Dossiê Lupe Cotrim
Lupe Cotrim, 40 anos depois
Quarenta anos depois de sua morte, a professora e poeta Lupe Cotrim é homenageada neste exemplar da revista ARS com um dossiê especial. Um dos nomes de destaque da poesia brasileira da década de 1960, Lupe integrou a equipe de professores-fundadores desta Escola de Comunicações, lecionando Estética e Pensamento Filosófico. Sua atuação notável diante dos desafios da recém-criada unidade da USP e, ao mesmo tempo, da conjuntura política adversa por que passava o país, levou os estudantes a darem o seu nome ao Centro Acadêmico da escola após sua morte prematura, aos 36 anos, em 1970. "A sua condição de escritora, poeta, professora formada em filosofia lhe permitiu enfrentar, melhor que ninguém", aqueles desafios, especialmente "na agitação de 1968", lembrou o professor Ismail Xavier, em seminário realizado, em março de 2010, no Instituto de Estudos Brasileiros, depositário do acervo da professora-poeta. "Ela foi uma liderança decisiva naquela conjuntura, e seu curso representou a experiência mais densa, do ponto de vista intelectual e político, daquele ano".
O dossiê que se segue traz textos resultantes do seminário realizado no IEB-USP, além de fotografias e uma seleção de poemas da autora, que deixou sete livros de refinada poesia lírica, o último deles, Poemas ao outro, triplamente premiado.
"O dúplice"
Ser poeta
é meu resíduo
de tristeza
ao não ser triste.
A dor que deveras sente
é a que sinto.
E o que vemos a mais
nas coisas simples
os subterrâneos cavados
nas doces superfícies
é nosso modo de unir
o solto e o que resiste.
Viverá como vivo.
O tempo e seu assalto
não nos caberá
fora desse pacto
sonoro e terrível;
a morte é o que não falo.
Da verdade sabemos
a umidade na carne
e o dorso embaçado.
Em nossa gula
tudo se avizinha
na imagem que degulete
mesmo os ossos da fuga.
Cúmplices,
o poeta e eu
nos salvamos do crime.
E do outro que somos
ainda por dizer
devoramos a fome.
[Do livro Poemas ao outro, 1970]
"Memória barroca"
A Carlos Drummond de Andrade
"É preciso fazer um poema sobre a Bahia...
Mas eu nunca fui lá."
Alguma poesia
Uma cola negra escorre
das calçadas, e o mar escurece
no pigmento do rosto.
Uma fratura na pedra; e mais outra.
Estátua que se ergue
ou entranha que se mostra.
O saveiro furta às águas
a sumária riqueza dos peixes
e no farol se acende a história ameaçada; nem tudo será
resíduo e paisagem. A couraça
urbana acintura a nova cidade
cinza e domesticada.
O visível de hoje, que se descobre
entre a poeira dourada
há de fechar-se: em escrutínios
de marfim e tartaruga
em barras de memória
barroca e inapelável.
O ouro, o entalhe,
a torre, a nave; o forte
pontiagudo da indignação
passada, presente maciço,
ombro erguido contra o mar
amortecido de altares.
A areia grossa, a onda oleosa
que se apruma por ladeiras lentas
nos passos de quem rediz
os caminhos de volta
-cada pedregulho já é outrora.
Entre corredores de redes
a beleza se aconchega
madura e esplêndida:
no umbral dos solares
é ela quem nos vê
altiva e derradeira.
Soerguidos pela brisa
imergimos nos meandros do mar
e na paisagem da magia:
mas rasga-se entre as mãos
a miséria sem névoa
-é ela que nos penetra.
II.
Homens cercados de águas
por todos os lados:
perfis Alagados.
Numa vida em que o futuro
não é o primeiro rumo,
lá em Alagados.
Uma criança no detrito
inventa seu edifício
lá em Alagados
e o corpo insiste sobre o lixo
uma sentença passada.
Confins Alagados.
O rádio noticia o ato
lá em Alagados.
Para homens sem enxada
lá de Alagados.
O silêncio é o silêncio
lá em Alagados.
Uma criança no detrito
inventa seu edifício
lá em Alagados
que sustenta casa a casa
enfins Alagados.
Uma árvore de natal
lá em Alagados
aponta Cristo à espera
- atento, Alagados.
Uma mulher varre o lixo
lá em Alagados
morando sobre os detritos
lá de Alagados.
O homem é ator do homem
lá em Alagados
representando a cidade
senfins Alagados.
Tudo é um deserto de águas
lá em Alagados,
consumindo seus naufrágios.
Ai, Alagados.
III.
Cada pedregulho já é outrora.
..............................................
A beleza se aconchega
madura e esplêndida
no umbral dos solares,
é ela quem nos vê
altiva e derradeira.
Seduzidos pela brisa
mergulhamos na poeira dourada
e nos azuis incontáveis:
mas rompe-se entre os olhos
uma miséria sem trégua
-essa é a nossa treva.
Salvador, 1968
[Do sétimo livro, Poemas ao outro, 1970]
" À margem da poesia"
Rilke estava enganado:
um poeta é um poeta
e vive sem fazer versos.
Por outras razões se morre
e as forças de viver
são mais cegas, são mais ágeis
que a direção de morrer.
Maiakovski se matou
podendo fazer poesia
e pagando seus impostos.
Como? Onde? Para quem?
Aqui, ali, pouco importa,
em tudo a mentira sobra;
morreu na boca de um poema
o pulso farto de versos.
Outros também se calam
na fímbria solta das sílabas
todo o lirismo nas mãos
corpo exposto a faca e bala
na altivez de perfil
por onde olha a poesia,
sozinha, sua própria véspera.
Se morre por outros rumos
aquém e além do dizer
e do poeta é a sina
não viver só de palavra
mas do chão, da cerca, da água
onde germina em silêncio
o que desabrocha a fala.
Versos se podem calar;
há coisas que não se calam
porque caladas, veneno
pior que o aço da espada.
Matando o irmão por dentro
dobrando o porte - a verdade
esgar de consentimento.
O vivo é antes do verso.
Urgente é abrir seus olhos
e as cortinas lacradas.
O verso, sim, mas depois
das razões de não morrer.
E assim fazendo, dizer.
Se vive com fome e sede
com amor estilhaçado
analfabeto, amarrado,
com chumbo dentro do ventre
sem sexo, luz, alvorada,
um homem vive de pouco
resiste às vezes de nada.
Das desrazões, irrazões
porque se venha a viver
há um poeta sem versos
que é poeta a valer
e sobrevive. De gula
talvez de usura,
confiança em quem ignora,
no cego, no surdo-mudo.
Rilke estava enganado.
Um poeta suicida
anunciou vento adentro
- o romantismo acabou.
O que estava por detrás
lá nos fundos da poesia
é que mata. E o matou.
Um pano em volta do rosto
muitos espreitam, se calam.
Mas além de ultraje e mito
numa resistência inteira
um poeta ainda espera
no calcanhar de seu grito.
Faz seus versos, e sem fazê-los
permaneceria vivo.
[Do sétimo livro, Poemas ao outro, 1970]
"Monólogo I"
Hei de inventar amor, ávida e atenta.
Amor de ser a outro que é demais
o amor que em coisas hoje se alimenta.
A manhã é cerrada de momentos
que hábeis mãos inventam em seu provento;
inventar o que o íntimo não fala,
curvando-se à pressão de outros inventos.
Hei de inventar amor num desafio
às mais concretas frases, aos dias úteis,
amor de ser a outro que é demais
ter um mundo por dentro desprovido. [...]
"Diálogo I"
Ser transparente
é quase um suicídio,
um transbordar de si
perdido, ir a outro de nós
que nos retém, apagado
o sentido. [...]
[Do sexto livro, Inventos, 1967]
"João, fragmentos"
I.
O que é nosso, João,
entre o teu e o meu
o que separa em posse
a nossa solidão?
Não sei. Não sei
o que era de mim
no que te encontrei.
Hesito entre o inscrito
e o que me vem às mãos:
tenho pouco do perto.
Antes creio
no que ainda terei
porque desperto.
Vês o mundo, João,
como quem não sabe
ou enxerga em vão.
É um ver qualquer,
o teu, sem detalhe ou magia,
e devo a teu olhar
o segredo ondulado
onde o mundo principia.
II.
Há países mordidos
e uma língua de metal
astuta e imprevisível
dilacerando o homem
em sua própria criança.
O que faremos, João?
[...]
Enquanto penso, existes
com fomes divergentes.
Franzimos as sobrancelhas
para o que alguns fazem
de nossa bandeira.
Apesar, João:
III.
Enquanto, João,
alegria eu quero
apesar da guerra.
Para nós e em volta
medula de resistência
em nossa presença.
Ladeando a fome,
ladeando a morte
de Biafra às vizinhanças
consumir alegria
de manter-se vivo
apesar e contra isso.
Se o gesto é escrito
e perduras analfabeto,
se o pão é farto
e teu estômago descalço
se alguns vão à lua
no esplendor da técnica
e prossegue a miséria
em sua chaga satélite,
alegria, João.
Por um outro dia
necessitamos fazer parte
do que nele principia.
[...]
Alegria pela manhã
que contra hoje vai chegar,
sub-versiva, sub-vertida
sub-metida.
Alegria de nós,
em nosso intento:
alegria como é viva
uma pessoa viva.
[Do sétimo livro, Poemas ao outro, 1970]
"Paisagem de uma aula de Filosofia"
Porque a pedra
está fora do tempo
e eu por dentro;
porque a terra se desata,
vegetal,
e a mim falta
esse fôlego verde,
em tênue movimento;
porque entre raiz e folha
o animal salta,
elástico, e desconheço
liberdade tão alta;
porque mineral e vegetal
uma floresta é segredo
aberto ao animal
e em mim se enlaça
pelos cipós do medo
-sei-me de outra espécie.
Em que sou fraco. E antes
de tudo - breve.
Mas nesta extensão tão plena
é que mais compreendo.
[...]
E são rochas de leões
marés de outono
folhas alçando-se no arrojo
dos pássaros, répteis
em curvas de diamante,
montanhas côncavas, murmurando,
florestas em ondas, sobre as águas
as distâncias são formas
-corpo de estrela, impulso de planície,
a morte é apenas uma flor
vermelha, que passa no vento
[...]
e em tudo estou presente, simultâneo,
o horizonte a meus pés,
como um riacho doce.
Olhando dentro de mim,
de dentro da natureza,
eu a refaço - e invento a beleza.
[Do quinto livro, O poeta e o mundo, 1964]
"Última paisagem"
Quando eu morrer,
se morrer,
quero um dia de sol,
denso, cintilante,
escorrendo-me pelo corpo
seus dedos quentes.
E quero o vento,
um largo vento dos espaços,
que me respire e me arrebate
no seu fôlego,
por outros continentes.
E quero a água,
violenta, fria, palpitante,
possuindo-me a alma
a transbordar dos poros.
Se nenhum amor me resguardar
em seu abraço
a dar-me sensação
de que possuo e pertenço
quero pegar a vida
palmo a palmo,
traço a traço,
num dia esfuziante de azul
com o mar na boca e nos braços.
Quando eu morrer,
se morrer,
eu que renasço a cada momento,
criando íntimos laços
por toda natureza,
eu que perduro no eterno
da intensidade,
quero morrer assim:
os olhos na distância
do entendimento
e o corpo penetrando na beleza,
passo a passo.
Meu fim transformado em luz
dentro de mim.
[Do quinto livro, O poeta e o mundo, 1964]
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
12 Nov 2010 -
Data do Fascículo
2010