Open-access Resenha de Aldo Dinucci. Manual de Estoicismo: a visão estoica do mundo. Campinas: Editora Auster, 2023, 144pp., ISBN 9786587408651

DINUCCI, A. . (2023). Manual de Estoicismo: a visão estoica do mundoCampinasEditora Auster144pp ISBN 9786587408651

O livro apresenta os principais conceitos da filosofia estoica com o intuito de exortar o leitor a dar sua própria interpretação acerca da doutrina do pórtico. Além disso, a obra também incentiva o leitor a, de posse desses conceitos, preparar seu próprio manual de conduta moral, assim como muitos filósofos da época helenística faziam. Para isso, a obra segue o mesmo currículo proposto pelos estoicos ao abordar a Filosofia em três tópicos distintos e entrelaçados: Física, Ética e Lógica.

Alguns leitores, ávidos por entrar de chofre na filosofia dos estoicos, podem considerar o Capítulo I um pouco desnecessário, por tratar rapidamente sobre as biografias dos principais estoicos da antiguidade. No entanto, um leitor mais atento perceberá que, na citação que abre o Capítulo I, temos a seguinte reflexão: “olhei a vida nas diversas épocas através de vidros diferentes…, mas em despedida do Criador, espero ainda olhá-la através dos vidros de Epicteto, do puro cristal sem refração.” (Joaquim Nabuco, Minha Formação; apud Dinucci, 2023, p.19)

Esse é um pensamento que anuncia um dos princípios mais belos do estoicismo: aprender com os melhores em virtuosidade, com aqueles que nos deixaram como legado o bem viver. Daí a importância de o autor nos trazer alguns detalhes da vida de Zenão, Crisipo, Cleantes e tantos outros que contribuíram para o pensamento estoico. Além disso, Dinucci expõe como esses filósofos foram importantes em determinados momentos da antiguidade. Um desses momentos relatados é o da Oposição Estoica, quando alguns filósofos estoicos, entre eles Catão de Útica, Musônio Rufo e Sêneca, tiveram uma postura de resistência moral e política diante do autoritarismo e da tirania dos imperadores romanos, especialmente durante os reinados de Nero e Domiciano.

Ainda temos aqueles de origem mais simples, como Zenão, um náufrago, Cleantes, um lutador de boxe e carregador de água, Epicteto, um ex-escravo, todos a serviço da grandeza e originalidade do pensamento estoico. Todavia, mesmo os de origem mais nobre, como Marco Aurélio, o imperador, nos é apresentado como um homem justo, não entregue aos vícios e às paixões.

No capítulo II, História da Filosofia Estoica, Dinucci nos traz um importante fato histórico para compreensão da filosofia estoica ao destacar, como ele considera, “um feliz encontro entre Europa e África” (Dinucci, 2023, p.35). Zenão, o fundador do estoicismo, é um fenício da ilha de Chipre que naufraga nas costas de Atenas perdendo sua preciosa carga de púrpura. Quando chega em Atenas, na condição de náufrago, passou a frequentar, durante décadas, alguns filósofos como Crates de Tebas, o cínico; Estílpo, o megárico; Xenócrates e Pólemon, os acadêmicos; e Diodoro Cronos, o dialético. A partir de então, passa a expor seu pensamento no Pórtico Pintado (stoa poikile), uma colunata à pouca distância da ágora ateniense, onde a vida política acontecia.

Em seguida, Dinucci aborda a filosofia estoica em suas três principais partes: Física, Ética e Lógica. A Física nos ensina como o mundo se formou através do Fogo primordial, também chamado de Logos, Zeus, Inteligência Universal. Como providência, a divindade fornece a cada ser o que é preciso para a sua existência. Como destino, determina o encadeamento de fatos que ocorrem no Cosmos. Como ação demiúrgica, dá forma ao Universo criando os quatro elementos fenomênicos, os quais, unindo-se em pares, compõem todos os seres do mundo: fogo e ar unem-se para formar o pneuma, água e terra unem-se para formar a matéria. Em seguida, o pneuma une-se à matéria fornecendo-lhe qualidade e forma, fazendo surgir os corpos individuais. A maneira como o pneuma age na matéria definirá cada ser no mundo: movimento hexis dá origem aos seres inanimados; o da physis, às plantas; psyche, aos animais, e hegemonikon aos seres humanos. Após a exposição da Física e seus conceitos mais importantes, Dinucci conclui que se somássemos todos os pneumas e toda a matéria existente, poderíamos considerar o Cosmos como um ser vivo racional.

Dentro do estudo da Lógica, encontramos teoria do conhecimento, teoria da linguagem, lógica proposicional, sofismas e retórica. Abordando o tema através da teoria do conhecimento, Dinucci nos apresenta o conceito de representação (phantasia), entendido pelos estoicos como uma imagem produzida e interpretada logicamente pela nossa alma racional a partir dos dados fornecidos pelos sentidos.

Conforme os estoicos, não encontramos o mesmo tipo de representação nos animais por conta da necessidade de sua articulação linguística para expressão os conceitos, traduzidos no estoicismo como dizível (lekton): aquilo que pode ser proferido e que constitui o sentido das palavras.

No que concerne a Ética, Dinucci demonstra sua íntima ligação com a Física e Lógica: Como foi visto na parte da Física, o pneuma possui movimentos distintos que qualificam e modelam os corpos. No corpo humano, o movimento do hegemonikon nos torna capaz de interpretar corretamente os dados sensoriais fornecidos pela realidade, ação possível mediante o estudo da Lógica. Possuindo uma interpretação correta da realidade, o ser humano pode responder adequadamente aos estímulos externos, tornando-se virtuoso ao realizar sua natureza de ser racional e, portanto, feliz.

No capítulo III, A Prática do Estoicismo, é abordado o pensamento estoico pelo viés da praticidade. Para isso, Dinucci utiliza-se do filósofo estoico Epicteto e de sua divisão da filosofia em três respectivos tópicos: o Tópico do Juízo ou do Desejo, o Tópico da Ação e o Tópico da Persuasão. O primeiro deles, com o objetivo de reparar os erros do juízo que herdamos do senso comum em relação ao valor das coisas do mundo, é dividido em dois teoremas: o Teorema Ontológico e o Teorema da Gratidão.

O Teorema Ontológico faz a distinção entre as coisas que estão e que não estão sob nosso controle (eph’hemin). Ao analisar a expressão grega, cujo significado literal é “o que está sobre nós” (Dinucci, 2023, p.55), Dinucci compreende que as coisas sobre nosso controle são aquelas que nos têm como causa, o que o faz traduzi-la por “coisas que estão sob o nosso encargo” (Dinucci, 2023, p.55). A aplicação do teorema é a compreensão de que nenhuma coisa externa é, por si mesma, um bem ou um mal, pois esses valores são frutos de nossas concepções sobre as coisas e o mundo às quais damos assentimento. Apenas as coisas que estão sob nosso encargo, ou seja, “o juízo, o desejo, o impulso, a repulsa” (Dinucci, 2023, p.55), devem ser consideradas um bem ou um mal, as que não estão sobre nosso encargo, “o corpo, as posses, a reputação, os cargos públicos” (Dinucci, 2023, p.56), devem ser utilizadas como materiais da nossa escolha. Por exemplo, o dinheiro, apesar de não estar sob nossa responsabilidade ganhá-lo ou perdê-lo, não é uma nada, pois pode ser bem utilizado na educação dos jovens.

O Teorema da Gratidão, permita-nos afirmar, o mais belo dos teoremas, passa pela reavaliação do que é o próprio mundo e sua relação para com cada ser existente, o que leva à questão do reconhecimento da Providência do Mundo e do ato de lhe dar graças. Para isso, Dinucci expõe quatro premissas fundamentais:

1) o ser humano que põe seu bem em coisas fora de seu encargo acusará a Deus quando essas coisas lhe forem retiradas, e não será, portanto, grato a Deus; 2) será grato a Deus o ser humano que põe seu bem em coisas sob seu encargo…; 3) será grato a Deus o ser humano que reconhece que Deus concedeu a todos os humanos a capacidade de escolha desimpedida; 4) será grato a Deus o ser humano capaz de reconhecer a Providência Divina nas coisas que lhe foram dadas para o suprimento de sua própria vida (Dinucci, 2023, p. 61-65).

No Tópico da Ação, Dinucci nos mostra o papel humano de partícipe da inteligência divina. Isso quer dizer que, apesar de termos impulsos irracionais no que se refere aos nossos instintos, possuímos um fragmento da divindade, por meio do qual compreendemos o Cosmos e nos interligarmos à Natureza.

O Tópico da Persuasão, que, segundo Epicteto, é para aqueles que já dominaram os dois primeiros, se inicia reconhecendo a existência de representações intensas que nos persuadem a buscar e evitar coisas que não estão sobre o nosso encargo, mesmo que tenhamos corrigido nossos juízos. Uma forma de se opor à persuasão é dizer a cada representação violenta: “és representação e de modo algum és o que se apresenta” (Dinucci, 2023, p. 86). Ou seja, devemos diferenciar entre a imagem capturada pelos sentidos e sua interpretação feita por nós.

No capítulo IV, Dinucci finaliza com sua proposta inicial de ajudar o leitor na construção de seu próprio Manual, exortando o leitor a praticar o exercício de virtuosos, a saber, a prática diária de autoexame, isto é, o conhece-te a ti mesmo. Para essa tarefa, algumas regras devem ser desenvolvidas: 1) Ter as máximas à mão; 2) Não se exibir nem se considerar sábio jamais; 3) A comunhão consigo mesmo e o perdão a si mesmo; 4) O exercício de gratidão; 5) A visão da totalidade (experienciando a divindade); 6) Ter à mão certos conceitos fundamentais do estoicismo…dentre eles, virtude e paixão; 7) Compreender os papéis que nos cabem; 8) Fazer bom uso do tempo que nos foi dado; 9) Entender que todas as coisas ao nosso redor são efêmeras: é preciso celebrá-las; 10) Amizades. Quanto às regras 1 e 5, Dinucci disponibiliza ao leitor um apêndice com ditos célebres de autores como Musônio Rufo, Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio, além de algumas passagens sobre religiosidade e orações dos dois últimos pensadores.

O que podemos concluir após a leitura, é que a obra se mostrou inovadora, por abordar um caráter mais comunitário do estoicismo; ousado, por oferecer ao público leigo uma visão não simplista da filosofia estoica, mas a expondo em toda sua complexidade; corajoso, por exortar o leitor a escrever o seu próprio manual. É um livro que nos chega em um momento no qual o estoicismo é amplamente fagocitado pelo capitalismo, despojado de sua filosofia de vida e tratado como mero exercício para o aumento de produtividade no trabalho. Por isso nada melhor do que uma obra preocupada, dentro de sua limitação temporal, é claro, a nos transmitir o que o autor chama de espiritualidade estoica. Por fim, a obra, apesar de guiar o leitor à construção de seu próprio manual, é, ela mesma, um Manual, não semelhante à dos antigos, com máximas e pensamentos sobre comportamentos virtuosos, mas aos moldes contemporâneos, ao ser o resultado de uma pesquisa séria, detalhada e honesta sobre uma filosofia que nos tempos atuais é desmembrada não com o intuito cartesiano de recompô-la e entendê-la, mas para transformá-la em tudo mais, menos em filosofia de vida.

Bibliografia

  • DINUCCI, A. (2023). Manual de Estoicismo: a visão estoica do mundo Campinas, Editora Auster.
  • NASCIMENTO, J. (2025). Resenha de Aldo Dinucci. Manual de Estoicismo: a visão estoica do mundo. Campinas, Editora Auster, 2023, 144pp., ISBN 9786587408651. Archai 35, e03506.

Editado por

  • Editores:
    Celso de Oliveira Vieira e Pedro Maurício Garcia Dotto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    18 Jan 2024
  • Aceito
    13 Maio 2025
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