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Escrevendo orações. Linguagens apotropaicas nos Manuscritos do Mar Morto

Writing prayers: apotropaic languages at Dead Sea Scrolls

Resumo:

O problema de como se proteger do mal é um tema recorrente em diversos períodos históricos e sociedades. Textos apotropaicos judaicos, particularmente no período do Segundo Templo, trazem uma variedade de linguagens associadas com proteção. Esse artigo mapeia as diferentes linguagens apotropaicas descritas nos Manuscritos do Mar Morto, com enfoque para o uso da escrita como forma de registrar e preservar orações.

Palavras-chave:
Manuscritos do Mar Morto; orações; apotropaico; Segundo Templo

Abstract:

The problem of how to protect yourself from harm is a recurrent theme in many historical periods and societies. Jewish apotropaic texts, particularly in the Second Temple period, bring a variety of languages associated with protection. This article delineates the different apotropaic languages described in the Dead Sea Scrolls, focusing on the use of writing as a way of recording and preserving prayers.

Keywords:
Dead Sea Scrolls; Prayers; Apotropaic; Second Temple

Introdução

Este trabalho é uma breve exposição sobre as diferentes formas de proteção contra espíritos malignos encontradas nos Manuscritos do Mar Morto. Vou explorar elementos escritos que podem ser considerados apotropaicos e que constituem as diversas linguagens de proteção contra criaturas malignas preservadas nos Manuscritos.

Como já foi apontado por muitos estudiosos, na antiguidade a escrita era uma atividade que frequentemente cumpria mais do que o papel de coleta e preservação de conhecimento. Os textos antigos eram frequentemente escritos em um formato que só era legível pelas pessoas que já os conheciam bem, (Carr, 2005CARR, D. M. (2005) Writing on the Tablet of the Heart: Origins of Scripture and Literature. Oxford, Oxford University Press., p. 4) assim, a forma escrita é parte de uma complexa "matriz literata" que envolve a escrita e a performance oral como parte de uma coisa só e não como unidades separadas. Um dos objetivos desse grupo de ações seria transmitir os textos de mente para mente e escrever era parte desse processo de transmissão. A escrita faz parte de um método que busca a criação da identidade de cada um, como mostrado por Carr (2005, p. 5).

A escrita em si é frequentemente relegada durante análises de manuscritos. Conceitos-chave como a criação e a produção acabam sendo analisados em segundo plano, particularmente quando o manuscrito é provavelmente uma cópia de outro manuscrito. O ato de escrever, em si, já traz elementos de análise. Escrever produz muitos resultados, entre eles está pelo menos um artefato, um manuscrito ou outro tipo de objeto físico, e alguns resultados imateriais, como o próprio conteúdo. É na criação de produtos imateriais pela escrita que podemos observar, por exemplo, a formação da identidade citada anteriormente. É também no reino do imaterial que a magia pode ser observada.

Demônios, magia e outras terminologias

Todos os textos utilizados nesse trabalho (4Q444, 4Q510, 4Q511, 4Q560, 6Q18, 8Q5, 11Q11) compartilham certas características, como o fato de terem sido descobertos perto de Qumran, além da incerteza do porquê eles foram armazenados nas cavernas e do contexto em que eles foram utilizados. A seleção de fontes para essa apresentação foca em textos mágicos relacionados a seres malignos e eles representam algumas tendências importantes sobre as diferentes formas de proteção contra seres malignos preservadas no contexto do judaísmo do segundo Templo.

As cópias dos sete textos escolhidos para essa análise datam de 75 AEC a 68 EC. Todos, exceto 4Q560, são escritos em hebraico. A regularidade das linhas e o reduzido número de erros ortográficos apontam para a produção por escribas treinados. A exceção é novamente 4Q560, que está em aramaico e tem erros gramaticais que podem ter sido intencionais, semelhantes a textos mágicos posteriores (Penney; Wise, 1994PENNEY, D. L.; WISE, M. O. (1994) By the Power of Beelzebub: An Aramaic Incantation Formula from Qumran (4Q560). Journal of Biblical Literature 113, n. 4, p. 627-650., p. 638). No quesito dos idiomas dos textos mágicos relacionados a seres malignos pode-se dizer que o aramaico é mais comum para textos de caráter mais claramente exorcistico, enquanto o hebraico é mais comum para textos apotropaicos e para textos com múltiplas funções, por exemplo, apotropaico e para exorcismo.

Antes de adentrar os aspectos mais específicos das formas apotropaicas, é necessário que nos debrucemos um pouco sobre algumas questões de terminologia. É comum se referir a seres malignos como "demônios", mas a variedade de fenômenos atestada nos textos de Qumran torna necessária uma reflexão adicional sobre o próprio termo. Escolhi me referir as entidades descritas nos Manuscritos do Mar Morto como "ser maligno" para evitar associar esses seres às muitas características associadas aos "demônios" em nossa sociedade.

O outro termo problemático é mágico. O termo se mostrou útil para esta pesquisa, uma vez que incorpora aspectos da liturgia e do ritual, sendo, no entanto, mais compreensivo do que os anteriores. Cabe ressaltar que magia é um termo que provavelmente não foi usado pelas pessoas associadas aos Manuscritos do Mar Morto para definir sua própria prática. Magia no contexto desta análise refere-se a práticas que usam forças sobrenaturais (como um apoio divino) e visam afetar os mundos físico e espiritual. Gostaria também de esclarecer que estou usando o termo magia como uma ferramenta heurística, uma definição funcional que guiará minha interpretação do passado.

Para essa análise resolvi utilizar uma metodologia indutiva que me permitiu examinar os textos com um olhar novo. Para este fim mantive qualquer reconstrução dos textos a um mínimo absoluto. Estou ciente de que o quadro resultante permanece incompleto com base na natureza fragmentária das evidências. Também estou ciente de que o silêncio dos textos - até onde podemos determinar - sobre alguns aspectos também merece ser reconhecido com a devida cautela. Tendo estabelecido esses parâmetros, vou me debruçar nas principais tendências apotropaicas descritas nos Manuscritos do Mar Morto.

Formas de ameaça

A ameaça que os seres malignos apresentavam, de acordo com o recorte dessa pesquisa, era palpável. Notamos também a palpabilidade das ações que são capazes de afastar os seres do mal. Em um nível prático, como as pessoas buscavam proteção contra seres malignos? Há vestígios no material que temos?

A forma mais comum de proteção é a utilização de elementos litúrgicos em práticas mágicas. Os conceitos de liturgia e magia, como dito antes, são próximos, mas a liturgia é entendida como um uso sistemático de rituais para o desempenho público, (Falk, 2010FALK, D. K. (2010) The Contribution of the Qumran Scrolls to the Study of Ancient Jewish Liturgy. In: COLLINS, J. J.; LIM, T. H. (Eds.). The Oxford Handbook of the Dead Sea Scrolls. Oxford, Oxford University Press ., p. 634) enquanto a magia refere-se a qualquer ação destinada a alterar o mundo físico. Alguns elementos litúrgicos e fórmulas são usados para proteção, como a emissão de bênçãos. De certo modo, abençoar é, como definido por Nitzan (1993NITZAN, B. (1993) Qumran Prayer and Religious Poetry. Leiden; New York; Köln, Brill., p. 119), uma arma de proteção, visto que é um ato que pode manter os seres malignos à distância. As bênçãos são retratadas nos Manuscritos do Mar Morto como ações que podem ser comunais, como em 4Q511 1 3 “(...)espíritos dos domínios dela, continuamente eles devem abençoá-lo nos tempos deles(...)” ou individuais, como em 4Q511 63-64ii 2 “(...) eu vou dar bençãos em Seu nome, e no meu tempo escolhido e ordenado eu vou contar novamente (...)”. Em ambos os casos bênçãos são usadas em tempos de aflição.

Outra ação apotropaica encontrada nos textos é a menção de figuras tradicionalmente associadas a proteção contra o maligno. A menção dessas figuras é provavelmente uma maneira de infundir o texto com poder da própria figura. No caso do 11Q11, Salomão é mencionado no 11Q11 2: 2. Esta é possivelmente uma das primeiras referências a Salomão ligado a seres malignos (Fröhlich, 2012FRÖHLICH, I. (2012) Healing with Psalms. In: PENNER, J.; PENNER, K.; WASSEN, C. (Eds.). Prayer and poetry in the Dead Sea scrolls and related literature: essays in honor of Eileen Schuller on the occasion of her 65th birthday. Leiden, Brill, p. 197-206., p. 211), uma conexão que se tornará mais comum em textos posteriores. Davi também é mencionado no 11Q11 (11Q11 5: 4). Davi já estava conectado às medidas apotropaicas em 1 Sam 16:23 e ele teria composto quatro canções “para serem cantadas sobre os afligidos” de acordo com 11QPsa 27: 9-10.

Complementando os elementos apotropaicos descritos nos Manuscritos do Mar Morto destaca-se a utilização da fórmula “amem, amem” em 4Q511 111 9 (Angel 6 9), 4Q511 63iv (Angel 16) e em 11Q11 6:14. Para Jepsen (1974JEPSEN, A. (1974) אמן In: BOTTERWECK, G.J.; RINGGREN, H. (Eds.) Theological Dictionary of the Old Testament. Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publishing Co., p. 322), ao proferir a palavra “amém” uma ou duas vezes, a pessoa “afirma o desejo de que Deus possa agir, coloca-se sob o julgamento divino e junta-se ao louvor a Deus”. Neste ponto de vista, “amém” não é apenas uma palavra e sim uma palavra que pode confirmar, encerrar e fazer uma oração eficaz. É uma palavra de poder, magicamente imbuída do poder da confirmação. Ao ser utilizada para fins apotropaicos o duplo “amém” confirma o que foi dito antes na oração e, ao mesmo tempo, traz o poder e julgamento de Deus para a questão.

Outro elemento frequente é a obediência aos estatutos de Deus, que são os meios pelos quais as pessoas devem encontrar forças para lutar contra os seres malignos em 4Q444 1-4i + 5i 4. A ideia de usar as leis de Deus como um atributo fortificante também é uma leitura possível para o 4Q511 63-64. Não está claro se conhecer e seguir os estatutos de Deus era suficiente para proteção, ou se um artefato com as leis escritas tinha algum poder especial.

Objetos mágicos não são explicitamente mencionados nos textos mágicos relacionados a seres malignos de Qumran. É possível que o desempenho da proteção não envolvia a manipulação de objetos, mas também é possível que não houvesse necessidade de explicitar isso por escrito, uma vez que tais objetos eram dados como garantidos - ou ainda, é possível que esse conhecimento fosse secreto. É possível que alguns dos rituais mágicos de proteção fossem realizados apenas com base no poder das palavras, algo que é atestado nas modernas práticas exorcistas. Também não temos descrições completas de quaisquer rituais complexos além do uso de palavras específicas e possivelmente música, que não será explorada nessa apresentação devido ao tempo.

Conclusão

Este estudo identificou as diferentes formas de proteção contra seres malignos que emergem dos textos mágicos relacionados aos seres malignos de Qumran. É problemático tentar unificar o quadro e retratar os fenômenos como um esquema coerente. O que emerge claramente é que mais de um tipo de mal era considerado coexistindo, e é provável que indivíduos diferentes tenham entendido os perigos da vida de diferentes maneiras. Assim como não há em Qumran uma "demonologia" bem-organizada, como descrita por Alexander (1999ALEXANDER, P. S. (1999) The Demonology of the Dead Sea Scrolls. In: FLINT, P. W.; VANDERKAM, J. C. (Eds.). The Dead Sea Scrolls After Fifty Years: A Comprehensive Assessment. Leiden; Boston; Köln, Brill. v. 2. p. 331-353.), as formas de proteção também são variadas.

Cabe ressaltar que a falta de uma classificação padronizada não significa que as pessoas não tivessem compreensão sobre suas próprias crenças ou que essas crenças eram pouco desenvolvidas. As ações apotropaicas descritas pretendem proteger as pessoas de seres malignos. Esses seres são mencionados, ainda que não façam parte de um esquema único. Mais do que um medo personalista, o que temos nos Manuscritos do Mar Morto é um temor de um mal indeterminado, criando uma atmosfera abrangente de medo, em vez de se concentrar em um tipo particular e específico de ser maligno. Pode-se concluir que a proteção é dirigida a todos os seres malignos que podem ser danosos e não contra tipos ou indivíduos específicos.

É possível também que o ato de escrever orações tenha servido a mais de um propósito. Mais do que isso, a escrita podia ter um efeito mágico em si. A partir da observação de praticantes de magia modernos, é possível saber que existem tradições mágicas que usam a escrita para mais do que uma ferramenta de memória. A escrita é o elemento que molda a aprendizagem e também tem poder mágico em si.

Os textos mágicos analisados demonstram ter potencialmente dois tipos de função, a saber, apotropaico e exorcista, e precisam ser compreendidos em conjunto com sua função de performance, ou seja, o papel de um "facilitador" ou “condutor”. O objetivo do texto possivelmente se alteraria de acordo com a intenção de quem o performa. Assim, um texto pode ser ao mesmo tempo apotropaico e de exorcismo, e a função se alterar de acordo com a forma que o texto era utilizado.

Outro aspecto da dupla função de alguns textos é a possibilidade de alguns textos apotropaicos funcionarem também como amuletos. Por exemplo, o texto em um manuscrito seria usado para conduzir um exorcismo, inclusive utilizando a escrita como parte do ritual, e depois o próprio pergaminho poderia ser usado como um amuleto para manter os seres maus à distância.

Considerando os diferentes aspectos que envolvem a escrita de textos apotropaicos, o presente estudo mapeou os principais elementos das linguagens apotropaicas nos Manuscritos do Mar Morto. A existência dessas formas protetivas demonstra a palpabilidade dessas crenças, bem como a prevalência do sentimento de medo no dia a dia das pessoas. A proteção pode ser adquirida com palavras especiais pronunciadas de maneiras especiais, com atividades musicais e com atividades que são perdidas para nós.

Espero que as questões levantadas nesse trabalho abram caminhos frutíferos para pesquisas futuras. Seria interessante avaliar outros salmos judaicos e cristãos a partir da perspectiva deste estudo, especialmente considerando o papel desempenhado pela música em contextos apotropaicos. Outra possível área de pesquisa futura seria investigar a relação entre o direito e as medidas apotropaicas.

Bibliografia

  • ALEXANDER, P. S. (1999) The Demonology of the Dead Sea Scrolls. In: FLINT, P. W.; VANDERKAM, J. C. (Eds.). The Dead Sea Scrolls After Fifty Years: A Comprehensive Assessment Leiden; Boston; Köln, Brill. v. 2. p. 331-353.
  • CARR, D. M. (2005) Writing on the Tablet of the Heart: Origins of Scripture and Literature Oxford, Oxford University Press.
  • FALK, D. K. (2010) The Contribution of the Qumran Scrolls to the Study of Ancient Jewish Liturgy. In: COLLINS, J. J.; LIM, T. H. (Eds.). The Oxford Handbook of the Dead Sea Scrolls Oxford, Oxford University Press .
  • FRÖHLICH, I. (2012) Healing with Psalms. In: PENNER, J.; PENNER, K.; WASSEN, C. (Eds.). Prayer and poetry in the Dead Sea scrolls and related literature: essays in honor of Eileen Schuller on the occasion of her 65th birthday Leiden, Brill, p. 197-206.
  • JEPSEN, A. (1974) אמן In: BOTTERWECK, G.J.; RINGGREN, H. (Eds.) Theological Dictionary of the Old Testament Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publishing Co.
  • NITZAN, B. (1993) Qumran Prayer and Religious Poetry Leiden; New York; Köln, Brill.
  • PENNEY, D. L.; WISE, M. O. (1994) By the Power of Beelzebub: An Aramaic Incantation Formula from Qumran (4Q560). Journal of Biblical Literature 113, n. 4, p. 627-650.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2021
  • Aceito
    05 Mar 2022
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