Open-access O tirano que habita em nós à luz de República VIII e IX

The tyrant that lives within us in light of Republic VIII and IX

Resumo:

Neste artigo pretendemos abordar o modo como a tirania e o tirano são apresentados na República, diálogo platônico sobre o qual iremos circunscrever o presente exame. Nosso interesse emerge do ressurgimento, em pleno século XXI, de regimes democraticamente eleitos que, todavia, flertam com o autoritarismo. A tese defendida por Sócrates em República VIII (562b-563e), segundo a qual a tirania nasce do interior da democracia, evidencia as contradições inerentes a esse regime de governo desde seus primórdios, ajudando-nos a repensá-lo nos dias atuais. Para efeito do presente exame, acompanhamos o surgimento do tema da tirania desde o primeiro livro do diálogo, até chegar ao enfoque propriamente dito desse regime nos livros VIII e IX, em que nos deparamos com o surpreendente argumento de que em cada um de nós habita um tirano adormecido (Rep. IX, 576b4-6). A analogia cidade-alma proposta em República II, bem como a tese da alma compósita, em República IV, servem de eixos norteadores para a nossa reflexão.

Palavras-chave:
Tirania; Tirano; República; Platão

Abstract:

Hereby we intend to examine the way by which tyranny and the tyrant are presented in Republic, a Platonic dialogue around which we will circumscribe the present study. Our interest emerges from the resurgence, in the 21st century, of democratically elected regimes that, however, flirt with authoritarianism. Socrates’ thesis, presented in Republic VIII (562b-563e), according to which tyranny arises from within democracy, highlights the contradictions inherent in this government regime since its beginnings, helping us to rethink it today. For the purposes of this study we follow the emergence of the issue of tyranny from the first book of the dialogue, until we reach the proper examination of this regime in books VIII and IX, up to which we are faced with the surprising argument that inside each one of us inhabits a sleeping tyrant (Rep.IX, 576b4-6). The city-soul analogy proposed in Republic II, as well as the composite soul thesis in Republic IV work as guiding conceptions of our investigation.

Keywords:
Tyranny; Tyrant; Republic; Plato

Introdução

A tirania e sua personificação no homem tirânico são temas recorrentes na filosofia política de Platão,1 refletindo seu interesse pelos problemas mais prementes dos séculos V e IV aEC, marcados por alternâncias entre regimes tirânicos, oligárquicos e democráticos.2

Conforme salienta Ure (1920, p.2), a figura do tirano já remonta aos séculos VII e VI aEC, considerados “os séculos dos tiranos”. Entretanto, o termo τύραννος, até meados do século VI aEC, não soava pejorativo, sendo sinônimo de monarca e rei. Somente a partir de Sólon é que o termo passa a designar alguém que usurpa o poder.3 McGlew (1993, p.4-5), atenta para a complexidade da relação entre tirano e súditos, uma vez que se reflete no modo como aquele ascende ao poder e vem posteriormente a decair, justamente por obra destes. Arruzza (2018, p.32), por sua vez, ressalta que o tema da tirania era efervescente na Atenas dos séculos V e IV aEC, a ponto de produzir nos cidadãos reações ambíguas de fascinação e aversão pela figura do tirano. Assim, se por um lado a tirania passou a ser abominada pelos atenienses enquanto regime de governo, por outro, a extraordinária liberdade supostamente desfrutada pelo tirano era ansiada e elevada a modelo de vida feliz. Seria então por fascínio a tal liberdade que nos tornaríamos suscetíveis à escravidão por um tirano licencioso?

Dada a complexidade do tema proposto, dividimos o artigo em 5 seções: na seção 1 examinamos as primeiras alusões à tirania e ao tirano em República I; a seção 2 aborda a analogia cidade-alma, proposta em República II, elegendo-a como um dos eixos norteadores de nossa reflexão sobre a tirania e o tirano, juntamente com a tese da tríplice composição da alma e da cidade (República II e IV); a seção 3 dedica-se ao papel da educação vigente à época de Platão como fomentadora da tirania (República II a VI); na seção IV debruçamo-nos sobre o tema da escala descendente dos regimes políticos - da aristocracia à tirania -, bem como da alma dos respectivos governantes, constantes em República VIII e IX; na quinta e última seção, enfocamos o nascimento do tirano e sua ascensão ao governo, chamando atenção para a surpreendente conclusão, contida em República IX, de que em cada um de nós habita um tirano adormecido.

1. Primeiras alusões à tirania e ao tirano em República I

A menção à tirania e ao tirano já aparece desde o primeiro livro da República4 (cf. Beiner, 2005, p. 181), surgindo inicialmente de forma indireta na conversa de Sócrates com Céfalo, quando este alude à sua capacidade de lidar com a tirania dos apetites (329d-331c), tornando a velhice um fardo plenamente suportável. A conotação propriamente política emerge quando Trasímaco irrompe explosivamente na discussão, lançando a tese de que o tirano é o mais injusto e o mais feliz dos homens (344a5). Segundo o sofista, o tirano, mesmo sem agir de modo suave e às ocultas, mas às claras e violentamente, priva os outros de seus próprios bens em prol de si mesmo, reduz os governados à condição de escravos e não vem a ser castigado; ao contrário, é considerado feliz e afortunado, tanto na própria cidade, quanto alhures (344a-c). Note-se aí, na posição defendida por Trasímaco, a marca da fascinação pela figura do tirano a que alude Arruzza (2018, p. 32), justamente pela licença a desfrutar de uma extraordinária liberdade.

A argumentação de Sócrates que se segue até o final do livro I dá-se no sentido de demonstrar a tese contrária à de Trasímaco, a saber, a de que a justiça é sabedoria e virtude e a injustiça é vício e ignorância, com o que Trasímaco, enrubescido, acaba concordando (cf. 350e3-5).5 Para tanto, recorre a exemplos que ora se referem a cidades sendo injustas com outras cidades (369c4), ora a indivíduos agindo de modo injusto. Em ambos os casos, pelo fato de a injustiça promover ódio e dissensão, o resultado é que nem a cidade, nem o indivíduo injusto poderão ser felizes, mas sim infelizes e desgraçados (354a). Além disso, recorre também à tese de que, assim como cada órgão dos sentidos possui sua virtude própria, a virtude própria à alma será o dirigir, comandar, aconselhar (353d).

2. A analogia cidade-alma

Toda a argumentação travada no livro I conduz à introdução, no livro II, da célebre analogia entre a alma e a cidade.6 Por meio dela, Sócrates supõe ser possível acessar a natureza da justiça - o que não se lhe mostrou possível no debate com Trasímaco; consequentemente, não lhe possibilitou defender a contento de seus interlocutores a tese de que o justo é mais feliz que o injusto. À luz dessa analogia, Sócrates propõe que se investigue primeiro como é a justiça na cidade, já que “a justiça pode referir-se tanto a um indivíduo como a uma cidade inteira” (368e2-3), havendo “no que é de dimensões mais amplas uma justiça maior e mais fácil de conhecer” (368e7-8).

Convida então os amigos a observar a formação, em palavras, de uma cidade, a fim de assistir ao processo de nascimento da justiça e da injustiça (369a5-7). Em seguida, atribui a formação da cidade à incapacidade de o indivíduo ser autossuficiente, necessitando de muitas coisas (369b4-6). Nesse contexto, a ênfase recai sobre a necessidade de cooperação para a composição de uma cidade.

Desse modo, Sócrates fundamenta a heterogeneidade da cidade nas diversas demandas intrínsecas a todos e impossíveis de serem realizadas por cada um isolada e concomitantemente, como a alimentação, habitação, vestuário, defesa, governo (369e-370a). Tal heterogeneidade é equiparada àquela atribuída à alma em sua tríplice composição desejante: apetitiva, impetuosa e pensante (439a-e). Porém, ela ainda não é explorada no sentido de fundamentar conflitos internos a cada indivíduo, bem como entre interesses individuais e coletivos.

Esses conflitos, por si sós, já bastariam para pôr em risco o bom governo de ambas, alma e cidade (cf. Parry, 2007), dando ensejo à deterioração do modelo de cidade justa na direção dos quatro regimes abordados nos livros VIII e IX: timocracia, oligarquia, democracia e tirania. Tal deterioração, todavia, abordada a partir do livro VIII, é inicialmente associada apenas ao reconhecimento de que tudo que tem um começo, terá um fim (546a1-4) - razão um tanto insuficiente, haja vista a gama de conflitos possíveis no interior de cada alma e no âmbito da cidade. Não é à toa que, logo a seguir, Sócrates aponta as consequências psíquicas e políticas de um governo cuja educação descuida da harmonia entre os componentes da alma (546d-547a). Portanto, essa primeira abordagem de Platão acerca da deterioração da cidade justa parece-nos mais um recurso para dar ensejo à marcante diferença entre a Καλλίπολις (cidade construída em palavras, governada por filósofos), e as cidades existentes nos séculos V e IV aEC, tantas vezes submetidas à tirania.7

O esforço de Sócrates será, portanto, apresentar a cidade em sua boa formação, demorando-se em expor a educação que seus jovens habitantes devem receber, a fim de terem uma vida justa e feliz (353e15-354a5). Em Καλλίπολις, o filósofo, que nas cidades existentes é tratado com desprezo e como alguém sem qualificação, ocupa papel de destaque, vindo a ser o mais apto a governá-la (473e7 e segs.).

Depois de dedicar os livros VI e VII a fundamentar, do ponto de vista onto-epistemológico, a condição privilegiada do filósofo em relação ao saber como prerrogativa para o exercício de um governo justo, tem-se, nos livros VIII e IX, o exame dos diferentes regimes de governo, bem como do perfil psicológico dos indivíduos que, à luz da analogia cidade-alma, ser-lhe-iam correspondentes (cf. Araújo, 2015, p. 6-10).

Tal analogia confere originalidade tanto ao exame proposto por Platão acerca do político, quanto à psicologia aí apresentada, já que os diferentes regimes de algum modo espelham os diferentes tipos de alma. É ela que permite a Platão conferir o devido suporte à tese central apresentada no livro I da República (352d), que Sócrates opõe à de Trasímaco: a tese de que a justiça é necessária à vida feliz. Ademais, possibilita a Sócrates sair da superficialidade do argumento de Trasímaco - de que o tirano é o mais feliz dos homens por escravizar os governados em benefício dos próprios desejos (348d) - para propor um exame acurado sobre a alma e a complexidade de seus respectivos desejos (επιθυμίαι). Ou seja, ao propor que a alma compõe-se de desejos distintos, Sócrates abre caminho para refutar o argumento subjacente à tese de Trasímaco: que o atendimento imediato dos desejos apetitivos é a prerrogativa da vida feliz. É, pois, à luz de uma complexa teoria dos desejos que Sócrates consegue mostrar que os apetites, na vida feliz, devem ser submetidos à moderação e não à repleção. A fruição da vida feliz, segundo ele, requer um longo processo de educação (tema dos livros II e III), capaz de promover o bom governo de si e, consequentemente, da cidade (441e-442b3).

Ademais, através da analogia cidade-alma torna-se possível fundamentar a natureza heterogênea desta última, intrinsecamente relacionada à heterogeneidade característica da primeira (436a7-b3). Ou seja, assim como a cidade, a alma é ao mesmo tempo una e múltipla (443e), havendo uma relação de equivalência entre os constituintes de uma e os constituintes da outra (441c5-7).

Ainda baseado em tal analogia (435e e segs.), Sócrates defende que a menor parte de uma e da outra são precisamente as mais aptas a um governo justo (de si mesmo e da cidade) (442c4). Já a maior parte de ambas estará mais sujeita aos excessos (442a5-b3), favorecendo, no limite, a emergência da tirania. Este é o tema do livro VIII, que dá início ao que julgamos ser outro tema central do diálogo: o exame dos diferentes regimes políticos. A deterioração da cidade bem governada - e, consequentemente, da alma - dá-se com a emergência da desarmonia entre seus constituintes, atribuída à inobservância dos parâmetros matemáticos e astronômicos que devem regular o período de nascimento dos novos cidadãos (546a-547b).8 Tal desarmonia gera a discórdia e o ódio entre os constituintes da cidade e da alma, dando ensejo a conflitos que só se acirram à medida que a cidade e a alma adoecem.

Os quatro regimes apresentados são: timocracia,9 oligarquia, democracia e tirania, concebidos como consequências de uma deterioração do bom governo de Καλλίπολις. Tais regimes são pensados em sucessão de um ao outro em uma espécie de escala descendente, até decair no governo tirânico. Note-se que a decadência de um regime para aquele que lhe sucede logo abaixo é associada ao apego excessivo àquilo mesmo que cada um mais preza (562b-c). Assim, pelo excesso de amor à honra guerreira, a timocracia descuida do governo conduzido pelos sábios e daí resulta um desequilíbrio que favorece o surgimento de ricos e pobres, dando origem à oligarquia, caracterizada pelo governo dos primeiros. O fosso entre ambos, decorrente do excesso de amor à riqueza dos oligarcas promove a emergência de revoltas por parte do δέμος.10

No caso da democracia, cujo maior valor apontado no diálogo é a liberdade, é o seu excesso que conduzirá à emergência da tirania. Assim, a tirania não é apresentada como um regime político que se opõe à democracia, mas como oriunda de seu próprio interior.11

3. A educação como produtora da tirania

A respeito desse grandioso projeto que constitui a República, Arruzza (2018, p.101) adverte que o extenso exame concedido à tirania, que se inicia no Livro VIII e se estende por todo o Livro IX, ocupa muito mais espaço do que a análise dos três outros regimes anteriormente abordados, incluindo aí a democracia. A autora, diferentemente de alguns comentadores que tentam descolar da pessoa de Platão as críticas à democracia contidas no diálogo (Cf. Arruzza, 2018, p.4-5),12 supõe que tais críticas seriam direcionadas à democracia de seu tempo, sobretudo a de Atenas, caracterizada por constantes guerras e golpes intestinos, ocorridos no último terço do século V e início do século IV aEC.

O alvo das críticas de Platão à democracia (Arruzza, 2018, p.131), incide sobre a educação recebida pelo povo.13 Segundo a autora, Sócrates aponta na democracia uma tendência a formar cidadãos propensos à tirania, dada à educação que estimula o excesso, tornando o povo incapaz de escolher adequadamente seus governantes, a ponto de vir a eleger justamente aquele que impõe seus próprios desejos tirânicos sobre os desejos tirânicos dos demais. Ora, Platão responsabiliza diretamente os sofistas por essa educação que julga corruptora da natureza dos jovens, uma vez que a eles era amiúde confiada a tarefa pedagógica na democracia.14

Assim, não é à toa que no Livro VI Sócrates se dedique a discorrer sobre a natureza da alma filosófica para, em seguida, “examinar” a natureza da alma dos sofistas. Estes são apontados como imitadores dos verdadeiros filósofos e, por essa razão, responsabilizados por provocar o descrédito da filosofia, dado o mau trabalho que realizam. Além disso, serão responsabilizados pela consequente perseguição dos filósofos na cidade.15

Uma vez que Sócrates foi por vezes considerado um sofista,16 tendo inclusive pesado sobre si a acusação de corromper a juventude,17 tudo se passa como se Platão pretendesse atribuir tal confusão de papéis a uma espécie de má fé por parte dos próprios sofistas, que se fariam passar por filósofos. Nesse sentido, seriam os sofistas e não Sócrates os responsáveis pela educação corruptora da juventude, tendo contribuído para o descrédito da filosofia e do filósofo na cidade. Assim, o estilo sofístico de proferir longos discursos para grandes audiências é tratado como fator intrínseco à democracia, uma vez que ela leva as decisões para o âmbito das multidões, persuadidas por oradores e demagogos. Tal atitude, como ressalta Sócrates no Górgias (449b-c), não condiz com a do filósofo, que costuma dialogar junto a poucos para examinar as questões que emergem do interior do próprio diálogo. Em República IV (492b5-492d3), reitera essa posição, afirmando que não haveria, no seio das multidões, espaço para a reflexão e/ou ponderação acerca do governante que deve ser escolhido, ou de qualquer outra decisão importante, mas apenas para a adesão àquilo que entoar a massa. Com efeito, é Sócrates mesmo quem admite a impenetrabilidade da filosofia nas multidões: (493e3-494a5).

Outro ponto que consideramos importante nesse exame levado a cabo em República VI como uma espécie de preparação para o que será desenvolvido em VIII e IX - isto é, a tese de que a tirania é cria da democracia -, é a suscetibilidade que Sócrates admite existir nas almas filosóficas em relação a se tornarem tiranas (491e9-492a6). As almas filosóficas, naturalmente capacitadas a “reconhecer que o que existe é o belo em si e não a infinidade de coisas belas” (493e3-494a1), assim como o que é bom e justo em si são, curiosamente, as mais suscetíveis de ser corrompidas pela educação dos sofistas (495a5-11). Nessa perspectiva, é o sofista (e não o filósofo), o tipo ideal para posar como educador da democracia; a superficialidade ou falsidade de seus ensinamentos não seria um obstáculo, mas um atrativo para as multidões pouco afeitas ao exame detido das questões que lhes são apresentadas. Essa corrupção leva à promoção de supostos saberes que atendam a desejos supérfluos, legitimados como se necessários fossem.

É justamente essa identificação da democracia a um regime que promove a ignorância travestida de sabedoria veiculada pelos sofistas que fornece algumas pistas para entendermos o movimento do pensamento de Platão na República, no que tange ao entrelaçamento que propõe entre ética, pedagogia, psicologia e onto-epistemologia, a fim de orientar sua reflexão sobre política. Com isto, estabelece um quadro abrangente a partir do qual a filosofia surge como alternativa privilegiada em relação à sofística. Nesse sentido, na Καλλίπολις, o governo do filósofo surge como o remédio certo para combater a injustiça de todos os outros regimes, tanto no plano do cidadão quanto no da pólis.

Entretanto, segundo aponta Arruzza (2018, p. 111) - e com quem concordamos inteiramente a esse respeito -, todo esse percurso que leva à construção da Καλλίπολις governada por reis filósofos não tem como objetivo principal propor um programa a ser posto em prática, mas um exame bastante astuto, diríamos, das formas de governo existentes. A ideia, portanto, seria muito mais mostrar que nenhuma delas é capaz de promover a justiça, uma vez que nenhuma convém à natureza do filósofo. Antes, deturpam-na e alteram-na “como semente exótica jogada em terreno estranho, que perde as características muito próprias e se vê na contingência de acomodar-se às novas condições ambientais” (497b4-7). Com isto, Platão parece tentar eximir a filosofia de sua má reputação no âmbito dessas formas de governo, responsabilizando-as pelo seu descrédito. Assim, vistas a partir da construção de Καλλίπολις, torna-se mais fácil apresentá-las como regimes decadentes. Mais precisamente, como regimes que se deixam decair justamente em função de não se orientarem a partir do que mais importa, a saber, o amor ao saber. Ao invés disso, orientam-se, no caso da timocracia, pelo amor à honra. Esse regime “criado” por Platão não corresponde a nenhum regime existente, mas compõe o quadro de equivalência entre as três partes da alma e as três partes da cidade, proposto, conforme já mencionado, desde República IV. Ao elevar essa equivalência à condição de pressuposto, Platão consegue também inserir a importância da educação orientada pelo amor ao saber como condicionante da justiça. Para ele, a filosofia não floresce em meio às multidões, mas em interações entre poucas pessoas que favoreçam o exame pelo diálogo conduzido através de perguntas e respostas.

4. A escala descendente dos regimes políticos e a alma dos respectivos governantes

Retomando o processo de deterioração dos regimes em República VIII, os cobiçosos de riquezas (548a5-6) acabam por descuidar da defesa da πόλις por priorizarem o dinheiro, promovendo a decadência da timocracia e a emergência da oligarquia. Isto concorre tanto para o surgimento de ricos, cujos filhos passam a ser incitados ao luxo, quanto de um vasto contingente de pobres que, por sua vez, lutarão como puderem para gozar de alguns direitos. É então que se origina “uma cidade sedenta de liberdade” (562d), dando ensejo à democracia. Em cada um desses degraus, Sócrates associa aquilo que caracteriza cada um dos regimes à educação que recebem seus respectivos cidadãos.

A partir dessa educação, são construídos os perfis do timocrata (545b-553a), do oligarca (553a-564a), do democrata (562a-569c) e do tirano (livro IX), em escala descendente relativa ao perfil do filósofo, traçado entre os livros V e VII. A tese de que é o descaso ao conhecimento que promove a decadência, tal que o amor ao saber seja trocado por outros amores - à honra, à riqueza, à liberdade e aos prazeres - tem como corolário uma outra tese: a de que é justamente em nome daquilo que mais defende que cada regime resvala para o que lhe sucede no degrau abaixo (562b1-c8).

No caso da democracia, conforme mencionamos acima, é o amor à liberdade que a conduzirá à tirania. Isso porque a democracia, ao elevar como sua principal prerrogativa o amor à liberdade, difunde uma noção de liberdade atraente, porém suscetível ao excesso e, consequentemente, enganadora, que concerne aos desejos apetitivos supérfluos, não ao desejo pelo saber.

Lembremos que, à luz da analogia cidade-alma, os regimes são justapostos a cada uma das partes da alma, seguindo uma escala descendente. Assim, a democracia seria o regime correspondente à parte apetitiva da alma (439d-441e). Consequentemente, a educação que seus cidadãos recebem descuida da liberdade que realmente liberta - a que proporciona a autonomia do pensamento. Com isso, torna os cidadãos incapazes de discriminar e hierarquizar os próprios desejos, de modo a confundir os que são necessários - fome, sede, sexualidade, segurança, conhecimento - com os que são desnecessários e relacionados ao excesso: gula, lascívia, opulência, truculência, privilégios (561a). Face a esse quadro, seus cidadãos acabam se tornando escravos e não senhores dos próprios desejos, a ponto de se deixarem conduzir de bom grado pelos demagogos. É curioso que, nesse contexto, os sofistas, que no livro VI foram retratados como os vilões da democracia, sendo responsabilizados pela má educação nesse regime, sejam como que ofuscados pela importância conferida aos demagogos.

Os demagogos são retratados como zangões (559d) da colmeia/πόλις e correspondem a membros da oligarquia que, pelo amor à riqueza, acabaram por perdê-la, vindo a tomar parte, na democracia, da primeira das três subdivisões atribuídas por Sócrates (564b9-c2) a esse regime. Assim, fazem parte do primeiro grupo: a caterva de ociosos e esbanjadores, comandada pelos mais corajosos, com o cortejo dos pusilânimes (564b5-7). Eles proliferam tanto nas democracias como nas oligarquias, com a diferença de serem muito mais virulentos naquelas do que nesta.18 Com efeito, na democracia, eles põem-se à frente de todos os cidadãos, com raras exceções. De um lado, tiram o dinheiro dos ricos, componentes do segundo grupo, apelidados de capim de zangões (564e); de outro lado, atuam junto ao povo, componente do terceiro grupo, que vive do próprio trabalho e não dispõe de muitos recursos.19 Porém, como forma o grupo mais numeroso, adquire força quando reunido em assembleias. É então que os demagogos tornam-se ainda mais insidiosos e redobram seu trabalho de deterioração das almas dos jovens para se tornarem capazes de manipular as multidões. Na condição de oligarcas decadentes, tornam-se os responsáveis por transformar as almas oligárquicas em democráticas (559d8-e2).

É nesse contexto que tornam uma jovem alma filosófica vazia de conhecimentos, dela apoderando-se (560b7-9). Com efeito, os zangões/demagogos passam a conviver constantemente com esse jovem, de modo a aguilhoar sua alma com valores invertidos: a modéstia e a moderação nos gastos é ensinada como rusticidade e sovinice; a vergonha, como tolice; a temperança, como moleza. Inversamente, a desmesura é elogiada como boa educação; a desordem passa a ser entendida como liberdade, a falta de vergonha, como coragem.20 Em seguida, tratam de fazê-lo gastar seu dinheiro, esforço e tempo, tanto com os desejos necessários, quanto com os desnecessários (561a), tornando-o, como já mencionado acima, incapaz de hierarquizar seus desejos e prazeres.21 E quando é confrontado com tal incapacidade, rebate sempre do mesmo modo: todos os prazeres são iguais e precisam ser tratados da mesma maneira (561c5-6).

O perfil do homem democrático traçado em 561c9-d10 é deveras caricatural e presta-se a tornar plausível mais uma das importantes teses do diálogo, a saber: que do excesso de liberdade atribuído à democracia emerge a tirania. A pergunta que Sócrates formulara pouco antes é bastante reveladora: Não é desse modo (...) que um jovem educado no regime dos desejos necessários se inicia na liberação dos inúteis e indulgentes? (561a1-4).

Sócrates prossegue seu exame da democracia, de modo a reiterar sua tese de que todos os regimes perecem justamente em virtude do que mais almejam. Ao supor que na democracia cada um teria liberdade para fazer o que bem quisesse, o resultado seria, além da emergência dos mais variados tipos de indivíduos e de constituições, o descuido para com os compromissos coletivos por parte dos mesmos, incluindo-se aí os próprios governantes. Concedendo aos cidadãos a liberdade de seguir apenas os seus desejos, a democracia é descrita como uma cidade anárquica e multicolorida (558c4-5), que poderia ser prazerosa, caso não implicasse em repartir de modo igual uma espécie de igualdade entre os iguais e os desiguais (558c5-6).

Tal afirmação soa ambígua frente ao que Sócrates diz pouco antes, a saber: que a democracia reparte de modo igual uma certa igualdade entre iguais e desiguais (558c5). Aí, precisamente, ele se refere à errônea atribuição de igualdade aos desejos que são iguais (necessários) e aos que são desiguais (desnecessários). Porém, ele parece se referir também à igualdade dos cidadãos apregoada na democracia: a julgar pela diferença entre ricos e pobres, seria falsa. Nesse sentido, a tripartição da cidade democrática proposta por Sócrates em 564c10-d2 parece apontar para uma desigualdade intrínseca à democracia.

A ironia de Sócrates reaparece quando ele se refere ao último regime e ao último homem a examinar: a tirania e o tirano (562a). Ele os qualifica com superlativos: a mais bela cidade e o mais belo homem. Ora, se mais adiante ele os descreve como o regime mais violento e o homem mais cruel e usurpador, os elogios soam como escárnio a Trasímaco, quando afirmou ser o tirano o mais feliz dos homens porque praticar injustiça lhe proporciona maiores vantagens (344a-c).

5. O nascimento do tirano

Abordaremos agora como nasce a tirania do interior da democracia. Em 562a7-8, Sócrates reitera que a origem democrática da tirania é quase evidente. Assim, ele procede, de 562a7 a 564b2, a uma minuciosa descrição da passagem de um regime ao outro, ressaltando que é o excesso de liberdade que leva à inversão dos papéis mais consagrados, como os de governantes e governados, pais e filhos, mestres e alunos, cidadãos e estrangeiros, senhores e servos. A democracia, nesse sentido, é a bela e sedutora raiz de onde brota a tirania; se a mesma doença atacou a oligarquia causando-lhe a ruína, agora ela emerge de forma mais intensa devido à falta de freio, reduzindo a democracia à escravidão aos próprios apetites (563e4-564a11)

O exame do tirano traz novamente à baila a figura dos zangões, já aludida em 552c. Trata-se da raça de ociosos e esbanjadores (564b4-5), oriundos da oligarquia decadente que, podendo dispor ou não de ferrão, assumem diversas posições na cidade. Na democracia, são causadores de desordem onde quer que se instalem. Seu intuito é gerar desconfiança e conflito, a ponto de promover uma subdivisão da cidade em três setores, à medida que se põem no campo intermediário entre ricos e pobres - estes mais numerosos -, vindo a colocá-los uns contra os outros. Propagam entre ambos o medo recíproco de permanentes ameaças: nos pobres geram o medo de os ricos (antigos oligarcas) virem a derrubar a democracia e restaurar a oligarquia. Inclusive, acusam de oligarcas e conspiradores os próprios cidadãos pobres que porventura reivindiquem mudanças, com o fim de diminuir a exploração a que são submetidos (565b). Junto aos ricos, amedrontam-nos com ameaças de que os pobres irão usurpá-los de suas posses, vindo a exilá-los ou a executá-los. Alguns chegam a assumir um posto de chefia e formam com seus seguidores, bem como com os trabalhadores manuais e destituídos de posses (565a1), uma coalizão contra os ricos. Influenciados por esses supostos líderes e esperando obter algum mel deles, os pobres a eles se associam em uma acirrada disputa política contra os ricos. Acusados de conspirar contra o regime democrático, os ricos são levados à justiça e despojados de seus bens. A maior parte dos bens confiscados passa para as mãos dos zangões com ferrão (565c3) que, para ganhar apoio e respeitabilidade, distribuem o pouco que resta desses bens entre os famintos.

Um clima deletério se instala na cidade: os litígios fervilham e, com eles, crescem o ódio e o ressentimento entre os demagogos e os ricos despossuídos. A prática da difamação profissionaliza-se, a cidade se transforma em um grande tribunal onde os zangões e os ricos maculados se enfrentam em uma implacável contenda, cujo desfecho inevitável é a ascensão do tirano ao governo.

Com efeito, o medo gerado entre ambas as subdivisões da cidade democrática é manipulado pelos demagogos com a promessa de proteção contra as ameaças recíprocas na pessoa de um líder; este deve ser forte, capaz de manter ambos os segmentos sob seu comando. Essa falsa promessa levaria o povo a eleger ao governo o representante maior de todos os excessos: o tirano (565c9-d2).

Os demagogos, portanto, encarregam-se de forjar, entre os jovens mais talentosos, um líder supostamente capaz de proteger ambos os segmentos da cidade democrática. Esse líder é educado sob o regime do completo desregramento (572e), denominado plena liberdade (572e1-2) por seus corruptores. Porém, logo que se dão conta de que não conseguem dominar o jovem tirano, os demagogos/zangões encarregam-se de insuflar-lhe o poderoso ἔρως (éros): uma espécie de zangão gigantesco dotado de asas (573a1-2). Caracterizado nesse contexto como aquele que preside os desejos ociosos, ἔρως desencadeia também a loucura, transformando finalmente o jovem no tirano que governará com mão de ferro a já extinta democracia.

A respeito do poder de ἔρως na alma do tirano, a menção de Sócrates é digna de nota: “E não será por isso (...) que desde muito o amor é denominado tirano?” (573b9-10). Note-se que em 499c1-2, Sócrates refere-se a um ἔρως verdadeiro pela verdadeira filosofia, decorrente de uma inspiração divina, como única forma de salvaguardar as almas filosóficas que, submetidas a regimes viciosos, tendem a se corromper e a se desviar de sua vocação (495b3-8).

Assim, tudo se passa como se o tirano fosse apresentado como um filósofo corrompido. Isto porque um e outro seriam dotados de natureza potencialmente propensa a grandes aspirações. O que diferenciaria o destino de um e outro em direções opostas - o filósofo como aquele que ama o saber e o tirano como aquele que ama o poder - seria a educação recebida na cidade. Assim, o ἔρως, insuflado em um e no outro em versões opostas, atua de modo decisivo sobre a alma de cada um. No caso do tirano, conforme já mencionado, sua educação é conduzida por demagogos e direcionada para que o ἔρως conte com a loucura e outros desejos desnecessários (573a6-b6).

Tem-se assim o tirano como alguém que, apesar de potencialmente dotado de atributos que poderiam torná-lo capaz de promover os maiores bens à cidade, é, no entanto, totalmente suscetível à corrupção de sua alma por parte dos zangões. Tal suscetibilidade é atribuída ao processo de degeneração sucessiva dos regimes e suas respectivas formas de educação. Nesse sentido, o tirano é descrito como nascendo em uma família cujo pai, filho de oligarca parcimonioso quanto aos gastos, torna-se permissivo a ponto de educá-lo sob a égide do desregramento, guardando, todavia, alguns resquícios do comedimento resultante da avareza paterna. Assim, enquanto o pai e outros parentes ainda tentam incutir-lhe desejos moderados (572e2-3), seus corruptores, magos habilidosos, reforçam os desejos contrários. É, pois, essa a figura que será apresentada pelos demagogos como esperança de apaziguamento dos conflitos entre os ricos e os pobres. Como alguém com tal perfil pode persuadir uns e outros de que será capaz de cumprir tamanha promessa, isto é o que precisamos examinar. Nesse sentido, a conexão intrínseca entre o psíquico e o político pressuposta no diálogo, à luz da qual a heterogeneidade da alma equivale à da cidade, mostra-se de grande valia para formularmos algumas hipóteses.

Com efeito, enquanto a divisão no âmbito da cidade é algo óbvio - afinal, uma cidade não pode ser constituída de cidadãos que desempenhem a mesma função -, a divisão da alma só se torna evidente na emergência do conflito. A analogia cidade-alma, portanto, fundamenta a necessidade de que a alma também seja governada por um de seus constituintes. Na cidade justa, é o filósofo o mais apto a governar, mantendo a harmonia entre os que a abastecem e os que a protegem, enquanto na alma é o λογιστικών (439d5), por meio do qual ela pensa, reflete, pondera; sendo o princípio mais sábio, é o mais capaz de cuidar de toda a alma (441e).

Todavia, à medida que a cidade se deteriora, o conflito se torna desgovernado e as soluções encontradas serão cada vez mais deletérias. Uma vez escolhido tanto pelas elites oligárquicas, quanto pelo δέμος, a partir do eficiente trabalho dos demagogos, o tirano saberá se mostrar, no início, afável e benevolente com todos, enchendo o povo de promessas de perdoar dívidas e distribuir terras (cf. 566e-2-5). Porém, seu intuito é o de manter o conflito e a guerra como ameaças iminentes, a fim de se manter no papel de protetor. Enquanto isso, usurpa toda a riqueza que estiver a seu alcance através da cobrança de impostos cada vez mais altos, com a desculpa da constante necessidade de aquisição de equipamentos de guerra para a defesa do povo. No caso de algum cidadão não se deixar dominar, trata de livrar-se dele, entregando-o a um povo inimigo ou acusando-o de conspiração, a fim de que não represente mais ameaça a seu poder.

Entretanto, não tardará a uma parte do povo voltar-se contra os desmandos do tirano, tal que muitos serão perseguidos, exilados ou executados. Mesmo assim, seus inimigos não param de crescer, o que implicará no constante aumento de sua guarda pessoal, demandando novos impostos. Quando, enfim, o povo se apercebe do engodo em que se deixou cair, advém-lhe o ódio ao tirano, a partir do que se iniciam as investidas de derrubá-lo do poder. Todavia, o estrago já está feito, a justiça nunca esteve tão ausente. Assim, é na medida mesma do sonho de liberdade e fuga da escravidão que o povo encontra esta última na versão mais amarga e insuportável: a tirania (569b10-c5).

Conclusão

Tendo mostrado que a escravidão é o destino do povo tiranizado e do tirano (escravo de seus apetites), é de se espantar a fascinação por tal figura demonstrada na fala de Trasímaco em 348d, bem como a suposta felicidade atribuída ao injusto por Glauco e Adimanto (359a e segs.), quando pedem a Sócrates para desenvolver melhor seu argumento de que o justo é feliz e o injusto infeliz. Glauco, mesmo discordando do que se dispõe a apresentar, apela para uma espécie de louvor do homem injusto, a fim de que Sócrates possa deveras (e não apenas aparentemente) convencê-lo do contrário. Para tanto, lança mão do mito de Giges (359d).22

Todo o percurso empreendido por Sócrates - dos livros II a VIII - para fundamentar sua tese e dar a resposta que exigiram seus companheiros é finalmente apresentada em República IX: escravo de seus próprios apetites e rodeado de inimigos ou aduladores por todos os lados, o tirano figura como a mais infeliz de todas as formas de vida.

A analogia cidade-alma ajuda-nos a vislumbrar uma possível razão para a persistente fascinação pela figura do tirano que chega até os nossos dias. As estratégias políticas armadas pelos zangões de ontem e de hoje com o intuito de nos manipular e ludibriar para que venhamos a apoiar projetos que apenas parecem nos beneficiar, mas que só nos prejudicam, encontram em nossa alma um poderoso aliado.

Com efeito, em República IX Platão nos ensina que em todos nós, há “desejos terríveis, selvagens e irrefreáveis” (572b4-5), até mesmo nos indivíduos aparentemente ponderados (572b5-6), o que se torna manifesto nos sonhos” (572b8-10). E o tirano é justamente aquele que faz em vigília o que só ousamos fazer no plano onírico.23 Sobre isso, Connell (2018, p. 463-464) ressalta que, para Platão, o tirano tem desejos, visões e estilo de vida paranômicos (572b). Lembra que o termo paranômico empregado por Platão é justamente o que é frequentemente usado na Atenas dos sécs. V e IV para se referir a personagens tirânicos, com foco também voltado para o ἔρως.

Talvez a sedução exercida pelo tirano em nós se deva justamente ao fato de ele realizar, despudoradamente, à luz do dia, o que jamais nos permitiríamos a não ser em sonhos: desejos paranômicos cuja realização parece benéfica pelo prazer imediato que proporciona, mas que, em seguida, provoca toda sorte de danos - ao corpo, à alma e à cidade. Portanto, se só nos permitimos realizar em sonhos o que o tirano realiza em vigília é porque há também em nós, assim Platão põe Sócrates a explicar no livro IX (588c e segs.), algo para o qual apela para uma imagem um tanto insólita, uma vez que trata de representar a alma humana. Com efeito, Sócrates convida seus interlocutores a modelar em pensamento a imagem de um monstro policéfalo, seguida da de um leão e a de um ser humano. Com essa tríplice imagem, correspondente àquela do livro IV (439d e segs.), a alma humana se apresenta em sua dimensão conflitante, predominantemente feroz. Porém, é justamente através dessa imagem assustadora de nós mesmos que Platão nos ensina que o ser humano que há em nós adverte-nos de que a vida do tirano, longe de ser um sonho em vida, é um terrível pesadelo.

Nesse sentido, a República, em seu afã de mostrar que o homem justo é mais feliz que o injusto, bem pode ser pensada como uma espécie de tratado sobre o conflito e seus desdobramentos em modelos de alma e cidade - justas e injustas. À luz da analogia cidade-alma, ambas são intrinsecamente heterogêneas, de modo que o conflito é inescapável. Porém, essa mesma heterogeneidade pode levar não só a mantermos nosso tirano adormecido, mas também a não sucumbir à tirania. Daí a República nos mostrar que a filosofia pode nos ensinar a manejar conflitos, mantendo a heterogeneidade da alma e da cidade, bem como do ἔρως, sob o governo do λόγος.

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  • WILLIAMS, B. (2001). The analogy of City and soul in Plato's Republic In: WAGNER, E. (ed.). Essays on Plato’s Psychology Lanham, Lexington Books, p. 157-168.
  • 1
    Cf. Fedro 248c-e; Político 276d-e, 291e, 301b-c, 302c-d; Leis III 693b-c, 696a, IV 709e-711b, 712c-d, 714d, 720c, V 735d, 757d, VI 777e, VIII 832a, 832c, IX 859a, 863e, X 900a; Carta I: 309c-e; Carta III: 315d, 319d; Carta VII: 327a, 329b-e, 333c-334d, 339a, 340b, 349a-b; Carta VIII: 352c-d, 353c-354e, 356a, 357b; Carta XIII: 360a.
  • 2
    A respeito da relação entre os regimes políticos na Grécia Clássica, cf. Heródoto. Histórias, V, 66.2; 69.2; D’Anjello (2016); Strauss (1986, caps. 1 e 2); D’Ambrós (2017, p.99, n.4).
  • 3
    Cf. Parker (1998, p.152, nota 27; p. 156).
  • 4
    A tradução de A República utilizada no presente artigo é a de Carlos Alberto Nunes (2016), edição bilíngue, com raras modificações. Face ao limite de páginas, suprimimos citações, textos e a maioria das expressões em Grego.
  • 5
    Cf. Nicholson (1974).
  • 6
    Cf. Ferrari (2005). Acerca das inconsistências de tal analogia, Smith (2001, p. 116); Williams (2001, p. 161-163).
  • 7
    Ver referências sobre a tirania na Grécia dos séculos V e IV aEC na nota 2, acima.
  • 8
    Cf. Rep. III, 415a-b; VIII, 547a.
  • 9
    Neologismo criado por Platão para representar o regime pautado no amor à honra (φιλοτιμία), característico de uma cultura guerreira. Sobre esse ponto, cf. Oliveira (2017, p. 42, nota 32).
  • 10
    Cf. Rep. VIII, 557a 1-4.
  • 11
    Cf. Arruzza (2018, p. 14); Sørensen (2016); Tvedt (2021); Kraut (2018); Rowe (2018); Saxonhouse (1998); Jonas (2023); Topaloğlu (2014); Giorgini (2009); Williams (2001); Smith (2001).
  • 12
    A respeito da estratégia de “podar” o pensamento de Platão a fim de que pareça mais aceitável aos defensores modernos da democracia, ver Havelock (1963, p.7).
  • 13
    Entretanto, as falhas e vícios da educação em cada um dos regimes anteriormente analisados já vinham sendo apontados por Sócrates: na timocracia, cf. 548b8-10; na oligarquia, cf. 552e5-6.
  • 14
    A crítica de Platão à democracia é por vezes associada a uma espécie de represália à condenação de Sócrates por um governo democrático instalado após a derrota do regime dos Trinta Tiranos. A esse respeito, cf. Strauss (1986, p 94-96); Cornelli & Chevitarese (2010, p. 211-224). Na Sétima Carta (325b1-c1), Platão evita aprofundar-se nas razões propriamente políticas que levaram Sócrates à condenação, atribuindo-a a atos de vingança individual.
  • 15
    Cf. Rep. VI, 490e-491a.
  • 16
    Cf. Aristófanes, As Nuvens, 144; 1105; As Rãs, 1491; Aves, 1555. Ver também Lísias, Contra Andócides, 6.33
  • 17
    Cf. Platão. Apologia, 24b6.
  • 18
    Acerca da diversidade de interpretações do gênero dos zangões, cf. Peigney (2016, p. 280); Montoya (2021, p. 44).
  • 19
    Sobre a parasitária relação entre os ricos e o povo na República, cf. Fissell (2011, p. 230).
  • 20
    Sobre essa inversão, cf. Sikkenga (2002, p. 393).
  • 21
    Sobre a hierarquia, e embate, entre desejos e prazeres, cf. Peigney (2016, p. 277); Arruzza (2018, p. 169).
  • 22
    A respeito da relação entre o mito do anel de Giges e a tirania, ver Menezes (2018).
  • 23
    Sobre os desejos paranômicos (571b2-8) e as visões paranômicas em sonhos (572b5-7), próprios de tiranos históricos da Atenas dos séculos V e IV a.C., cf. Connell (2018, p. 463-464).
  • MONTENEGRO, M. A. P.; CASTRO, H. L. (2025). O tirano que habita em nós à luz de República VIII e IX. Archai 35, e03502.

Editado por

  • Editora:
    Pilar Spangenberg

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jun 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2023
  • Aceito
    02 Out 2024
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