Resumo:
Neste artigo, apresento uma discussão historiográfica sobre o neoplatonismo árabe, analisando alguns pressupostos assumidos pelos estudiosos desde a segunda metade do século XIX. A partir das edições das obras e dos estudos subsequentes, consolidou-se a distinção entre o corpus plotiniano em árabe, o Plotiniana Arabica, e o corpus procleano em árabe, o Procleana Arabica, segundo o modo como se entendeu a relação entre os textos escritos em árabe e suas fontes gregas. Contudo, tendo em vista os estudos recentes, diferentes pressupostos e metodologias vêm sendo assumidos. Dada a complexidade da discussão, neste texto, restringir-me-ei à análise de duas obras originalmente escritas em árabe, a dizer, a Teologia de Aristóteles e o Discurso Sobre o Bem Puro, mais conhecido como Liber de Causis. O objetivo da análise que se segue é, partindo da crítica a dois pressupostos historiográficos tradicionalmente aceitos, a dizer, que as duas obras são versões de textos gregos e que contêm teorias metafísicas distintas, analisar como as abordagens recentes nos permitem uma compreensão mais unificada da natureza dos textos que compõem o corpus neoplatônico árabe. Uma das consequências da distinção entre o Plotiniana Arabica e o Procleana Arabica é engessar os textos em modelos filosóficos que são diferentes daquele encontrado nas próprias obras.
Palavras-chave:
Neoplatonismo árabe; historiografia; Plotino; Proclo; al-Kindi
Abstract:
In this article, I present a historiographical debate about the Arabic Neoplatonism from some assumptions since the 19th century. From the editions of the works and the posterior studies, the distinction between the Plotinian corpus in Arabic, the Plotiniana Arabica, and the Proclean corpus, the Procleana Arabica, was consolidated, given the way in which the relationship between the texts originally written in Arabic and their Greek sources was understood. However, in view of recent studies, different assumptions and methodologies have been adopted. Given the complexity of the discussion, in this text I will restrict myself to the analysis of two works originally written in Arabic, namely The Theology of Aristotle and the Discourse on the Pure Good, known as Liber de Causis. Starting from the critique of two traditionally accepted historiographical assumptions, the aim of the following analysis is to discuss how new approaches allow us a more unified understanding of the nature of the Arabic Neoplatonic corpus. A consequence of the distinction between the Plotiniana Arabica and the Procleana Arabica is to lock the texts into philosophical models that are different from these one found in the works themselves.
Keywords:
Arabic neoplatonism; historiography; Plotinus; Proclus; al-Kindi
Introdução
Embora a filosofia árabo-islâmica tenha tido seus primeiros estudos publicados em meados do século XIX,1 ela apenas se consolidou como um campo de estudo original e relevante para a história da filosofia em meados do século XX; o que marca um atraso considerável se comparado aos estudos de filosofia latino-cristã.2 Este atraso no estabelecimento da filosofia árabe como um objeto de pesquisa relevante em si mesmo, segundo Gutas (2002, p. 5-6),3 decorreu de algumas abordagens dos historiadores que pouco contribuíram para o campo de estudo.4 Dentre elas, encontra-se o entendimento de que a filosofia árabe seria relevante enquanto intermediária entre a filosofia grega e a filosofia latino-cristã.5
Contudo, como se pretende demonstrar, a análise dos textos filosóficos em língua árabe apresenta um cenário bastante diferente desta caracterização criticada por Gutas. O primeiro filósofo da tradição, al-Kindi (II AH/IX EC)6 foi responsável não apenas por incorporar em suas obras a noção de filosofia (al-falsafa)7 como também desenvolver um projeto científico de apropriação e modificação da filosofia grega a partir da definição da falsafa como ciência da verdade (Metaph. 2.1 993b19-20).8 O grupo formado por al-Kindi ficou conhecido como o “círculo de al-Kindi”,9 constituído por filósofos-tradutores muçulmanos e cristãos falantes de grego, persa (pálavi) e siríaco.
Nas últimas décadas, os estudos sobre os textos elaborados no círculo de al-Kindi, em especial, sobre a Teologia de Aristóteles (Kitāb uṯūlūǧiyā li-Aristū)10 e o Discurso Sobre o Bem Puro (Kalām fī maḥḍ al-ẖayr),11 mais conhecido pelo título latino Liber de Causis, ganharam destaque entre os estudiosos. Em língua portuguesa, os textos foram traduzidos do árabe, pela primeira vez, em 2010 e 2024, respectivamente, como parte do corpus pseudo-aristotélico. No entanto, tendo em vista o caráter incipiente das pesquisas,12 há ainda muito a se investigar quanto à natureza dos textos e os aspectos que os unificam em um modelo que podemos chamar de neoplatonismo árabe.13
Assim, a Teologia e o Bem Puro, originalmente escritos em língua árabe, são interessantes para compreendermos as modificações que as teorias tardo-antigas aristotélicas e neoplatônicas adquirem neste contexto. A prática de associar teorias platônicas e neoplatônicas a Aristóteles, comum na antiguidade tardia, ganha novos significados no ambiente filosófico insurgente no império islâmico. Contudo, como entender a relação entre as obras produzidas neste momento, em especial, a Teologia e o Bem Puro, e os textos filosóficos em grego?
Com a finalidade de refletir sobre essa questão, a análise que se segue foi dividia em três partes. A primeira é dedicada à apresentação e crítica de alguns pressupostos adotados na interpretação da Teologia e do Bem Puro. Assim, discutirei os problemas relativos a dois pressupostos e indicarei quais são as abordagens mais recentes dos textos e como elas contribuem para a compreensão dos aspectos que tornam o neoplatonismo árabe uma vertente distinta dos neoplatonismos de Plotino e de Proclo. Na segunda parte, farei uma reconstrução, ainda que de modo breve, da estrutura metafísica comum à Teologia e ao Bem Puro a fim de indicar algumas diferenças centrais frente às Enéadas e aos Elementos de Teologia. Nas considerações finais, retomarei a discussão sobre os pressupostos historiográficos com o propósito de relacionar, seguindo os estudos mais recentes, as modificações no neoplatonismo grego encontradas na Teologia e no Bem Puro ao projeto filosófico de al-Kindi.
Pressupostos historiográficos
Na tentativa de identificar os textos que se tornaram disponíveis em árabe pelo movimento de tradução especialmente nos séculos IX-X,14 reuniram-se as obras de natureza plotiniana no corpus Plotiniana Arabica15 e as obras de natureza procleana no corpus Procleana Arabica.16 Assim, os primeiros estudos sobre o neoplatonismo árabe dividiram os textos a partir do seu autor de origem,17 assumindo que o Plotiniana e o Procleana Arabica estariam relacionados, respectivamente, às Enéadas IV a VI de Plotino e aos Elementos de Teologia de Proclo.
Dentre as obras vinculadas ao Plotiniana Arabica,18 encontra-se a Teologia de Aristóteles (Kitāb uṯūlūǧiyā li-Aristū) elaborada no século IX19 por Ibn Na‘ima de Emessa (al-Himsi),20 um dos membros do círculo de al-Kindi, que é citado como o revisor final do texto. Segundo o prólogo da Teologia:
Prólogo [primeiro capítulo] do livro do filósofo Aristóteles intitulado em grego Teologia (uthhūlūjiyā), a saber, um discurso sobre a divindade (al-rubūbiyya); o comentário (al-tafsīr) de Porfírio de Tiro traduzido (naqala) para o árabe por [...] Na‘ima al-Himsi e corrigido por [...] al-Kindi [...]. (Badawi, 1955, p. 3; trad. Belo, 2010, p. 61; Adamson, 2000, p. 59-61; Chase, 2021, p. 157-158).
Conforme a passagem, a obra seria uma versão do suposto tratado de Aristóteles intitulado Teologia ou Discurso Sobre a Divindade acompanhado do comentário de Porfírio. Tratar-se-ia, como indica o autor, de uma continuação da Metafísica, focando exclusivamente na temática da divindade (al-rubūbiyya), do intelecto (al-ʿaql) e da alma (al-nafs). Além disso, a obra também conteria o comentário de Porfírio Sírio, o mesmo Porfírio que editou as Enéadas de Plotino. Sobre a referência a Porfírio, Chase (2021, p. 157) retoma a tese de que a Teologia e as outras obras plotinianas em língua árabe teriam sido influenciadas pela interpretação de Porfírio das teorias de Plotino e, por isso, estariam mais próximas dos textos de Porfírio.
Dentre os textos do Procleana Arabica, está o Discurso Sobre o Bem Puro (Kalām fī maḥḍ al-ẖayr) ou Livro das Causas (Liber de causis).21 Entre os manuscritos, encontra-se tanto a atribuição a Aristóteles quanto a Proclo. Segundo o manuscrito Leiden, “Livro da exposição de Aristóteles sobre o bem puro” (Bem Puro Incipit, manuscrito Leiden; Badawi, 1955, p. 3; Taylor, 1981, p. 136) e, segundo os manuscritos Istambul e Ankara, “Discurso Sobre o Bem Puro. Diz-se que Proclo o resumiu (laḫḫaṣa) a partir do discurso de Platão, sendo dito que é de Platão” (Bem Puro Incipit, manuscrito Istambul e Ankara; Taylor, 1981, p. 136). Como justificativa para a atribuição a Aristóteles encontrada no manuscrito Leiden, Taylor (2021, p. 212) sugere o fato de Bem Puro ter sido produzido no interior do “círculo aristotélico de al-Kindi” (Taylor, 2021, p. 212), mesmo ambiente no qual foi elaborada outra obra de natureza semelhante, a dizer, a Teologia de Aristóteles.
De modo geral, por influência dos estudos voltados para a edição das obras de Plotino e Proclo,22 foram assumidos dois pressupostos centrais. O primeiro diz respeito ao fato de os textos que constituem os Plotiniana Arabica e os Procleana Arabica serem versões (paráfrases ou traduções)23 dos textos gregos das Enéadas IV-VI de Plotino e de algumas proposições dos Elementos de Teologia de Proclo (ou de alguma versão árabe deles).
O segundo pressuposto, decorrente do primeiro, é que eles não estariam relacionados entre si uma vez que foram originados a partir de obras e modelos filosóficos distintos. As semelhanças nos textos resultariam unicamente das semelhanças entre as posições filosóficas dos autores originais, a dizer, Plotino e Proclo. Neste sentido, a metodologia tradicional de abordar tanto a Teologia quanto o Bem Puro consiste em tomá-los individualmente e compará-los com aquele que teria sido o texto de origem de cada obra. Portanto, pelas semelhanças entre os textos, estabeleceu-se abordar a Teologia a partir das Enéadas e o Bem Puro a partir dos Elementos de Teologia.
Contudo, Adamson (2002, p. 2) aponta para o fato de as questões de estilo, fontes, autoria e datação dessas obras consideradas traduções ou paráfrases de textos gregos tirarem o foco de um dos elementos centrais do debate, a dizer, as alterações filosóficas feitas nos modelos plotinianos e procleanos. Assim,
[...] o texto [a Teologia] foi tomado como importante, primariamente, porque transmitiu Plotino para o mundo árabe, não porque se trata de uma obra autônoma com importância filosófica. (Adamson, 2002, p. 2).
Tal como ilustrado pelo posicionamento de Adamson (2002, p. 2) e pelos estudos dedicados ao neoplatonismo árabe de D’Ancona (2001), Riggs (2017) e Taylor (2021),24 a abordagem atualmente adotada busca investigar a originalidade dos textos produzidos no interior do círculo de al-Kindi. Segundo Taylor,
Os ensinamentos originais dos Plotiniana Arabica também são fundamentais para o autor desconhecido do De causis árabe [Bem Puro]. Isso porque, embora o De causis árabe [Bem Puro] empregue traduções de textos dos Elementos de Teologia de Proclo, frequentemente, elas são esculpidas para se ajustarem ao vocabulário e à doutrina encontrados nos Plotiniana Arabica tal como para se ajustarem ao raciocínio que o autor do De causis árabe [Bem Puro] constrói em seus contextos argumentativos próprios. Além disso, no caso de um dos mais importantes capítulos metafísicos do De causis árabe [Bem Puro VIII], não se encontra o uso direto de nenhuma passagem dos Elementos de Teologia; pelo contrário, quase todo o capítulo é composto por ensinamentos encontrados nas três obras que compõem os Plotiniana Arabica [...] Embora o autor do De causis árabe [Bem Puro] tenha acesso às passagens a partir de uma versão árabe dos Elementos de Teologia de Proclo, ele insere este conteúdo em seu próprio contexto filosófico já dominado por uma metafísica baseada nos Plotiniana Arabica e no círculo de al-Kindi. (Taylor, 2021, p. 213; 214).
Há, conforme aponta Taylor, uma relação significativa a ser considerada entre os textos árabes atribuídos a Plotino e a Proclo. Como será apontado adiante, as semelhanças entre os modelos metafísicos encontrados na Teologia e no Bem Puro indicam um trabalho de reformulação do neoplatonismo grego vinculado diretamente ao projeto filosófico de al-Kindi.25
O modelo metafísico da Teologia e do Bem Puro
Uma vez esclarecida a relação entre Plotino, Proclo e o neoplatonismo árabe, cabe agora compreender as semelhanças26 no modelo metafísico da Teologia e do Bem Puro. Serão apresentados, ainda que de modo breve,27 os três princípios que atuam sobre os seres nas duas obras, a dizer, a Causa Primeira ou divindade (al-rubūbiyya), o intelecto (al-ʿaql) e a alma (al-nafs).28 Segundo a Teologia:
O nosso propósito (ġaraḍunā) neste livro é discorrer primeiro sobre a divindade (al-rubūbiyya), e explicá-la na medida em que é a causa primeira (al-ʿilla al-ʾūlā), e em que a eternidade (al-dahr) e o tempo (al-zamān) lhe estão sujeitas, e que é a causa das causas e criadora (mubdiʿuha) delas através de um tipo de criação (al-ʾibdāʿ). Igualmente, o poder luminoso dá-se a partir dela para o intelecto (al-ʿaql), e dela através do intelecto para a alma universal celeste (al-nafs al-kulliyya al-falakiyya), e do intelecto através da alma para a natureza, e da alma através da natureza para as coisas que nascem e morrem, e esse acto (al-fiʿl) advém do intelecto, sem movimento [...]. (Badawi, 1955a, p. 6; tradução de Belo, 2010, p. 63; D’Ancona, 2001, p. 102; modificada).
A primeira informação encontrada no início da passagem é que a divindade (al-rubūbiyya) é o escopo (al-ġaraḍ) da investigação da obra29 e, na medida em que ela é a Causa Primeira (al-ʿilla al-ʾūlā) de todos os seres, a sua atividade é discutida em termos de criação (al-ʾibdāʿ). Dadas todas as causas e, em especial, aquelas que são consideradas primeiras, caberá ao autor da Teologia demonstrar a primazia absoluta da divindade se comparada ao intelecto e à alma.
No Bem Puro I-II, a distinção entre a Causa Primeira e as causas segundas é justificada em vista da natureza da própria causa e do que é causado por ela. Segundo o critério da universalidade,30 a amplitude da causalidade apresenta-se como um aspecto que torna a Causa Primeira mais atuante se comparada às causas segundas. Ela é causa de ser (al-ʾanniyya) e, por isso, doa aos seres aquilo que há de mais simples e, ao mesmo tempo, por se tratar do que é mais simples, estende-se a tudo que existe. Deste modo, trata-se de uma universalidade que se diz de diferentes modos, a dizer, qualitativamente, pelo valor do que é causado por ela, e quantitativamente, pelo número de seres que recebem a sua causalidade.
Outra forma de distinguir as causas encontrada tanto na Teologia quanto no Bem Puro é a relação com a eternidade (al-dahr) e o tempo (al-zamān). Na passagem do prólogo da Teologia citada acima, esta relação se explicita logo nas primeiras linhas:
O nosso propósito neste livro é discorrer primeiro sobre a divindade, e explicá-la na medida em que é a causa primeira, e em que a eternidade e o tempo lhe estão sujeitas [...]. (Badawi, 1955a, p. 6; tradução de Belo, 2010, p. 63).
Como a Causa Primeira é causa da eternidade, o primeiro tipo de ser criado é o intelecto, cujo ser é eterno. Um dos pontos centrais da atribuição da eternidade ao intelecto é o fato de ele realizar uma atividade que garante e salvaguarda a sua permanência. Assim, o autor da Teologia diz que:
[...] todo inteligível (kul maʿqūl) existe fora do tempo (bi-lā zamān) porque cada inteligível e intelecto que existe no domínio da eternidade (fi ḥayyiz al-dahr) não existe no tempo e, por isso, o intelecto não precisa recordar (al-ḏikr). (Badawi, 1955a, p. 6; tradução de Belo, 2010, p. 65; modificada).
Segundo o Bem Puro II,
Todo ser verdadeiramente tal (kul ʾanniyya bi-ḥaqq) [(a)] ou existe acima da eternidade (al-dahr) e antes dela, [(b)] ou [existe] com a eternidade, [(c)] ou [existe] depois da eternidade e acima do tempo (al- zamān). No que diz respeito ao [(a)] ser (al-ʾanniyya) que está antes da eternidade, trata-se da Causa Primeira (al-ʿilla al-ʾūlā), pois a [Causa Primeira] é causa da [eternidade]. No que diz respeito ao [(b)] <ser> que [existe] com a eternidade, trata-se do intelecto (al-ʿaql), pois é o ser segundo. Já no que diz respeito ao [(c)] ser que [existe] depois da eternidade e acima do tempo, trata-se da alma (al-nafs), pois ela está situada abaixo do horizonte da eternidade e acima do tempo. A indicação de que a Causa Primeira está antes da eternidade é evidente (bayyin). Isto porque o ser na [eternidade] é adquirido. Dizemos [que] toda eternidade é ser, mas não que todo ser é eternidade, porque o ser tem uma <amplitude> (saʿa) maior do que a eternidade. A Causa Primeira está acima da eternidade porque a eternidade é causada por ela. O intelecto acompanha a eternidade porque lhe é coextensivo, não mudando nem se alterando. A alma liga-se à eternidade [situando-se] abaixo [dela] porque é inferior quanto à influência do que o intelecto e está acima do tempo porque é causa do tempo. (Badawi, 1955b, p. 4-5; tradução de Verza e Sousa, 2024, p. 64-65).
A Causa Primeira enquanto tal não tem o ser adquirido de outro ser. Já o intelecto eterno tem seu ser adquirido de outro ser, a dizer, da Causa Primeira. A dependência ontológica com respeito a ela faz com que o intelecto dependa da Causa Primeira para se manter na eternidade. Quanto à alma, ela também se encontra na eternidade, mas, por ser a causa que origina o tempo, ela também se vincula à temporalidade. Diferentemente da causalidade realizada pelo intelecto e pela alma, a Causa Primeira é a única causa criadora (al-mubdiʿa).31
Segundo a análise de Riggs (2017, p. 299), a primeira modificação32 a ser observada em comparação aos Elementos de Teologia de Proclo é a substituição da linguagem da participação pela linguagem criacionista. O autor se refere ao ser causado pela Causa Primeira como “criado” (al-mubtadʿā) de modo que o termo denota uma doutrina da criação a partir do nada. Proclo inicia a teoria da causalidade dos Elementos de Teologia proposições 1 a 6 com a demonstração do Uno a partir da unidade dos seres. Uma vez reconhecida a existência de uma causa que assegura a unidade dos seres múltiplos, Proclo deduz a primazia do Uno. Neste sentido, nos Elementos, a causalidade primeira se apresenta inicialmente em termos de unidade, não de ser.
No que diz respeito à adoção da causalidade criadora, há uma série de consequências a serem avaliadas, especialmente se levarmos em consideração à atribuição da criação à Causa Primeira. Dentre as consequências, encontra-se, tanto na Teologia de Aristóteles quanto no Bem Puro, a compatibilização entre a criação e a natureza autossubsistente dos seres eternos (i.e., o intelecto e a alma).33 Para isso, os textos distinguem dois tipos de causalidade:34 dar ser ou criação (al-ʾibdāʿ) e dar forma ou formação (al-taṣwīr).35 Ao ser estabelecida esta distinção, é possível compreender que a atividade criadora da Causa Primeira, o dar ser, é diferente da atividade formativa do intelecto, o dar forma. Isso permite manter o monoteísmo e a singularidade da criação sem precisar recorrer aos princípios intermediários36 da metafísica plotiniana e procleana.
A derivação da multiplicidade a partir do Uno é um problema constante dessa escola filosófica [neoplatônica], e o Liber de Causis, por sua natureza, permite-nos compreender dois eventos interessantes na história do problema: por um lado, a restauração da solução plotiniana - segundo a qual o princípio mediador entre o Uno e a multiplicidade é o intelecto - solução que Proclo havia abandonado em favor de uma cadeia de mediações muito mais complexa; e, por outro lado, a integração da tese plotiniana a uma perspectiva geral que confere ao primeiro princípio os atributos de Deus dos “povos do Livro”. A versão oferecida pelo De Causis do tema da derivação da multiplicidade pertence, ao mesmo tempo, à história da recepção das Enéadas e à tipologia dos “platonismos” entre a antiguidade tardia e a idade média. (D’Ancona, 1995, p. 76).
Sobre o tema da criação direta, D’Ancona considera que este modelo de dependência ontológica sem intermediação estabelece uma relação necessária entre os seres criados e a causa criadora de modo que a ausência dela implicaria no desaparecimento de todos os seres. Enquanto causa de ser, a Causa Primeira se relaciona diretamente aos criados, em especial, aos intelectos, os quais exercem a função de causa de forma para os seres criados.37
Assim, ainda que de modo breve, buscou-se mostrar que os dois textos compartilham uma filosofia neoplatônica diferente daquela de Plotino e de Proclo ainda que influenciados pelos textos desses autores.38 Para Rosenthal (1952, p. 462), a existência de “afinidades neoplatônicas” não é suficiente para vincular um autor e um texto específico a Plotino ou a Proclo.
Considerações finais
A breve reconstrução do modelo metafísico neoplatônico comum à Teologia e ao Bem Puro permite-nos retomar a discussão sobre os pressupostos historiográficos assumidos na compreensão das duas obras. As similaridades entre os aspectos centrais da teoria metafísica encontrada na Teologia no Bem Puro mencionados anteriormente, a dizer, a interpretação da Causa Primeira segundo o monoteísmo islâmico, a teoria da criação direta ex-nihilo e o abandono da teoria da participação, indicam diferenças significativas em vista dos textos gregos.
Segundo Riggs (2017, p. 289), é preciso considerar como as modificações realizadas pelos autores árabes nos textos de Plotino e Proclo influenciaram na transmissão do neoplatonismo. A posição de Riggs mostra que, embora a originalidade da filosofia árabe tenha sido obscurecida pelos estudos que abordavam os textos como simples versões árabes do neoplatonismo grego, as pesquisas vêm adotando uma metodologia distinta, focando nas transformações das teorias antigas, especialmente, de matriz aristotélica e neoplatônica durante o processo de recepção em ambiente arabófono.
A interpretação da falta de originalidade da filosofia árabe mencionada por Kraus (1940, p. 166) e Gutas (2002, p. 5-6)39 reverbera na ideia de que a Teologia e o Bem Puro se reduzem a versões árabes de trechos das Enéadas IV-VI e dos Elementos de Teologia. Neste sentido, estaríamos nos valendo dessa abordagem ao reduzirmos os textos às fontes gregas, assumindo a identificação entre o neoplatonismo grego e o neoplatonismo árabe.
A alternativa que tem se mostrado mais frutífera é utilizar a metodologia comparativo-contextualista na análise dos textos que compõem o neoplatonismo árabe. Isso significa levar em consideração o ambiente no qual os textos foram escritos, a dizer, o círculo de al-Kindi. Conforme apontou Kraus (1940, p. 269), se o conhecimento das obras de al-Kindi fosse maior, seria possível avaliar com precisão a influência da sua filosofia sobre a Teologia e o Bem Puro. Esse procedimento nos permite abordá-los a partir do projeto filosófico do próprio al-Kindi de desenvolver uma filosofia da verdade, tomando, das fontes gregas, apenas os seus acertos. 40 Como atesta al-Kindi em A Filosofia Primeira (Al-falsafa al-ūlā),
[...] se alguém reunir o pouco que cada um deles [filósofos de outras línguas] obteve da verdade, o resultado disso é algo de extensão valorosa. Por isso, devemos ampliar o nosso agradecimento àqueles que tenham nos trazido um pouco da verdade, especialmente àqueles que trouxeram muito da verdade, pois compartilharam conosco os frutos dos seus pensamentos e facilitaram para nós acesso ao que é verdadeiro, embora obscuro, oferecendo-nos introduções que nos abrem o caminho da verdade. Sem eles, não teriam sido reunidos para nós - nem mesmo com intensa investigação por toda a nossa vida - esses princípios verdadeiros, por meio dos quais, caminhamos para as nossas questões obscuras. (Tradução de Attie Filho, 2006, p. 133; Adamson; Pormann, 2012, p. 11).
O procedimento descrito na passagem acima nos permite compreender com maior precisão as referências a Aristóteles, Platão, Porfírio e Proclo nos textos discutidos. Trata-se da tentativa de reformulação, por parte de al-Kindi, do projeto aristotélico de uma filosofia da verdade frente à necessidade de resolver as “questões obscuras” do seu tempo. Neste momento inicial do pensamento filosófico árabo-islâmico, a relevância teórica da filosofia grega foi questionada por autores de outras correntes teóricas islâmicas. Assim, as modificações realizadas nos modelos metafísicos gregos tinham em vista responder às críticas feitas pelos teóricos contemporâneos a al-Kindi quanto às incompatibilidades entre a filosofia e a tradição islâmica. Neste sentido, seguindo as análises realizadas pelos estudos mencionados,41 entende-se que os textos que tradicionalmente foram classificados como constituindo os corpora plotiniano e procleano em árabe apresentam distinções teóricas significativas frente aos textos gregos das Enéadas IV-VI e dos Elementos de Teologia.
Por isso, é possível reconhecer que, na Teologia e no Bem Puro, as adaptações monoteístas resultariam da influência do projeto filosófico kindiano. Assim, deve-se considerar a distinção entre o projeto de reconstrução do Proclus e do Plotinus Arabus e a interpretação filosófica da Teologia e do Bem Puro. A investigação do neoplatonismo árabe se torna mais complexa uma vez que a rede de relações textuais se amplia, deixando de se limitar apenas às Enéadas de Plotino e aos Elementos de Teologia de Proclo, estendendo-se às outras obras produzidas pelo círculo de al-Kindi.42
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1
Sobre os primeiros textos publicados na Europa por Flugel e Wenrich para a Royal Society of Sciences, ver Gutas (1998, p. 13). Em outro estudo, Gutas (2002, p. 6) afirma que o estudo da filosofia árabe tem sido mais ou menos constante desde que Ernest Renan publicou a obra Averroès et l'Averroisme (1852). Assim, as pesquisas acadêmicas sobre filosofia medieval árabe e latina têm aproximadamente a mesma idade, mas, se comparados, são desiguais os estudos nos dois campos. Segundo a crítica de De Libera às abordagens tradicionais da história da filosofia medieval: “No fundo, a visão de Idade Média confunde-se com o que é chamado de Ocidente Cristão, ela está nele centrada, e o que não é, simultaneamente, ocidental e cristão é posto à margem, considerado apêndice exótico, sem legitimidade própria. Assim, rejeitam-se: o que é cristão, mas não ocidental, quer dizer, os cristãos do Oriente [...]; o que é ocidental, mas não cristão, ou seja, os muçulmanos e os judeus.” (De Libera, 2004, p. 11-12).
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2
Esta consolidação mencionada decorre da mudança na abordagem dos historiadores da filosofia medieval que, segundo Gutas (2002, p. 8), falharam em seus estudos ao abordarem a filosofia árabe nas perspectivas orientalista, mística e política.
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3
De Libera (2004, p. 7-18), embora faça uma discussão mais geral sobre a história da filosofia medieval, já antecipa alguns pontos da crítica de Gutas (2002) ao argumentar que a compreensão tradicional do período medieval se restringe ao ocidente romano cristão. Neste sentido, o recorte historiográfico adotado se limitou ao espaço geográfico dominado pelo império romano, aos eventos que se deram nestes territórios e à produção intelectual greco-latina.
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5
Anteriormente a Gutas, Kraus (1940, p. 266), ainda que de modo breve, já havia feito uma crítica a esta abordagem em vista da posição de Ernest Renan (1852).
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Sobre al-Kindi, ver Adamson (2024, p. 13-50).
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O termo falsafa consiste na transliteração do termo grego filosofia. Seu uso em língua árabe se dá no momento em que as obras gregas passam a ser traduzidas (algumas através do siríaco) para o árabe.
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8
Al-Kindi se apropria da definição aristotélica encontrada em Metaph. 2.1 993b19-20 “ὀρθῶς δ᾽ ἔχει καὶ τὸ καλεῖσθαι τὴν φιλοσοφίαν ἐπιστήμην τῆς ἀληθείας”.
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Há duas versões da Teologia de Aristóteles, uma curta e outra longa. A versão mais antiga é a curta, cuja primeira edição foi feita por Dietirici em 1882. A versão longa é posterior e foi traduzida para o latim no século XVI. Para a Teologia de Aristóteles, utilizarei a abreviação Teologia, seguida do capítulo, da página e das linhas conforme a edição de Badawi (1955a). Utilizarei a tradução de Belo (2010) com modificações quando necessário.
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Sobre isso, ver Adamson (2015).
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O movimento de tradução acontece durante a expansão do império islâmico entre os séculos I AH/VII EC e IV AH/X EC. Segundo Gutas (1998, p. 38), umas das importantes consequências das conquistas do império islâmico no século II AH/VIII EC para a difusão do conhecimento foi a importação da tecnologia de fabricação de papel através dos prisioneiros chineses. Pela existência de obras a serem traduzidas em território islâmico, pelas facilidades possibilitadas pelo papel e pelas políticas de incentivo dos califas, em especial, da dinastia abássida, parte considerável dos textos em grego, siríaco e pálavi tornou-se acessível em língua árabe. Cf. Gutas (1998, p. 68-119); Pereira (2007).
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Atualmente, o Plotiniana Arabica (editado por Badawi em 1955) é constituído dos seguintes textos: a Teologia de Aristóteles, a Epístola sobre a ciência divina e os fragmentos reunidos sob o título Ditos do sábio grego. Antes da edição de Badawi, Kraus (1940), Lewis (1950) e Rosenthal (1952) já defendiam a existência de um corpus plotiniano em língua árabe. Conforme a reconstrução historiográfica de Kraus (1940, p. 264), a dependência entre tais textos e as Enéadas de Plotino foi apontada por Rose (1883) logo após a primeira edição da Teologia de Aristóteles ser publicada por Dieterici (1882). Sobre as obras que compõe o corpus Plotiniana Arabica, ver Adamson (2002, p. 5-26). Para conhecer o trabalho de Lewis (1950), ver Henry; Schwyzer (1959).
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O Procleana Arabica (editado por Endress em 1973) é constituído pelo Discurso Sobre o Bem Puro e os fragmentos dos Elementos de Teologia traduzidos para o árabe. Ver Endress (1973). A comparação entre os capítulos do Liber de Causis e as proposições dos Elementos de Teologia de Proclo foi feita, pela primeira vez, por Tomás de Aquino em seu Comentário ao Liber de Causis.
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Embora haja um longo debate sobre a autoria e datação do Discurso Sobre o Bem Puro, as semelhanças com outros tratados produzidos no interior do círculo de al-Kindi, como no caso da Teologia de Aristóteles, no que dizem respeito à apresentação da origem da obra são importantes indícios a serem considerados.
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Para uma apresentação dos estudos publicados sobre o Plotinus Arabus desde a edição de Dieterici (1882), ver Kraus (1940).
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O período de elaboração da obra é deduzido da referência ao califa al-Mu‘tasim.
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Trata-se de um autor cristão siríaco que fazia parte do círculo de al-Kindi. Ainda que o nome de al-Himsi seja mencionado no incipit do texto, muitos estudiosos (por exemplo, Adamson, 2000, p. 40) não o consideram o autor da obra. Diferentes candidatos foram indicados, um deles é al-Kindi, o qual também tem o nome mencionado no incipit. Adamson (2000, p. 61; 69-76) defende que al-Kindi foi o autor do prólogo da obra. Outro candidato seria Porfírio, cujo nome também aparece no incipit, mas, neste caso, como autor do comentário traduzido para o árabe. Contudo, seguiremos a letra do texto, atribuindo sua elaboração a al-Himsi e a sua correção a al-Kindi. Para uma discussão sobre o tema, ver Zimmermann (1986), Adamson (2000, p. 40-41; 69-76), D’Ancona (2001, p. 95-96), Chase (2021, p. 157-175).
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A versão latina é uma tradução do original árabe bastante conhecida em ambiente latino-cristão. Sobre a recepção latina do tratado, ver Calma (2019).
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Na edição das obras completas de Plotino de Henry e Schwyzer (1959), há uma seção intitulada Plotiniana Arabica.
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Segundo ter Reegen (2005, p. 55), a Teologia “é uma antologia de textos plotinianos, elaborada no círculo de al-Kindi”. Muito esforço tem sido dedicado a investigar se haveria traduções completas ou parciais das Enéadas e dos Elementos de Teologia em língua árabe e até mesmo em siríaco. Ver Zimmermann (1994, p. 40-41, no. 70; p. 46). Segundo Zimmermann (1986, p. 131), haveria um conjunto de textos que teriam sido traduzidos para al-Kindi, o qual os teria utilizado como fontes para seu pensamento metafísico. Seguindo a mesma linha, Adamson (2000, p. 12; 18) afirma que todos os três tratados árabes “representam uma fonte original” que, hipoteticamente, poderia ser identificada com a tradução ou paráfrase árabe das Enéadas IV a VI de Plotino modificada de modo original pelo “adaptador”.
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Alguns estudos publicados no século XX (por exemplo, a edição de Endress de 1973) já apontavam a necessidade de se levar em consideração o contexto de elaboração das obras e as diferenças relativas aos textos gregos. Segundo Chase (2021, p. 162): “Como Pierre Thillet apontou há quase meio século atrás, o modo mais frutífero de abordar o estudo das fontes do Plotiniana Arabica é focar nas passagens em que não correspondem ao texto grego de Plotino, mas representam interpolações ou interpretações do texto de Plotino.”
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25
Endress defende a tese contrária, ou seja, que os textos neoplatônicos teriam influenciado a posição de al-Kindi. Segundo Endress (1997, p. 54), tanto a Teologia quanto o Bem Puro forneceram a al-Kindi um sistema neoplatônico criacionista e monoteísta, servindo de paradigma filosófico para al-Kindi.
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D’Ancona (1995) já sugere as semelhanças entre os dois corpora. Alguns estudiosos têm investigado se haveria algum texto em siríaco que poderia ser a origem do modelo metafísico adotado nos textos do círculo de al-Kindi.
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27
Para uma análise detalhada das semelhanças entre as obras, ver D’Ancona (2001, p. 97-112).
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Na Teologia, a distinção já é assumida. Não há nenhum capítulo dedicado a apresentar os fundamentos da distinção entre Causa Primeira, intelecto e alma.
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Tem-se aqui o posicionamento do autor quanto ao problema aristotélico do sujeito da metafísica. Ao reconhecer que o propósito da investigação é discorrer sobre a divindade, o autor reconhece que esta ciência é uma teologia.
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Cf. Bem Puro I. Para uma análise da teoria da causalidade no Bem Puro I, ver Taylor (1978, p. 169-172).
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Segundo D’Ancona (1995, p. 121) a Causa Primeira, ser puro, guarda em si a capacidade de produzir por criação enquanto os outros princípios apenas produzem por informação.
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Riggs (2017, p. 292) lista algumas modificações importantes, dentre as quais estão o abandono do politeísmo procleano, a atribuição da causalidade criadora ao primeiro princípio, e a teoria da criação sem intermediários.
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33
No Bem Puro XXV (XXVI), o autor se refere a estes seres como “substâncias subsistentes por si mesmas” (ar. al-ǧawhar al-qāʾim bi-ḏātihī; al-ǧawhar al-muktafin bi-nafsihī; lat. substantia stans per seipsam). Ao abordar os seres autossuficientes nos Elementos de Teologia 46 a 51, Proclo tem em vista, primeiramente, as henádes (ἑνάδες), não os intelectos. Assim, a transmissão do bem e da unidade é feita pelas henádes divinas, ou divindades (ϑεῖος), segundo à “subsistência e causalidade” (καϑ' ὕπαρξιν ἢ κατ’ αἰτίαν) (Onnasch; Schomakers, 2015, p. 128; tradução de Dodds, 1963, p. 105; Onnasch; Schomakers, 2015, p. 129) de cada uma delas. Embora o estudo de Steel (2022) enfatize as semelhanças entre as passagens dos Elementos de Teologia (46-51) e do Bem Puro relativas aos seres autossubsistentes, a análise do modelo metafísico em sua totalidade aponta alterações significativas. Há, nas duas obras, diferenças não apenas quanto à hierarquia das causas, mas também quanto ao tipo de atividade que as caracteriza, especialmente no caso do primeiro princípio.
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34
Cf. Teologia de Aristóteles III (Badawi, 1955a, p. 50) e Bem Puro IV, VIII (Badawi, 1955b, p. 6-7; 11-12).
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Segundo Chase (2021, p. 162), a distinção entre produzir o ser e produzir a forma seria um indício da influência de Porfírio na elaboração dos Plotiniana Arabica.
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Outra modificação a ser considerada é o abandono da estrutura henádica encontrada nos Elementos de Teologia; o que gerou uma reformulação na explicação da individuação das almas no Bem Puro. Segundo Riggs (2017, p. 290), na medida em que o autor do Bem Puro elimina as hénades do seu modelo metafísico, ele precisará encontrar uma nova forma de explicar o princípio individuador das almas humanas. Sobre as henádes divinas, ver Elementos de Teologia 113-165.
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Sobre o papel dos intelectos na individuação dos seres criados, ver Riggs (2017).
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38
Muito se discutiu acerca das semelhanças entre os textos gregos e árabes em questão. Contudo, as diferenças filosóficas entre as obras foram negligenciadas nos estudos mais antigos. Uma comparação entre os textos Plotiniana Arabica e as Enéadas de Plotino é feita por Adamson (2002, p. 9-17).
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A abordagem criticada por Gutas (2002, p. 5-6) apontada na introdução assume a leitura que a filosofia árabe seria relevante enquanto intermediária entre a filosofia grega e a filosofia medieval latino-cristã.
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Taylor (2021, p. 225-226) aponta que a defesa, por parte de al-Kindi, da importância do estudo das ciências filosóficas gregas em Bagdá é uma resposta aos autores contrários ao estudo da filosofia. Assim, em A filosofia primeira, al-Kindi demonstra que a filosofia também trata do criador e da criação conforme os preceitos do islamismo. Por isso, al-Kindi identifica a filosofia primeira com o conhecimento da Causa Primeira.
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Cf. D’Ancona (1995; 2001; 2014), Adamson (2002; 2015; 2021), Riggs (2017), Taylor (2021), Somma (2022), Boulnois (2022) e Vlad (2022) se valem de uma leitura contextualista das obras em questão, comparando-as tanto com os textos gregos quanto com os textos elaborados no mesmo período. Embora estudos mais antigos (ver Zimmermann, 1994; Endress, 1997) tenham indicado a relação entre as obras produzidas no círculo de al-Kindi, os estudos mais recentes têm se dedicado a demonstrar e reconstruir tais relações.
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Este artigo faz parte do projeto intitulado A metafísica do autoconhecimento no neoplatonismo árabe financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.
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COSTA SOUSA, M. (2025). Plotino, Proclo e o Neoplatonismo Árabe. Archai 35, e03527.
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Disponibilidade de dados
Não aplicável.
Editado por
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Editores:
Beatriz de Paoli e Gabriele Cornelli
Disponibilidade de dados
Não aplicável.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Nov 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
04 Maio 2025 -
Aceito
21 Jul 2025
