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“Vais te maravilhar ao ouvires!” - Conservação, mousike e o elogio de Platão à arte egípcia em Leis II, 653c - 654ª

“You shall be in wonder when you hear” - Conservation, mousike, and Plato’s praise of Egyptian art in Laws II, 653c -654a

Resumo:

Em Leis, a mousike é restabelecida na constituição da cidade (Magnésia) como um instrumento para a educação dos cidadãos. Segundo o Estrangeiro Ateniense, a regulação e preservação das formas corretas da mousike, através de melos e schema, é também responsável pela manutenção da estabilidade cultural e política de Magnésia. Neste contexto, Platão enuncia um elogio à arte egípcia, que teria mantido o seu estilo e, consequentemente, a política egípcia teria permanecido estável por um longo tempo. Este artigo apresentará uma tradução do trecho 653c - 654a e três interpretações contemporâneas deste elogio. Por fim, as interpretações expostas serão avaliadas e uma possibilidade de aproximação entre o elogio platônico e a própria arte (visual) egípcia será sugerida, considerando suas prováveis funções sociais, religiosas e políticas.

Palavras-chave:
Platão; Leis; Mousike; Arte egípcia; Filosofia grega

Abstract:

In Laws, mousike is restored to the constitution of the city (Magnesia) as an instrument for the education of citizens. According to the Athenian Stranger, the regulation and preservation of mousike's correct forms, through melos and schema, is also responsible for the maintenance of Magnesia's cultural and political stability. In this context, Plato praises Egyptian art, which would have maintained its style and, consequently, Egyptian politics stable for a long time. This article will thus present a translation of 653c - 654a and three contemporary interpretations of this eulogy. Lastly, the three interpretations will be evaluated and a possibility of an approximation between the Platonic praise and (visual) Egyptian art will be suggested, considering its probable social, religious and political functions.

Keywords:
Plato; Laws; Mousike; Egyptian Art; Greek philosophy

I - Introdução

Este artigo pretende, em um primeiro momento, explanar o elogio à arte egípcia enunciado pelo Estrangeiro Ateniense, em Leis II, 653c - 654a, e como esse se insere no projeto educacional e político descrito pelo diálogo. Nesse sentido, será feita uma breve reconstrução do objetivo mais geral de Leis, seguida por uma análise da passagem específica, junto a uma tradução própria do trecho. Depois, as posições de três comentadores e intérpretes dessa passagem serão apresentadas: as dos classicistas Ian Rutherford e Stephen Halliwell e a do egiptólogo Whitney A. Davis. Estes comentadores foram escolhidos por apresentarem uma interpretação mais robusta, detalhada ou distinta do elogio, que consideram também registros da cultura material relacionados à arte visual egípcia. Outros pesquisadores também abordam o elogio, embora optem por interpretá-lo de um modo mais acessório, como um exemplo paradigmático da posição platônica expressa no diálogo e sem considerar detalhes específicos da arte especificamente visual do Antigo Egito (da qual se tem abundantes registros materiais). Portanto, o foco deste artigo estará nestas três interpretações. Por fim, será feita uma análise crítica de cada uma dessas posições, considerando suas peculiaridades, equívocos e sucessos. Os argumentos apresentados pelo artigo serão também reforçados por um breve retorno à arte visual egípcia e quais eram suas possíveis funções religiosas, políticas e educativas. Assim, pretende-se investigar em que sentido Platão poderia estar correto e, por outro lado, em que partes do seu elogio há equívocos - sejam eles deliberados ou não -, além de propor um significado ao elogio que se articula com o objetivo último do diálogo: instituir Magnésia, a segunda cidade perfeita. Para tal, a análise de imagens da arte egípcia terá mais do que um papel secundário, mas será essencial para o desenvolvimento do argumento do artigo. Assim, será possível visualizar e esclarecer o que se está tentando pontuar acerca da arte egípcia.

Em síntese, o projeto de Leis1 1 Comparativamente pouco estudado, o interesse por Leis cresceu significativamente nos últimos séculos e, em especial, décadas. Apesar da quantidade de traduções e comentários ao texto ser pequena (especialmente se comparado a, por exemplo, República e Banquete, destacam-se algumas obras, dentre elas: os comentários e tradução em alemão ao texto grego feito por Schöpsdau (1994; 2003), o comentário de Brisson e Pradeau (2007) em francês, e a tradução ao inglês com comentários dos Livros 1 e 2 de Meyer (2017). consiste em instituir leis que, tendo sido tomadas com razão e alinhadas com princípios de bem (agathos), verdade (aletheia) e divindade (theos) (que muitas vezes se sobrepõem em Platão), seriam as melhores possíveis para uma cidade ideal e realmente perfeita.2 2 Isso já indica uma grande diferença em relação à República. Enquanto Kallipolis é abstrata e não possui localização real, Magnésia possui uma localização precisa. Isso também faz parte de uma crítica platônica à República, segundo a qual Kallipolis seria uma cidade pensada para deuses e não para seres humanos. Assim, a elaboração da constituição de Magnésia possui também um elemento de realismo, tanto em relação à sua praticabilidade e ao método de pesquisa "histórico-mitológico" que é empregado em Leis. Schofield (2010) trata dessas diferenças com mais acuidade, o que não é possível aqui. Morrow (1993) corrobora a tese de Schofield ao rastrear fontes históricas documentadas sobre as constituições de Atenas, Creta e Esperta (por mais parciais que possam ser). Ele argumenta que, Platão tendo demonstrado interesse e devotado grande parte de sua vida à pesquisa da política, Leis é uma obra profundamente informada pelos detalhes históricos recolhidos por Platão destas constituições. Em suas palavras, “Pois se a [legislação] ideal, ou qualquer imitação digna dessa, deve ser executada, ela deve ser corretamente exemplificada — entre um povo que vive em um momento específico do tempo e lugar, que possui tais e tais características e tradições. [...] Platão deve usar os gregos de sua época, com suas tradições de liberdade e respeito à lei, e seus temperamentos humanos falíveis. Nem sempre esses são melhor adaptados à sua proposta, mas como um bom artesão ele os seleciona cuidadosamente e lida com eles com habilidade para criar uma semelhança tão próxima o possível com o ideal.” (Morrow, 1993, p. 10, tradução própria) As leis deveriam ser instituídas a partir do que há de melhor (aristos), mais belo (kallistos), mais correto (orthotes) e mais divino (theioteros) nos seres humanos - o nous, o princípio racional comum a toda a espécie. Essa cidade possui uma localização geográfica específica: na ilha de Creta, justamente onde o diálogo se desenrola, e será chamada Magnésia. Nos primeiros livros do diálogo, os interlocutores Estrangeiro Ateniense, Clínias e Mégilo se dedicam a estabelecer os fundamentos para essas leis e atentam para a necessidade de estabilidade que visam: se a legislação é pensada como a melhor possível, então quaisquer leis ou inovações introduzidas em Magnésia devem ser aprovada por aqueles que vigiam a lei (nomophulax). No Livro XII de Leis (a partir de 951c), o Ateniense introduz o Conselho Noturno, formado pelas pessoas que atingiram a excelência em sua sabedoria e em suas ações. Estes, conhecendo as leis, o que é bom para a polis e o que é o Bem em absoluto, devem se reunir e discutir quais leis devem ser mantidas, alteradas ou até mesmo introduzidas na constituição. Qualquer mudança que haja no projeto legislativo de Magnésia, então, deverá ser julgada e aprovada pelas pessoas mais sábias que há na pólis, e proposta somente por um peregrino viajante autorizado que, conhecendo as leis de outras poleis, julga quais são as boas e adequadas aos objetivos dos legisladores (ou vigias da lei). Assim, Magnésia é um projeto de longa duração e os interlocutores se mostram preocupados com a sua estabilidade e imperecibilidade no tempo, até mesmo sua eternidade.

Muitas vezes tomado como um “inimigo das artes”, Platão restabelece o lugar da mousike (amplamente, o conjunto de poesia, canto, música e dança), previamente banida na República, na “segunda” cidade ideal. Diversos pesquisadores têm se debruçado para as funções específicas da poesia na pólis - como, por exemplo, Marcus Folch (2015FOLCH, M. (2015). The City and the Stage: Performance, Genre, and Gender in Plato’s Laws. 1a ed. Oxford, Oxford University Press .), Létitia Mouze (2006MOUZE, L. (2006). Le législateur et le poète: Une interprétation des Lois de Platon. 1ª ed. Lille, Presses Universitaires du Septentrion.), a coletânea de artigos organizada por Anastasia Erasmia-Peponi (2013)ERASMIA-PEPONI, A. (2013)(ed.). Performance and Culture in Plato's Laws. 1a ed. Cambridge, Cambridge University Press ., Giovanni Panno (2007PANNO, G. (2007). Dionisiaco e Alterità nelle Leggi di Platone: Ordine del corpo e automovimento dell’anima nella città-tragedia. 1ª ed. Milano, Vita e Pensiero.), entre outros. Tal reintegração não significa, contudo, que qualquer poesia ou música possa ser performada indiscriminada e livremente em Magnésia. Pelo contrário: a performance destas sempre deve estar submetida ao controle do legislador e depende de sua autorização para ter lugar na vida cultural dos cidadãos. Isto ocorre porque o Ateniense associa a mousike a um princípio essencial para que a instituição de Magnésia seja bem-sucedida: a educação cultural e moral dos magnésios. Uma vez bem-educados pela mousike, que deve estar alinhada com as virtudes desejadas, os cidadãos serão os responsáveis por manter a constituição de Magnésia viva através das gerações. Assim, a segunda cidade ideal poderia ser imperecível, inalterável e sempre maximamente boa. A estabilidade da educação, portanto, estaria diretamente relacionada à instrução segundo as virtudes corretas; se houver mudanças na educação, haverá mudança social e então política.

Um dos ápices dessa associação entre política, educação e mousike pode ser visto no elogio à arte egípcia, que será desenvolvido na sequência. Esta é tomada por Platão como o paradigma da relação entre estabilidade política e a educação de um povo, o que é elucidativo para a compreensão do papel da mousike em Leis.

II - As artes das Musas educam e nutrem, seguido de três interpretações do Egito de Platão

As funções educativas das artes das Musas na cultura grega já foram amplamente discutidas por diversos comentadores. Considera-se que a educação pela mousike, junto com as iniciações pederásticas, foram instituições educacionais de jovens homens e mulheres (Calame, 2013CALAME, C. (2013). Eros na Grécia Antiga. 1a ed. São Paulo, Editora Perspectiva.; Murray, 1998). Por exemplo, Havelock (1963HAVELOCK, E. A. (1963) Preface to Plato. 1a ed. Cambridge, Harvard University Press .) desenvolve como a poesia oral (antes da escrita e da filosofia) era responsável pela conservação de conhecimentos através da memorização -defendia até que os poemas de Homero e Hesíodo apresentassem uma função quase enciclopédica. Morrow (1993MORROW, G. R. (1993). Plato’s Cretan City: a historical interpretation of the Laws. 2ª ed. Princeton, Princeton University Press .), por sua vez, aponta que as propostas educativas presentes em Leis, apesar de serem baseadas nos costumes tradicionais gregos, diferiam destes em alguns pontos. Por exemplo, Platão estava preocupado com a educação de todas as virtudes, não somente com as militares tal como era na constituição espartana. Além disso, o termo “paideia” já indica que a educação seria limitada às crianças e jovens em formação, mas em Magnésia a educação é contínua e sua manutenção acompanha toda a vida do cidadão. O aspecto diferencial que será mais enfatizado aqui é que essa “pragmática da poesia” estivesse tão claramente instituída por um código legislativo, submetida a um controle estatal que não era comum na Grécia Antiga, que a prosperidade de Magnésia dependesse tão fortemente da correção da mousike e do cultivo das virtudes corretas por meio da poesia. No livro II de Leis, o Ateniense declara:

Ἀθηναῖος

καλῶς τοίνυν. τούτων γὰρ δὴ τῶν ὀρθῶς τεθραμμένων ἡδονῶν καὶ λυπῶν παιδειῶν οὐσῶν χαλᾶται τοῖς ἀνθρώποις καὶ διαφθείρεται κατὰ πολλὰ ἐν τῷ βίῳ, θεοὶ [653δ] δὲ οἰκτίραντες τὸ τῶν ἀνθρώπων ἐπίπονον πεφυκὸς γένος, ἀναπαύλας τε αὐτοῖς τῶν πόνων ἐτάξαντο τὰς τῶν ἑορτῶν ἀμοιβὰς τοῖς θεοῖς, καὶ μούσας Ἀπόλλωνά τε μουσηγέτην καὶ Διόνυσον συνεορταστὰς ἔδοσαν, ἵν᾽ ἐπανορθῶνται, τάς τε τροφὰς γενομένας ἐν ταῖς ἑορταῖς μετὰ θεῶν. ὁρᾶν ἃ χρὴ πότερον ἀληθὴς ἡμῖν κατὰ φύσιν ὁ λόγος ὑμνεῖται τὰ νῦν, ἢ πῶς. φησὶν δὲ τὸ νέον ἅπαν ὡς ἔπος εἰπεῖν τοῖς τε σώμασι καὶ ταῖς φωναῖς ἡσυχίαν ἄγειν οὐ δύνασθαι, [653ε] κινεῖσθαι δὲ ἀεὶ ζητεῖν καὶ φθέγγεσθαι, τὰ μὲν ἁλλόμενα καὶ σκιρτῶντα, οἷον ὀρχούμενα μεθ᾽ ἡδονῆς καὶ προσπαίζοντα, τὰ δὲ φθεγγόμενα πάσας φωνάς. τὰ μὲν οὖν ἄλλα ζῷα οὐκ ἔχειν αἴσθησιν τῶν ἐν ταῖς κινήσεσιν τάξεων οὐδὲ ἀταξιῶν, οἷς δὴ ῥυθμὸς ὄνομα καὶ ἁρμονία: ἡμῖν δὲ οὓς [654α] εἴπομεν τοὺς θεοὺς συγχορευτὰς δεδόσθαι, τούτους εἶναι καὶ τοὺς δεδωκότας τὴν ἔνρυθμόν τε καὶ ἐναρμόνιον αἴσθησιν μεθ᾽ ἡδονῆς, ᾗ δὴ κινεῖν τε ἡμᾶς καὶ χορηγεῖν ἡμῶν τούτους, ᾠδαῖς τε καὶ ὀρχήσεσιν ἀλλήλοις συνείροντας, χορούς τε ὠνομακέναι παρὰ τὸ τῆς χαρᾶς ἔμφυτον ὄνομα. πρῶτον δὴ τοῦτο ἀποδεξώμεθα; θῶμεν παιδείαν εἶναι πρώτην διὰ Μουσῶν τε καὶ Ἀπόλλωνος, ἢ πῶς;3 3 A edição de Leis que está sendo seguida é a de John Burnet, presente em Platonis Opera (1903).

Ateniense:

Ora, muito bem! Na vida humana, aqueles prazeres e dores que, se forem corretamente nutridos, constituem a educação, afrouxam-se e fenecem em relação a muitas coisas. Mas os deuses [653d] apiedaram-se do gênero humano, que por natureza é fatigado ao extremo. Por isso, organizaram um descanso a suas fadigas: a alternância de festivais em sua honra. A fim de que os humanos se corrijam, deram também as Musas, seu líder Apolo e Dioniso como convivas, e deram a educação que se origina nestes festivais em companhia de deuses. Devemos observar se esse discurso que é recitado hoje em dia é de natureza verdadeira ou não. Fala-se, por assim dizer, que nenhum jovem é capaz de aquietar seu corpo e sua voz, [653e] e que todos sempre procuram se movimentar e falar. Por vezes pulam e saltitam, como se dançassem com prazer e brincassem, e por vezes entoam todos os sons. Por um lado, os outros animais não possuem a percepção da ordem nem da desordem nos movimentos, a qual nomeamos ritmo e harmonia. Por outro, [654a] dizemos que os deuses, que nos foram dados como companheiros de dança, são também os que nos dão a percepção do ritmo e da harmonia, além do prazer que sentimos com ela. Com isso, eles realmente nos movem e conduzem nosso coro; e com cantos e danças nos atam uns aos outros. Chamam-no coro pois seus integrantes coram ao participar da alegria que lhe é natural. Mas antes, devemos admitir mesmo isso? Devemos estabelecer que a primeira educação é de competência das Musas e de Apolo? Ou não? (Leis II, 653c - 654a, grifos meus, tradução própria)

No trecho acima, Platão descreve como os seres humanos, por sua condição sensível e mortal, devem trabalhar para garantir seu próprio sustento e sobrevivência. Com tal existência tão naturalmente penosa e fatigante, os deuses em atos de piedade deram a eles alívios: os festivais em sua honra, as artes das Musas, Apolo e Dioniso4 4 O artigo de de la Fuente (2013) desenvolve como a religião dionisíaca auxilia a engendrar o projeto político e educativo proposto a Magnésia, bem como os simpósios e o uso do vinho auxiliam no processo. - todas divindades relacionadas às artes, às festividades e à descontração. Na sequência, o Ateniense associa esses festivais e músicas5 5 Ao decorrer do texto, opto por não traduzir mousike. Como visto, este termo se refere a um conjunto de artes que é mais ampla do que a música, pelo menos de acordo com definições atuais desta última. Aqui, no entanto, traduzo por “música” para fazer mais sentido no contexto específico, pois não se trata mousike lato sensu, mas está restrita às músicas específicas performadas nos festivais. à própria educação dos cidadãos, que serão necessários tanto para torná-los corretos e bons, como também trarão alívio a suas dores e fadigas. Panno (2007PANNO, G. (2007). Dionisiaco e Alterità nelle Leggi di Platone: Ordine del corpo e automovimento dell’anima nella città-tragedia. 1ª ed. Milano, Vita e Pensiero.),6 6 Dionisiaco e Alterità nelle Leggi di Platone investiga, sobretudo, quais as funções que os ritos dionisíacos e as tragédias desempenham na constituição de Magnésia. Como aqui será tematizado principalmente o elogio à arte egípcia, sua tese mais geral sobre Magnésia como a tragédia mais verdadeira foge do escopo deste artigo. discorrendo sobre a função do vinho e dos festivais na educação magnésia, argumenta que ambos são compreendidos como correções para os efeitos potencialmente maléficos da mimesis:

Se o elemento mimético representa uma saída de si, que pode ser controlado dentro de um ritual como aquele da festa que se propõe a Magnésia, o vinho é uma outra modalidade de saída do seu próprio estado, elemento puramente dionisíaco posto ao serviço de uma ordenação das emoções. (Panno, 2007PANNO, G. (2007). Dionisiaco e Alterità nelle Leggi di Platone: Ordine del corpo e automovimento dell’anima nella città-tragedia. 1ª ed. Milano, Vita e Pensiero., p. 7, tradução própria)

Como é desenvolvido pelo Livro I de Leis, o simpósio também é apontado como um ambiente onde ocorre a formação dos cidadãos: isto é, com o vinho, os jovens teriam um outro aliado para aprender a ter domínio de si mesmo e desenvolver a temperança. Caso contrário, iriam ser submetidos ao julgamento de seus convivas e seriam fortemente censurados. A tese principal que Panno pretende defender é que tanto as festividades quanto a mousike, a tragédia e o vinho são utilizados por Platão de modo a confrontar a alteridade e manter uma unidade nos cidadãos, não apenas no nível entre o indivíduo e a cidade, mas também entre os elementos racionais e patéticos da constituição de um mesmo sujeito. Ou seja, manter a identificação do cidadão com a cidade e aprender a sintonizar a razão e as emoções em um único, bom e correto princípio - o que é garantido pelas leis.

Retornando à citação de Leis acima, os festivais e músicas são considerados dádivas divinas e por isso são, em certa medida, corretos - então, seria possível estabelecer padrões para determinar o prazer adequado na mousike. Os coros de cidadãos apresentam harmonias e ritmos musicais capazes de conectar os humanos com outros humanos e, além disso, com as próprias divindades. As leis que, como já visto, são definidas a partir do nous, devem, portanto, estabelecer legalmente quais são os ritmos e harmonias corretos. Assim, garantem que a educação dos cidadãos será virtuosa e alinhada com os princípios divinos e bons. Afinal, é a vida conforme essas leis e formas divinas que é ultimamente responsável por garantir a eudaimonía da pólis como coletividade (Annas, 2010ANNAS, J. (2010). Virtue and law in Plato. In: BOBONICH, C. (ed.) Plato's Laws: a critical guide. 1a ed. Cambridge, Cambridge University Press, p. 71-91. ).

Esse ponto se torna ainda mais evidente em Leis III, 700a - 701d, quando o Ateniense traça críticas ao que chama de "teatrocracia". Nisso, lê-se uma crítica subentendida a Atenas, que, segundo Platão, teria entrado em declínio social e político quando permitiu a incorporação de inovações nos dramas. Segundo tal crítica, os poetas não compunham a partir do que era melhor, mais belo e correto; mas sim a partir do que mais agradava ao público, cedendo às mudanças culturais e renunciando ao conservadorismo e à excelência das belas formas tradicionais. Eles teriam misturado gêneros e formas, inclusive estrangeiros, o que havia contribuído para a perda da identidade cultural. Isso teria implicado em mudanças sociais que, por fim, se converteriam em mudanças políticas, permitindo assim a degeneração moral e política. Portanto, haveria uma conexão intrínseca entre a estabilidade cultural, a moral e a política.

Os gêneros apresentados em Magnésia servem como oportunidades para incorporar na cidade as funções, deveres, prazeres e ansiedades únicas associadas com cada tipo de performance. Leis se apropria dos gêneros como sistemas únicos de significados, relações sociopolíticas e constituições psicológicas das quais se fabricam o sistema próprio de significados, relações e constituições psicológicas da segunda melhor cidade. (Folch, 2015FOLCH, M. (2015). The City and the Stage: Performance, Genre, and Gender in Plato’s Laws. 1a ed. Oxford, Oxford University Press ., p. 159, tradução própria)

Mouze (2006MOUZE, L. (2006). Le législateur et le poète: Une interprétation des Lois de Platon. 1ª ed. Lille, Presses Universitaires du Septentrion.) dedica-se a investigar em pormenores o papel que a poesia tem na criação da pólis, em particular qual é o papel do poeta em relação ao legislador. Alinhada com uma das teses de Morrow (1993MORROW, G. R. (1993). Plato’s Cretan City: a historical interpretation of the Laws. 2ª ed. Princeton, Princeton University Press .), Mouze compreende que Magnésia é projetada para ser uma cidade real. Por causa disso, Platão teria recuado no banimento do poeta proferido em República pois a poesia teria a vantagem de educar os sentimentos dos cidadãos. Suas qualidades estéticas, combinadas com uma correção e uma educação adequada, seriam capazes de educar os prazeres das pessoas, e, portanto, cria uma consonância os gostos de uma pessoa com aquilo que é bom. Por isso, o legislador usufruiria da habilidade do poeta e dos benefícios estéticos da mousike para instituir uma cidade perfeita, real e estável.

O elogio à arte egípcia está formulado em um contexto que reforça a continuidade entre essas estabilidades. Esse trecho se distancia das duras críticas à poesia mimética traçadas pela República. Ainda que estas ainda repercutam no tratamento da poesia em Leis, especialmente quanto à influência que as artes podem exercer sobre a alma (Folch, 2015FOLCH, M. (2015). The City and the Stage: Performance, Genre, and Gender in Plato’s Laws. 1a ed. Oxford, Oxford University Press .; Ford, 2002FORD, A. (2002). The Origins of Criticism: Literary Culture and Poetic Theory in Classical Greece. 1a e. Princeton, Princeton University Press.; Halliwell, 2002HALLIWELL, S. (2002) The Aesthetics of Mimesis: Ancient Texts and Modern Problems. Princeton, Princeton University Press .; Havelock, 1963HAVELOCK, E. A. (1963) Preface to Plato. 1a ed. Cambridge, Harvard University Press .; Murray, 1998), aqui lemos um tratamento platônico diverso perante a arte. Por exemplo, o que Platão elogia na arte egípcia é a sua capacidade de ter sido conservada por milhares de anos (10.000, com todos os exageros retóricos de 656d - 657c). A arte neste caso é concebida como um veículo de atitudes morais que, por meio da educação, são capazes de garantir o conservadorismo de costumes - o que afinal se reflete na estabilidade das tradições e das convenções políticas do Egito por todo esse tempo.

Ἀθηναῖος

νῦν δέ γε αὐτὸ ὡς ἔπος εἰπεῖν ἐν πάσαις ταῖς πόλεσιν ἔξεστι δρᾶν, πλὴν κατ᾽ Αἴγυπτον.

Κλεινίας

ἐν Αἰγύπτῳ δὲ δὴ πῶς τὸ τοιοῦτον φῂς νενομοθετῆσθαι;

Ἀθηναῖος

θαῦμα καὶ ἀκοῦσαι. πάλαι γὰρ δή ποτε, ὡς ἔοικεν, ἐγνώσθη παρ᾽ αὐτοῖς οὗτος ὁ λόγος ὃν τὰ νῦν λέγομεν ἡμεῖς, ὅτι καλὰ μὲν σχήματα, καλὰ δὲ μέλη δεῖ μεταχειρίζεσθαι ταῖς συνηθείαις τοὺς ἐν ταῖς πόλεσιν νέους: ταξάμενοι δὲ ταῦτα, ἅττα ἐστὶ καὶ ὁποῖ᾽ ἄττα ἀπέφηναν ἐν τοῖς ἱεροῖς, [656ε] καὶ παρὰ ταῦτ᾽ οὐκ ἐξῆν οὔτε ζωγράφοις, οὔτ᾽ ἄλλοις ὅσοι σχήματα καὶ ὁποῖ᾽ ἄττα ἀπεργάζονται, καινοτομεῖν οὐδ᾽ ἐπινοεῖν ἄλλ᾽ ἄττα ἢ τὰ πάτρια, οὐδὲ νῦν ἔξεστιν, οὔτε ἐν τούτοις οὔτε ἐν μουσικῇ συμπάσῃ. σκοπῶν δὲ εὑρήσεις αὐτόθι τὰ μυριοστὸν ἔτος γεγραμμένα ἢ τετυπωμένα-οὐχ ὡς ἔπος εἰπεῖν μυριοστὸν ἀλλ᾽ ὄντως-τῶν νῦν δεδημιουργημένων [657α] οὔτε τι καλλίονα οὔτ᾽ αἰσχίω, τὴν αὐτὴν δὲ τέχνην ἀπειργασμένα.

Κλεινίας

θαυμαστὸν λέγεις.

Ἀθηναῖος

νομοθετικὸν μὲν οὖν καὶ πολιτικὸν ὑπερβαλλόντως. ἀλλ᾽ ἕτερα φαῦλ᾽ ἂν εὕροις αὐτόθι: τοῦτο δ᾽ οὖν τὸ περὶ μουσικὴν ἀληθές τε καὶ ἄξιον ἐννοίας, ὅτι δυνατὸν ἄρ᾽ ἦν περὶ τῶν τοιούτων νομοθετεῖσθαι βεβαίως θαρροῦντα μέλη τὰ τὴν ὀρθότητα φύσει παρεχόμενα. τοῦτο δὲ θεοῦ ἢ θείου τινὸς ἀνδρὸς ἂν εἴη, καθάπερ ἐκεῖ φασιν τὰ τὸν πολὺν τοῦτον [657β] σεσωμένα χρόνον μέλη τῆς Ἴσιδος ποιήματα γεγονέναι. ὥσθ᾽, ὅπερ ἔλεγον, εἰ δύναιτό τις ἑλεῖν αὐτῶν καὶ ὁπωσοῦν τὴν ὀρθότητα, θαρροῦντα χρὴ εἰς νόμον ἄγειν καὶ τάξιν αὐτά: ὡς ἡ τῆς ἡδονῆς καὶ λύπης ζήτησις τοῦ καινῇ ζητεῖν ἀεὶ μουσικῇ χρῆσθαι σχεδὸν οὐ μεγάλην τινὰ δύναμιν ἔχει πρὸς τὸ διαφθεῖραι τὴν καθιερωθεῖσαν χορείαν ἐπικαλοῦσα ἀρχαιότητα. τὴν γοῦν ἐκεῖ οὐδαμῶς ἔοικε δυνατὴ γεγονέναι διαφθεῖραι, πᾶν δὲ τοὐναντίον. [657ξ]

Κλεινίας

φαίνεται οὕτως ἂν ταῦτα ἔχειν ἐκ τῶν ὑπὸ σοῦ τὰ νῦν λεχθέντων.

Ateniense: Mas agora, por assim dizer, fazer isso é permitido em todas as póleis, exceto no Egito.

Clínias: Como afirmas que eram essas leis no Egito?

Ateniense: Vais te maravilhar ao ouvires! Há muito tempo que esse discurso, esse do qual nós falamos agora, era conhecido pelos egípcios. Pelo menos é o que parece. Isto é, que os jovens na pólis devem perseguir em seus costumes os belos movimentos de dança (schemata) e as belas melodias (mele). Uma vez que ordenaram estas coisas, dispuseram nas paredes dos templos quais e como eram estes belos movimentos e melodias [656d]. Além disso, não permitiam que os pintores e outros que produzem qualquer tipo de figuras (schemata) inovassem, e nem mesmo concebessem outra coisa que as ancestrais. Nem mesmo hoje isso é permitido, em relação tanto a isso quanto à mousike como um todo. Mas se examinares, descobrirás que essas coisas lá foram grafadas ou modeladas há uma miríade de anos - e não uma “miríade” como modo de falar, mas dez mil anos de fato! E esses artefatos [657a] não são nem mais belos e nem mais feios do que os produzidos hoje, pois foram produzidos pela mesma técnica.

Clínias: Falas coisas maravilhosas!

Ateniense: Prefiro dizer extraordinárias leis e políticas! Mas também encontrarias outras coisas vulgares lá. No entanto, as reflexões sobre a mousike são verdadeiras e dignas, pois, em relação a isso, foram capazes de instituir por lei as melodias confiáveis e as que produzem naturalmente e com segurança as coisas mais corretas. Mas isso seria obra de um deus ou de um homem divino, pois, de acordo com o que lá se fala, as melodias [567b] que foram conservadas por todo esse tempo são composições de Ísis. De modo que, como eu falava, se algum dos egípcios fosse capaz de apreender de qualquer forma a correção, deve conduzi-la à lei e à ordem, sem temer. Assim, a busca pelo prazer e pela dor, que sempre busca empregar músicas (mousike) inovadoras, dificilmente tem um grande poder para corromper o coro devoto ao acusá-lo de ser antiquado. Pois bem. Ao que parece, de modo algum o coro de lá pode vir a ser corrompido. Bem pelo contrário! [657c]

Clínias: De acordo com o que falaste agora, parece que é assim mesmo. (Leis II, 656d - 657c, grifos meus, tradução própria)

No trecho grifado, logo de início o Ateniense enuncia explicitamente que, com uma tradição estável cultivada por muito tempo, a arte egípcia conseguiu reproduzir em si os belos costumes necessários à manutenção do bem e das virtudes almejadas. Educando corretamente os jovens com as belas formas da mousike, bons costumes seriam imputados nos cidadãos, o que é de extrema importância para garantir a estabilidade entre cultura, moralidade e política. Aliada àquele princípio racional exigido pelas leis, a mousike possui um papel educativo essencial na constituição porque, além de informar padrões sociais aos cidadãos, é também responsável por conduzir à correção moral e, em última instância, à eudaimonia.

Essa estabilidade de formas da mousike era garantida pela conservação de dois elementos essenciais: melos e schema. Melos diz respeito a canções apresentadas pelo coro, schema se refere aos movimentos de dança. Na acepção mais corriqueira da palavra, schema significa "figura" ou "forma", mas nesse caso Platão quer assinalar o tipo de dança que deveria ser apresentada conforme a gêneros musicais específicos.7 7 Morrow (1993, p. 307) ajuda a compreender melhor esse ponto a partir das tradições musicais gregas. Segundo ele, os gregos costumavam associar certos “modos” de expressão com agressividade, serenidade, lamentos entre outros. Portanto, já havia uma identificação de certos movimentos e expressões físicas com caracteres específicos antes mesmo de Platão propor uma correção do schema em relação ao caráter que representa. Enquanto uma determinada forma correta das melodias e das danças estivesse vigente, a própria mousike se manteria inalterada. E, se inalterada, a coesão social e a estabilidade política poderiam ser preservadas por muito tempo.

O argumento do Ateniense parte da afirmação de que a política legislativa do Egito se manteve estável por tanto tempo justamente porque sua lei exigia que melos e schema fossem preservados e repetidos em todas as composições culturais e artísticas. Então, os pintores e músicos eram proibidos de incluir qualquer elemento novo ou de culturas estrangeiras em sua obra. Estes artistas apenas tinham permissão para criar e compor a partir de modelos tradicionais, transmitidos de geração a geração. Além disso, eles deveriam obedecer piamente às leis instituídas em tempos ancestrais, em épocas que recuam até a modelos divinos e sagrados de poemas dados pela deusa Ísis. Esse ponto ecoa o trecho 653c - 654a, acima citado: a mesma tese de que a percepção dos ritmos e dos movimentos belos foram dados no princípio pelos próprios deuses. Ao proceder assim e ao fixar tais formas como modelos que precisavam ser reproduzidos, o povo egípcio teria conseguido manter sua arte visual e musicalmente consistente por milhares de anos.

Nesse quadro, podemos identificar as mesmas preocupações descritas anteriormente, a saber: uma conexão entre estabilidade cultural e política; a definição por lei de formas artísticas corretas e melhores; a necessidade de preservação e de garantia destas formas; e a relação entre o divino, as leis e a mousike. Neste sentido, entende-se que o Egito seja o modelo paradigmático de como a mousike deve funcionar em uma possível cidade ideal. Cumprindo todos os requisitos estabelecidos à mousike pelos fundadores de Magnésia, a menção à excelência da arte egípcia soa como um elogio à boa manutenção das formas corretas de arte e de costumes.

Na sequência, uma síntese de três interpretações contemporâneas desse trecho será fornecida. A primeira, de Ian Rutherford; a segunda, de Stephen Halliwell; e, por último, a perspectiva do egiptólogo e historiador da arte Whitney Davis.

Ian Rutherford, Strictly Ballroom: Egyptian Mousike and Plato's Comparative Poetics (2013RUTHERFORD, I. (2013). Strictly Ballroom: Egyptian Mousike and Plato's Comparative Poetics. In: ERASMIA-PEPONI, A. (ed.). Performance and Culture in Plato's Laws. 1a ed. Cambridge, Cambridge University Press , p. 67-83. )

De partida, Rutherford já concede que há em Leis uma conexão entre estabilidade cultural e política. Em síntese, o texto discute principalmente se Platão dispunha de razões suficientes para sustentar tais alegações sobre a arte egípcia e, portanto, se poderia (de modo legítimo) tomá-la como paradigma para seus projetos legislativos para Magnésia. Neste sentido, o comentador logo reconhece que grande parte do trecho é uma invenção ou má compreensão de Platão. Por exemplo, afirmar que a civilização egípcia tenha permanecido inalterada por dez mil anos é indefensável, e o mesmo pode ser dito da própria arte egípcia. Embora ela de fato tenha se mantido visualmente consistente, é um equívoco afirmar que ela não tenha mudado. Por exemplo, em comparação com um modelo de arte egípcia "tradicional" como a Estela do Guardião dos Portões Maati (Figura 1), o Óstracon de uma mulher dançando (Figura 2) e a pintura de gansos em uma parede de um mastaba (Figura 3) parecem bastante distintos se levarmos ao extremo essa ideia de homogeneidade visual.

Figura 1:
Estela do Guardião dos Portões Maati, cerca de 2051-2030 a. C. 59 cm x 36.3 cm x 8 cm. Fonte: Metropolitan Museum of Art

Figura 2:
Óstracon de uma figura feminina dançando, cerca de 1292-1076 a. C., Deir el-Medina. 11.5 x 17 x 4 cm. Fonte: https://archaeotravel.eu/egyptian-dancer-from-turin/, acessado em 06/01/2021 às 17h

Figura 3:
Pintura de gansos na parede do mastaba de Itet, cerca de 2000 a. C., Meidum. 30.5 cm x 167 cm. Fonte: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/544531. Acesso em 14/05/2021, às 20h.

O passo seguinte de Rutherford é investigar se havia algo como "mousike invariável" na arte egípcia, dadas as evidências de melos e schema que temos desta. Em seguida, questiona se os egípcios teriam concordado com a conexão platônica entre mousike, moralidade e estabilidade política.

Na busca pelo melos, a afirmação platônica é problemática: não temos registros de que os egípcios possuíssem algum tipo de notação musical. Tampouco dispomos de relatos ou testemunhos. Assim, torna-se difícil afirmar que os egípcios conservavam as formas corretas de melodias. Se, de fato, houvesse algum modo de correção a elas, não seriam escritos, o que revela uma dificuldade contemporânea de saber se Platão estaria certo ou não. Mesmo se houvesse tal conservação, elas não estariam de acordo com o modelo legislativo de Leis - justamente porque os governantes não as transcreveram e incorporaram na legislação do Egito.

Quanto a schema, não se tem muita clareza a respeito do que Platão queria dizer. Rutherford aponta duas hipóteses: que Platão tenha interpretado a conservação do schema a partir de ou hieróglifos ou relevos e pinturas, ambos registrados nas paredes dos templos. Essas inscrições poderiam ter dado a Platão uma certa noção de formas corretas e legítimas de movimentos a serem reproduzidos. No caso dos hieróglifos (Figura 4), não seria em relação ao conteúdo proposicional da grafia, mas à figura que eles apresentam. Ou seja: os próprios glifos seriam representações de movimentos a serem copiados. Escreve: "... [Platão] sabe que os templos egípcios são caracterizados por uma misteriosa escrita em imagens, muito da qual representa modos de posição prescritas por um legislador primitivo" (Rutherford, 2013RUTHERFORD, I. (2013). Strictly Ballroom: Egyptian Mousike and Plato's Comparative Poetics. In: ERASMIA-PEPONI, A. (ed.). Performance and Culture in Plato's Laws. 1a ed. Cambridge, Cambridge University Press , p. 67-83. , p. 74, tradução própria). A segunda hipótese também parece plausível: que as figuras de dançarinos em pinturas e relevos fossem como que um guia, um registro dos movimentos corretos que devem acompanhar certas canções. De fato, tais imagens (Figuras 5 e 6) sempre são acompanhadas de hieróglifos, que poderiam ter sido interpretados por Platão como a letra das canções em questão.

Figura 4:
Fragmento de relevo, tumba de Meketre, cerca de 1981-1975 a. C. 21.5 x 18.7 x 8 cm. Fonte: Metropolitan Museum of Art.

Figura 5:
Detalhes de Banquete para Nebamun, Tebas, cerca de 1350 a. C. 50 cm (largura). Fonte: https://www.khanacademy.org/humanities/ancient-art-civilizations/egypt-art/new-kingdom/a/paintings-from-the-tomb-chapel-of-nebamun. Acesso em 14/05/2021, às 20h.

Figura 6:
Tumba dos Dançarinos, Tebas, cerca de 1648-1550 a. C. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Tomb_of_the_Dancers_(detail).JPG

Ainda assim, não está bem claro o que Platão designa na arte egípcia como melos e schema. Contudo, é possível que o filósofo tivesse uma certa razão ao afirmar que a arte egípcia era baseada em tradição e conservadorismo. Mesmo que se verifique nos registros arqueológicos variações consideráveis, durante milênios a arte egípcia manteve algum nível (variável) de consistência visual, que nos permite identificar um "estilo" egípcio, e poderia ter sido assim considerado por Platão. Conclui, enfim, que o argumento do filósofo é um exagero, pois não há evidências arqueológicas suficientes para garantir que os egípcios associavam a mousike com funções pedagógicas e reguladoras, pelo menos nos termos que o Ateniense apresenta em Leis. Segundo Rutherford, essa remissão ao Egito é como que uma ficção antropológica baseada em alguns padrões observados sobre uma civilização distante, utilizada especialmente para gerar convencimento no seu público-alvo.8 8 Essa sugestão se mostra compatível com o diálogo, especialmente considerando a passagem Leis II, 663e — 664b. Neste trecho, os interlocutores afirmam que histórias falsas, fictícias ou míticas podem ser utilizadas pela retórica para gerar convencimento.

Stephen Halliwell, The Aesthetics of Mimesis (2002HALLIWELL, S. (2002) The Aesthetics of Mimesis: Ancient Texts and Modern Problems. Princeton, Princeton University Press .)9 9 Como será visto, a interpretação do elogio à arte egípcia de Halliwell não é particularmente extensa. Contudo, decidi incluí-la aqui pois discute uma abordagem diferente em relação a Leis e a República, em que o elogio à arte egípcia funcionaria como uma confirmação das teses de Halliwell.

Neste livro, Halliwell interpreta o elogio à arte egípcia em função de um argumento maior, voltado a uma interpretação da República que corroboraria o seu propósito geral de definir a História da Estética Antiga como uma estética da mimesis. Halliwell se baseia na premissa de que mimesis não é um termo unívoco tanto na história do pensamento grego quanto na obra de Platão. Rejeita, nessa posição, a tradução de mimesis como "imitação" ou "cópia", visto que o seu uso não se referia somente à produção de semelhança em uma obra em relação a um objeto anterior. O que Halliwell reivindica com essa reconstrução do uso do termo é que ele se estenderia a outras esferas da cognição humana para além da estética, perceptiva: a mimesis estaria intimamente associada aos aspectos éticos, psicológicos e afetivos de uma pessoa. Isto é: o efeito de uma obra de arte não pode se esgotar na contemplação descompromissada ou desinteressada.10 10 Esse modelo de arte surgiu somente séculos depois com pensadores como Baumgarten e Kant. Na Grécia Clássica e Arcaica, a Estética nem era um campo estudado separadamente dos aspectos morais, culturais e psicológicos causados nos espectadores. Adotar tal modelo de arte desinteressada negaria à filosofia antiga grega a existência da Estética como uma disciplina em si mesma.

Halliwell defende que a crítica à mimesis presente nos livros II, III e X da República estariam reforçando que o seu sentido está intrinsecamente associado às qualidades éticas, psicológicas e epistêmicas de uma obra de arte mimética. Parece que a primeira crítica - a moral - à poesia surge do reconhecimento dos efeitos morais e psicológicos da arte. Ela só apresenta um perigo à alma porque ela é capaz de afetar o sujeito. E afetá-lo não de um modo trivial, mas num sentido forte: que a arte possa transformar a constituição mental de uma pessoa, ameaçar a integridade da alma e, então, ameaçar o cultivo das virtudes.

A segunda e mais forte crítica à mimesis - a epistêmica - surge no último livro do diálogo: que ela não é capaz de representar objetos verdadeiramente, que não é criada a partir de conhecimento verdadeiro e nem pode gerá-lo em espectadores. Segundo Halliwell, essa crítica apenas reforça o que estava argumentando ao reivindicar à mimesis também seu aspecto moral e psicológico. A saber, que esta crítica platônica realçaria a necessidade de ampliarmos a definição de mimesis para que abarque também tudo aquilo que afeta o sujeito - seja em sentimentos, seja em sensações, seja a sua função cultural -, e não que esteja limitada à capacidade do ser humano de perceber e conhecer. Isto é, que a obra artística não seja somente considerada em relação à sua semelhança e fidelidade ao objeto originário à mimesis. Neste sentido, o argumento de Halliwell retorna: o que Platão estaria fazendo é uma crítica a concepções de arte e mimesis que repousam somente sobre seu caráter de "semelhança", e seu valor determinado a partir disso.

A crítica platônica seria então dirigida a esse tipo de arte mimética, e não a toda forma de mimesis. É nesse sentido que Platão também estaria, ao seu modo, argumentando a favor de uma definição de mimesis que abarque a sua relevância ética, psicológica, política, social e cultural.

O que sublinha o impulso do argumento é que a verossimilhança, a aparência do real, não deve ser confundida com com veracidade, uma compreensão [grasp] do real em si. O argumento de Platão sugere que uma defesa autocontida da arte fiel à vida [artistic truth-to-life], que apela apenas para a realização técnica e para a criação de impressões convincentes, é uma defesa que não vale a pena. (Halliwell, 2002HALLIWELL, S. (2002) The Aesthetics of Mimesis: Ancient Texts and Modern Problems. Princeton, Princeton University Press ., p. 59, tradução própria)

Isso significa que haveria ainda a possibilidade de aceitar outros tipos de arte cujo valor não repousa na sua capacidade de reproduzir aparências semelhantes e, portanto, se direcione somente aos seus efeitos no público. O que Halliwell reivindica aqui é que Platão estaria admitindo um espaço, dentro da experiência artística, para a responsividade ética e psicológica do espectador diante do objeto artístico, o que extrapolando a função meramente epistêmica da arte. Isto é, se for admitido que a arte possui mais funções do que apenas ser um objeto (ou não) de conhecimento, se estaria validando a capacidade que a arte possui de mobilizar sentimentos morais e de gerar efeitos psicológicos relevantes para o treinamento ético do público. Assim, a crítica platônica seria direcionada somente à função epistêmica da arte, ao mesmo tempo que estaria admitindo um uso educativo de objetos artísticos - baseado na pressuposição que a exposição a tais objetos pode servir como um treinamento dos próprios sentimentos, conduta e julgamentos.

É nesse sentido que Halliwell identifica um lugar para as artes fortemente estilizadas no projeto platônico. Sua ênfase não está tanto na reprodução da aparência do objeto quanto naquilo que a arte pode dizer ou significar a um espectador. Essa potencialidade versaria justamente sobre os aspectos éticos que subjazem a uma representação: "... a pintura é 'cheia' de boas e más formas de 'caráter' (ethos), formas que são simultaneamente uma questão de representação visual e expressão ética" (Halliwell, 2002HALLIWELL, S. (2002) The Aesthetics of Mimesis: Ancient Texts and Modern Problems. Princeton, Princeton University Press ., p. 141, tradução própria).

A arte egípcia, muito estilizada, apresentaria essa possibilidade de ênfase ao caráter da pintura como representação, e não à semelhança de sua aparência com o objeto representado. E se, portanto, o Ateniense admite que tais tipos de arte sejam aceitos, então isso também corrobora a tese de Halliwell de que a mimesis para Platão não se restringe a reproduções fiéis de objetos.

Whitney Davis, Plato on Egyptian Art (1979DAVIS, W. M. (1979). Plato on Egyptian Art. The Journal of Egyptian Archaeology 65, n. 1, p. 121-127 )

Nesse artigo, Davis retoma um comentário - verdadeiro ou não - feito por Diógenes Laércio em A vida dos filósofos (Livro III, inteiramente dedicado a Platão). A saber, que Platão teria sido um poeta e pintor antes de se voltar completamente à filosofia, abandonando esses ofícios artísticos em razão disso. Davis aposta que, tendo sido um pintor, Platão tivera contato com a arte egípcia da época. A partir disso, Davis tenta associar essa preferência platônica enunciada em Leis II com o projeto filosófico geral de Platão: que uma representação artística seja feita com base nas proporções verdadeiras dos objetos, e não nas proporções aparentes à percepção particular.

O que estaria em jogo aqui seria uma disputa entre modos de representar o objeto: o modo aspectivo (sem perspectiva) egípcio tradicional e o grego, que prezava por um certo naturalismo ou ilusionismo óptico - a schiagraphia, ou "pintura com sombras". Em síntese, a arte grega clássica procurava representar o objeto a partir do modo que este se apresenta à percepção humana, modulando sombras e luzes com a finalidade de criar uma obra que pareça natural e mais bela aos olhos humanos - mesmo que, para isso, a técnica distorcesse as reais proporções do objeto. A Figura 7, O rapto de Perséfone, é um dos únicos exemplos que dispomos dessa técnica grega, que vigorava na época em que Platão vivia (Gombrich, 2013GOMBRICH, E. H. (2013) A História da Arte. Trad. Álvaro Cabral. Edição de bolso. Rio de Janeiro, Editora Livros Técnicos e Científicos.). Mesmo que em grande parte apagada, podemos perceber que o artista adotou uma perspectiva única e, assim, dispôs formas, cores e sombras de modo a reproduzir num plano bidimensional aquilo que estaria no próprio ponto de vista. Percebe-se que, embora atente às proporções, o artista grego prefere seguir uma lógica da aparência. A roda não aparece em suas proporções reais e objetivas, mas relativa à perspectiva do observador. Portanto, pode-se dizer que tal tipo de representação almeja criar ampressão de ilusão no espectador.

Figura 7:
O Rapto de Perséfone. Pintura em uma parede, localizada em Vergina. Séc. IV a. C. Fonte: https://www.wikiwand.com/pt/Pintura_europeia_(da_Pr%C3%A9-Hist%C3%B3ria_%C3%A0_Idade_M%C3%A9dia). Acesso em 14/05/2021, às 20h.

A arte egípcia, em oposição, não se detém a uma perspectiva singular para representar o objeto, mas incorpora visões frontais e laterais numa composição muito atenta ao rigor de proporções.11 11 Acredita-se, inclusive, que os egípcios tinham uma técnica para pintar em que eles dividiam o espaço em linhas e colunas, e com base nisso, desenhavam o que estivessem representando. Não que isso significasse um molde com proporções exatas a ser copiado por todo artista, mas sim como um guia para dispor corretamente a figura no espaço disponível. Na Figura 8, percebe-se a técnica aspectiva sendo empregada: ao passo que estranharíamos se víssemos pessoalmente uma cena real acontecer nesta configuração, ainda assim compreendemos muito facilmente a ideia geral que está sendo retratada. Erwin Panofsky escreve sobre a arte egípcia, contrastando-a com o naturalismo óptico visado pelos gregos:

O método egípcio de empregar uma teoria de proporções claramente reflete o seu Kunstwollen [vontade da arte], direcionado não à variável, mas ao constante, não à simbolização do presente vital, mas à realização de uma eternidade atemporal. [...] Ela reproduz a forma, e não a função, do ser humano em uma réplica mais durável. (Panofsky, 1955PANOFSKY, E. (1955). The History of the Theory of Human Proportions. In: PANOFSKY, E. (1955), Meaning in the Visual Arts. 1a ed. New York, Doubleday Anchor Books., p. 61,tradução própria)

Figura 8:
Livro dos Mortos para a Chantre (cantora-sacerdotisa) de Amun, Nany, cerca de 1050 a.C. 521.5 cm x 35 cm. Fonte: Metropolitan Musem of Art. https://www.metmuseum.org/art/collection/search/548344. Acesso em 14/05/2021, às 20h.

Neste sentido, poderíamos associar o modo de representação da arte egípcia como uma maneira de atentar ao que há de comum, eterno e invariável nos objetos, em uma certa "idealidade"; enquanto a arte grega estaria dedicada à representação de particulares sensíveis. O que Davis propõe é que essa atenção à forma é compatível com o projeto epistêmico-metafísico geral de Platão - o que lhe teria valido o elogio. Um tema comum nos diálogos platônicos, em qualquer uma de suas fases, é a importância de se investigar as coisas para além de sua aparência ilusória, buscando essencialmente conhecer as formas, as leis e os lógoi que determinam a ocorrência de tais fenômenos sensíveis e perceptivos. Portanto, uma arte que busca representar a norma, uma forma eterna de objetos poderia ser compatível com esse propósito.

Embora não seja verdade que toda arte egípcia seja formular, predominantemente tradicional, ou sempre "religiosa", para nossos propósitos e certamente tanto quanto Platão sabia, os "tipos padrão" eram exatamente assim. Artistas egípcios desenvolveram um método de representação bidimensional que apresenta cada componente individual de um objeto e de uma cena do modo mais completo e claro possível, e que presta muita atenção às proporções empiricamente determinadas destes componentes. No processo, um ponto de vista naturalista, se baseando em escorçar e modelar a forma pela luz, deveria ser evitado. Escorços e ilusionismos obscureceriam elementos que se sabe que estão presentes, e distorceriam aqueles outros elementos que são de fato escolhidos para a representação. Ao invés disso, um ponto de vista idealista, analítico e "aspectivo" é adotado. (Davis, 1979DAVIS, W. M. (1979). Plato on Egyptian Art. The Journal of Egyptian Archaeology 65, n. 1, p. 121-127 , p. 124, tradução própria)

Em The Canonical Tradition in Ancient Egyptian Art, Davis chega a afirmar que não apenas Platão elogiou a arte egípcia, mas também a considerou como a mais real (Davis, 1989DAVIS, W. M. (1989). The Canonical Tradition in Ancient Egyptian Art. 1a ed. Cambridge, Cambridge University Press ., p. 205). Isto porque ela oferece uma visão de mundo que não é apenas determinada pela percepção sensível, mas que atenta para padrões formulares de objetos a serem representadas. Portanto, essa escolha pela representação aspectiva visava os mesmos objetivos de extrapolar os limites sensíveis da nossa experiência.

Por mais que a arte egípcia não seja tal como Platão a descreve (absolutamente imutável, sacra, tradicional e conservadora), essa poderia ter sido uma opinião comum e padrão em seu tempo, dadas as limitações geográficas. Se Platão de fato teve contato com algum tipo de arte egípcia, não é absurdo pensar que ele tenha chegado a essas conclusões dadas as possíveis amostras disponíveis a ele. Além disso, ela seria não apenas compatível com Leis, mas também com o projeto epistemológico desenvolvido no corpus platônico de investigar a realidade para além das aparências sensíveis.

III - Breves considerações sobre os comentadores e conclusão

Neste artigo, foi exposto o elogio à arte egípcia feita por Platão e como este se conecta com o projeto educativo de Leis no geral. Em seguida, foram sintetizadas três interpretações diferentes sobre esse elogio. A seguir serão traçados breves comentários às interpretações de Davis, Halliwell e Rutherford, respectivamente.

A proposta de Whitney Davis visa mostrar como o elogio seria fortemente compatível com boa parte do corpus platônico. Ele acredita que a preferência de Platão pela arte egípcia se deva ao modo que esta representa o seu objeto, a saber, que visa não à reprodução de semelhança visual das aparências que se apresentam aos sentidos, mas sim à reprodução de uma forma analítica e idealizada. Ora, isto poderia ser compatível com a filosofia de Platão em geral, em especial quanto à busca pela Forma das coisas que não pode ser percebida pelos sentidos. Contudo, alguns pontos poderiam abalar a sugestão de Davis: 1) sua interpretação de que a arte egípcia seja especialmente voltada para a reprodução formular, analítica, verdadeira e subjacente aos objetos encontrados na experiência parece já ser bastante informada por teses filosóficas, inclusive a platônica, que não exatamente se aplicam às funções e objetivos da arte egípcia. Sem respaldo suficiente nas evidências textuais e materiais do Egito Antigo, a interpretação de que visavam a representação mais real do objeto pode ser muito questionável. 2) Quando argumenta que Platão teria descrito a arte egípcia como "mais real" (Davis, 1989DAVIS, W. M. (1989). The Canonical Tradition in Ancient Egyptian Art. 1a ed. Cambridge, Cambridge University Press ., p. 205) ou que possui “correção intrínseca” (intrinsic rightness) (Davis, 1989DAVIS, W. M. (1989). The Canonical Tradition in Ancient Egyptian Art. 1a ed. Cambridge, Cambridge University Press ., p. 3, 112 e 223), trata-se de uma má compreensão do texto platônico. O que Platão enfatiza quando exige correção (orthotes) das formas da mousike, não exige que ela seja verdadeira e real em si, mas sim que esteja alinhada com os princípios morais determinadas pela tradição e pelo julgamento dos mais virtuosos críticos de Magnésia. Parece que a correção de Platão seja muito mais um critério ético e moral do que um metafísico e ontológico sobre a realidade do objeto artístico. 3) Temos pouquíssimas evidências textuais de que Platão enuncia tal elogio pelas razões que Davis fornece: apenas encontramos esse elogio nesta passagem específica de Leis II, e o contexto fornece boas razões para crer que Platão esteja de fato mais interessado em suas funções morais e pedagógicas do que algo que pode ser expandido a todo seu projeto filosófico.

A interpretação de Stephen Halliwell, como já explicado, depende de um argumento mais amplo que visa reinterpretar o significado de mimesis e suas implicações na crítica à poesia da República. Nesse sentido, o elogio à arte egípcia, fortemente estilizada, é visto como uma evidência que confirma a sua tese de que Platão estaria na verdade criticando um modelo de arte cujo valor reside na semelhança entre mimesis e realidade. Não há espaço aqui para analisar as minúcias deste argumento, mas o fato de que o elogio à arte egípcia é tratado somente a respeito disso e não de sua função estrutural e argumentativa em Leis enfraquece as contribuições de Halliwell aos presentes objetivos. Isto é, ao invés de investigar as implicações que o trecho apresenta ao tratamento de poesia e educação no projeto de Magnésia, o elogio funcionaria apenas como uma confirmação para reforçar o argumento de The Aesthetics of Mimesis. Ainda assim, a ênfase que Leis II dá às funções morais e políticas da arte egípcia poderia corroborar a insistência de Halliwell de que a preocupação de Platão estaria direcionada a criticar a mimesis como um veículo de conhecimento, enquanto aceitaria benefícios de outros efeitos miméticos. Contudo, nada além disso no texto confirma que a estilização da arte egípcia seria louvada especificamente por estas razões.

Por fim, Ian Rutherford oferece contribuições de grande relevância para esta pesquisa, visto que ele já indica o que é uma ficção antropológica platônica e o que, de fato, pode ser investigado com seriedade. Em seguida, esse artigo pretende, para além de Rutherford, investigar brevemente a arte egípcia12 12 Aqui, não estarei mais tratando de mousike, mas especialmente de artefatos visuais. Para tornar isso defensável, poderíamos argumentar que o próprio schema trate de "artes visuais", visto que Platão afirma que schema foi conservado nas paredes de templos. em si, em busca de possíveis conexões entre ela, o conservadorismo da tradição e a política.

Para isto, serão brevemente investigados três aspectos: como o objeto artístico egípcio13 13 É importante salientar que os egípcios não possuíam uma palavra ou conceito para “arte” com sentido semelhante ao que se tem hoje, tendendo-se a uma definição eurocêntrica de arte como “belas artes”. Havia, contudo, uma palavra que designava "trabalhos manuais" (crafts) em geral, hmt (Baines, 2007; Riggs, 2014). Levando isso em consideração, pode-se entender que, por um lado, os usos da arte estariam voltados não somente a um aspecto de apreciação estética, mas também às funções sociais, religiosas, políticas e educativas da arte, essenciais para a compreensão da arte egípcia. Por outro lado, somente uma parte muito selecionada e curada da arte egípcia nos restou: a técnica empregada, a durabilidade e qualidade dos materiais, o contexto de sua conservação, a pragmática do objeto na cultura egípcia e um longo processo de curadoria e seleção estética tornou nossa recepção da arte egípcia bastante acidentada e condicionada (Ikram, 2015). era também uma representação do equilíbrio entre ordem e caos, que deve ser mantido; como podemos pensar em uma elite que detinha boa parte dos meios de produção de objetos artísticos e religiosos, mantendo certa tradição em alguns tipos de representação; e, por fim, como algumas notáveis mudanças no estilo da arte foram também acompanhados por mudanças políticas ou religiosas.

Em primeiro lugar, deve-se atentar para a relação ontológica que as representações pictóricas e hieróglifos (que por vezes se sobrepõem) mantêm com o objeto referente. Basicamente, aqueles funcionariam como mecanismos de presença material, e uma imagem poderia simbolizar a presença real do representado.14 14 Um exemplo disso é como no Antigo Egito se acreditava que a representação figurativa e os hieróglifos do nome de uma pessoa coincidiam com a sua essência. Há, aliás, relatos de que se o nome de alguém fosse riscado ou apagado, lhe seria negada a própria existência — condenando-o ao esquecimento (Nyord, 2020; Wilson, 2004). Gombrich (2013, p. 50) salienta que o único nome que havia para escultor significava “aquele que mantém vivo”. Isso é particularmente relevante considerando que muitas imagens egípcias tentavam representar o equilíbrio entre ordem e caos no mundo, Maat e Isefet respectivamente. A materialidade de tais representações era tão importante para os objetivos ritualísticos e cósmicos egípcios que a própria imagem possuía uma função de presentificar os deuses na matéria (Ferreira, 2018FERREIRA, C. V. (2018). A imagem, o faraó, e o deus na época de Amarna: continuidades e rupturas (Egito século XIV a. C.). Dissertação de mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo. ). Nesse sentido, imagens poderiam representar e assegurar o equilíbrio de forças cósmicas. Como o poder e a autoridade do faraó, cujo serviço possui uma função divina, também era tido como uma prevalência da ordem sobre o caos, representações visuais de dominação de inimigos pela autoridade política eram uma forma de preservar tanto o equilíbrio cósmico quanto reforçar o poder faraônico (Figura 9). O modo de representar e dispor as imagens no espaço também revela essa preocupação:

Linhas de base, simetria, espaçamento equilibrado e recursos simbólicos, tais como hieróglifos ou enfeites para cabeça, permitiam aos Egípcios organizar tanto o mundo conhecido e o desconhecido, ajudando a manter o Maat (ordem cósmica) no processo. (Riggs, 2014, p. 77, tradução própria)

Figura 9:
Tutemés III batendo em seus inimigos. Karkak, Novo Reino. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Tuthmosis_III._Karnak.jpg. Acesso em 14/05/2021, às 20h.

Assim, poderíamos dizer que o modo de representar o objeto - o que constituiria um estilo egípcio - também era informado por preocupações com a ordenação cósmica do mundo. O faraó era responsável por manter essa ordem, e a inscrição de ritos (incluindo musicais e de performances artísticas), de símbolos de poder e autoridade, de textos religiosos, entre outros, nas paredes dos templos era também uma forma de conservação e memória. Isso ajuda a compreender por que a arte egípcia se manteve visualmente consistente por anos, por mais que haja variações. Outro fator é aquilo que o egiptólogo John Baines chama "decoro", um modo correto e consistente com a tradição de se criar artefatos a partir dos interesses de uma elite egípcia (o faraó, outras autoridades políticas ou religiosas e escribas). Então, através da seleção e repetição de padrões de arte, este sistema de decoro poderia, em primeiro lugar, criar algum tipo de identidade artística e cultural, a partir do qual se forma tal "estilo egípcio".15 15 Algo semelhante poderia ser argumentado para a consistência de temas e propósitos da poesia e arte grega. Contudo, o que se enfatiza aqui é a aparente rigidez com que tais padrões de técnicas, formas de representação e temas eram instituídos pelo poder político e religioso central comandado pelo faraó egípcio. Em segundo lugar, esta arte se distingue como um estilo mais elevado, que se volta ao culto dos deuses e à autoridade do faraó. Em terceiro lugar, essa arte servia também como um meio de garantir e aumentar o estatuto de autoridade do faraó, que muitas vezes se utilizava dessa tradição estilística e estética para atingir seus próprios objetivos religiosos e políticos. Nesse movimento,

O diálogo perceptivo com o passado e o uso de diferentes modelos antigos com implicações diversas caracterizam um discurso artístico que se autossustenta internamente, e emprega essa característica para afirmar a sua significação à sociedade mais ampla. (Baines, 1994BAINES, J. (1994). On the Status and purposes of Ancient Egyptian Art. Cambridge Archaeological Journal 4, pp. 67-94., p. 88, tradução própria)

Assim, essa dinâmica entre arte e política criava uma certa legitimação mútua: ao passo que o faraó se estabelece dentro de uma tradição de antecessores através da incorporação de elementos artísticos passados, a arte também encontrava seu lugar dentro da tradição, já culturalmente arraigada, e sinalizava para a autoridade do faraó (como pode ser visto na Figura 9 acima). Assim, segundo Baines, o sistema de decoro teria sido em grande parte responsável pela manutenção do tradicionalismo nas artes, não somente por causa de seu valor religioso e cósmico, mas também pelo seu valor político.

Por fim, apresenta-se dois casos em que mudanças foram incorporadas nas artes como um meio de atingir objetivos políticos (Hartwig, b, 2015HARTWIG, M. K. (2015) Sculpture. Em: HARTWIG, M. K. (ed). (2015). A Companion to Ancient Egyptian Art . 1a ed. Chichester, John Wiley & Sons Ltd , p. 191-218. , p. 47): o primeiro, o caso da faraó Hatshepsut (Figuras 10 e 11), que depois da morte do faraó Tutemés II (seu esposo) assumiu o governo do Egito Antigo. Uma faraó mulher era uma novidade e não muito bem aceito. Contudo, percebe-se em sua iconografia que, no início de seu governo, ela era representada com traços femininos. Conforme seu reinado avança, há uma tendência de retirar os elementos que marcam a feminilidade de suas representações visuais: seus seios desaparecem, sua face é masculinizada e pouco a distingue de estátuas tradicionais de outros faraós. Talvez isso possa ser uma sugestão de que essas mudanças no modo de representá-la visavam criar uma aceitação maior.

Figura 10
Hatsepsut, cerca de 1479-8 a. C. 213 cm x 50 cm x 119 cm. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Hatexepsute#/media/Ficheiro:Hatshepsut.jpg. Acesso em 14/05/2021, às 20h

Figura 11
Hatshepsut, Dayr al-Baḥrī, Templo de Hatshepsut, cerca de 1470 a. C. Tebas. Fonte: https://www.viaggioinegitto.com/wikis/tempio-funerario-hatshepsut. Acesso em 14/05/2021, às 21h.

O segundo exemplo é do faraó conhecido como Akhenaton I (Figura 12). Originalmente Amenhotep IV, o faraó trocou seu nome no quinto ano de seu governo, influenciado por motivos religiosos. Ele desejava instituir no Egito uma religião que cultuava Aten, um aspecto do deus-sol Ra, chamada de Atenismo. Essa mudança religiosa também implicou uma radical (porém breve) mudança na política, na cultura e nas artes. Em suas representações, percebe-se radicais alterações nas proporções, principalmente na parte superior dos corpos e na cabeça. Há também mais curvas e movimentos perceptíveis.

Figura 12
Akhenaten, Templo de Aten, Karnak, Egito, cerca de 1370 a. C. Fonte: https://www.flickr.com/photos/ancientartpodcast/7032661267/. Acesso em 14/05/2021, às 21h

Com esses esclarecimentos, importava à arte egípcia afirmar-se dentro da própria tradição e ser legitimada tanto pelos faraós quanto pela cultura. Além disso, observamos casos de mudanças imputadas no "estilo egípcio" com um evidente propósito de reforçar a autoridade política e religiosa. Poderíamos aproximar essa função da arte egípcia ao argumento de Platão de que há um aspecto da mousike que pode implicar em conservadorismo moral, cultural e político, se as formas corretas de melos e schema forem também preservadas.

Essa sugestão se tornaria ainda mais forte se considerarmos as contribuições de Mark Griffith: que Magnésia, afinal, admita em sua constituição uma certa medida de variações artísticas. Isso também seria compatível com as variações de estilo presentes na história da arte do Egito Antigo. Para Griffith, o principal objetivo de impor tantas restrições a inovações nas artes da cidade consistia em estabelecer uma identidade cultural forte entre os cidadãos. Isso está associado, também, ao argumento de que a teatrocracia leva à corrupção moral e política. Contudo, o que subjaz a esse estabelecimento de restrições é a intenção de criar um gênero musical culturalmente distintivo.

O gênero musical típico de Magnésia seria constituído a partir do intercruzamento das melhores técnicas, das melhores formas, dos melhores caracteres e dos melhores instrumentos introduzidos pelo contato com nações distintas e assimilação de suas técnicas. E isso enquanto Magnésia é planejada para durar pela eternidade, mantendo um conservadorismo de formas que a torne capaz de ser distinguida culturalmente.

As regras músico-corais (o 'esquema, modelo' (ekmageion), 800b) parecem requerer que nada deva mudar, as melodias [tunes] devem ser fixadas e apropriadas (corretas), e nós devemos aparentemente nos esforçar para ser como aqueles egípcios, mantendo a 'mesma música' por dez mil anos e usando apenas uma melodia para cada ocasião ritual; mas, por outro lado, nós também devemos permitir improvisação dionisíaca e entusiasmo juvenil ou embriagado, e nós devemos reconhecer e apreciar as diferenças especiais e à prova do tempo das harmonias 'frígias' e 'hipofrígias' - assim como as dóricas, claro - todas mitigando, modulando e alternando de um coro e de um festival a outro, dentro (ou perto) da nossa cidade Cretense evoluindo. (Griffith, 2013GRIFFITH, M. (2013) Cretan Harmonies and Universal Morals: Early Music and Migrations of Wisdom in Plato's Laws. In: ERASMIA-PEPONI, A. (ed.). Performance and Culture in Plato's Laws. 1a ed. Cambridge, Cambridge University Press , p. 15-66., p. 44, tradução própria)

Podemos, a partir disso, concluir que até Magnésia poderia admitir a existência de variações artísticas em seu território - contanto que as regras para sua performance e espetáculo fossem respeitadas. Portanto, temos que tanto em Magnésia quanto no Egito a variação artística de formas e estilos serviriam para a evolução de suas constituições, ambos visando, à sua própria maneira, ao estabelecimento de uma autoridade cultural, política e religiosa.

Embora boa parte desse elogio seja um exagero de Platão e não se refira às práticas egípcias reais, haveria uma possibilidade de aproximar suas sugestões com alguns usos e funções sociais (embora não em absoluto) da arte egípcia. A saber, à medida em que tanto a constituição de Magnésia quanto a arte egípcia preveem em si a possibilidade da manutenção da tradição e da autoridade política.

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  • 1
    Comparativamente pouco estudado, o interesse por Leis cresceu significativamente nos últimos séculos e, em especial, décadas. Apesar da quantidade de traduções e comentários ao texto ser pequena (especialmente se comparado a, por exemplo, República e Banquete, destacam-se algumas obras, dentre elas: os comentários e tradução em alemão ao texto grego feito por Schöpsdau (1994SCHÖPSDAU, K. (trad.). (1994). Platon. Nomoi (Gesetze) Buch I-III. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht.; 2003), o comentário de Brisson e Pradeau (2007BRISSON, L.; PRADEAU, J-F. (2007). Platon. Les Lois de Platon. 1ª e. Paris, Presses Universitaires de France.) em francês, e a tradução ao inglês com comentários dos Livros 1 e 2 de Meyer (2017MEYER, S. S. (2015). Plato. Plato’s Laws Books 1 and 2. 1ª ed. Oxford, Oxford University Press .).
  • 2
    Isso já indica uma grande diferença em relação à República. Enquanto Kallipolis é abstrata e não possui localização real, Magnésia possui uma localização precisa. Isso também faz parte de uma crítica platônica à República, segundo a qual Kallipolis seria uma cidade pensada para deuses e não para seres humanos. Assim, a elaboração da constituição de Magnésia possui também um elemento de realismo, tanto em relação à sua praticabilidade e ao método de pesquisa "histórico-mitológico" que é empregado em Leis. Schofield (2010SCHOFIELD, M. (2010). The Laws' Two Projects. In: BOBONICH, C. (ed). (2010). Plato's Laws: a critical guide. 1a ed. Cambridge, Cambridge University Press , p. 12-28. ) trata dessas diferenças com mais acuidade, o que não é possível aqui. Morrow (1993MORROW, G. R. (1993). Plato’s Cretan City: a historical interpretation of the Laws. 2ª ed. Princeton, Princeton University Press .) corrobora a tese de Schofield ao rastrear fontes históricas documentadas sobre as constituições de Atenas, Creta e Esperta (por mais parciais que possam ser). Ele argumenta que, Platão tendo demonstrado interesse e devotado grande parte de sua vida à pesquisa da política, Leis é uma obra profundamente informada pelos detalhes históricos recolhidos por Platão destas constituições. Em suas palavras, “Pois se a [legislação] ideal, ou qualquer imitação digna dessa, deve ser executada, ela deve ser corretamente exemplificada — entre um povo que vive em um momento específico do tempo e lugar, que possui tais e tais características e tradições. [...] Platão deve usar os gregos de sua época, com suas tradições de liberdade e respeito à lei, e seus temperamentos humanos falíveis. Nem sempre esses são melhor adaptados à sua proposta, mas como um bom artesão ele os seleciona cuidadosamente e lida com eles com habilidade para criar uma semelhança tão próxima o possível com o ideal.” (Morrow, 1993MORROW, G. R. (1993). Plato’s Cretan City: a historical interpretation of the Laws. 2ª ed. Princeton, Princeton University Press ., p. 10, tradução própria)
  • 3
    A edição de Leis que está sendo seguida é a de John Burnet, presente em Platonis Opera (1903BURNET, J. (ed.) (1903). Plato. Laws. In: BURNET, J. (1903) Plato. Platonis Opera. Oxford, Oxford University Press .).
  • 4
    O artigo de de la Fuente (2013) desenvolve como a religião dionisíaca auxilia a engendrar o projeto político e educativo proposto a Magnésia, bem como os simpósios e o uso do vinho auxiliam no processo.
  • 5
    Ao decorrer do texto, opto por não traduzir mousike. Como visto, este termo se refere a um conjunto de artes que é mais ampla do que a música, pelo menos de acordo com definições atuais desta última. Aqui, no entanto, traduzo por “música” para fazer mais sentido no contexto específico, pois não se trata mousike lato sensu, mas está restrita às músicas específicas performadas nos festivais.
  • 6
    Dionisiaco e Alterità nelle Leggi di Platone investiga, sobretudo, quais as funções que os ritos dionisíacos e as tragédias desempenham na constituição de Magnésia. Como aqui será tematizado principalmente o elogio à arte egípcia, sua tese mais geral sobre Magnésia como a tragédia mais verdadeira foge do escopo deste artigo.
  • 7
    Morrow (1993MORROW, G. R. (1993). Plato’s Cretan City: a historical interpretation of the Laws. 2ª ed. Princeton, Princeton University Press ., p. 307) ajuda a compreender melhor esse ponto a partir das tradições musicais gregas. Segundo ele, os gregos costumavam associar certos “modos” de expressão com agressividade, serenidade, lamentos entre outros. Portanto, já havia uma identificação de certos movimentos e expressões físicas com caracteres específicos antes mesmo de Platão propor uma correção do schema em relação ao caráter que representa.
  • 8
    Essa sugestão se mostra compatível com o diálogo, especialmente considerando a passagem Leis II, 663e — 664b. Neste trecho, os interlocutores afirmam que histórias falsas, fictícias ou míticas podem ser utilizadas pela retórica para gerar convencimento.
  • 9
    Como será visto, a interpretação do elogio à arte egípcia de Halliwell não é particularmente extensa. Contudo, decidi incluí-la aqui pois discute uma abordagem diferente em relação a Leis e a República, em que o elogio à arte egípcia funcionaria como uma confirmação das teses de Halliwell.
  • 10
    Esse modelo de arte surgiu somente séculos depois com pensadores como Baumgarten e Kant.
  • 11
    Acredita-se, inclusive, que os egípcios tinham uma técnica para pintar em que eles dividiam o espaço em linhas e colunas, e com base nisso, desenhavam o que estivessem representando. Não que isso significasse um molde com proporções exatas a ser copiado por todo artista, mas sim como um guia para dispor corretamente a figura no espaço disponível.
  • 12
    Aqui, não estarei mais tratando de mousike, mas especialmente de artefatos visuais. Para tornar isso defensável, poderíamos argumentar que o próprio schema trate de "artes visuais", visto que Platão afirma que schema foi conservado nas paredes de templos.
  • 13
    É importante salientar que os egípcios não possuíam uma palavra ou conceito para “arte” com sentido semelhante ao que se tem hoje, tendendo-se a uma definição eurocêntrica de arte como “belas artes”. Havia, contudo, uma palavra que designava "trabalhos manuais" (crafts) em geral, hmt (Baines, 2007BAINES, J. (2007). Visual and written culture in Ancient Egypt. 1a ed. Oxford, Oxford University Press.; Riggs, 2014RIGGS, C. (2014). Ancient Egyptian Art and Architecture: A Very Short Introduction. 1a ed. Oxford, Oxford University Press .). Levando isso em consideração, pode-se entender que, por um lado, os usos da arte estariam voltados não somente a um aspecto de apreciação estética, mas também às funções sociais, religiosas, políticas e educativas da arte, essenciais para a compreensão da arte egípcia. Por outro lado, somente uma parte muito selecionada e curada da arte egípcia nos restou: a técnica empregada, a durabilidade e qualidade dos materiais, o contexto de sua conservação, a pragmática do objeto na cultura egípcia e um longo processo de curadoria e seleção estética tornou nossa recepção da arte egípcia bastante acidentada e condicionada (Ikram, 2015IKRAM, S. (2015) Interpreting Ancient Egyptian Material Culture. HARTWIG, M. K. (ed). (2015). A Companion to Ancient Egyptian Art . 1a ed. Chichester, John Wiley & Sons Ltd , p. 175-188. ).
  • 14
    Um exemplo disso é como no Antigo Egito se acreditava que a representação figurativa e os hieróglifos do nome de uma pessoa coincidiam com a sua essência. Há, aliás, relatos de que se o nome de alguém fosse riscado ou apagado, lhe seria negada a própria existência — condenando-o ao esquecimento (Nyord, 2020NYORD, R. (2020). Seeing Perfection: Ancient Egyptian Images Beyond Representation. 1a ed. Cambridge, Cambridge University Press .; Wilson, 2004WILSON, P. (2004). Hieroglyphs: A Very Short Introduction. 1a ed. Oxford, Oxford University Press .). Gombrich (2013GOMBRICH, E. H. (2013) A História da Arte. Trad. Álvaro Cabral. Edição de bolso. Rio de Janeiro, Editora Livros Técnicos e Científicos., p. 50) salienta que o único nome que havia para escultor significava “aquele que mantém vivo”.
  • 15
    Algo semelhante poderia ser argumentado para a consistência de temas e propósitos da poesia e arte grega. Contudo, o que se enfatiza aqui é a aparente rigidez com que tais padrões de técnicas, formas de representação e temas eram instituídos pelo poder político e religioso central comandado pelo faraó egípcio.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    07 Jul 2021
  • Aceito
    22 Dez 2021
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