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Entrevista com Carlos Vergara em 22 outubro de 2013

Fabíola Salles Mariano - As viagens para seus trabalhos propiciam circunstâncias do ver pela primeira vez . Como é para você este processo de renovação do olhar nos diferentes contextos, cidades, culturas?

Carlos Vergara - É muito oportuna essa pergunta, a exposição que estou preparando agora trata de viagens. Principalmente por meio de um objeto que acabei recorrendo como viajante: o lenço de bolso. Fiz muitas monotipias, enquanto viajava, tendo como suporte estes lenços: no sul do Brasil, na Capadócia (em duas viagens), no Cazaquistão, em Pompeia, na Inglaterra... Estes lenços dizem da experiência de viajar.

Toda viagem no fundo é uma imersão no desconhecido e da mesma forma acontece no trabalho: proponho desconhecidos para mergulhar e tentar tirar de dentro alguma coisa, alguma experiência que seja importante. Importante primeiro para mim e, depois, se for mesmo importante: importante para dividir com os outros. No sentido de trazer uma nova fragrância, um ângulo novo até da própria cor.

Um trabalho que é em trânsito, tem um deslocamento meu, e, depois, tem um deslocamento da coisa: do pequeno detalhe, do pequeno sinal, deslocado para cá. Evidentemente que este deslocamento ganha uma nova visão, que às vezes eu mexo em cima; quer dizer, eu atuo em cima. Às vezes não. Às vezes o registro é o suficiente.

Fabíola - Uma evidência.

Vergara - Na verdade: um sudário. Como o lenço de Verônica. Se vem uma imagem que tenha interesse, tudo bem. Às vezes é um pequeno sinal. Esta coisa do desconhecido por se trabalhar ao contrário nas monotipias: você bota o lenço e oremos para ver o que é que sai. Tem uma mistura de jogo de dados com jogo de dardos. Porque eu sei o que eu quero, o que eu gostaria que viesse, mas tem o acaso, às vezes eu não controlo. Esse acaso pode ser interessante. Potente. É um procedimento que eu tenho utilizado. No trabalho de ateliê, ao contrário disso, eu produzo matrizes grandes, sobre as quais eu faço monotipia. O trabalho é múltiplo.

Fabíola - Você acha que com o tempo consegue conversar com o acaso? Como é que vai mudando esta relação com o acaso ao longo do tempo?

Vergara - Você tem mais aceitação (risos). Na verdade o que muda é que você consegue ver que tem acasos que você só vai perceber certo tempo depois. Eu sempre digo para as pessoas que vem aqui ver o meu trabalho, que se interessam: pintura é uma coisa que fala devagar. Você tem que dar tempo. Porque até ela conectar com áreas sutis do seu cérebro, até você permitir áreas do seu cérebro serem invadidas por coisas mais abstratas, é difícil. Usamos o olhar muito pragmaticamente e se bobear olhamos só para não tropeçar nas coisas. O olhar poético é uma permissão que a inteligência nos fornece. Ou seja, liberamos o olhar, para olhar à toa. Para ver pensando. Para pensar vendo.

Ainda sobre o acaso, podemos falar desta pintura que está atrás de você... teve um incêndio aqui no ateliê e os vidros que cobrem a minha área de trabalho explodiram. Eu cheguei e estavam aqueles estilhaços pelo chão. Eu pulverizei carvão e fiz uma monotipia daquilo. Entende? Eu acho um trabalho incrível porque seria impossível fazer à mão, tal a naturalidade de uma explosão. O acaso, dessa forma, me ajudou.

Fabíola - Gostaria que você contasse da sua experiência nas bocas de forno de pigmento em Minas Gerais.

Vergara - Tem uma coincidência. Em 1970 fui convidado a fazer os painéis de uma loja de uma companhia aérea com toda a liberdade. Queria fazer alguma coisa que fosse brasileira mas não ilustrativa, folclórica. Que tivesse um cheiro daqui, uma coisa daqui... Então fui para o Ceará ver aquelas garrafinhas de areia. Mas a quantidade é muito pequena, aquilo é colhido com pauzinho e eu tinha uma parede de 10 metros para trabalhar. Então falei com o Frans Krajcberg e fui para Minas Gerais. Nessa época ele fazia temporadas de imersão no mato de Minas Gerais para trabalhar exatamente com pigmentos.

Fui para lá e assim conheci uma mina de amarelo, a limonita, que é o óxido de ferro, e achei também uma fábrica de cerâmica e uns fornos onde eles calcinavam o amarelo para fazer o vermelhão. A partir dali, fiquei amigo de pessoas da região e comecei a ir com frequência. Em 1970, fui mas não fiz nada, só peguei o pigmento, vim para o Rio e misturei com areia. Fiz umas garrafonas, uns potes de cor natural que eram os painéis de Paris da companhia aérea.

Mais tarde, em 1989, quando estava chateado com o que estava fazendo, falei: vou voltar para as minas. Joguei o trabalho na estaca zero e decidi reinventar minha pintura. Fui só com a minha resina vinil e as telas. Lá percebi que havia uma pintura, resultado da moagem dos pigmentos que se depositava sobre tudo. Tinha uma camada de pintura que eu capturava com a tela. Era impressionante. As bocas de forno, aquilo que você vai ver aqui no meu ateliê, eram coisas muito eloquentes, muito fortes mesmo. Me tocaram muito.

Numa das viagens a Minas Gerais, passando de carro por Congonhas do Campo, encontrei uma equipe do IPHAN [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] que estava restaurando os Passos do Aleijadinho pintados pelo Mestre Athayde. Cheguei, me apresentei aos restauradores e perguntei: "Que pigmento é este?" Então eles responderam: "Óxido de ferro, desta região de Minas Gerais". Naquele momento me mostraram o seguinte: na verdade a pintura no Brasil é inventada por Athayde, no século XVII em Minas Gerais. A pintura brasileira começou lá.

As igrejas da costa brasileira - em Recife, na Bahia e no Rio de Janeiro - foram decoradas com azulejos de Portugal. Já nas igrejas de Minas Gerais do século XVII e XVIII, por conta da longa distância da costa (usavam lombo de burro para carregarem os materiais), Athayde inventa uma pintura com pigmentos, com a terra, do local. Com um matiz que vai do quase branco, passando pelos rosas, amarelos, vermelhos, roxos, até o preto. Ou seja, os derivados do ferro e o manganês que é um preto quente que tem vermelho dentro. O pigmento azul não tinha na natureza de Minas Gerais e foi a única cor que Athayde importou já que era fundamental para pintar o céu da igreja, para ter a grande promessa (risos).

Fabíola - Você sabe qual pigmento azul ele importava?

Vergara - Os azuis até a Renascença eram lápis lazúli ou turquesa moídos, e existia também um tipo de molusco que produzia azul. As histórias das cores são muito interessantes. Por exemplo, o vermelho vibrante dos reis à época da Renascença era produzido por um outro molusco e para consegui-lo na quantidade suficiente era caríssimo.

A partir da experiência em Minas Gerais resolvi pintar com os pigmentos de lá, resolvi assumir, e assim surgiu um elo, que eu não me incomodo de ter, com a história da pintura. É como uma corrida de bastão: eu peguei o bastão e a partir daí, levei.

Fabíola - E a impermanência destas cores naturais? Existe sempre a preocupação com relação às cores naturais serem efêmeras.

Vergara - Estes pigmentos são permanentes, eles sobrevivem milhões de anos.

Fabíola - Sim, os óxidos de ferro permanecem por muito tempo como vemos nas pinturas rupestres. É uma das diferenças entre as cores dos pigmentos e as cores dos corantes. Estes sim, muitas vezes efêmeros.

Vergara - Tenho estes pigmentos aqui no ateliê, você vai ver. Colhi quando eu consegui entrar na Vale do Rio Doce. A primeira parte da mina de ferro é pigmento, que é rejeitada, por conta da escala da produção da mineradora. Eles não têm como classificar e jogar fora separadamente, o que seria ótimo para nós artistas. Acho inclusive que tem uma certa bobagem, um desperdício, porque poderia ser feita uma palheta brasileira. Vou te mostrar, eu fiz uns lápis de cor com pigmento que se chama Uma palheta brasileira.

Fabíola - A respeito das monotipias das Bocas de forno você comenta: "Acho possível adensar o trabalho, adicionar mais sentido com a repetição da ação e não esvaziar de sentido se esta repetição for apenas mecânica, a revisita que faço nas minas de óxido nestes últimos anos posso dizer que tem sido um ritual que a cada vez renova o sentir pensar."

O ritual na pintura... Gostaria que você falasse um pouco sobre isso.

Vergara - O maior mantra que eu tenho notícia é uma história muito interessante de contar. Existe no Turquistão uma mesquita gigantesca do século XI que é o lugar mais visitado depois de Meca. O Islã foi levado para o Cazaquistão mais ou menos no século IX. Um sufi levou o sufismo para lá e o rei, que era sufista, resolveu fazer uma homenagem para o último grande imperador mongol mandando construir esta mesquita gigantesca. Imagine uma revoada inteira de pássaros no portal... O portal tem 35 metros de altura, é uma coisa impressionante. Lá não tinha argila para os tijolos, só tinha barro a 40 km para a construção desta mesquita. Então, todas as placas foram feitas, cozidas, a 40 km. Quando estavam prontas, colocaram o exército de 120 mil homens em três filas, e, de mão em mão, em 40 km transportaram as placas. Para mim este é o maior mantra que conheço: 120 mil homens participando de uma mesma oração.

A repetição, o que gera um ritmo. Podemos reparar também com os judeus em frente ao muro das lamentações, ou mesmo com os islâmicos em suas orações: a repetição tem, por um lado, o apagamento de alguma coisa e a possibilidade de surgimento de uma outra. Então ver de novo e ver novamente são ensinamentos. Se seu olhar está livre para isso, quer dizer, se você se permitir, pode ver em cada repetição o que você ainda não tinha visto.

De certa forma há uma procura: a procura do inefável, do sublime. Essa procura do fora de si que eventualmente está dentro de si se dá no exercício da arte. Em primeiro lugar, este é ritualístico, acho eu, e tem um peso religioso (ah, esta palavra é perigosa...). Nesse sentido preciso da repetição e do sair fora de si, de superar a si. Superar você mesmo. Poder se surpreender com você mesmo. Com pequenas coisas que você produza.

Fabíola - Só mais uma pergunta nesse sentido: você acha que existe uma diferença das repetições se executadas quando se está sozinho ou quando acontecem coletivamente? No ateliê muitas vezes o trabalho do artista é solitário, mas existem outras situações, que se abrem na produção contemporânea, em que a proposição poética acontece em coletivos.

Vergara - Eu acho que se você entra numa sintonia fina tanto faz. A questão é sintonizar. Eu acho delicioso trabalhar com outras pessoas. Nos anos 1970 eu trabalhava muito com papel e fizemos coletivamente a construção e a destruição de uma cidade. Eram 15 pessoas numa sala. O esforço de construção e a catarse da destruição. Em outro projeto fiz um workshop com artistas numa imersão em São Miguel, no Rio Grande do Sul, para descobrirmos juntos aquele lugar.

Fabíola - Para além da circunstância, do contexto, do tempo, existe uma importância na escolha da materialidade nestes processos de criação, de ritual. Você vê diferença em trabalhar com pigmentos naturais ou pigmentos industrializados?

Vergara - Claro, a primeira coisa é que você tem graus de transparência. No pigmento natural isso é mais complicado de fazer, pois ele é denso. [Me mostra vários pigmentos em seu ateliê]. Tem outras coisas que não são pigmentos e são naturais. Por exemplo, isto aqui é especularita. Isto é a cristalização do ferro: olha como tem brilho.

Fabíola - E o que você utiliza como médium? Cola?

Vergara - O vinil, Cascorez, que é uma resina ultraestável. Só não gosta de água e é mais bruta do que o acrílico. Trabalho com Cascorez desde os anos 1960. Eu era químico e trabalhei na Petrobrás na época em que nasceu a indústria química de petróleo e as primeiras resinas no Brasil. Então eu tive acesso a esses materiais.

Fabíola - E como você consegue os pigmentos naturais? Onde?

Vergara - Tem muitas situações. As viagens, por exemplo. Eu viajo preparado para isso. Se você for a Minas Gerais e procurar, você acha. Paro, salto do carro e pego. E assim, trago para os trabalhos menores. Com esse tipo de exercício, você começa a perceber coisas: argilas de cores diferentes, vários tipos de rosas... Mas para trabalhos maiores é um pouco mais difícil. Tenho vontade de construir uma arquitetura e cobrir de pigmento.

Fabíola - Tem uma investida corporal muito forte no seu trabalho. Alguns são muito grandes... Você acha que acontece uma mudança do gesto ao longo da vida?

Vergara - Eu sempre tendi a trabalhar grande. Eu acho que porque você olha para a coisa e a coisa olha para você. De forma que você não a domina de uma vez só. Tanto a arte moderna quanto a arte neoconcreta são pequenas, de câmara, tem uma timidez no sentido da escala. Acho que na minha geração quisemos trazer a questão de que tamanho é documento. É uma parte do documento. Você é alvejado cotidianamente pela quantidade imensa de imagens. A imagem grande, do outdoor, é uma coisa que a pop e o neorrealismo trouxeram. Eu me sinto bem trabalhando grande, não me é desconfortável, e tento me manter fisicamente capaz de fazer isto. É uma outra forma de ver mesmo que a coisa tenha certas delicadezas pictóricas num tamanho grande. Eu não desprezo o trabalho pequeno, tenho várias aquarelas pequenas que para mim são formas de pensar. Mas eu prefiro, quando estou fazendo um discurso, trabalhar grande. Pela ocupação, que é uma força irrefutável.

Fabíola - Li que você jogou vôlei profissionalmente no...

Vergara - No Fluminense. E eu estava com a vida muito direita fazendo esporte. Em 1959 eu viajei, joguei fora do Brasil. Em 1970 me convidam para fazer aquele trabalho que te contei da companhia aérea em Paris. Fui, fiz o trabalho e de lá segui para o México. Mais tarde, em 1972, voltei a Paris para fazer um outro trabalho para a Vale do Rio Doce. Então fui de carro em direção à Grécia, à Itália, e as viagens foram ficando. E como tinha um olhar curioso, um olhar de quem faz arte, a soma dessas experiências acabaram por se tornar, um dia, meu ritmo de trabalho, um modo de fazer atrelado às viagens.

Fabíola - A viagem traz um espírito explorador, de aventura, mas junto com isso um estado de falta de referência, de um certo cansaço e desconforto, não?

Vergara - Tem um livro maravilhoso do Jorge Luis Borges chamado Atlas. Vale a pena conhecer porque são viagens que ele fez com Maria Kodama. Um viajante cego. Então os olhos eram da Maria Kodama e a enciclopédica cultura, de Borges. Ele escreve neste livro que o espírito de descobridor não está reservado a Simbá, o marujo, a Hércules, o grande pirata, e tampouco a Copérnico: todo homem é um descobridor. Começa por conhecer o amar, depois o salgado, depois o liso, depois o áspero, depois as sete cores do arco-íris, depois as letras do alfabeto, e acaba por descobrir mesmo o tamanho da sua própria ignorância. É lindo o texto. Na verdade, todo homem deveria ser um descobridor. Eu acho que uma das funções da arte é ativar isto, cutucar este lado descobridor. Com esse espírito, eu faço os 3D, que são trabalhos cruzados, as imagens não mostram uma fotografia só elas mostram quatro fotografias cruzadas que truncam a possibilidade de visão. Não é uma fotografia de paisagem, é uma paisagem truncada, que obriga você a recompor cada imagem tendo que negar a do lado. Para você ver uma você teria que tirar da frente a outra. E isto é um exercício da inteligência visual.

Fabíola - Da simultaneidade. Exercício da possibilidade e da impossibilidade ao mesmo tempo.

Qual foi das suas viagens a mais marcante?

Vergara - A próxima (risos). Esse final de semana fui para Cabrália, que é o ponto inicial do Brasil. Lá aconteceu a primeira missa do Brasil. Fiz duas monotipias em lenços lá. É um lugar interessantíssimo, parado no tempo. Havia ainda índios pataxós.

Fabíola - Os portugueses ali chegaram, fizeram uma cruz com dois pedaços de madeira... Era o período da exploração do pau-brasil. Árvore que proveu pigmento vermelho a diversos locais da Europa para colorir as vestimentas da realeza e do clero durante um bom tempo de nossa história.

Vergara - Isso. Depois, uma curiosidade, eu me chamo Carlos Augusto Caminha dos Santos Vergara. Ou seja, algum parente meu estava lá. Eu sou descendente dos Caminha, da região do Porto.

Atrelada a experiência da viagem fiz uma exposição sobre a Capadócia: Hüzün, que é uma palavra turca para melancolia. Como a nossa saudade, só que a nossa saudade é uma sensação individual e hüzün é um sentimento coletivo. É ligado ao Império Otomano. Os Otomanos dominaram a Europa. Isso eu li o Orhan Pamuk que é um escritor turco maravilhoso...

Fabíola - Você costuma entrar em contato com a literatura de autores dos locais que visita como parte do processo criativo?

Vergara - Não necessariamente. Quando fui para São Miguel, no Rio Grande do Sul, em 2003, foi minha primeira viagem para as missões. Depois fui às outras missões por perto: no Paraguai e também na Argentina. Esses eram itinerários que me interessavam porque compõe de fato uma epopeia que pouca gente conhece no Brasil. Uma tentativa de criar um estado cristão que foi destruída quando o Marquês de Pombal percebe que os jesuítas estavam querendo criar um país.

Para além desse aspecto, o lugar é maravilhoso. O arquiteto que construiu a catedral de São Miguel era um padre de Florença e sua herança provinha da Renascença italiana. Outro exemplo interessante foi a presença de um padre na missão de São Miguel que era um cantor de Viena ligado à tradição do canto de Johann Sebastian Bach. Ou seja, os padres que foram para lá eram de uma casta diferente dos salesianos que foram para o interior do Brasil, Mato Grosso, Goiás etc. A catequese em São Miguel não foi aculturante.

A catedral nos deu um susto por conta da escala. O tamanho dos espaços, a altura das paredes. Não é simplesmente um abrigo, há uma busca do sublime. Eles cantavam dia e noite como forma de catequese. Era um cristianismo primitivo que eu estava interessado em averiguar como experiência humana. A partir daí me deu vontade de ir à Capadócia porque é onde encontra-se o cristianismo primitivo mesmo.

Fabíola - A pintura tinha o poder de fazer imagens, de fazer ver, antes da fotografia, do cinema. Você acha que a pintura ainda tem este poder? Fazer ver, talvez não o real, imitar o real, mas fazer ver outras coisas?

Vergara - Eu acho que sim. A arte tenta mostrar o invisível do visível. Por isso o telhado [referindo-se a um de seus trabalhos no ateliê] é quase um discurso, ou seja, tem mais coisa além da opacidade dos objetos, tem as coisas por trás. Se não, Morandi não existiria. A arte vai mudando e a pintura é o primeiro movimento, gesto mágico da tentativa de dominar um bisão pela imagem dele. Penso que é uma bobagem fazer uma pintura que não tenha essa pretensão.

Eu falo muito sobre a diferença entre arte e artesanato. Tem arte no artesanato e tem artesanato na arte. Mas são questões diferentes. O artesanato é o universo do hábil, o desenvolvimento da habilidade, da possibilidade de você repetir cada vez melhor a mesma coisa. Isso é o artesanato. Eu também pretendo isso, a mecânica do fazer. E arte é uma outra coisa, que diz respeito à inteligência e que se vale do artesanato, precisa às vezes dele, da habilidade manual para fazer, mas o projeto dela é a descoberta, é o que não está ali.

Fabíola - O que está aí e a gente não vê.

Vergara - Exatamente. O que está por trás do que está visível. Acho que existem formas surpreendentes. Eu sou observador de arte e eu acho que a gente tem uma coisa muito chata aqui no Brasil, no mundo, que é às vezes tentar transformar a arte em esporte, em competição. Se um esportista corre em poucos segundos, e ninguém corre como ele, é claro que ele é o campeão, é o melhor. Existem formas objetivas de medir isso. Em artes, você não tem formas objetivas de medida. Você tem um caldeirão que se chama cultura que você vai lá e pega aquilo que te alimenta, que te anima e que fala com a sua alma. Tenho amigos de quem não gosto do trabalho, gosto da pessoa mas não gosto do trabalho. Não gostar é forte demais: eu não concordo; são trabalhos que não me falam à alma. E tem outros que não são meus amigos e que tenho que tirar o chapéu porque me falam. Então eu acho que a pintura, seja ela da qualidade que for, utilizando do artesanato que seja, tem vigência sim.

Quando fiz Hüzün uma senhora veio falar comigo depois da exposição: "O senhor é o Vergara? Gostaria de te agradecer muito! Adorei sua exposição e gostaria de lhe fazer um pedido. O senhor me trouxe a Turquia, será que o senhor poderia me trazer a Grécia?"

Foi maravilhoso! Porque ela teve uma vivência do lugar a partir de um trabalho feito de fragmentos. Pequenos fragmentos, deslocamentos, coisas miúdas: uma redinha que as mulheres usam lá na Capadócia para prender o cabelo fixada numa marca de carvão... coisas ínfimas; um entre-parênteses feito com açafrão, com tempero típico de lá. E ela tinha percebido do jeito dela, a Turquia.

Fabíola - Essa experiência do invisível no visível, ela se transforma em cada lugar? Ou você acha que existe uma universalidade?

Vergara - Você pode ter a experiência do sublime, do inefável, inenarrável... Mas como transmitir isso em palavras? Falar em palavra é uma parte, é um arremedo de uma sensação que mobiliza partes muito obscuras do seu ser para se dar. Não é uma coisa só do cérebro, ou melhor, são áreas do cérebro que você não controla. Então acho que você pode ter uma experiência do sublime aqui. Quer dizer, de repente, uma coisa forte. O Sol LeWitt ou o Carl Andre tem uma frase maravilhosa: "Eu subo uma montanha porque ela está lá. Eu faço arte porque ela não está lá." A arte não está aí, ela tem que ser feita para estar aí. A beleza não deve ser acachapante, diletante ou tornar você ocioso. Não, a beleza deve colocar você em movimento.

Fabíola - Me vieram agora duas imagens: uma bem grandiosa, a do sublime num sentido romântico. E também uma imagem das coisas bem simples mesmo, até pelos exemplos que você está trazendo. O que te toca mais? Ou será que esta pergunta não serve?

Vergara - Me toca mais aquele do poeta de Goiás, Manuel de Barros, da tradição do Guimarães Rosa: trabalhar com o quase nada e transformá-lo. Coisas que dão uma estocada e acordam uma área; área que, se você bobear, pela vida que você é obrigado a ter, acaba adormecida. Para você sobreviver você é pragmático, objetivo, e esta estocada te acorda um outro lado.

Há três meses atrás eu fiz uma viagem, fui à Capilla del Monte, um lugar ao norte de Córdoba, na Argentina, onde vivem indígenas. Uma hipotése possível, para muitos real, é de que se trata de uma cidade de óvnis, extraterrena. É estranhíssimo, você percebe um zumbido... O lugar é lindo. É um lugar em que os índios levavam as crianças no primeiro ritual de passagem entrando na adolescência, aos 13, 14 anos, para ficarem afastados, para ver no escuro, escutar no silêncio: era a primeira forma de crescer. Muita gente vai para lá num sentido exotérico. Lá tem um clima curioso e, sinceramente, tive que controlar o preconceito. Quando eu tenho que entrar em mesquitas e outros lugares misteriosos nas viagens que tenho feito, entro e logo peço: Deus me permita não ser preconceituoso e que eu veja tudo o que é para ser visto. Que o meu preconceito seja anulado, ou neutralizado, para que eu possa ver.

Com o lenço, tento pegar essas coisas, um sinal que não significa nada e que tem um significado outro. Eu acho que o jogo da arte é um pouco isso... Como um Rothko. O que quer dizer um Rothko? Não quer dizer coisa nenhuma, quer dizer aquilo mesmo. Que você fica ali se deixando invadir por aquelas pequenas tensões, variações de tensão, que é só cor, é só a cor e não tem nada...

Fabíola - Eu era pequena e nem sabia quem era o Mark Rothko, entrei numa galeria, vi uma de suas pinturas e chorei. Nunca achei que choraria com uma pintura.

Vergara - Rafael Soto tem uma história de quando viveu em Paris. Ele é um índio, tocador de violão e artista. Ao entrar pela primeira vez no Louvre e ver ao vivo algumas das pinturas que conhecera pelos livros, ele desmaiou. Ao entrarmos num trabalho do Richard Serra, por exemplo, temos uma experiência que é inenarrável.

Fabíola - A força da materialidade. Esse é um aspecto importante de quando comecei a ficar interessada nos pigmentos naturais. A presença de cada material é muito diferente. No pigmento é mais sutil... é diferente de um Serra, mas lá existe isso também. Você já viu pinturas rupestres brasileiras?

Vergara - Não. Eu tenho muita vontade.

Fabíola - Estive no Piauí no Parque Nacional da Serra da Capivara. É muito forte ver as pinturas pessoalmente. Fui com um grupo de performance e teatro, o Coletivo Urubus, que pesquisa entre outros assuntos a pintura corporal. Passamos uma semana dentro do parque, dormindo lá, visitando as pinturas rupestres e realizando experimentações. E fora do Brasil? Você viu pintura rupestre?

Vergara - Não. A Turquia, onde estive, tem uma característica de que tudo ou começou por lá ou passou por lá: a escrita, os cientistas, a matemática... Ancara que é uma cidade meio sem graça, burocrática, tem um pequeno museu histórico que é uma coisa! Para você ter ideia tem dois túmulos: um de Alexandre o Grande e o outro do Rei Midas.

Fabíola - E quando você viaja, fica quanto tempo? Tem um modo de viajar? Como é esse processo dentro do seu modo de criar?

Vergara - Depende. No Cazaquistão eu viajei com uma tradutora porque eu não falo nem cazaque, nem russo (risos).

O trabalho do artista tem dois momentos. Primeiro momento: o que vou fazer? Segundo momento: como? Essas escolhas tem que ser absolutamente libertárias. O que eu fazia nos anos 1980, vendia feito água. Parei. Na época só faltavam falar: "Dá para fazer um com tendência para o vermelho?" E aí você pode cair numa armadilha... Exatamente neste momento, fui para Minas Gerais. Procurar aquilo que eu tinha feito da cor natural, do pigmento, nos anos 1970. Quer dizer, fui reinventar lá. Peguei o carro, minha família e fomos ver o que ia dar. Foi uma imersão na cor. Este lugar lá em Rio Acima onde tem a mina de amarelo é um grande buraco amarelo em cima de uma colina. Parecia uma paisagem do Alberto da Veiga Guignard.

Na exposição ["Liberdade - Carlos Vergara", 2012] da Pinacoteca de São Paulo, eu tinha que falar de prisões, mas como eu iria falar das prisões? Eu tinha as monotipias, mas eu queria ir mais longe. Como é que eu vou falar sobre essa questão pictoricamente? Decidi fazer muitas aquarelas. Umas parecidas com os desenhos que fiz nos anos 1960. Era ilustrativo mesmo e não deixei de fazer. Tem gente que ficou de boca aberta. Mas eu tive que passar por aquilo para ganhar liberdade.

Fabíola - Na hora que você faz isso, você atualiza seu passado.

Vergara - Isso. As últimas telas desse trabalho fazem parte das séries em que comecei a perceber que a prisão se transforma em escuridão e em claridade pictoricamente. Isso também foi percebido pelas pessoas que lá estiveram. Haviam frases nas paredes da prisão: "Deus, puna-me mas não com toda a tua força. Porque se não, não sobrará mais nada de mim."

Um amigo meu, o Camilo Osório, foi a uma das viagens da Capadócia comigo. Ontem ele chegou da Polônia e disse: "Lembrei muito de você, além da arte contemporânea e da tradição concretista que existe na Polônia, herança dos anos 1917, tem coisas que eu visitei que é de ficar com o queixo caído, como por exemplo Auschwitz-Birkenau" [museu do holocausto localizado no sul da Polônia]. Alguns judeus amigos meus, quando veem as Bocas de forno, ficam mal. E então eu digo: "Isto é apenas um forno de cor".

Eu também fiz uma instalação com linhas na capela de São Miguel no Rio Grande do Sul cruzando o espaço em várias direções. Não tem vazio, o vazio está cheio de vazio. Este vazio são as coisas que estiveram lá; entre aquelas pedras há uma vida que não é tão passageira quanto a carne. É outra coisa, um zumbido que fica. O rio Ganges, por exemplo, é impressionante. Tem algo depositado para além daquela superfície líquida. Andando pela rua se ouve um zumbido milenar. Uma pena eu não fazer monotipia na época em que estive lá. Estou com vontade de voltar.

Fabíola - E você volta nos lugares que visita?

Vergara - Ah, volto! Na Capadócia eu fui duas vezes. Tem cor lá? Ah, meu Deus, tenho que voltar!

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    24 Mar 2014
  • Aceito
    08 Abr 2014
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