Resumo
O texto traz uma visão geral sobre a documentação pertencente ao Arquivo Quirino da Silva, guardado no Centro Cultural São Paulo, principalmente sobre a parte que se refere aos "Salões de Maio", destacando fontes primárias e secundárias que poderão servir a futuras pesquisas na área de história da arte brasileira.
arte brasileira; modernismo
Salões de maio
Paulo Monteiro
Paulo Monteiro é artista plástico e trabalha no Centro Cultural São Paulo.
O texto traz uma visão geral sobre a documentação pertencente ao Arquivo Quirino da Silva, guardado no Centro Cultural São Paulo, principalmente sobre a parte que se refere aos "Salões de Maio", destacando fontes primárias e secundárias que poderão servir a futuras pesquisas na área de história da arte brasileira.
palavras-chave: arte brasileira; modernismo
Arquivo Quirino da Silva
O "Arquivo Quirino da Silva" foi adquirido em 1977 pelo extinto IDART, sob a direção de Maria Eugênia Franco. O trabalho de catalogação e tombamento dos cerca de 9000 documentos que o compõem teve início a partir de 2007, como parte de um programa de recuperação da documentação de Artes Plásticas do Arquivo Multimeios, localizado no Centro Cultural São Paulo.
Em 2008 foi organizada uma exposição, com minha curadoria, sobre uma parte dessa documentação relacionada aos "Salões de Maio" e à trajetória de Quirino da Silva, acompanhada de obras de artistas da Coleção de Arte da Cidade de São Paulo que participaram desses eventos. Entre esses artistas estão nomes como Lasar Segall, Di Cavalcanti, Flávio de Carvalho, Tarsila do Amaral, Ernesto de Fiori e Oswaldo Goeldi.
Quirino da Silva "Paisagem", 1927 óleo sobre madeira 24 x 24 cm Coleção Cilda Dias da Silva, São Paulo
Quirino da Silva
Nascido no Rio de Janeiro em 1897, Quirino foi artista, jornalista e organizador de várias mostras de arte. Formado pela Escola Nacional de Belas-Artes, logo se interessaria pela arte moderna, tornando-se amigo de Oswaldo Goeldi, Eugênio Sigaud e José Maria dos Reis Júnior. Com este último participou do "Segundo Salão de Primavera" em 1923, tendo colaborado na organização do evento. Em 1926 participou como organizador e expositor do "Primeiro Salão de Outono", cujo catálogo teve apresentação do poeta simbolista Murilo Miranda. De 1930 a 1931 fez parte da redação da revista Forma, uma das primeiras publicações a falar sobre arquitetura moderna no Brasil, chegando a ser seu editor.
José Maria dos Reis Júnior "Retrato de Quirino", 1921, óleo sobre tela 45,5 x 26,5 cm Coleção Cilda Dias da Silva, São Paulo
Em 1931 participou do chamado "Salão Revolucionário", dirigido por Lucio Costa. Em 1932 colaborou com a revista Base, de Alexandre Altberg.
Mudou-se para São Paulo em 1934 e, juntamente com Geraldo Ferraz e Flávio de Carvalho, criou o "Salão de Maio", participando como artista e organizador dos dois primeiros eventos, em 1937 e 1938. Em 1941 organizou o "Salão de Arte da Feira de Indústrias". Em 1947 tornou-se primeiro secretário do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. A partir de 1938 foi colunista dos Diários associados, tendo parado de escrever em 1977. Faleceu em São Paulo em 1981.
Em seu livro De Anita ao museu, Paulo Mendes de Almeida faz referência a Quirino com a seguinte frase:
... se alguém, desde que entre nós se radicou, exerceu atividade excepcional, no setor das artes plásticas, organizando exposições, promovendo movimentos de grupos, estimulando a publicidade em torno do assunto, numa só palavra chacoalhando - como se diz no vocabulário pitoresco das ruas -, esse alguém foi o pintor Quirino da Silva1 1 ALMEIDA, Paulo Mendes de. De Anita ao museu. São Paulo: Perspectiva, 1976. .
Os "Salões de Maio"
Os "Salões de Maio" aconteceram em 1937, 1938 e 1939.
Quirino conseguiu fundos para a realização do salão com personalidades da elite paulistana e também com a Prefeitura Municipal de São Paulo, para o que deve ter contado com o conselho de Mário de Andrade, naquele momento (1937) à frente do Departamento de Cultura do Município.
Os três "Salões de Maio" foram acompanhados de conferências proferidas por intelectuais e artistas como Anton Giulio Bragaglia, Álvaro Moreyra, Aníbal Machado, Jorge Amado, Jean Maugue, Roger Bastide e Flávio de Carvalho, entre outros. As conferências de Jean Maugue sobre "A pintura moderna", de Roger Bastide sobre "A pintura e a mística" e de Carlos Pinto Alves, que teve o título "As musas deveriam dançar", foram publicadas na Revista do Arquivo Municipal em 1938.
As assinaturas no livro de presença de intelectuais como Fernand Braudel e Giuseppe Ungaretti e o registro da visita do casal Lévi-Strauss nos fazem pensar que o "Salão de Maio" foi acompanhado de perto pelos professores que participaram da formação da Universidade de São Paulo.
Em entrevista recente, Antonio Candido declarou que a visita ao "Salão de Maio", junto com a leitura do livro Ragionamenti sulle arti figurative, do futurista italiano Gino Severini, auxiliou-o a superar uma infância de arte convencional e religiosa2 2 RIVITTI, Thais. Antonio Candido, a descoberta de um novo modo de ver arte. Bien'Art, São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo, abril de 2005. .
A importância dos "Salões de Maio" ainda está por ser melhor avaliada. Foi um dos poucos eventos modernistas a divulgar a arte abstrata estrangeira no Brasil. Tendo acontecido no final da década de 1930, quando o movimento moderno passava por uma reformulação de seus princípios, ocorreu em um momento conturbado, entre dois acontecimentos de grande relevância: o Golpe de Estado de Getúlio Vargas, em 1937, e o início da Segunda Guerra Mundial, em 1939.
O Arquivo Quirino da Silva traz ainda uma interessante documentação sobre o início da década de 1930, quando o artista e jornalista foi ativo no Rio de Janeiro, relacionada ao período em que aconteceram as mostras do "Salão de Maio".
o "Primeiro Salão de Maio"
Já eram passados três anos desde que um evento modernista havia ocorrido em São Paulo (a segunda exposição da Sociedade Pró-Arte Moderna, em 1934).
Já de saída, o "Primeiro Salão de Maio" se pretendia nacional, com uma representação numerosa de artistas do Rio de Janeiro, como Santa Rosa, Guignard, Maxito Hasson, Alfredo Herculano e ainda Cícero Dias, do Recife.
Acompanharam o "Primeiro Salão" as palestras de Álvaro Moreyra sobre "Uma porção de coisas", de Flávio de Carvalho sobre "O aspecto mórbido e psicológico da arte moderna" e do futurista italiano Anton Giulio Bragaglia, que deu duas palestras; a primeira intitulada "As tendências modernas na cenografia" e a segunda simplesmente "Conversação".
Homem de teatro, companheiro de Boccioni e Giacomo Balla, Bragaglia foi inventor do chamado fotodinamismo na década de 1910. Em 1916 ele fundou sua própria companhia cinematográfica, chegando a fazer quatro filmes, dos quais só um sobreviveu; "Thais", de 1916.
Bragaglia já havia estado no Rio de Janeiro no início da década de 1930, mas o sucesso viria por ocasião de sua segunda estadia no Brasil, em 1937, quando fez uma temporada com sua companhia no Teatro Municipal, ocasião em que a Secretaria da Educação lhe comprou o espetáculo3 3 MAGALDI, Sábato; VARGAS, Maria Tereza. Cem anos de teatro em São Paulo. São Paulo: Senac São Paulo, 2001. . O sucesso de seu teatro e de suas conferências lhe valeu, em 1941, o lançamento de seu livro Fora de cena, publicado pela editora Vecchi do Rio de Janeiro, com tradução de Álvaro Moreyra.
No Arquivo Quirino da Silva há um registro de gasto destinado a Anton Giulio Bragaglia datado de 1937. É uma nota do Liceu de Artes e Ofícios com a inscrição "para Bragaglia", dando conta do pagamento de uma caixa. Provavelmente trata-se do objeto a que Paulo Mendes de Almeida faz referência em seu livro De Anita ao museu, onde nos conta que Quirino ofereceu a Bragaglia, em nome dos artistas brasileiros, uma caixa confeccionada com madeiras nacionais contendo fumo desfiado, café em grão torrado e palha.
No livro de presença do "Primeiro Salão de Maio", podemos ver os nomes de importantes personalidades da vida cultural paulistana, como Mário de Andrade, Alfredo Volpi, Lívio Abramo e Fúlvio Pennachi, além da assinatura do jovem Antonio Candido
Livro de ouro
Os registros financeiros do primeiro e segundo "Salões de Maio" foram muito bem guardados e arquivados por Quirino da Silva. Os livros-caixa fazem referência a quase todos os ganhos e gastos, principalmente do "Primeiro Salão". No livro de ouro do "Salão de Maio" encontramos, entre outros, o registro da cooperação de Mário de Andrade, que em 1937 era diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura, e de Paulo Magalhães, então diretor do Teatro Municipal, ambos colaborando com a quantia de 100#000 réis.
Nota de pagamento de caixa a Anton Bragaglia, 1937 Arquivo Quirino da Silva. Arquivo Multimeios CCSP
Bilhete de ernesto de Fiori
Ernesto de Fiori havia sido um artista bastante ativo na Alemanha antes de se mudar para o Brasil em 1936, quando fez sua primeira exposição individual na Galeria Guatapará, em São Paulo. Simpatizante da Família Paulista, de cujas exposições participou, foi um dos poucos artistas a expor nas três mostras do "Salão de Maio". No bilhete destinado ao "Comité du Salão de Majo", o pintor e escultor, escrevendo em francês e provavelmente em atraso para com a organização do evento, diz que já foi muitas vezes até a Rua Barão de Itapetininga, 50, onde não encontrou ninguém, tendo deixado uma fotografia de um trabalho seu. O bilhete foi escrito em papel timbrado do Esplanada Hotel, local onde se realizaram as mostras do primeiro e segundo "Salões de Maio". Parece que De Fiori ainda não havia se acostumado ao português e à organização de exposições no Brasil. Em outro bilhete, datado de 08 de agosto de 1938, ele atesta, desta vez em português, a propriedade de uma escultura de sua autoria exposta no "Segundo Salão de Maio".
Bilhete de Ernesto de Fiori, 1937/38 Arquivo Quirino da Silva Arquivo Multimeios CCSP
O "Segundo Salão de Maio"
O "Segundo Salão de Maio" contou com a participação de um grupo de surrealistas ingleses e de dois mexicanos. Os mexicanos parecem ter sido trazidos por Jorge Amado, que, extra-oficialmente, fez parte da organização do evento e assinou as fichas de inscrição de Leopoldo Mendez, Dias de León e dos artistas do Rio de Janeiro, como Goeldi e Guignard, cujos trabalhos ajudou a trazer em parceria com Geraldo Ferraz.
Na apresentação para o catálogo do "Segundo Salão", Jorge Amado afirma:
O Salão de Maio é hoje uma exposição internacional: artistas de vários países mandaram trabalhos para o hall do Esplanada Hotel. Mas bastaria ser uma mostra dos artistas modernos do Brasil para possuir uma importância incomum.
Se existe no Brasil alguma coisa totalmente abandonada é a arte moderna. Não falo da literatura, que já ganhou o público para si e enterrou definitivamente as Academias de Letras e os grupos dos anjinhos literários. A pintura, a escultura, a arquitetura, eis aí três abandonados no Brasil. Um triunfo absoluto do academismo nas artes plásticas. O Salão de Maio rompeu esse ambiente com a sua mostra de 1937. A de 1938, muito mais importante, selecionada, internacional, viva, contendo as mais diversas tendências das artes plásticas modernas, é a vitória definitiva. O sucesso do Salão de Maio representa o melancólico enterro dos salões acadêmicos.
E prova uma coisa que eu considero importantíssima: que o público, falo do grande público que não entende de técnica de pintura mas vê, sente e se emociona, reage de um modo favorável aos artistas modernos expostos pelo Salão de Maio. Terminou a época dos risinhos. Existe um ambiente de compreensão. Criar esse ambiente tem sido a grande tarefa do Salão de Maio.
Jorge Amado, 1938
Capa do catálogo do "Segundo Salão de Maio", 1938. Xilogravura de Lívio Abramo CCSP
Os artistas ingleses, como Ben Nicholson e Roland Penrose, tiveram suas fichas preenchidas e assinadas por Flávio de Carvalho, que foi o contato desse grupo no Brasil.
Páginas do livro de ouro do "Primeiro Salão de Maio" com o registro da colaboração de personalidades, 1937. Arquivo Quirino da Silva. Arquivo MultimeiosCentro Cultural São Paulo
O "Segundo Salão" foi um sucesso de vendas: "A família do fuzileiro naval", de Guignard, foi comprada por Mário de Andrade e hoje se encontra no acervo do IEB; José Lins do Rego e Jorge Amado compraram quadros de Di Cavalcanti; os trabalhos de Leopoldo Mendez foram todos adquiridos. Volpi também vendeu uma pintura pela quantia de 800#000 réis e Fernando Mangabeira comprou as duas pinturas de Cícero Dias na exposição.
Houve ainda pessoas interessadas na compra de trabalhos de Yolanda Pongetti e de Flávio de Carvalho (uma reserva).
No livro de presença do "Segundo Salão" podemos ver várias assinaturas de personalidades importantes para a cultura brasileira na época, como as do poeta italiano Giuseppe Ungaretti e Sra., do pintor Lasar Segall e de Sérgio Milliet.
Além das conferências de Jean Maugue, Roger Bastide e Carlos Pinto Alves, o salão foi palco de palestras de Elias Chaves Neto, Jorge Amado, Geraldo Ferraz e Aníbal Machado, entre outros. Para Paulo Mendes de Almeida; "...no importar uma representação, em conjunto, e de alto padrão, de artistas estrangeiros, o "Segundo Salão de Maio" antecipava-se às futuras bienais do Museu de Arte Moderna..."4 4 Op. cit. . O que seria possível dizer, igualmente, do terceiro.
O "Terceiro Salão de Maio"
Flávio de Carvalho foi o grande responsável pelo "Terceiro Salão de Maio". Ele registrou o nome do evento como sendo de sua propriedade e, supostamente por esse motivo, acabou rompendo com a comissão organizadora. Ainda assim convidou Geraldo Ferraz a assinar o manifesto do "Terceiro Salão de Maio". No arquivo Quirino da Silva há uma carta de Ferraz respondendo a esse convite:
Santos, 25 de janeiro de 1939.
Prezado Sr. Flávio de Carvalho, encarregado do terceiro Salão de Maio, saudações,
Acuso o recebimento de sua carta datada do 21/1/39 na qual fui convidado para colaborar na revista do Salão de Maio deste ano. Pela presente venho comunicar a v.s. e a quem possa interessar que tendo aceito a princípio numa determinada redação assinar um manifesto desse Salão de Maio sou obrigado a retirar dele a minha assinatura, pois sei que hoje, conforme cópia em meu poder, é outro o manifesto que será publicado. Além disso, agora, assinam o manifesto pessoas com as quais jamais assinaria coisa alguma. Divergindo assim, e para não criar quaisquer embaraços ao Salão, e acreditando aliás inteiramente dispensável minha colaboração nele, pela reunião de nomes tão brilhantes e notáveis com que conta a nova organização, não pretendo de forma alguma me incluir entre os colaboradores da revista. Esta resolução é irrevogável, o que acentuo não pela importância dela mas para evitar outras explicações a respeito, e portanto peço-lhe que dê por encerrada, em caráter definitivo, qualquer correspondência sobre o assunto, o que só poderia nos fazer perder tempo. No mais e lamentando profundamente não poder colaborar nessa hora para qual desejo o melhor sucesso, fico agradecido pela lembrança e sou cordialmente obgdo.
Geraldo Ferraz
Ficha de inscrição e carta de Yolanda Pongetti ao comitê organizador do "Salão de Maio", 1938 CCSP
Sobre essa mudança na direção do salão há ainda no arquivo uma carta do advogado de Quirino da Silva, datada de 06 de novembro de 1939, solicitando a Flávio de Carvalho a transferência da propriedade do nome "Salão de Maio" para seu cliente, ao que Flávio respondeu afirmativamente através de um documento em papel timbrado de seu escritório.
Flávio de Carvalho, capa de RASM, 1939 CCSP
O "Terceiro Salão" teve a participação de nomes importantes da arte moderna brasileira e principalmente estrangeira, como Alexander Calder, Joseph Albers e Alberto Magnelli, o que foi, aparentemente, resultado do esforço de Flávio de Carvalho, que ainda projetou a curiosa revista/catálogo RASM, com capa de alumínio, contendo uma retrospectiva do movimento modernista no Brasil até 1939, com textos de Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida, entre outros.
Participantes do "Terceiro Salão de Maio": da esquerda para a direita: Jacob Ruchti, Jean Helion, John Xcreon, Josef Albers, Lasar Segall, Lívio Abramo, Lucy Citti Ferreira, Luis Martins e Manoel Martins. Revista anual do Terceiro Salão de Maio, 1939. Arquivo Quirino da Silva Arquivo Multimeios Centro Cultural São Paulo
Destaques do arquivo Quirino da Silva
De São Paulo ao Rio de Janeiro em outubro de 1930
A revolução de 1930 começou em 3 de outubro e culminou com a posse de Getúlio Vargas em 3 de novembro. Quirino da Silva precisava viajar para o Rio de Janeiro em outubro de 1930, portanto bem no meio da revolução.
Quirino recebeu duas cartas de recomendação para viajar: uma de Menotti del Picchia e outra escrita no dia 12 de outubro por Plínio Salgado, ambos deputados pelo PPR, partido que se opunha à candidatura Vargas. Nessas cartas os deputados fazem recomendações destinadas ao chefe de polícia Ferreira da Rosa e ao delegado Paula Lima. Ao mesmo tempo, uma braçadeira da polícia revolucionária foi dada ao artista pelo delegado Milcíades Porchat, para que não fosse barrado pelas milícias getulistas. Mas a confusão era grande, em 11 de novembro a câmara do congresso legislativo de São Paulo seria fechada por Getúlio. Seus deputados, entre os quais Menotti e Salgado, seriam destituídos de seus cargos. Salgado apóia a revolução, mas três anos depois Menotti seria preso pela polícia de Getúlio. Quirino, por sua vez, parece ter tido êxito em sua viagem, pois podemos ver dois recibos de gastos do vagão-restaurante de um trem que ia de São Paulo ao Rio de Janeiro justamente em outubro de 1930.
Carta de Rino levi
Rino Levi foi um dos grandes arquitetos brasileiros. Além de participante do "Terceiro Salão de Maio", foi presidente do Clube dos Artistas e Amigos da Arte de São Paulo (o clubinho), cuja sede funcionava no Instituto dos Arquitetos do Brasil. Ele ocupava o cargo quando escreveu a carta homenageando Quirino da Silva, um dos fundadores do referido clube.
Carta de Menotti del Picchia ao delegado Paula Lima, outubro de 1930 Arquivo Quirino da Silva Arquivo Multimeios Centro Cultural São Paulo
Duas cartas de Murilo Mendes
Murilo Monteiro Mendes foi um dos mais importantes poetas do Brasil. O seu primeiro livro, Poemas, lançado em 1930, foi elogiado por Manuel Bandeira e Mário de Andrade e lhe valeu o prêmio Graça Aranha. Na carta enviada a Quirino da Silva em 13 de março de 1942, o poeta faz referência à passagem do historiador lusitano Jaime Cortesão por São Paulo, e a Maria da Saudade Cortesão, filha do referido historiador com quem se casaria cinco anos mais tarde. Além disso, o escritor conta um pouco de sua vida no Rio, citando carinhosamente a poetisa Yone Stamatto e a sua paixão por Mozart. Nessa ocasião, Murilo morava na Rua Marquês de Abrantes, 64, local onde hospedou o casal Arpad Szenes e Vieira da Silva. O "Carlos" a que Murilo se refere é provavelmente o pintor Carlos Scliar, muito amigo do poeta e que naquele ano passava pela capital paulista. Murilo se despede mandando lembranças aos amigos de São Paulo, entre os quais Flávio de Carvalho, Carlos Prado e Lívio Abramo. Na carta mais curta, Murilo demonstra preocupação com a saúde do amigo Carlos Scliar.
Revista Forma
Em 1930 e 1931, Quirino foi colaborador e, em um segundo momento, editor da revista Forma, uma das mais importantes publicações de arquitetura moderna do Brasil. Graça Aranha, que viria a falecer em 1931, escreveu, em 1930, o seguinte texto de apresentação para a revista:
Capa de Forma, n. 4 e 5, 1930/1931 Arquivo Quirino da Silva Arquivo Multimeios Centro Cultural São Paulo
No universo, que se fragmenta em formas, o homem, forma ele mesmo desse universo, é o supremo criador da forma.A criação artística do homem não é a fabricação instintiva dos insetos e dos pássaros. É a criação livre, em que a inteligência joga todas as suas forças. O homem é o animal artista. Nele a tendência inconsciente é desenvolvida e disciplinada pela inteligência. Pela forma, pela cor e pelo som a arte funde o espírito no universal. A forma é a projeção inelutável do pensamento. Só se pensa por imagens, que se tornam formas. No começo a palavra fez-se forma para ter a realidade da vida. A música é forma. Ela se reduz a signos, a linhas melódicas, a construções harmoniosas, a geometrias de sons. Essas definições, vastas e abstratas, não são captadas pela compreensão comum. Para esta somente há forma no que é circunscrito, delimitado, por volumes e linhas. O impulso da natureza e da inteligência realizando-se na matéria plástica. Forma, a publicação que se inicia, será uma revista de arquitetura, pintura, escultura e artes decorativas. O seu principal anseio é estimular o espírito criador do artista brasileiro. Apresentando a produção artística de todos os povos, FORMA dará realce à produção brasileira. A libertação da cópia da natureza e da reprodução do passado é a maior victória do artista moderno. Por esse dom de invenção ele se liga ao artista primitivo, criador e realizador de livres formas. Na arte de Marajó, como na arte pré-colombiana ou na dos selvagens, é flagrante a emancipação da cópia da natureza. Quando esta subsiste, o espírito a deforma, a torna enigmática, como a expressão profunda e misteriosa do totemismo. Criação é atualidade. Criação subentende coisa nova. Ressuscitar o passado, prolongá-lo, é matar o espírito criador. Forma reage contra esse mal e procura incitar o artista brasileiro a prosseguir na criação de coisa nova e coisa nossa.
Graça Aranha, 1930
Dirigida por Baldassini e Emilio Baumgart, a revista Forma contou com a colaboração de Le Corbusier, Lucio Costa, Gregori Warchavchik, Di Cavalcanti, Manuel Bandeira e Murilo Mendes, entre outros.
Em 1933 Quirino ainda colaborou com outra importante publicação de arquitetura, a revista Base, de Alexandre Altberg, arquiteto alemão formado na escola Bauhaus que, radicado no Brasil, teve importante atuação no início da arquitetura moderna carioca.
Texto e desenho de Le Corbusier para Forma, Rio de Janeiro, 1930 Arquivo Quirino da Silva. Arquivo Multimeios Centro Cultural São Paulo
Manuscritos de luiz Peixoto
Quando morou no Rio de Janeiro, de 1897 até 1934, Quirino fez inúmeras amizades com poetas e artistas, entre os quais Luiz Peixoto (1889-1973). Compositor, caricaturista e um dos maiores entusiastas do teatro de revista, Peixoto compôs, em parceria com Ari Barroso, "Na batucada da vida", gravada por Carmem Miranda, sendo também parceiro de Donga e um importante letrista de samba. Seus manuscritos, com letras de samba que abordam a vida carioca, foram cuidadosamente guardados por Quirino.
Uma observação
A história da arte brasileira carece de textos mais abrangentes, não só pelas dificuldades mercadológicas, mas, muitas vezes, pela escassez de documentos e arquivos que lhes pudessem servir de base. A dispersão das obras e a falta de políticas de aquisição nos acervos públicos têm sido fatores que colaboram para a pobreza de nossa história. Com a falta de documentação não é diferente.
Seria interessante em nível institucional que se ampliasse o número de arquivos sobre artes. O acesso à documentação talvez permitisse que os nossos textos sobre o assunto fossem mais bem escritos do que no passado. Cada documento histórico pode ser interpretado de diferentes aspectos e revisões poderiam ser feitas.
Por fim, lembremos aqui que a cultura não é construída apenas por máximas figuras. O exemplo disso é que um artista que por vezes foi considerado menor, como Quirino da Silva, por tantos anos esquecido, hoje nos parece ter dado uma importante colaboração para o desenvolvimento da arte brasileira. Ainda que se possa dizer que essa colaboração tenha sido maior pelo que o artista fez como produtor de mostras e eventos, não se descarta uma revisão sobre a própria obra de Quirino, seu começo de inspiração simbolista, sua inclinação fauvista, sua parceria com Reis Júnior, e as xilogravuras que fez com Oswaldo Goeldi no início da década de 1920.
Como disse certa vez um conhecido artista brasileiro, sem querer esvaziar os juízos de gosto, podem existir um grande artista em péssima fase, médios artistas em ótima fase, artistas ruins em fase excelente... e assim por diante.
Carta de Murilo Monteiro Mendes, 1942 Arquivo Quirino da Silva Arquivo Multimeios Centro Cultural São Paulo
Alexandre Altberg Capa da revista Base, Rio de Janeiro, 1932 Arquivo Quirino da Silva Arquivo Multimeios Centro Cultural São Paulo
- 1 ALMEIDA, Paulo Mendes de. De Anita ao museu. São Paulo: Perspectiva, 1976.
- 2 RIVITTI, Thais. Antonio Candido, a descoberta de um novo modo de ver arte. Bien'Art, São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo, abril de 2005.
- 3 MAGALDI, Sábato; VARGAS, Maria Tereza. Cem anos de teatro em São Paulo. São Paulo: Senac São Paulo, 2001.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Jun 2010 -
Data do Fascículo
Dez 2008