Open-access Os Oráculos de Hystaspes e o Apocalipse de João: paralelos e possibilidades

The Oracles of Hystaspes and Revelation: parallels and possibilities

Resumo:

O artigo analisa os paralelos entre os supostos fragmentos dos Oráculos de Hystaspes no livro sétimo das Instituições Divinas de Lactâncio e o Apocalipse de João, especificamente nos capítulos 11.3-12, sobre as “duas testemunhas” e 13.11-16, sobre a atuação da Besta. O artigo apresenta a bibliografia sobre a questão e as possibilidades de apropriação de temas zoroastristas por João de Patmos em seu apocalipse, principalmente no mito do combate.

Palavras-chave:
Oráculos de Hystaspes; letramentos apocalípticos; tradição judaico-cristã; tradição zoroastrista; sincretismo religioso na antiguidade

Abstract:

The article analyzes the parallels between the supposed fragments of the Oracles of Hystaspes in the seventh book of Lactantius' Divine Institutes and the Apocalypse of John, specifically in chapters 11:3-12, on the "two witnesses" and 13:11-16, on the action of the Beast. The article presents the scholarship on the issue and the possibilities of appropriation of Zoroastrian themes by John of Patmos in his apocalypse, especially in the combat myth.

Keywords:
Oracles of Hystaspes; apocalyptic literacies; Judeo-Christian tradition; Zoroastrian tradition; religious syncretism in antiquity

Apresentação

Há uma questão conhecida entre pesquisadores e público leitores da língua inglesa que ainda é praticamente desconhecida entre o público brasileiro: a possibilidade de João de Patmos1 ter utilizado uma versão dos Oráculos de Hystaspes2 entre suas fontes para a composição de seu apocalipse,3 o canônico Apocalipse de João. O propositor dessa tese foi David Flusser (1917 - 2000), professor de Cristianismo Primitivo e Judaísmo do Segundo Templo da Universidade Hebraica de Jerusalém, no artigo “Hystaspes and John of Patmos”, publicado pela primeira vez em 1982.

Ao ler o livro sétimo das Instituições Divinas4 de Lactâncio (De Vita Beata), Flusser percebeu que parte da narrativa sobre o fim dos tempos era muito similar ao que narra o Apocalipse de João, mas que possuía também diferenças cruciais. A partir dessa constatação, o pesquisador sugeriu que Lactâncio teve acesso a um OH judaico, que teria sido uma das fontes para a redação do Apocalipse (Flusser, 1988).

O problema é que os OH estão perdidos e nos chegaram apenas em fragmentos, e a discussão sobre sua origem, datação, autoria e forma é tão diversificada quanto os problemas que as fontes suscitam. A melhor fonte para o que restou dos OH é Lactâncio, retórico convertido ao cristianismo que após ser comissionado para ensinar na corte em Nicomédia vivenciou a Grande Perseguição sob Diocleciano a partir de 303 EC. Nesse período, já como apologista cristão, o retórico citou oráculos e profetas que não pertenciam à tradição judaico-cristã para corroborar as doutrinas e a causa do cristianismo.

As citações a Hystaspes nas Instituições Divinas ocorrem explicitamente em dois momentos. Na primeira citação em ID 7.15.18-19 Lactâncio registra que a Sibila e Hystaspes profetizaram a queda de Roma:

Também Hystaspes, que foi um rei muito antigo dos medos, a partir do qual o rio Hydaspes foi nomeado, registrou para a posteridade um sonho extraordinário conforme interpretado por um menino profético: antes da fundação de Troia, ele disse que o poder e o nome de Roma seriam removidos do mundo.5

Na segunda citação em ID 7.18.2, Lactâncio registra como aconteceria a intervenção divina na história de acordo com Hystaspes:

Hystaspes, mencionado anteriormente, ao descrever a iniquidade dessa última geração, diz: “os pios e fiéis se separarão do mal e levantarão as mãos aos céus chorando, clamando e implorando a promessa de Júpiter; Júpiter olhará sobre a terra, ouvirá a voz dos homens e destruirá os ímpios”. Tudo isso é verdade, exceto algo: ele disse que Júpiter fará o que Deus fará.6

No entanto, sabe-se que Lactâncio utiliza conteúdo de suas fontes sem citá-las. Entre os capítulos 16 e 17 do livro sétimo das ID, o retórico desenvolve um relato sobre o que aconteceria no fim dos tempos de acordo com suas fontes. Em determinado momento, dois governantes malignos surgiriam, enquanto o primeiro modificaria o nome do império e a sede do poder para a Ásia, o segundo o derrotaria, passaria a demandar adoração como filho de Deus, tentaria destruir o Templo de Deus e perseguir os justos, inclusive um profeta atuante nos últimos dias. Flusser argumentou que todo o conteúdo entre as duas citações provém dos OH, ou seja, a narrativa sobre o profeta (a testemunha) e o Anticristo não teriam como base o Apocalipse de João, mas sim o texto de Hystaspes (Flusser, 1988).

Outras fontes importantes para o estudo dos OH são Justino Mártir na Primeira Apologia,7 Clemente de Alexandria em Stromata,8 a Teosofia de Tübingen,9 geralmente atribuída a Aristócrito e Lydus em De mensibus.10 Essas fontes não recebem a mesma ênfase que o testemunho de Lactâncio neste artigo devido à seleção do problema e o escopo. O objetivo deste artigo é avaliar os paralelos textuais entre o testemunho de Lactâncio aos OH e o Apocalipse de João, bem como apresentar a bibliografia produzida em torno da questão e sugerir possibilidades sobre a provável apropriação.

Os Oráculos de Hystaspes em debate

Enquanto é ponto pacífico que os OH eram textos pseudoepígrafos, ou sejam, que circulavam sob o pseudônimo Hystaspes, nome do rei patrono de Zoroastro,11 praticamente todos os outros aspectos sobre os oráculos foram alvo de debate. A origem, datação e forma são as questões que mais causaram divergências entre os pesquisadores.

As teses sobre a origem dos OH se dividem em quatro: a iraniana, a judaica, a greco-oriental e a cristã. Representando a tese iraniana, Benveniste propôs a existência de um Vištāsp Namag, um texto hipotético que seria a obra original em que uma versão dos OH se inspirou (Benveniste, 1932, p. 379); Hinnells, por sua vez, identificou a figura do salvador nos fragmentos dos OH com o Sōšyant, importante figura redentora zoroastrista nas literaturas avéstica e em persa médio (Hinnells, 1973, p. 145).

Flusser foi o principal proponente da tese da origem judaica dos OH. O autor fez uma crítica a Windisch, o primeiro a propor de forma ostensiva uma origem sincrética (greco-persa), por inaugurar uma tendência no estudo dos oráculos: o isolamento dos elementos judaico-cristãos dos supostamente persas e a adição de paralelos da literatura persa com a narrativa de Lactâncio como evidências da tradição zoroastrista em sua origem. De acordo com Flusser, isso acabou por desvirtuar a pesquisa sobre os OH.

Na prática essas teses podem ser organizadas em duas escolas de pensamento que realmente se opõem em suas propostas sobre a origem dos OH: a irano-sincrética e a judaico-helenística (Beatrice, 1999, p. 359). A tese de uma origem puramente cristã dos OH acabou se tornando minoritária entre os acadêmicos, e a que mais se fortaleceu foi a greco-oriental.

Os séculos segundo e primeiro AEC e o século primeiro EC, de transição entre o período helenístico e o período romano, são comumente os períodos apontados para a composição dos OH. Argumentou-se que uma versão dos OH pode ter sido anti-selêucida (Colpe, 1994), embora não haja evidência disso, e depois adaptada para um material antirromano. A resistência de Mitrídates à expansão romana tornou-se o contexto mais sugerido para a composição dos OH (Windisch, 1929, p. 70), e personagens como Pompeu e Crasso, Augusto e Marco Antônio foram citados entre as possibilidades de identificações de personagens da narrativa de Lactâncio (Núñez & Extremeño, 2018, p. 54; Knohl, 2000, p. 30-32). Entre os séculos primeiro AEC e primeiro EC foram apontadas as relações conflituosas entre romanos e os partas como conjunturas favoráveis à composição de textos como os OH (Reeves, 1994, p. 271; Beatrice, 1999, p. 367-375).

Quanto à forma, argumentou-se que ser citado junto da Sibila, nome que faz referência aos Oráculos Sibilinos, pode ser evidência de que os OH foram compostos como oráculos em hexâmetro grego (Windisch, 1929). Em contraposição, Beatrice (1999, p. 361-363) propôs que Hystaspes foi composto em prosa como o primeiro apocalipse iraniano.

As duas testemunhas, o Anticristo e os sinais do fim

Diferente dos OH, o Apocalipse de João não nos oferece muitas dificuldades quanto a origem e datação, além disso, temos o texto integral. João de Patmos muito provavelmente visitava ou mantinha laços com a comunidade cristã da Ásia Menor, devido às sete cartas destinadas a igrejas nessa localidade, onde o autor demonstra conhecimento das circunstâncias e problemas. Apenas dois períodos históricos são comumente apontados para a composição do Apocalipse de João, o fim do reinado de Nero (54-68 EC) e o reinado de Domiciano (81-96 EC).

Autores do paleocristianismo como Irineu e Vitorino dataram o Apocalipse de João perto do fim do governo de Domiciano (95-96 EC) e parte dos pesquisadores modernos aceitam essa tradição. Outra corrente de estudiosos, no entanto, reuniu evidências que apontam para o fim do reinado de Nero como um possível contexto de produção, o que indica a possibilidade de que partes da obra tenham sido escritas sob Nero e terminada sob Domiciano (Kraybill, 2004, p. 44).

Independente da datação exata, uma questão central para João de Patmos é o culto imperial, que preconizava a deificação e adoração do imperador romano. O Apocalipse de João adapta e inverte temas do culto ao governante oriental e do próprio culto imperial para criticar o culto ao governante romano, sobretudo nos capítulos 4 e 5, criando uma narrativa contracultural (Filho & Nogueira, 2019, p. 158).

Na esteira de pesquisas recentes que propuseram novas leituras para o Apocalipse de João, o pesquisador brasileiro Kenner Terra demonstra como o texto do Apocalipse pode ser interpretado como narrativa de instauração do caos. O contradiscurso apocalíptico de João de Patmos fazia oposição ao ideário de organização e ordem romanas, numa série de estratégias narrativas para convencimento de que na verdade essa ordem seria responsável por desordem e caos (Terra, 2020, p. 151).

O livro de João de Patmos é o único do gênero apocalíptico a se apresentar como um apocalipse (revelação). Apesar do gênero apocalíptico ser predominante no livro, há em sua composição os gêneros de profecia e carta, como é o caso dos capítulos 2 e 3 com cartas endereçadas às igrejas. Embora se apresente todo como carta às igrejas, os capítulos 4 a 22 do Apocalipse é muito diferente das cartas do Novo Testamento.

Os capítulos 11.3-12 e 13.11-16 do Apocalipse de João possui interessantes paralelos, mas também divergências, com a narrativa de Lactâncio sobre o fim dos tempos. Flusser propôs que ambos os capítulos faziam parte de uma mesma narrativa que remonta aos OH, que de acordo com ele era uma obra judaica. Como o Apocalipse de João é do primeiro século e as ID do início do quarto século, pode-se questionar do porquê não o contrário, ou seja, Lactâncio ter baseado sua narrativa no Apocalipse. É provável que Lactâncio não teve acesso ao Apocalipse de João durante a composição das ID,12 somente mais tarde, ao escrever a epítome da sua obra, onde edita material demonstrando conhecimento da obra de João de Patmos.

A fim de facilitar a visualização dos paralelos entre o texto do Apocalipse de João e o de Lactâncio, disponho-os aqui em colunas, seguindo os modelos de Flusser e Aune. Note que optei por manter a alteração de Aune na disposição do texto de Apocalipse, posicionando os versículos 6a e 6b, antes do versículo 5:

A primeira diferença marcante entre as duas narrativas é a duplicação da figura do profeta, que aparece em Apocalipse 11 como duas testemunhas. Enquanto em Lactâncio o profeta é derrotado por um rei vil, figura do anticristo, no Apocalipse as testemunhas são mortas pela Besta do Abismo. Ademais, as personagens compartilham das mesmas características e funções em ambas as narrativas, com alguns acréscimos redacionais no Apocalipse de João.

Aune expõe uma série de argumentos para fundamentar o posicionamento de que João de Patmos e Lactâncio se apropriaram de uma mesma fonte, que pode ter sido uma versão dos OH ou outra fonte judaica, mas que o retórico não utilizou o texto do Apocalipse (o qual não cita nas ID, somente na epítome). O autor destaca aspectos como: a duplificação da figura do profeta; a narrativa do Apocalipse está com verbos no passado enquanto em Lactâncio os verbos estão no futuro; a série de comentários explanatórios que o texto do Apocalipse desenvolve e estão ausentes em Lactâncio e a continuidade da narrativa nas ID enquanto João de Patmos a desenvolve em outro capítulo, no caso Ap 13.11-16 (Aune, 1998, p. 592-593).

Outros paralelos entre o texto de João de Patmos e Lactâncio são encontrados em Apocalipse 13.11-16, dessa vez envolvendo os personagens da Besta e do Anticristo. Novamente, dispor dos textos em coluna ajuda a visualizar os paralelos. Note que a disposição dos versículos do Apocalipse segue Aune, o que facilita a comparação:

Assim como ID 7.17.1-3, Aune expõe os argumentos para fundamentar porque ID 7.17.4-8 é uma fonte independente do Apocalipse de João. Como vimos, a narrativa de Lactâncio é contínua, enquanto João de Patmos distribui os aspectos do que antes era a descrição de um único episódio entre os capítulos 11 e 13 de seu apocalipse. Além disso, destaca-se algumas características redacionais que são próprias do estilo de João de Patmos como “pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos” (Ap 13.16), o motivo econômico da compra e venda mediante a marca da Besta (Ap 13.17) e o rei da narrativa de Lactâncio que é representado como a Besta, o que não ocorre no texto do retórico (Aune, 1998, p. 728).

Diferente de Flusser e Aune, Freund (2009, p. 466-469) argumenta que Lactâncio editou e parafraseou a narrativa do Apocalipse, transformando as duas testemunhas em apenas um profeta e as atuações das Bestas na figura do Anticristo. De acordo com o autor o retórico não cita a fonte porque não teria relevância para sua audiência politeísta, o que é um argumento razoável, visto que Lactâncio teve o cuidado de selecionar as autoridades que cita segundo as preferências de sua audiência (Nicholson, 2001; Kaltio, 2013).

Esse caso pode ser abordado da perspectiva de letramento apocalíptico, pensando as ferramentas de composição da narrativa, independente de quem tenha se apropriado ou parafraseado um ao outro ou qualquer outra fonte. A descrição da atuação e características do profeta em Lactâncio, das duas testemunhas no Apocalipse, bem como da Besta ou do governante maligno possuem as mesmas funções nas narrativas, que é a representação de figuras proféticas e de adversários escatológicos.

As figuras proféticas profetizam sob inspiração divina e operam milagres geralmente com paralelos em milagres realizados por Deus em narrativas bíblicas, como transformar água em sangue e a ressurreição. Já o poder dos adversários escatológicos tem origem maligna, e apesar da semelhança com milagres divinos, há detalhes inovadores que geralmente dão pistas sobre questões sociais e políticas, como a imagem falante e o controle do comércio.

Há ainda interessantes paralelos entre os sinais do fim dos tempos como descritos por Lactâncio, num fragmento atribuído aos OH, e o Apocalipse de João. O escurecimento do sol, a lua transformar-se em sangue e a precipitação das estrelas são alguns fenômenos da abertura do sexto selo em Ap 6.12. Em ID 7.16.8 o eclipse do sol, a cor da lua e a precipitação de estrelas são citados entre os prodígios que confundiriam as mentes dos homens. Curiosamente, a existência de um padrão semelhante também pode ser encontrada no apocalipse zoroastrista Zand ī Wahman Yasn (Cereti, 1995). Alguns dos sinais que ocorreriam no fim do décimo século de Zoroastro seriam a diminuição, escurecimento e mudança da cor do sol (ZWY 4.16, 6.4), terremotos, escuridão e outros sinais no céu (ZWY 6.4) e a precipitação de uma estrela (ZWY 7.6).14

No caso dos sinais do fim no Apocalipse de João não é possível comprovar que possuem traços da tradição zoroastrista, pois estão presentes em vários textos da tradição judaico-cristã. Tanto em textos veterotestamentários, como no tema do Dia de Yahweh (Amós 8.9; Isaías 13.9-10; Joel 2.10) e em textos neotestamentários, como nas passagens apocalípticas dos evangelhos sinóticos Mateus (24.29), Marcos (13.25) e Lucas (21.26).

A derrota do dragão

O mito do combate, exemplificado em Ap 12.7-9 e 20.1-3, trecho no qual um dragão é acorrentado e lançado no abismo por um anjo, pode ser uma evidência de temas zoroastristas no Apocalipse de João. Apesar de encontrarmos traços dessa tradição no Antigo Testamento, com alusões de batalhas de Yahweh contra o Leviatã (Isaías 27.1, Salmo 74.14), são nas literaturas persas em avéstico e persa médio onde o tema é expressivo e ganha contornos apocalípticos.

Os defensores de uma origem persa ou greco-persa dos OH se esforçaram para estabelecer as afinidades entre os fragmentos dos oráculos e o material da literatura em persa médio. Flusser (1988, p. 444), por sua vez, descartou a possibilidade de se encontrar tradições persas nos fragmentos de Lactâncio e ressaltou a origem judaica dos OH, trazendo o Apocalipse de João para a problemática. Porém, foi também Flusser que comparou os fragmentos dos OH nas ID com a introdução grega do livro de Ester, argumentando que a narrativa da introdução combina mais com o conteúdo dos OH do que o próprio livro de Ester.

A introdução grega de Ester apresenta o sonho de Mardoqueu, uma narrativa com motivos apocalípticos: a expectativa de combate entre dois dragões, povos que se unem contra o “povo dos justos”, a invocação a Deus diante da morte e a intervenção divina que salva os justos por meio de um grande rio. De acordo com Flusser os governantes malignos de Lactâncio podem ter sido representados como dragões nos OH, e embora o autor descarte a possibilidade de temas zoroastristas nos oráculos tal como Lactâncio os testemunhou, é possível demonstrar que o tema de dragões em combate pode ter configurado em alguma versão greco-persa ou judaica de inspiração zoroastrista dos OH.

Desde Bousset, 1926, p. 516, comparou-se o mito do combate em Ap 20.1-3 com a história do dragão Azhi Dahāka, que é enfrentado por heróis em fontes avéstica e pahlavi, em narrativas tão semelhantes à visão de João de Patmos que se supõe um modelo iraniano (Hintze, 1999, p. 80-84). No Yasht 19 Thraētaōna é mencionado como o herói que matou o dragão Azhi Dahāka (19.92). No Zand ī Wahman Yasn (Cereti, 1995) o dragão Azdahāg é combatido pelo herói ressuscitado Sāmān Keresāsp, o que possibilita o fim da desolação presente e o início de um novo milênio por Ahura Mazda (9.20-23).

Apesar da conhecida dificuldade de se lidar com as fontes zoroastristas devido aos manuscritos tardios e diversos problemas de datação, parte dos pesquisadores se posicionam pela interação e influência decisiva da tradição zoroastrista no desenvolvimento da tradição judaico-cristã.15 Os livros de Daniel na Bíblia Hebraica e o Apocalipse de João no Novo Testamento são apontados como duas obras com contribuições significativas na interação entre essas tradições (Cohn, 1996, p. 276-294).

A derrota do dragão faz parte de um conjunto de temas que se relacionam entre as escatologias dos judeus, zoroastristas e cristãos na antiguidade, pode-se mencionar também a chegada de um salvador, a ressurreição dos mortos, o julgamento final e o novo mundo e nova vida (Hintze, 2019). Os fragmentos dos OH contém pelo menos três dessas temáticas (o salvador, o julgamento e a expectativa de nova vida), pode-se argumentar que possíveis versões perdidas desses oráculos apresentassem também temas como a ressurreição dos mortos e o mito do combate.

Nesse sentido, podemos falar ainda de um letramento apocalíptico zoroastrista generalista no Apocalipse de João e no encerramento do último livro das ID de Lactâncio, que pode ser identificado quando temas se dispõem na composição de forma a expressar a visão de mundo zoroastrista. Em Lactâncio temos a intervenção de uma figura salvadora (ID 7.19.2-7), a primeira e a segunda ressurreições (ID 7.20.1, 26.6), o julgamento (ID 7.20.5-6) e a renovação, com o retorno da idade de ouro (ID 7.26.5). No Apocalipse temos o combate ao dragão (12.7-9, 20.1-3) e todos os outros temas citados acima: o salvador (Ap 19.11-16), a ressurreição (Ap 20.5-6), o julgamento (Ap 20.11-15) e o novo céu e a nova terra, com a Nova Jerusalém (Ap 21), (Hintze, 2019).

Considerando a proposta de Flusser, de que João de Patmos teve acesso aos OH, bem como a proposta de outros pesquisadores de que esses oráculos eram portadores de material zoroastrista na antiguidade, é razoável propor que o modelo iraniano de mito do combate que serviu de inspiração para João de Patmos tenha sido dos OH.

Considerações Finais

Os trabalhos de Flusser, Aune e Freund são eruditos e baseados em pesquisa rigorosa, o que torna difícil a avaliação dos posicionamentos opostos quanto à relação entre o Apocalipse de João e os fragmentos dos OH em Lactâncio. Quem adaptou ou foi adaptado, João de Patmos a Hystaspes ou Lactâncio a João de Patmos? Como não há prova definitiva, é o tipo de questão que permanece aberta.

Muitas outras questões sobre os OH permanecem abertas devido à natureza das fontes: fragmentos que citam material do qual não sabemos ao certo origem, autoria e datação. No caso da interação entre as tradições zoroastristas e judaico-cristã há ainda o agravante dos problemas de datação de tradições que circularam oralmente, mas que só foram preservadas em manuscritos tardios, no caso dos textos zoroastristas.

O letramento apocalíptico é um conceito útil para pensar essas questões, pois permite identificar padrões relevantes entre as narrativas e perceber que não se trata simplesmente de narrativas isoladas, mas de uma rede interconectada de temas e símbolos que viajam através do tempo e do espaço, moldando e sendo moldados pelas culturas que os adotam. Esta perspectiva nos permite ver Lactâncio e João de Patmos não como criadores isolados, mas como parte de uma tradição apocalíptica maior, onde a interação e a adaptação de temas são essenciais para a compreensão completa de suas obras.

Portanto, o letramento apocalíptico não apenas nos ajuda a identificar estas semelhanças, mas também nos oferece uma metodologia para explorar as complexas relações entre as narrativas zoroastristas, judaicas e cristãs, enriquecendo nossa compreensão das interações culturais e religiosas que moldaram o pensamento apocalíptico antigo.

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  • 1
    Diferente de outras obras do gênero apocalíptico do primeiro século EC, o Apocalipse de João não é um pseudoepígrafo. O autor é de fato João de Patmos, o que é disputado é se podemos identificá-lo com o apóstolo João ou não. É importante destacar que a experiência religiosa ou autoridade profética de João não é o objetivo deste artigo, mas sim uma análise textual e pontualmente baseada na ciência histórica.
  • 2
    Será abreviado como OH. Embora a maioria dos pesquisadores tenham se referido aos oráculos no singular, a tendência é que sejam abordados no plural.
  • 3
    O vocábulo apocalipse passou a designar, modernamente, um gênero literário para classificar diversos textos que compartilham características e estruturas literárias, daí literatura apocalíptica, como o livro canônico de Daniel, 4 Esdras, 2 Baruc e o próprio Apocalipse de João, de agora em diante abreviado como Ap.
  • 4
    Será abreviado como ID.
  • 5
    Tradução minha com o suporte da tradução em inglês de Bowen & Garnsey (2003). Texto latino de Heck & Wlosok, 2011, p. 700: Hystaspes quoque, qui fuit Medorum rex antiquissimus, a quo amnis nomen accepit qui nunc Hydaspes dicitur, admirabile somnium sub interpretatione uaticinantis pueri ad memoriam posteris tradidit: ‘sublatuiri ex orbe imperium nomenque Romanum’ multo ante praefatus est quam illa Troiana gens conderetur.
  • 6
    Tradução minha com o suporte da tradução em inglês de Bowen & Garnsey (2003). Texto latino de Heck & Wlosok, 2011, p. 706: Hystaspes enim, quem superius nominaui, descripta iniquitate saeculi huius extremi ‘pios ac fideles a nocentibus segregatos’ ait ‘cum fletu et gemitu extenturos esse ad caelum manus et imploraturos fidem Iouis; Iouem respecturum ad terram et auditurum uoces hominum atque impios extincturum’. quae omnia uera sunt praeter unum, quod Iouem dixit illa facturum quae deus faciet.
  • 7
    Em (1 Apologia 20.1) Justino relata que tanto Hystaspes quanto a Sibila disseram que as coisas corruptíveis seriam destruídas pelo fogo. Hystaspes ainda é citado em 44.12 como obra alvo de censura.
  • 8
    Clemente de Alexandria (Stromata 6.5.42-43) registra que Hystaspes foi supostamente recomendado pelo Apóstolo Paulo, e que descreveu o filho de Deus e como reis se levantariam contra Cristo e seus seguidores.
  • 9
    Hystaspes recebeu revelação dos mistérios divinos sobre a encarnação do salvador segundo a Teosofia.
  • 10
    Em De mensibus (2.4) é associado ao conhecimento que dividia os dias da semana segundo o número de planetas.
  • 11
    A historicidade e datação de Zoroastro é questão aberta. Há uma tradição persa segundo a qual o profeta viveu 258 anos antes de Alexandre Magno, mas há uma corrente acadêmica que o situa entre 1.500 e 1.200 AEC.
  • 12
    Lactâncio teve acesso limitado ao texto bíblico através de Ad Quirinum. No entanto, há evidências de conhecimento bíblico para além disso.
  • 13
    Tradução da Bíblia de Jerusalém (2002).
  • 14
    Os paralelos entre os sinais do fim dos tempos em Lactâncio e textos da literatura em persa médio foram utilizados na tentativa de estabelecer uma origem e o material persa dos OH. Hinnells demonstra as semelhanças, diferenças e como em alguns casos é muito difícil distinguir a tradição zoroastrista da tradição judaico-cristã nos fragmentos dos OH em Lactâncio. Ver também Ogilvie, 1978, p. 96-108.
  • 15
    Da corrente que se opõe a esse posicionamento destacam-se os trabalhos de Gignoux, 1988 e Duchesne Guillemin, 1982.
  • NASCIMENTO, R. N. do (2025). Os Oráculos de Hystaspes e o Apocalipse de João: paralelos e possibilidades. Archai 35, e03515.
  • Disponibilidade de Dados
    Não aplicável.

Editado por

  • Editora:
    Semíramis Corsi

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Não aplicável.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2025
  • Aceito
    01 Jul 2025
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