino ou dos deuses, de suas vontades, imperativos ou auxílios. Sêneca, demonstra com isso o imperativo racional e filosófico de seu pensamento mesmo no interior de suas obras poéticas, não condescendendo, em qualquer caso, com o pensamento ou a sensibilidade mítica própria desse gênero literário (Giardina, 2000, p.13).
Por sua vez, as obras filosóficas de Sêneca, notadamente, os Dialogi e as Ad Lucilium Epistulae Morales, tratam o sonho segundo a perspectiva platônica aqui já colocada, ou seja, o sonho se apresenta como forma de afastamento da realidade, ou, ao menos, da capacidade de se acercar o máximo possível da verdade que se encontra pela subsunção final da razão, que deve estar atenta e vigilante, para além inclusive do aparecer alcançado pelo sentido afetivo ligado ao sensível. Entendemos aqui o aparecer, no bojo do pensamento de Sêneca, como a imagem fornecida pela representação compreensiva, ou seja, não julgada e concedida pela à razão que dita a natureza moral das coisas mais do que possa interessar-se pela coisa em si externa ao sujeito, ou, segundo Sêneca,: “com os sentidos não somos capazes de ajuizar que coisa é um bem, que coisa é um mal, que coisa é útil e que coisa é inútil” [...]; portanto, espera a razão exprimir seu juízo sobre o bem e sobre o mal. Essa tem por vil os elementos externos, que não são nem bem nem mal, e os considera em particular sem nenhum valor” (Ep., 66, 35). Isto quer dizer que, para Sêneca, a verdade ou a realidade dos acontecimentos, dos seres e das coisas apresentadas pelo mundo, não possui valor em si, notadamente como um bem ou um mal real para o sujeito, mas deve ao seu ser, ou seja, a alma, sua verificação final enquanto devido a sua natureza moral que institui o verdadeiramente real, haurindo ou incrementando o bem ou o mal a si (Reale, 2003, p. 127).
Se, para Platão, a realidade ela mesma está no mundo suprassensível das Ideias universais, que somente participa - e, indiretamente, - deste mundo ao oferecer-lhe o modelo do que é, e, ainda assim, para efetuar aquilo que é menos que o ser da Ideia, uma vez que ela não se revela ou dá a si mesma, senão por sua imagem enquanto modelo, embora a razão ou a inteligência humana possa ir em direção a ela para além de sua (in)verificação pelo sensível, para Sêneca, o real é devido à própria razão humana, e tem sua fonte no logos humano que é, ao mesmo tempo, também divino. Podemos dizer que, enquanto para Platão, deve-se alcançar o ser ou o real por uma dinâmica que convida a um transcendentalismo absoluto e para fora, em Sêneca, essa transcendência é de natureza imanente, pois caminha e encontra seu lugar na interioridade da alma humana, e aí descobre o lugar da verdade ou do real ditado pela razão que o compõe a partir do que é próprio da natureza moral e do bem em si atestado pela virtude também presente aí em sua essência e maior exuberância. É, neste sentido, que Sêneca afirma que os que se prendem aos valores segundo o signo de sua materialidade, como o ouro, a prata, o marfim, acreditando que neles residem valores intrínsecos e verdadeiros, é como se vivessem num sonho.
Imagina que deus diga: ‘em função de que lamentam de mim, vocês que se colocaram sob a estrada da virtude?’ Os outros se contentam com bens ilusórios e enganam suas almas vazias com ilusões de um longo sono: se enchem de ouro, de marfim, não possuem, no entanto, nenhum valor intrínseco (Sen., Prov, 6,3)7.
As coisas extrínsecas ao ser às quais se atribui um valor excessivo ou mesmo real, como o ouro, a prata, o marfim afastam duplamente a alma humana dos valores verdadeiros, do real em si, já que possuem um valor que extrapola sua função elementar, não obstante, se acredite que possa ainda doar algo de verdadeiro para o seu possuidor, conferindo-lhe um status quo, beleza ou força que é, na verdade, produto da opinião dos outros, eles mesmos entorpecidos pelos valores que são somente pela aparência. Se a coisa em si, do ponto de vista de Sêneca, não vale mais do que pelo seu valor moral e a partir de sua pregnância no espírito assentido pelo sujeito racional, o valor das coisas instituído pelos parâmetros fundados na sua estética puramente exterior ou na convenção social é ainda mais vil com relação à virtude e ao bem moral. A presunção de dever à coisa exterior algo de verdadeiro é afastamento do real; é, por isso mesmo, uma ocasião que coloca o indivíduo em um estado de sopor, assonado, isto é, impõe-lhe uma percepção falaciosa e ilusória da realidade.
De igual aferição são as considerações de Sêneca em seu tratado De constantia sapientis, mas agora referente não às coisas e sim aos afetos, isto é, às representações imputadas pelo senso comum e seus valores contumazes, neste caso, às impressões devidas a paixão, ou ainda, daquilo que sofre a alma ou que ela retém como um bem sem ajuizar sua natureza que pode conduzi-la posteriormente ao sofrimento. Este é o caso da soberba e da insolência dos poderosos, ou da arrogância que indica, como disse Sêneca, - ser fruto da falta de felicidade própria de quem as pratica e, por isso, busca fazer sofrer e perseguir os outros (Ep., 87,32). Só o sábio, por meio de sua firmeza de ânimo, pode fazer frente a tais afetos. A grandeza da alma permite, pois, que os valores outorgados pelo costume, pela imposição de ocasiões que suscitam o medo, pelos signos de poder e grandeza temerária dos poderosos, se descubram pelo que são: vãs representações de poderes e forças em relação ao bem ou ao mal que atingiram o sujeito somente se por ele anuído. Por isso, se descobrem pelo sábio, “como a vã aparência de sonhos e visões durante a noite, sem nada de sólido e verdadeiro” (Sen., Constant, 11,1) “ut vanas species somniorum visusque nocturnos nihil habentes solidi atque veri”. São imagens suscitadas por um estado de torpor, de confusão com relação à natureza real daquilo que se sente, logo, que nada anui ou beneficia o homem desperto, neste caso, que saiu do sono da estultícia, das imagens devidas ao mundo exterior, ditadas pelo vulgus, ou ainda, não reais do ponto de vista da razão desperta.
Há, no entanto, duas passagens, presentes nas Cartas a Lucílio, em que Sêneca faz considerações mais demoradas sobre o sonho, sobretudo acerca da inter-relação das imagens mentais que gravitam entre a vida onírica e a desperta, ou seja, na medida em que se confundem ou se intercomunicam, criando muitas vezes o acesso a uma experiência que já não distingue um âmbito do outro a fortiori.
Nesse sentido, Sêneca diz que se alguém promove o mal, não obstante, tendo lúcida consciência de que o fez, uma vez que promoveu, por exemplo, o crime, a morte, a injustiça, o sofrimento, etc., a consciência do criminoso deverá ser o pior tribunal que ele possa enfrentar, pois o acusará com frequência, o castigará com a memória que gera continuamente um estado de culpa e, por ela, de autocomiseração. Esse estado de acusação é particularmente eficaz, segundo Sêneca, quando se está dormindo, entregue ao imperativo das próprias emoções que fulguram em imagens vivazes trazidas pelo sono. Neste caso, o malfeitor acusa a si mesmo, punindo-se em função do terror dos pesadelos, das imagens que o atormentam. Tais imagens não são logicamente gratuitas do ponto de vista da vida e da razão desperta, pois acusam o sentimento de culpa que reside na interioridade inconsciente do eu, aí recalcado em função do sofrimento mental que continuamente poderia suscitar e o acusar se continuamente lembradas e, para alguns sujeitos, tornar-se-ia insuportável. Leiamos a sutil anotação de Sêneca.
Um requisito essencial para viver tranquilo é não fazer mal a ninguém: são os prepotentes que possuem uma vida inquieta e cheia de preocupações: quanto mais malfeitos tanto mais se acrescem os seus medos, e não possuem mais um momento de paz. Cada um dos malfeitos o torna mais paralisado e atormentado: a sua consciência não lhe permite atender a outras atividades, mas, sem trégua, lhe chama a responder a seu tribunal. Qualquer que seja que espera um castigo há nesta espera mesma o seu castigo; e espera o castigo todo aquele que o merece. Por sua vez quem tem remorso pode estar seguro, mas nunca será tranquilo. Também se não foi descoberto, teme ser descoberto; se agita no sono (Ep.,105,7-8).
Relevante é extrair deste excerto a sentença “inter somnos movetur”. A agitação durante o sono é sinal do desassossego, da culpa revelada pela força da pulsão interior, pela gestação de imagens que segue a lógica mais primitiva das emoções, guiadas pelos sentimentos que sobrepujam a razão. Ademais, Sêneca se soma aqui à tese que os sonhos são produtos da condição psíquica do homem, em que há uma comunhão entre a vida desperta e a vida dormente, inaugurando a vida onírica em seu mais amplo aspecto, como já anotamos.
Em outro passo, na carta 53, Sêneca faz uma análise arguta acerca das doenças do corpo e da alma. Diz ele que, com relação às doenças do corpo, quanto mais elas se afirmam, mais se manifestam por meio de sinais sensíveis e visíveis: de uma tênue percepção de aquecimento do corpo a uma febre que queima; de uma leve dor de estômago a uma dor intensa que permanece e se intensifica em terra firme (a primeira em alusão ao enjoo comumente experimentado pelos que navegam pelo mar); de uma breve dor e deformação nos pés, desculpada por uma eventual torsão do calcanhar ou por se haver enfermado quando dos exercícios físicos, a um estado confessado de gota por verem-se os pés muitos inchados e deformados. Já os males da alma, ou seja, as paixões que se transformam em vícios que são mais duros e renitentes, como a ira, o medo irracional, a soberba, etc., quanto mais fortes, mais escondidos se encontram no interior do eu. Assim, em relação às enfermidades do corpo, diz Sêneca:
O contrário devém na enfermidade que golpeia a alma: quanto mais alguém está mal, tanto menos se dá conta. Não deve te maravilhar, caríssimo Lucílio. De fato, quem está apenas adormecido, também durante os sonhos percebe as imagens dos sonhos; e algumas vezes, dormindo, sabe que dorme. Mas, um sono pesado extingue também os sonhos e submerge a alma em uma completa inconsciência. Porque ninguém confessa seus vícios? Porque está ainda sob seu domínio. Pode contar os próprios sonhos só quem está desperto; assim pode confessar seus próprios vícios só quem já está deles curado. Por isso, despertemo-nos, para podermos tomar consciência dos nossos erros. Só a filosofia conseguirá nos acordar, e a fazer que despertemos do pesado sono: consagra tudo a ela (Ep., 53, 7-8).8
Sêneca parece fazer referência aqui a possíveis estágios do sono. Assim, aquele cuja consciência está ainda levemente imersa no estado de sono, pode ainda saber que sonha, ou que as imagens que experimenta são produto do estado onírico que deve ser avaliado desde uma perspectiva do eu ainda não de todo inconsciente e, logo, também consciente. Daqui que, acrescenta Sêneca, o dormente pode saber que dorme quando ainda não mergulhado nas águas profundas da inconsciência; momento este em que a consciência desperta não mais se acusa e não mais acusa aquele que se é no momento de seu despertar. Sêneca parece considerar que o sonho é, pois, em sua mais imediata experienciação, o produto de uma consciência ainda ativa ou ela mesma não completamente adormecida (“dormiens cogitat”) porque ainda no espaço de intersecção de ambos os territórios, o da consciência e o da inconsciência, os quais, e cada um à sua forma, denunciam uma concorrente percepção do eu embora, em alguns casos, urdidas pelo ambiente onírico. O sono profundo, por sua vez, impede inclusive o sonho, ou, de outro lado, qualquer ocasião que também permita saber-se a si, ou ter consciência de si por ver-se mergulhado nas águas profundas e nebulosas da existência do eu, “gravis sopor etiam somnia extinguit animumque altius mergit quam ut in ullo intellectu sui sit”, logo, ter a consciência que dorme. Por isso, afirma que só pode saber e narrar os próprios sonhos quem está desperto e, na mesma medida, só pode confessar os próprios vícios aquele que deles se curou, ou seja, que acessou a lúcida consciência de si, de saber que os possui, que são um mal e que por isso devem ser expulsos. Daqui que, por analogia, Sêneca diz que a verdadeira vida desperta é aquela que só a filosofia pode acusar, pois, a experiência dos sonhos tanto daquele que dorme, quanto daquele que está acordado, mas não desperto pela e para a razão, ou ainda, não tomado por uma clara e racional consciência de si, dá-se em estado de torpor, entregue as imagens falsas e que falseiam o acesso à verdade última do mundo, que deve ser iluminada pela consciência de si à qual só pela razão desperta se pode aceder.
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Todas as citações de autores estrangeiros foram traduzidas por nós. Os autores latinos, em especial, cotejamos o texto original com sua respectiva e sempre competente tradução moderna para originar a nossa.
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Para que não se faça uma longa digressão, deve-se conferir essa discussão, com as respectivas citações de fontes e pormenores em (Harris, 2018, p. 181-182).
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“Naturam autem eam dico, qua num quam animus insistens agitatione et motu esse vacuus potest. Is cum languore corporis nec membris uti nec sensibus potest, incidit in visa varia et incerta ex reliquiis, ut ait Aristoteles, inhaerentibus earum rerum quas vigilans gesserit aut cogitave rit; quarum perturbatibne mirabiles interdum exsistunt species somniorum; quae si alia falsa, alia vera, qua nota interno scantur scire sane velim. Si nulla est, quid istos interpretes audiamus? Sin quaepiam est, aveo audire quae sit;”
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Ou, em perspectiva psicanalítica junguiana, o sonho mostra em seu conteúdo o aspecto subliminar do vivido e na forma de imagens simbólicas e não segundo o recurso do pensamento racional (Jung, 2020, p.91).
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“Divinare autem morientes ilio etiam exemplo con firmat Posidonius, quod adfert, Rhodium quendam morien tem sex aequales nominasse et dixisse, qui primus eorum, qui secundus, qui deinde deinceps moriturus esset. Sed tribus modis censet deorum adpulsu homines somniare: uno, quod provideat animus ipse per sese, quippe qui deorum cognatio ne teneatur; altero, quod plenus aer sit immortalium animo rum, in quibus tamquam insignitae notae veritatis appareant; tertio, quod ipsi di cum dormientibus conloquantur. Idque, ut modo dixi, facilius evenit adpropinquante morte, ut animi futura augurentur”.
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Por vezes, os próprios estóicos identificam a potência impessoal da Razão Cósmica a um Deus pessoal e superior a todas as demais deidades, na pessoa de Zeus ou Júpiter para o caso romano. Isso talvez possa ser explicado pela tentativa de coalescer a visão física do universo - ele mesmo como a expressão máxima do divino segundo sua condução por uma razão imanente - com uma visão religiosa, imperante nesta escola sobretudo a partir do médio-estoicismo (Sellars, 2024, p. 128).
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“Puta itaque deum dicere: « Quid habetis quod de me queri possitis, vos, quibus recta placuerunt? Aliis bona falsa cir cumdedi et animos inanes velut longofallacique somnio lusi: auro illos et argento et ebore adornavi, intus boni nihil est”.
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“Securitatis magna portio est nihil inique facerei confusam vitam et perturbatam inpotentes agunt; tantum metuunt quantum nocent, nec ullo tempore vacant. Trepidant enim cum fecerunt, haerent; conscientia aliud agere non patitur ac subinde respondere ad se cogit. Dat poenas quisquis expectat; 8 quisquis autem meruit expectat. Tutum aliqua res in mala conscientia praestat, nulla securum; putat enim se, etiam si non deprenditur, posse deprendi, et inter somnos movetur”
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AMARAL, R. (2025). O sonho como autoengano em Sêneca. Archai 35, e03525.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Nov 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
11 Mar 2025 -
Aceito
11 Ago 2025
