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Tentando não afundar na lama: impasses da modernidade brasileira

Trying Not to Sink on the Mud: Dilemmas of the Brazilian Modernity

Intentando no hundirse en el lodo: entraves de la modernidad brasileña

RESUMO

A arquitetura desempenhou um papel fundamental na modernidade brasileira. Inequivocamente moderna, não carregava os resíduos de primitivismo e nacionalismo que tanto marcaram nossa pintura e literatura. E se a arquitetura de Oscar Niemeyer sublima seus materiais e os esforços estruturais, o brutalismo da Escola Paulista afirma o materialismo dialético, acentuando o peso ao invés da leveza, procurando antecipar na forma um desenvolvimento infraestrutural do país. Com o retorno da democracia no Brasil, Paulo Mendes da Rocha realiza uma arquitetura que alegoriza aquele desenvolvimento pretendido, atestando sua falta de chão histórico. Característica que nos permite aproximar sua arquitetura das esculturas de Amilcar de Castro, em que a ferrugem transmite uma morosidade mineral à clareza geométrica, problematizando seu construtivismo de base.

PALAVRAS-CHAVE:
Arquitetura; Modernismo; Projeto; Construtivismo; Brutalismo

ABSTRACT

Architecture has played a fundamental role within Brazilian modernity. Unequivocally modern, it didn’t carry the debris of primitivism and nationalism that so starkly characterized our painting and literature. And if Oscar Niemeyer’s architecture sublimates its material and structural efforts, the brutalism of Escola São Paulo assures a dialectical materialism, emphasizing weight instead of lightness, in a way to anticipate through form an infrastructural development of the country. As democracy was restored in Brazil, Paulo Mendes da Rocha carried out an architecture that allegorizes that intended development, testifying to its lack of historical ground. This feature allows approximations between its architecture and the sculptures of Amilcar de Castro, in which the rust transmits a mineral tardiness to its geometrical clearness, disturbing its elementary constructivism.

KEYWORDS:
Architecture; Modernism; Project; Constructivism; Brutalism

RESUMEN

La arquitectura jugó un papel clave en la modernidad brasileña. Inequívocamente moderna, no portaba los residuos de primitivismo y nacionalismo que tanto marcaron nuestra pintura y literatura. Si la arquitectura de Oscar Niemeyer sublima sus materiales y esfuerzos estructurales, el brutalismo de la Escola Paulista afirma el materialismo dialéctico, acentuando el peso al revés de la ligereza, buscando anticipar el desarrollo infraestructural del país en la forma. Con el regreso de la democracia en Brasil, Paulo Mendes da Rocha realiza una arquitectura que alegoriza el desarrollo pretendido y atesta su falta de base histórica. Esta característica nos permite aproximar su arquitectura a las esculturas de Amilcar de Castro, en las que el óxido transmite una lentitud mineral hasta la claridad geométrica, problematizando su constructivismo de base.

PALABRAS CLAVE:
Arquitectura; Modernismo; Proyecto; Constructivismo; Brutalismo

Embora tivesse ainda uma expressão pouco relevante à altura da Semana de Arte Moderna de 1922, quando um núcleo importante de poetas e pintores brasileiros já havia adotado uma posição claramente vanguardista,1 a arquitetura assumiu o comando da renovação visual no Brasil a partir da segunda metade dos anos 1930, num processo de ascensão vertiginosa que culmina na inauguração de Brasília, em 1960. É ilustrativa, a esse respeito, a afirmação do crítico Mário Pedrosa (2015PEDROSA, Mário. A arquitetura moderna no Brasil. In Arquitetura: ensaios críticos / Organização, prefácio e notas de Guilherme Wisnik. São Paulo: Cosac Naify , 2015, p. 61-73., p. 65), feita ainda em 1953 para o público parisiense, de que “no Brasil a primazia no plano artístico coube à arquitetura”, pois os jovens arquitetos é que “foram os verdadeiros revolucionários”. Estava suposta aí, como se pode perceber, uma clara reparação ao nacionalismo ideológico da obra de pintores como Candido Portinari, Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral, já anacrônico se comparado ao desembaraço formal da arquitetura de Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy e tantos outros. Uma arquitetura feita de gestos largos, e aparentemente livre do recato lusitano e do complexo de país colonizado, travos estruturais que marcam a história das artes plásticas no Brasil, tornando-a um perpétuo lidar com a sua “dificuldade de forma”, na expressão de Rodrigo Naves (1996NAVES, Rodrigo. Da dificuldade de forma à forma difícil. In A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011, p. 15-41.). Uma arquitetura, enfim, que se orientou desde logo pela dimensão de um mundo moderno, que ela soube muito bem inaugurar e tornar legível.

Sem o “primitivismo” dos literatos e músicos, ou o “nacionalismo” dos escritores políticos e pintores, escreve ainda Mário Pedrosa (2015PEDROSA, Mário. A arquitetura moderna no Brasil. In Arquitetura: ensaios críticos / Organização, prefácio e notas de Guilherme Wisnik. São Paulo: Cosac Naify , 2015, p. 61-73., p. 62), os arquitetos brasileiros não se ocuparam em “descobrir ou redescobrir o país”, concentrando-se apenas em sua “realidade geográfica e física”. Não resta dúvidas, portanto, de que a arquitetura moderna brasileira, inspirada diretamente por Le Corbusier, já era desde o final dos anos 1930 uma legítima representante das vertentes construtivas internacionais, antecipando - e também legitimando - o abstracionismo que passaria a dominar tardiamente o meio das artes plásticas no país a partir dos anos 1950. Esse projeto estético construtivo, contudo, se instala no Brasil - tanto no caso da arquitetura quanto das artes plásticas - mais no contexto do consumo e da criação de relações interpessoais civilizadas do que como expressão de um modelo de produção industrial efetivo. Tardia em relação às vanguardas europeias das primeiras décadas do século XX (De Stijl, Construtivismo russo, Bauhaus), e em contexto periférico, nossa arte construtiva se estabelece eminentemente como “um fato ético, individual, mais do que político e coletivo” (MAMMÌ, 2002, p. 17-18). Vem daí, certamente, a grande irritação de Max Bill com a gratuidade da arquitetura moderna brasileira vista por ele em Niemeyer, formada longe do padrão normativo do design industrial do hemisfério norte.

É na década de 1950 que a produção artística brasileira nas áreas da música popular, poesia e artes plásticas - com a bossa nova e os diversos concretismos - atinge finalmente o padrão de modernidade indicado antes pela arquitetura, tornando-se capaz de produzir símbolos de validade internacional não pitorescos, e dotados de um acabamento estético que podemos caracterizar como sofisticado sem ser aristocrático. Com um lapso de aproximadamente 20 anos, pode-se dizer que o famoso show dos músicos bossanovistas no Carnegie Hall em 1962, por exemplo, corresponde em termos de importância à mostra “Brazil Builds”, ocorrida no Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1943. Da mesma maneira, a formação da dupla Frank Sinatra e Tom Jobim, fixada no famoso disco de 1967, pode ser comparada ao par Le Corbusier e Oscar Niemeyer, que protagonizou o episódio do projeto para o edifício-sede da ONU em 1947, também em Nova York.

O projeto estético da abstração, consolidado nesse período no Brasil, é um desdobramento do movimento cultural de libertação dos recalques locais (históricos, sociais, étnicos) iniciado com o modernismo na década 1920. Contudo, em seu momento, ele reverte os termos da balança, fazendo pesar para o lado da universalidade o pêndulo daquela “dialética do localismo e do cosmopolitismo” através da qual o crítico literário Antonio Candido (1965CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945 (panorama para estrangeiros). In Literatura e sociedade - estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965, p. 109-138.) definiu a vida espiritual brasileira. E o cenário por excelência dessa civilização tropical nascente é a zona sul do Rio de Janeiro, com o clima descontraído de beira-mar dos generosos calçadões de Ipanema e Copacabana - espaços públicos muitíssimo bem sucedidos -, somado aos amplos espaços abertos do Aterro do Flamengo, com a modernidade técnica do seu “frio palmeiral de cimento”.2

De fato, é no ambiente cosmopolita e arejado do Rio que a fisionomia cultural do Brasil moderno se forma. Polo de convergência e triagem dos vários regionalismos em imagens pregnantes de identidade nacional, a cidade do Rio de Janeiro é, assim, não apenas o cenário em cuja paisagem nascem e se propagam a arquitetura moderna brasileira e a bossa nova, mas também a sua própria condição de existência. É o que intui com perspicácia o arquiteto capixaba-paulistano Paulo Mendes da Rocha quando, ao comentar a canção “Corcovado”, de Tom Jobim (“Da janela vê-se o Corcovado, o redentor, que lindo!”), desloca a ênfase da paisagem para a janela, imaginando o que estaria implícito naquela cena. Pois a “janela nessa cota já supõe o prédio de apartamentos”, diz ele, e a paisagem é linda porque “atrás de nós há uma brisa, vozes e panelas com feijão no fogo, tanque com água e roupa lavada no varal do fundo. É esse o lugar que ampara o abismo da janela através da qual se pode ver uma paisagem e considerá-la linda” (ROCHA, 2012, p. 111).3 Espelhando a visão de uma cidade densa e verticalizada, ao mesmo tempo que edênica, a bossa nova e a arquitetura moderna trazem de fato uma compreensão da vida que é própria da classe média urbana carioca - e que pode ser considerada, naquele momento, como universalmente brasileira.

OSCAR NIEMEYER E O DRAMA EM REPOUSO

Tomado em um âmbito histórico amplo, forjado no contexto europeu, o fenômeno da modernidade inaugura uma consciência aguda sobre a emergência da sociedade de massas e do chamado individualismo moderno. Isto é, uma consciência sobre o descentramento do sujeito, e o desapego em relação aos esteios tradicionais (familiares, religiosos etc.). Em termos visuais e urbanos, como mostra o crítico norte-americano Vincent Scully Jr. (2002, p. 16-20), dá-se então uma ruptura definitiva com a unificação espacial barroca, que, como o canto do cisne teatralizado do “velho mundo humanista”, encenava uma liberdade espacial ativa, integrada em uma ordem maior. Assim, a consciência moderna traz consigo um componente trágico inerente: a cisão inevitável entre sujeito e coletividade, ou, em outros termos, entre arquitetura e espaço, ou construção e natureza - como nos casos dos arquitetos franceses Ledoux e Boullée -, fazendo com que nada mais reste entre os corpos como força capaz de integrá-los. Por esse ponto de vista, consequentemente, as melhores construções modernas seriam aquelas capazes de buscar uma individuação radical - também chamada de “autonomia”4 -, fazendo com que a relação entre os sólidos e o espaço assuma contornos aversivos, de repulsa recíproca, e não mais de fusão coreográfica, tal como ocorria no período barroco. Trata-se, em outras palavras, da substituição de um modelo espacial urbano por um modelo mais escultural e individualizado, como guia para o desenho arquitetônico.

À luz dessa questão, me parece que a obra de Oscar Niemeyer oferece um exemplo cabal e, ao mesmo tempo, problemático da condição moderna.5 Uma obra que, curiosamente, tem sido sempre associada à imagem de um hedonismo mimético e fusional, de herança barroca e tropical, cuja poética da forma livre teria se destacado mundialmente pelo contraste que propunha em relação à contenção formal do primeiro modernismo funcionalista. No entanto, é preciso perceber, ao contrário, o quanto essa arquitetura radicaliza a sua condição de isolamento e autonomia formal, aderindo à linha infinita do horizonte e parecendo reduzir o espaço ao plano bidimensional, visto sempre em elevação. Como bem percebeu Sophia Silva Telles (1994TELLES, Sophia Silva. A arquitetura como ação. Folha de S. Paulo, Jornal de Resenhas, 9 mai. 1998., p. 95), as formas de Niemeyer não são exatamente esculturais: “são figuras planas que surgem, paradoxalmente, de um fundo”. O que as constitui, portanto, é seu “valor de contorno” - na expressão do poeta e calculista Joaquim Cardozo (1977CARDOZO, Joaquim. Le chant architectonique de Niemeyer. NIEMEYER, Oscar. Oscar Niemeyer. Belmont-sur-Lausanne: Editions Alphabet, 1977.) -, dado pelos pontos de tangência com a linha do horizonte. Resulta que esses edifícios aparecem, muitas vezes, como figuras prontas, acabadas e fechadas, abolindo tanto a noção de expansão orgânica no espaço quanto a ideia de processo: o tempo histórico, os rastros do trabalho na obra final, a carga expressiva da matéria (em seus volumes brancos, revestidos de mármore, pastilhas, ou simplesmente pintados). Daí serem volta e meia chamados de “surrealistas”, pois parecem erodir o presente remetendo-nos a uma dimensão simultaneamente arcaica e futura. Ruína de uma civilização passada, ou visão futurista das crateras da lua? Assim perguntaria a escritora Clarice Lispector (1975LISPECTOR, Clarice. Brasília. In Visão do esplendor. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975, p. 9-15.) a propósito de Brasília. Eis uma percepção aguda do processo de modernização do Brasil, erguido sobre o vácuo da história. Daí a especificidade do sentido trágico intuído pelo arquiteto, formalizado como uma espécie de momento zero da criação - já que Niemeyer não tem atrás de si qualquer genealogia de precursores6 -, produzindo algo que acabou sendo visto por muitos estrangeiros como sinal de irracionalismo.

Portanto, a arquitetura de Niemeyer foca o cerne da crise moderna, incorporando o seu princípio trágico de modo a tornar-se uma poderosa imagem daquilo que entendemos por “desencantamento do mundo” - que pode ser visto, em termos espaciais, como a rarefação dos espaços abertos em torno aos seus edifícios, muito pouco urbanos em essência. Por outro lado, sua arquitetura não dramatiza essa condição de isolamento, evitando recorrer a um tensionamento estrutural ou expressionismo formal, como ocorre na obra do arquiteto fino-americano Eero Saarinen, por exemplo. As formas de Niemeyer, ao contrário, buscam sempre a quietude, o repouso e a estabilidade, sublimando os enormes esforços estruturais envolvidos na construção. Igualmente, ao revestir as superfícies de concreto com tinta branca, pastilhas cerâmicas ou placas de mármore, o arquiteto retira qualquer carga expressiva da matéria, emudecendo-a. Mais uma vez, como indicou Sophia Silva Telles, Niemeyer “suprime a tectônica” da construção, erigindo formas desapegadas de qualquer pathos materialista. Mais ou menos como João Gilberto, podemos dizer, que, ao eliminar o vibrato do canto, dando ao timbre uma função melódica, “tenciona retirar da melodia qualquer corporeidade” (MAMMÌ, 1992, p. 68).

Toda essa ambiguidade na obra de Niemeyer foi muito bem percebida por Ferreira Gullar, no poema que dedicou ao arquiteto, escrevendo o seguinte:

Oscar

(...)

nos ensina a viver no que ele transfigura

no açúcar da pedra

no sono do ovo

na argila da aurora

na alvura do novo

na pluma da neve

Oscar nos ensina que a beleza é leve. (GULLAR, 2001, p. 301)

Percebe-se aí a convivência simultânea de duas condições díspares em sua obra: daquilo que se inaugura como novidade lisa e reluzente (aurora, alvura, novo, neve), por um lado, e daquilo que participa ainda de uma existência em estado lento e embrionário (sono, ovo, argila), por outro. Podemos dizer que esse segundo aspecto diz respeito à profunda compreensão, por parte do arquiteto carioca, da natureza plástica do concreto armado, permitindo-nos aproximar a sua obra arquitetônica das esculturas de Henry Moore, por exemplo, com suas figuras curvas e onduladas ligadas umbilicalmente à “terra-mãe”. Figuras que tentam penosamente “nascer”, como afirma Giulio Carlo Argan (1995ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1995., p. 484-485), descolando-se do mundo indistinto da matéria contínua, da massa dúctil e maleável, do barro primordial. O outro aspecto, no entanto, joga luz sobre a componente inversa da obra de Niemeyer, e igualmente importante no seu processo de formalização: a geometria como instrumento da separação racional entre homem e mundo, expressão por excelência da cisão moderna referida anteriormente, que também ampara a ideia de autonomia da obra de arte. Não há dúvida de que as figuras desenhadas pelo arquiteto carioca são emanações desse espírito geométrico, que se recorta do fundo dividindo o espaço em cheios e vazios e separando, assim, construção e natureza.

Quer dizer que, por essa dupla condição, a sua obra não vem a ser apenas uma ilustração da crise moderna. Ela é também uma problematização dessa mesma crise, vista pela ótica brasileira. Pois embora assuma o seu princípio trágico essencial, apresenta-se, paradoxalmente, sob a forma do repouso, e não de um confronto agônico entre forças em oposição, como no caso do mestre Le Corbusier,7 ou do colega paranaense-paulista Vilanova Artigas. Pois, segundo as palavras de Artigas (apud BRUAND, 1981, p. 302), definindo as diferenças entre ambos, “enquanto ele (Niemeyer) sempre se esforça para resolver as contradições numa síntese harmoniosa, eu (Artigas) as exponho claramente”, já que, em sua opinião, “o papel do arquiteto não consiste numa acomodação; não se deve cobrir com uma máscara elegante as lutas existentes, é preciso revelá-las sem temor.” Contudo, é preciso notar que não se trata, no caso de Niemeyer, de uma pacificação dos conflitos dados, mas da sua suspensão: uma “contradição sem conflitos”, tomando a definição de Walter Garcia (1999GARCIA, Walter. Bim bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto. São Paulo: Paz e Terra, 1999.) acerca da obra de João Gilberto. Ou também de um “otimismo trágico”, emprestando, muito a propósito, o termo usado por Caetano Veloso para definir a bossa nova à luz de Nietzsche.8

Mais uma vez comparando as duas artes, pode-se arriscar dizer que esse procedimento suspensivo de Oscar Niemeyer é semelhante à suspensão temporal produzida pela bossa nova, cujo pulso fluido relativiza a oposição entre tempo forte e tempo fraco - característicos do jazz, do rock e do reggae, por exemplo -, não permitindo que ela seja incorporada, como outros ritmos sul-americanos, às linguagens musicais mais conhecidas. Pois nesse pulso indefinível, como observa Lorenzo Mammì (1992, p. 69), é “como se o tempo ainda não fosse solidificado num movimento mecânico, e deixasse espaço a variantes individuais.” Isto é, talvez essa síntese rítmica singular, cuja fluidez dissolve as conhecidas acentuações de pulso em um balanço sutil e aparentemente uniforme, possa ser comparada à inexistência de uma tradição clássica na arquitetura brasileira, com a normatividade das relações hierárquicas que estabelece as regras entre as partes e o todo de uma construção.

Portanto, se no campo visual a arte construtiva surge e se afirma no Brasil dos anos 1950 como uma clara oposição à informalidade do meio cultural e social do país - demonstrando ao mesmo tempo “algo de evidentemente ‘colonizado’ em seu mimetismo do racionalismo formalista suíço” (BRITO, 2000, p. 51) -, a arquitetura e a canção, cada uma a seu modo, extraem dessa própria informalidade uma maneira de reagir ambivalentemente a ela, e de uma maneira singular. Na bossa nova, figura através de deslocamentos e continuidades sutis “um Brasil em que o ‘jeito’ deixa de ser o escamoteamento das dificuldades para tornar-se talvez a maneira mais sábia de compreendê-las”, como observa Rodrigo Naves (2001NAVES, Rodrigo. Amilcar de Castro: matéria de risco. In A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011, p. 233-259., p. 83). Na arquitetura, ele contorna sua congênita “dificuldade de forma” ao saber tirar partido de uma maleabilidade artesanal razoavelmente indeterminada, inscrita no concreto armado, e capaz de inscrever o gesto ainda vacilante diretamente no céu da modernidade técnica.

VILANOVA ARTIGAS E O MATERIALISMO DIALÉTICO

“Escola paulista” ou “Brutalismo paulista” são alguns dos termos que têm sido empregados para designar a produção de um grupo de arquitetos sediado em São Paulo, feita sob a liderança de João Batista Vilanova Artigas, abrangendo basicamente o final dos anos 1950 e a totalidade das duas décadas seguintes.9 Suas características principais são a adoção de um partido estrutural ousado como definidor da forma, o largo emprego do concreto armado ou protendido, a volumetria compacta encimada por uma cobertura iluminante, a predominância de empenas cegas obstruindo uma relação mais franca entre o interior e o exterior do edifício, e a ênfase na criação de uma espacialidade interna contínua. Espacialidade balizada por pátios, jardins ou grandes vazios capazes de tragar atributos “paisagísticos” dos espaços externos para o interior das construções. Sua mais perfeita e importante realização, como não poderia deixar de ser, é o edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), projetado por Artigas em 1961. Um edifício que expressa não apenas uma determinada visão da arquitetura, como também uma firme concepção de ensino, entendido como um saber partilhado entre muitos e necessariamente interdisciplinar.10

Erigidos em uma cidade desprovida de beleza natural evidente, e que cresceu muito rapidamente sob a força predatória da especulação imobiliária, esses edifícios deram as costas à trama urbana, procurando reconstruir internamente espaços de uma sociabilidade nova, coletivista e mais austera. Isto é: cidades em laboratório. Sim, pois é a urbanidade o horizonte essencial dessa arquitetura paulista, em contraposição radical aos “bibelôs” da cultura doméstica burguesa, que tem na agorafobia o complemento simbólico de uma hipertrofia de valores ligados ao conforto intimista.

É o que explica, ou ajuda a explicar, tanto a forçada rudeza material desses edifícios - desapegados de qualquer afeto artesanal - quanto a sua razoável homogeneidade formal. Sejam eles residências de classe média, estabelecimentos de ensino, clubes de recreação ou estações de transporte, por exemplo, todos são tratados como grandes equipamentos públicos: com estruturas dimensionadas para vencer grandes vãos, a nítida preferência pelo emprego de genéricas rampas ao invés de caprichosas escadas e, em muitos casos, a ausência de janelas para os dormitórios ou salas de aula, complementada pela criação de paredes que não tocam o teto, e portanto não separam os cômodos em ambientes estanques e secretos.

Levando-se em conta o evidente contraste entre essa arquitetura paulista e a variada leveza aérea da produção arquitetônica carioca que a precedeu - tida até então como sinônimo de brasileira -, é impossível não notarmos uma reorientação de rumos na arquitetura do país a partir da virada dos anos 50 para os 60, que tem como pano de fundo a construção e inauguração de Brasília (1957-60) e a profunda mudança na obra de Le Corbusier diante do contexto econômico e cultural do pós-Segunda Guerra Mundial, à qual se dá o nome de brutalismo.

Espelhando uma compreensão do Partido Comunista Brasileiro, do qual era um destacado membro, Artigas entendia que, considerando-se o atraso econômico e social brasileiro nos anos 1960, era necessário investir-se de uma atitude eminentemente positiva e abertamente favorável ao desenvolvimento das forças produtivas nacionais, isto é, da indústria, mesmo que sob a condução política de um regime ditatorial, instalado no país desde o golpe militar de 1964. Assim, no seu importante texto intitulado “Uma falsa crise” (1965), o arquiteto combate a crítica (europeia) ao Movimento Moderno, que o condenava por associar o racionalismo à tecnocracia, isto é, a uma crença cega nos benefícios da técnica, que teria se provado enganosa e perversa.

Distinguindo a técnica prática, usada no dia a dia, da técnica em geral, cuja racionalidade instrumental parecia embasar a ideologia capitalista do pós-guerra, escreve Artigas (2004ARTIGAS, Vilanova. A função social do arquiteto - quarta arguição . In Caminhos da arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2004a, p. 186-231.d, p. 105): “é preciso não confundir, em qualquer análise do movimento (moderno), a técnica da construção, cujo domínio pela arquitetura é potencialmente possível, com a técnica em geral, cuja necessidade de comando, na linguagem dos pioneiros, não nos comovia com os mesmos overtones. Até um tanto ao contrário”. Quer dizer, à parte uma nítida discordância com o elogio eufórico e pioneiro da técnica per se - em evidente referência ao livro Mechanization Takes Command (1948), de Siegfried Giedion -, Artigas defende o uso racional da tecnologia na construção civil. E completa: “nas circunstâncias históricas em que vivemos, os países subdesenvolvidos desejam a industrialização, quaisquer que sejam as suas decorrências, pois que, partindo das teses funcionalistas, seria possível o seu controle, já agora para transformar o nosso mundo, no qual o atraso do desenvolvimento capitalista, ou a sua convivência com o feudalismo, provoca espetáculos de miséria social muito piores” (ARTIGAS, 2004d, p. 105, grifo meu).

Feitas as contas, enquanto o brutalismo de Le Corbusier representa um voluntário passo atrás em relação ao progressismo técnico do Movimento Moderno, o brutalismo de Artigas se pretende um passo à frente no contexto do subdesenvolvimento brasileiro, respondendo a especificidades locais do país com vistas à superação do seu atraso.11 Nesse sentido, o seu modelo de desenvolvimento para o Brasil - e, de modo correlato, de atuação profissional - evita sistematicamente cair no miserabilismo ou na valorização da criatividade popular e artesanal, mantendo a firme convicção de que toda criação transformadora deveria partir do desenho traçado por um corpo técnico ilustrado e amparado pelo Estado. Não à toa, apesar da franca contradição ideológica em que se inscreve no contexto de uma ditadura militar, essa arquitetura paulista encontrou um grande campo de expansão durante os anos de “milagre econômico” vividos sob aquele regime, nos quais as portentosas obras de infraestrutura (estradas, pontes, barragens, usinas, cidades novas) impulsionaram o crescimento industrial do país, ainda que sob o efeito colateral de um aumento galopante da inflação e da dívida externa, e embasaram a ideologia nacionalista de um “Brasil grande” e moderno.

Não são pequenas as pressões e contradições envolvidas em tal projeto de emancipação nacional através da arquitetura. Preso e exilado pelos militares desde a primeira hora, em 1964, e cassado da Universidade de São Paulo em 1969, junto com Paulo Mendes da Rocha e Jon Maitrejean, Artigas sabia que essa aposta representava um difícil tour de force - paradoxal, porém necessário. Vem daí, penso eu, a exagerada e heroica didática estrutural de seus edifícios - os enormes vãos livres e a acentuação plástica dos esforços a que estão submetidos -, cujas “proezas e audácias”, em suas palavras, expressam o seu caráter “impaciente” (cf. ARTIGAS, 2004b, p. 131), antecipatório. Isto é: formalizam por antecipação um desenvolvimento econômico e cultural que deveria vir a reboque, mas que, afinal, não veio. E se tomarmos uma obra tardia da “escola paulista”, como o Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (1986), de Paulo Mendes da Rocha, perceberemos a alegorização daquele projeto como uma fantasmagoria: o grande vão livre já não é modelar nem funcional, apenas paira incólume sobre um território que, escavado em subsolo, resiste a incorporar-se a essa ordem técnica.

Em 1958 - no mesmo período em que se construía Brasília -, o governo do estado de São Paulo criou um “plano de ação” para suprir em pouco tempo a enorme carência de equipamentos escolares no estado, tendo chegado a construir efetivamente mais de 600 novas unidades entre 1959 e 1962. Foi por essa ocasião extraordinária que os arquitetos sediados em São Paulo receberam, pela primeira vez, encomendas públicas relevantes, diferentemente do que acontecia no Rio de Janeiro, onde desde os anos 30 a arquitetura moderna se havia estabelecido e frutificado sob o forte patrocínio estatal. Vilanova Artigas projetou dois importantes edifícios desse conjunto: os colégios de Itanhaém (1959) e de Guarulhos (1960), que, ao lado de suas casas, viriam a se tornar referências fundamentais para o nascimento daquilo que se conhece como arquitetura paulista.

Dada a importância estratégica dessas obras, cuja escala permitia a criação de um novo modelo construtivo e pedagógico para o estado, era preciso alcançar uma forte unidade de conjunto entre os projetos, voltada para uma ênfase na tecnologia construtiva capaz de alavancar o desenvolvimento industrial do país. Daí a sua opção radical pelo concreto armado, cuja indústria encontrava-se bem avançada no Brasil, parecendo descortinar, naquele momento, ambiciosas promessas de pré-fabricação, protensão etc. Vem dessa circunstância a primeira percepção palpável de uma “escola paulista”: a reunião de um grupo afirmando em uníssono as mesmas ideias com vistas à criação de uma clara política para a área. Pois, como deixou claro Paulo Mendes da Rocha (1970ROCHA, Paulo Mendes da. Edifícios escolares: comentários. Acrópole, São Paulo, n. 377, set. 1970, p. 35., p. 35), “a necessidade de uma unidade sobre o problema da escola” terminou por constituir “um verdadeiro grupo de trabalho e de troca de informações”, fazendo com que os projetos resultantes revelassem “um notável avanço geral, na prática profissional no nosso meio”.

No colégio de Itanhaém, à semelhança do que havia feito na casa Taques Bittencourt, também de 1959, Artigas agrupa todo o programa sob uma grande cobertura, e unifica o sistema construtivo pelo uso de pórticos estruturais seriais em formatos angulosos que se afinam em direção ao chão, o que sinaliza uma aproximação de Artigas à vertente mais construtiva da arquitetura carioca - notadamente a exemplos como o Museu de Arte Moderna (1953), de Reidy, e a fábrica da Duchen (1950), de Niemeyer. Aproximação esta que já se delineava no seu elogio exaltado à famosa autocrítica feita por Niemeyer em 1958, em que este se propunha renunciar à “tendência excessiva para a originalidade” em nome da valorização da estrutura na definição plástica do edifício (cf. NIEMEYER, 1958).

Ao saber que receberia o prêmio Auguste Perret, conferido pela UIA (Union Internationale des Architectes) em 1985, Artigas (2004ARTIGAS, Vilanova. Sobre escolas . In Caminhos da arquitetura. São Paulo: Cosac Naify , 2004b, p. 122-131.c, p. 181) não deixa de associar esse reconhecimento à famosa máxima do arquiteto francês, tanto prezada por ele: “a arquitetura é a arte de fazer cantar o ponto de apoio”. E declara: “é como se eu tivesse deixado uma marca da atitude que sempre me comoveu, que é colocar a obra na paisagem, com um certo respeito pela maneira como ela ‘senta’ no chão; como ela se equilibra, se exprime através da leveza, a marca dessa dialética entre o fazer e a dificuldade de realizar”.

Aqui, a referência à dialética entre o fazer e a dificuldade de realizar define muito bem o ímpeto agonístico de sua obra, bem como de sua visão de mundo. Diferentemente de Oscar Niemeyer, para quem o marxismo é uma filosofia política completamente desligada de sua atividade profissional - daí a recorrente sublimação da matéria e dos esforços estruturais em seus edifícios -, no caso de Artigas a noção materialista de conflito é determinante, mesmo quando mobiliza entidades cosmológicas como o céu e a terra, isto é, o imperativo telúrico e a promessa de transcendência. Bem à propósito, ao responder à arguição de Flávio Motta em sua banca no concurso para Professor Titular na FAU-USP, em 1984, o arquiteto observa o seguinte: “procuro o valor da força da gravidade, não pelos processos de fazer coisas fininhas, uma atrás das outras, de modo que o leve seja leve por ser leve. O que me encanta é usar formas pesadas e chegar perto da terra e, dialeticamente, negá-las” (ARTIGAS, 2004a, p. 225).

PAULO MENDES DA ROCHA E AMILCAR DE CASTRO: PLANOS DOBRADOS

Com um certo grau de abstração, podemos enxergar o espaço do MuBE (Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia) como um grande plano feito por cortes e dobras: uma superfície contínua que se espacializa em meios-níveis escalonados. Nesse sentido, a grande viga-marquise do museu não se mostra como um objeto autônomo, mas, ao contrário, como mais uma dobradura do plano de partida, que é o chão. Daí que o piso da esplanada seja feito de placas de concreto, prolongando na área externa a materialidade das paredes, das lajes e da marquise, integrando assim todo o edifício como uma superfície única. Aliás, não é fácil falar em “edifício” no caso do MuBE, já que, dado o desnível do lote, a construção propriamente dita se encontra escondida, escavada em um falso subsolo. Não por acaso, Paulo Mendes da Rocha optou por realizar a maquete do museu com um material inusual para estudos arquitetônicos: o aço cor-ten, em semelhança direta com as esculturas de Amilcar de Castro.

Abrindo as chapas de ferro com cortes ortogonais, circulares e diagonais, Amilcar cria peças instáveis, assimétricas, que por vezes se afinam ao tocar o solo, e também lançam, outras vezes, planos agudos no ar, em formas triangulares e bicudas que rompem a ortogonalidade das chapas originais. Algo semelhante acontece na arquitetura do MuBE, onde paredes e lajes em forma de triângulos agudos geram um espaço crispado, fragmentário, de quinas vivas e cortantes.

Desde o início de sua carreira, Paulo Mendes da Rocha construiu obras em que a dialética entre peso e leveza é uma questão fundamental, como vemos no Ginásio do Clube Atlético Paulistano (1958), onde os seis enormes pilares de concreto armado se afinam ao tocar o solo em delicados pontos de apoio. Tal gesto já estava presente no universo arquitetônico, de certa forma, nos pilares em “V” de Oscar Niemeyer e, sobretudo, nos pórticos estruturais seriais do MAM (Museu de Arte Moderna) do Rio de Janeiro (1953), de Affonso Eduardo Reidy, mas também se mostra importante, no campo escultórico, no modo delicado como muitas das esculturas públicas de Franz Weissmann chegam ao chão. Igualmente, no caso da Cadeira paulistano (1957), de Mendes da Rocha, podemos fazer um raciocínio semelhante. Ali, a barra cilíndrica e contínua que a estrutura, unida na base por um ponto de solda apenas, parece uma linha viva no espaço, feita de ferro, demonstrando uma afinidade essencial com as Esculturas lineares de Weissmann, também dos anos 1950.

É conhecida a admiração que Mendes da Rocha nutria pelo trabalho de Amilcar de Castro, o que o levava, por exemplo, a construir modelos de esculturas em papel inspiradas nas suas formas. Ou, também, a pedir que uma escultura sua fosse instalada como “pedra fundamental” na bela esplanada à beira-mar em Vitória, sua cidade natal, como marco inaugural da obra do Cais das Artes (2007), que projetou. Além disso, a extrema sofisticação dos guarda-corpos de ferro do MuBE - pintados com a cor “marrom barroco”, que mimetiza a coloração do aço cor-ten - revela uma afinidade estética e construtiva impressionante entre os dois. Basta reparar em como as delgadas chapas metálicas que sustentam as barras cilíndricas encontram o solo, abrindo-se ao meio e dobrando-se cada metade para um lado, como se fossem duas pernas estiradas em espacate. Portanto, mais do que uma simples admiração pelo artista oito anos mais velho, consagrado desde o final dos anos 1950 como um dos grandes expoentes do neoconcretismo, essas várias aproximações revelam, na verdade, uma enorme afinidade de princípios entre essas duas grandes figuras da arte moderna brasileira.

Das siderurgias mineiras, e do apurado cálculo das estruturas de concreto em São Paulo, emergem os trabalhos secos, despojados e radicais de Amilcar e de Paulo. Dois poetas da linguagem construtiva, cujas imaginações líricas nascem do perfeito controle da técnica, entranhado na noção modelar e virtuosa de projeto.12 Projeto que traz embutido um ethos da responsabilidade perante o esforço e a dificuldade de se cortar e dobrar chapas grandes e espessas, de se pintar telas e papeis enormes com vassouras e trinchas, e de se construir estruturas de concreto armado com enormes vãos livres. Nesse caso, tanto a oxidação das chapas quanto o tratamento bruto do concreto, no qual as marcas das fôrmas de madeira estão impressas, atestam a rugosidade de um meio social no qual a industrialização aparece menos como uma realidade de produção efetiva do que como uma baliza para a criação de relações interpessoais civilizadas.

Talvez o ponto central da afinidade técnica e poética entre Amilcar e Paulo seja a capacidade ímpar que tiveram de inventar espaços que não partem da noção de volume. Sabemos que essa foi uma questão crucial para a escultura moderna: a negação do monolito, moldado ou talhado, em prol da criação de um vazio ativo. Sabemos também o quanto a influência de Max Bill e de sua Unidade tripartida (1948-49) foi fecunda no Brasil dos anos 50, aproximando os nossos artistas das experiências das vanguardas construtivas europeias do início do século XX. Mas Amilcar de Castro radicaliza essa negação do volume monolítico construindo esculturas a partir do plano bidimensional: placas de aço parcialmente oxidável que, pelas operações de corte e dobra, se estruturam e se espacializam, tornando-se volumes problemáticos, incompletos, feitos de cheios e vazios. Weissmann, outro grande escultor neoconcreto, que foi professor de Amilcar, também construía esculturas com chapas de ferro, mas o fazia de forma mais compositiva e aditiva, pintando as peças e muitas vezes unindo-as através de parafusos e soldas. Já Amilcar, por sua vez, preferia partir do princípio oposto: a chapa única, apenas cortada e dobrada por um gesto decidido, e exposta à corrosão ambiental da ferrugem. Isto é: a unidade irredutível e viva, o material que não deixa restos.13 Uma ação que não constrói volumes, mas espaços.

No caso da arquitetura, o problema se coloca de outro modo. Apesar de decompor a edificação em seus elementos estruturantes (pilares, vigas, lajes e painéis de vedação),14 Le Corbusier mantém o volume, de origem clássica, como princípio organizador de suas obras do ponto de vista formal.15 Pensemos, por exemplo, no cubo ideal da Villa Savoye (1929), em Poissy, suspenso sobre pilotis. Com efeito, ainda que profundamente influenciada pelo mestre franco-suíço, a arquitetura moderna brasileira se afasta da tradição clássica persistente na modernidade. E sobretudo em São Paulo, como mostra Sophia Silva Telles, a arquitetura das grandes estruturas de concreto armado, derivada da engenharia, se define pelo partido estrutural, e não pelos sólidos volumétricos, configurando-se como “unidades discretas”. Assim, descrevendo as Casas gêmeas no Butantã (1964), de Paulo Mendes da Rocha, feitas de duas lajes sutilmente deslocadas por frestas de luz, ela anota: “superfícies sombrias com um perímetro iluminado. Lygia Clark teria entendido.” (TELLES, 1998)

DIFICULDADES AUTOIMPOSTAS

Carlos Drummond de Andrade escreveu que o ferro das calçadas de Itabira estava impregnado nas almas de seus habitantes.16 Mineiro de Paraisópolis, Amilcar de Castro fez do ferro o material por excelência da sua imaginação, baseada em gestos únicos e decididos, cujo sentido de irreversibilidade nasce do desenho. “A borracha não conseguia apagar completamente o traço, que era uma incisão. Era preciso desenhar o melhor possível da primeira vez”, conta o artista. E prossegue: “esse método de desenho está na origem do meu processo de corte e dobra. Foi com lápis e papel que comecei a experimentar os sulcos e dobras que iria fazer no ferro” (CASTRO, 1995, p. D4).

As esculturas de Amilcar de Castro surgem da evidência do plano para, paradoxalmente, contrariá-lo, criando vazios que instauram o espaço. Nesse sentido, a chapa de ferro opaca deixa de ser um obstáculo, como mostra Paulo Sergio Duarte (1990DUARTE, Paulo Sergio. Amilcar de Castro ou a aventura da coerência. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, vol. 3, n. 28, out. 1990, p. 152-158.), para se tornar uma espécie de porta atravessável, que convida as pessoas ao movimento, anunciando passagens fluidas. Fazendo uma analogia histórica, o crítico compara o processo que gera esses trabalhos à consciência humana surgida após as grandes navegações, quando o temor do fim do mundo imaginado no limite abismal da terra plana é contrariado pela percepção da dobra sem fim do planeta esférico, onde as coisas se conectam pelos seus avessos. Assim, as dobras que abrem o plano nas peças de Amilcar, rompendo a noção de autonomia à medida que nos incluem em seus interiores, podem ser pensadas, metaforicamente, como dobras do próprio mundo, entendendo o mundo não como clausura, mas, ao contrário, como abertura perceptiva, horizonte a ser conquistado pela arte. Significativamente, nesse sentido, já estamos próximos da conhecida máxima de Hélio Oiticica (1966OITICICA, Hélio. Programa ambiental . In Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, p. 103-105., p. 103) formulada nos anos 1960: “museu é o mundo, é a experiência cotidiana”.

Ao mesmo tempo, as esculturas de Amilcar de Castro não buscam a interação participativa com o fruidor, tal como ocorre em muitos dos trabalhos de Oiticica, de Lygia Clark e de Lygia Pape, por exemplo, seus companheiros de neoconcretismo. Ao contrário, tratam de resistência e permanência, como lembra Ronaldo Brito. Isso porque, longe de diluir-se num fluxo de estímulos estéticos, a escultura de Amilcar se deseja um sólido poema plástico. “Nada de culto à velocidade perceptiva, à interação participativa; esta é uma escultura que se demora sobre a gravidade ética do movimento, como se houvesse muito o que pensar antes de liberá-lo” (BRITO, 2001, p. 38-39). Daí que toda ideia de movimento que está presente em seus trabalhos escultóricos, suposta no deslocamento das pessoas ao redor das peças, carregue necessariamente uma dimensão de demora, equivalente à enorme força de inércia dessas esculturas pesadíssimas.

Diferentemente dos trabalhos do norte-americano Richard Serra, cujas espessas chapas de aço cor-ten, em geral muito maiores, são dobradas e curvadas em estaleiros navais, as esculturas de Amilcar de Castro espelham uma realidade brasileira na qual a indústria está ainda muito próxima da artesanalidade. Nesse sentido, como conta Allen Roscoe (2021ROSCOE, ALLEN. Espetáculo, simples e forte, entrevista com Allen Roscoe. In WISNIK, Guilherme; CASTRO, Rodrigo de (orgs.). Na dobra do mundo: Amilcar de Castro no MuBE de Paulo Mendes da Rocha. São Paulo: MuBE, 2021, p. 120-137., p. 120), colaborador frequente do artista mineiro, as chapas de ferro de duas polegadas, em suas esculturas, são dobradas a quente em dobradeiras manuais, gerando peças cuja escala conserva ainda, em sua maioria, uma relação com o corpo humano. Nesse sentido, é muito sagaz a observação de Nuno Ramos (2007RAMOS, Nuno. O ferro futuro (Amilcar de Castro). In Ensaio geral: projetos, roteiros, ensaios, memória. São Paulo: Globo, 2007, p. 167., p. 167) acerca dos trabalhos de Amilcar: “o corte e a dobra em suas peças têm uma ‘demora’ avessa ao pragmatismo e ao tempo da indústria (...). Assim, o aspecto projetual, típico das linguagens construtivas, com sua ambígua mistura de autonomia e inserção nos processos industriais, acaba por ceder à modorra do peso, da rebarba do ferro e, quem sabe, a um aqui-agora arraigadamente mineiro”.

Os grupos concreto e neoconcreto se estabeleceram no Brasil, na década de 50, como herdeiros do construtivismo vanguardista europeu, no contexto de um país que se industrializava e se urbanizava de forma acelerada. O país tinha sua arquitetura moderna reconhecida mundialmente, o que estimulava a infiltração do racionalismo construtivo em seu meio artístico, de modo a integrar as artes ao design sob o mantra ecumênico da “síntese das artes” (cf. WISNIK, 2015). Tudo isso patrocinado pela ideologia desenvolvimentista de um governo que construía uma capital inteiramente nova e moderna no Planalto Central, procurando integrar economicamente as amplas vastidões continentais do país. O Plano de Metas projetava um crescimento de 50 anos em cinco, figurando a miragem de que em pouco tempo saltaríamos sobre o nosso atraso - colonial, subdesenvolvido -, equiparando-nos aos países centrais.

Nesse momento de grande otimismo das artes no Brasil, pensava-se em construir um futuro radioso, universalista, por meio de formas e relações objetivas e racionais que impregnassem esteticamente a vida e pudessem funcionar como antídotos às mazelas históricas de um país que foi colonizado e que se formou historicamente sobre a exploração do trabalho escravo e a criação de uma desigualdade social estrutural. Mas se o modo de enfrentamento dessas questões, pelo concretismo, revelava na verdade uma integração acrítica ao capitalismo periférico, o neoconcretismo recuperava uma certa subjetividade experimental, duvidando, de certa forma, daquela fetichização dos processos técnicos. Essa maior atenção aos paradoxos do desenvolvimentismo deu aos trabalhos de Amilcar de Castro um componente que o distingue de uma parte expressiva do construtivismo brasileiro - a problematização daquele idealismo racional, que se mostra na afirmação bruta do peso das chapas de aço e na aspereza de sua constituição ferruginosa, oxidável. Isso porque, nas ásperas peças de Amilcar, a ideia moderna de uma construção cristalina e exteriorizada, tal como vemos nas esculturas de artistas que foram referências para os brasileiros, como Alexander Calder, Constantin Brancusi e Max Bill, por exemplo, é revertida “em potência guardada, entranhada no peso da chapa, cheia de humores e de ferrugem” (RAMOS, 2007, p. 166). Assim, se muitos dos artistas da sua geração, no Brasil, miravam generosamente o futuro, “o olhar arqueológico de Amilcar” se voltava para a frente e para trás simultaneamente, com a consciência dúbia de alguém que avança com “os pés enterrados” (RAMOS, 2007, p. 167).

Essa poderosa imagem, feita por Nuno Ramos, dialoga de perto com os argumentos do texto seminal de Rodrigo Naves sobre a obra do artista mineiro. Como nota muito bem Naves, as esculturas e os desenhos17 de Amilcar de Castro se estruturam sobre um forte entranhamento conflituoso entre dois polos: a clareza geométrica, racional e modelar, por um lado, e a presença ostensiva do ferro e da ferrugem, aliada ao aspecto áspero e seco das tintas muito pouco líquidas, por outro. Isto é, seus trabalhos demonstram uma concatenação ímpar e poderosa entre a transparência das formas geométricas, guiada pela idealidade de uma vontade de ordenação construtiva, e a opacidade da matéria resistente: o ferro e a tinta espessa. Essa resistência, nos desenhos, se realiza por meio do grande formato tanto das telas quanto dos papeis e da substituição dos pinceis por vassouras e trinchas, manuseadas pelo corpo como um todo, e não pelos punhos do pintor ou desenhista, tradicionalmente mais obedientes aos comandos racionais do cérebro. Segundo Naves (2011NAVES, Rodrigo. Da dificuldade de forma à forma difícil. In A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Companhia das Letras , 2011, p. 15-41., p. 237): “se essas obras supõem e solicitam uma percepção altamente estruturante, não lhes corresponde uma matéria indolente e disponível, à espera de um olhar ativo que a organize”, pois, prossegue o autor, existe nelas uma relutância que é, obviamente, muito mais que o resultado de um fazer canhestro: “Nas esculturas e desenhos, Amilcar de Castro se impõe uma dificuldade extremamente produtiva, ressaltando também o que há de problemático no universalismo construtivista”.

A questão central, aqui, é a dificuldade fundamental que os seus trabalhos nos colocam em relação à possibilidade de enquadrá-los como decididamente claros, construtivos e ordenadores, já que trazem em sua consistência extremamente corpórea todo o travo de arcaísmos históricos e geológicos que emperram a ortodoxia racional e algo ingênua do construtivismo europeu transplantado para o Brasil da segunda metade do século XX. Daí a consistência brutamente ferruginosa de suas esculturas: minérios violentamente extraídos das entranhas do planeta e que, uma vez acordados do seu “sono rancoroso” (em referência a um verso de Drummond18), se armam de uma grande tensão estrutural, como que a evidenciar “o empenho exigido para retirar as coisas do repouso” (NAVES, 2011, p. 241). Nesse sentido, prossegue Rodrigo Naves, nos trabalhos de Amilcar de Castro, “o otimismo construtivista precisa conviver com um lastro possante - um passado que impossibilita agenciamentos abruptos e turva a leveza do primeiro dia” -, pois, com a ferrugem, é toda uma herança colonial que vem à tona. Assim, “sobre a clareza formal dessas peças, sobre o frescor de articulações tão límpidas pesa a lembrança de um arcaísmo social que não se pode reverter apenas com estruturas complexas e relações decididas” (NAVES, 2011, p. 240-241). Definição que descreve muito bem, também, a assertividade crítica da arquitetura de Paulo Mendes da Rocha.

Em resumo, a poética plástica de Amilcar, fundada numa aguda intuição dos impasses históricos vividos pela sociedade brasileira em seu processo de modernização, cria mecanismos para contrariar, de certa forma, a clareza construtiva do iluminismo moderno na periferia do capitalismo. Tanto com esculturas feitas de matéria viva, que sofrem a corrosão constante do ambiente e do tempo, expandindo-se e contraindo-se sob a ação do sol e da chuva, quanto com desenhos feitos de uma energia expressiva e corpórea muito singular. São enormes manchas negras, cuja fatura algo descontrolada tempera a contenção do construtivismo geométrico - o que não quer dizer que sejam impulsivas ou expressionistas. Muito ao contrário, como bem notou Luiz Renato Martins, são guiadas pela mesma vontade mestra e disciplinada que comanda todo o seu trabalho, construindo massas densas e ralas nos traçados retos e diagonais, feitos ritmicamente com vassouras e escovões sobre papeis e telas estendidos no chão. É um trabalho físico, realizado com os dois braços, e aparentado ao dos pintores de parede, dos faxineiros e dos operários da construção civil. “Amilcar desenhista”, anota o crítico, “traça e deixa vestígios, como quem - ao volante de um trator - deixa marcas de pneus em chãos submetidos à terraplanagem” (MARTINS, 2021b).

FRAGMENTOS NÃO OBJETUAIS

Com o passar das décadas, as esculturas de Amilcar de Castro foram ganhando, cada vez mais, uma clara vocação pública, à medida que novas encomendas chegavam e que o avanço técnico da siderurgia em Minas permitia um aumento da escala das peças. Uma obra-chave nessa história é a escultura sem título instalada na Praça da Sé em 1978, integrando um programa de arte pública na cidade de São Paulo associado às obras do metrô. Partindo de uma chapa quadrada de 4,50 metros de lado, e por meio de um corte semicircular e uma dobra ortogonal, o artista criou um portal vazado, que permite francos atravessamentos em uma área de grande circulação de pessoas. Metáfora, talvez, de um momento em que importantes manifestações de rua e greves operárias na Grande São Paulo começavam a abrir a clausura da repressão ditatorial em busca de uma retomada democrática, como bem percebeu, mais uma vez, Luiz Renato Martins (2021MARTINS, Luiz Renato. Amilcar de Castro no MuBE (parte II). A terra é redonda, 5 jul. 2021b. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/amilcar-de-castro-no-mube/?utm_term=2021-07-05&doing_wp_cron=1627478052.8173820972442626953125. Acesso em: 3 dez. 2022.
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a).

Daí em diante, podemos dizer que muitas das esculturas de Amilcar de Castro solicitam uma implantação em espaço aberto, em diálogo com as praças e calçadas das cidades. Nesse sentido, foi muito auspicioso o encontro entre essas esculturas e o espaço expositivo do MuBE na grande mostra dos trabalhos do artista mineiro em 2021, que tive a felicidade de organizar em parceria com Rodrigo de Castro.19 Isso porque o espaço do MuBE parecia aguardar há anos por uma exposição de peças como essas, que interagem intensamente com o ambiente e tensionam a sua horizontalidade - sobretudo no caso da totêmica escultura feita para Uberaba, com altura de 18 metros. Há, aqui, um importante encontro de princípios e propósitos no que se refere à afirmação do espaço público por meio da arte. No MuBE, Mendes da Rocha construiu uma esplanada aberta e parcialmente coberta por uma viga com um vão imenso, em situação que guarda semelhanças com o MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 1957-68), de Lina Bo Bardi, um dos maiores paradigmas de espaço público com importância política no Brasil. Em que pese a presença das grades, que infelizmente obstaculizam a relação mais franca da esplanada com o entorno urbano do museu, o edifício do MuBE é um evidente manifesto à favor do espaço público na polis contemporânea - pedra de toque no discurso verbal e construído do arquiteto.20

Como vimos, a grande viga-marquise do MuBE, com sua poética enigmática e excessiva, demarca, a meu ver, um ponto de inflexão histórico em relação à didática estrutural da Escola Paulista de arquitetura, iniciada por Vilanova Artigas no final dos anos 50. Não à toa, o momento do concurso de projetos para o museu coincide tanto com a volta à democracia no Brasil quanto com a morte de Artigas, ambas ocorridas um ano antes, em 1985. Levado assim a ocupar, conscientemente ou não, um lugar de protagonismo na cena arquitetônica de um país em mudança, Mendes da Rocha sinaliza a existência do museu através de uma grande peça pétrea horizontal que parece flutuar sobre o terreno. É o que permite considerá-la, como observa liricamente o arquiteto, uma “pedra no céu” (cf. ROCHA, 1989),21 em alusão ao quadro Les idées claires (1955), de René Magritte, que lhe serviu de inspiração.

Paulo Mendes da Rocha não gostava muito das fotografias em que a viga-marquise do MuBE aparece inteira, vista de ponta a ponta. Não lhe agradava a leitura demasiadamente objetual dessa peça arquitetônica - uma espécie de Stonehenge de vão infinito, na era do concreto protendido. Compreensivelmente, ele preferia as vistas em que a viga aparece cortada, percebida apenas parcialmente, de forma fragmentária, já que, como os dois apoios distam 60 metros um do outro, nossos olhos muitas vezes não são capazes de captá-los em uma mesma mirada. Vem daí tanto a imagem poética da “pedra no céu”, já referida, quanto o sentido de alguns dos croquis do museu feitos pelo arquiteto, em que a inteireza da viga é cortada pela presença de grandes esculturas em primeiro plano, ou então, ao contrário, onde a visão da peça escultórica é em parte obstruída pela presença massiva da viga. Ambas situações que acontecem de forma muito potente no diálogo fortíssimo que se dá entre as esculturas de Amilcar de Castro, predominantemente verticais, e a forte horizontalidade da marquise do museu.

Amilcar e Paulo nunca submetem a matéria sem considerar em profundidade a sua resistência, como vimos. Ao contrário, trabalham-na num jogo de negociação permanente. Daí a ferrugem do aço e a presença afirmada das massas - escultóricas, pictóricas e arquitetônicas - a nos lembrar sempre do esforço e do custo que há em se traçar e se dobrar o corpo do mundo nas direções que desejamos. Afirmação poética do peso, que a marquise do MuBE também representa, à medida que comprime a esplanada, criando uma alternância entre a monumentalidade da praça de entrada, junto à Rua Alemanha, e uma inusitada escala doméstica junto à Av. Europa, sob um pé-direito de apenas 2,40 metros, onde a esfera pública se mostra íntima.

A “vontade construtiva” que mobiliza os trabalhos de Amilcar de Castro e de Paulo Mendes da Rocha é radical, e procura se opor aos costumes patrimonialistas de uma sociedade que trata os assuntos públicos por meio de relações pessoais. Na severidade do preto e branco dos desenhos, do ocre ferruginoso das esculturas e do cinza do concreto não há concessões sentimentais ou cordiais. Sóbrias e desafiadoras, as respostas dos dois artistas se baseiam no conceito virtuoso de projeto. Um projeto entendido como afirmação de desejos que se realizam em conformidade com a técnica e a matéria, figurando, assim, a ideia de uma sociedade capaz de planejar seu futuro e medir as consequências dos seus atos, responsabilizando-se por eles. Algo que, no Brasil de hoje, volta a ter um urgente significado.

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  • ROSCOE, ALLEN. Espetáculo, simples e forte, entrevista com Allen Roscoe. In WISNIK, Guilherme; CASTRO, Rodrigo de (orgs.). Na dobra do mundo: Amilcar de Castro no MuBE de Paulo Mendes da Rocha. São Paulo: MuBE, 2021, p. 120-137.
  • ROWE, Colin. The Mathematics of the Ideal Villa: Palladio and Le Corbusier Compared. The Architectural Review, n. 101, mar. 1947, p. 101-104.
  • SCULLY Jr., VINCENT. Arquitetura moderna: a arquitetura da democracia. São Paulo: Cosac Naify , 2002.
  • TELLES, Sophia Silva. O desenho: forma e imagem. Arquitetura e Urbanismo - AU, São Paulo, n. 55, 1994, p. 91-95.
  • TELLES, Sophia Silva. A arquitetura como ação. Folha de S. Paulo, Jornal de Resenhas, 9 mai. 1998.
  • VELOSO, Caetano. Diferentemente dos americanos do norte, In O mundo não é chato. São Paulo: Companhia das Letras , 2005, p. 42-73.
  • WISNIK, Guilherme; WISNIK, José Miguel; NIKITIN, Vadim. Polis cósmica e caótica: cosmopolitismo em Caetano Veloso. Caramelo, São Paulo, n. 7, GFAU, 1994, p. 78-93.
  • WISNIK, Guilherme. Oscar Niemeyer: intuição trágica e repouso In Estado crítico: à deriva nas cidades. São Paulo: Publifolha, 2009, p. 180-185.
  • WISNIK, Guilherme. Prefácio. In Mário Pedrosa: Arquitetura: ensaios críticos / Organização, prefácio e notas de Guilherme Wisnik . São Paulo: Cosac Naify , 2015, p. 7-28.
  • 1
    . Dentre os artistas que participaram da Semana de Arte Moderna em 1922, apenas dois eram arquitetos, e seguiam uma orientação neocolonial: o polonês Georg Przyrembel (1885-1956) e o espanhol Antonio Garcia Moya (1891-1949).
  • 2
    . Verso da canção “Paisagem útil” (1967), de Caetano Veloso, que faz o elogio paródico dessa artificialidade na qual desponta a “lua oval da Esso”. “Como é dito no primeiro verso da canção, os olhos se abrem em vento, incorporando a nova onda de um mundo onde a aurora ‘sempre nascendo’ na luz artificial é o olho sem pálpebra da Brasília lispectoriana, o mundo sem ciclo, o antiolhar do luar do sertão”. (WISNIK; WISNIK; NIKITIN, 1994, p. 83)
  • 3
    . Entrevista publicada originalmente na revista Imagem urbana, Vitória, n. 1, dez. 1998.
  • 4
    . Scully situa o início desse processo no iluminismo geométrico de Ledoux e Boulée, utilizando-se de um conceito de autonomia que remonta a Kant, a partir de Emil Kaufmann. Cf. Damisch (1982). Aliás, o conceito de autonomia, derivado de Kant, é uma matriz explicativa fundamental acerca do modernismo estético de modo amplo. Cf. Greenberg (1996).
  • 5
    . Retomo, a seguir, alguns dos argumentos desenvolvidos por mim em “Oscar Niemeyer: intuição trágica e repouso” (WISNIK, 2009).
  • 6
    . “O Brasil é um país de contrastes (...). Apesar disso, o prodígio da arquitetura brasileira floresce como uma planta tropical. As indústrias siderúrgica e de cimento no Brasil são pouco expressivas; no entanto, os arranha-céus brotam por toda parte. Há qualquer coisa de irracional no desenvolvimento da arquitetura brasileira. Em comparação com os Estados Unidos, com sua sequência de grandes precursores a partir de 1880 - Richardson, Louis Sullivan, F. L. Wright -, o Brasil está encontrando sua expressão arquitetônica própria com uma rapidez surpreendente.” (GIEDION, 1999, p. 17, grifo meu)
  • 7
    . Para Le Corbusier (2004, p. 229, grifo meu), a arquitetura é uma partida “‘afirmação-homem’ contra ou com ‘presença-natureza’”.
  • 8
    . “O otimismo da bossa nova é o otimismo que parece inocente de tão sábio: nele estão - resolvidos provisória mas satisfatoriamente - todos os males do mundo. De tal otimismo podemos dizer, lembrando Nietzsche mesmo, que é trágico.” (VELOSO, 2005, p. 50)
  • 9
    . Além de Vilanova Artigas, podem ser citados nesse grupo arquitetos como Paulo Mendes da Rocha, Joaquim Guedes, Carlos Millan, Fábio Penteado, Pedro Paulo Saraiva, Abrahão Sanovicz, Jon Maitrejean, Ruy Ohtake, Giancarlo Gasperini, Marcello Fragelli, Décio Tozzi, Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèbvre, João Walter Toscano e, de certa forma, Lina Bo Bardi.
  • 10
    . Membro fundador da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo em 1948, Artigas sempre foi um profissional que se dividiu entre a prática do ateliê e a vida universitária, discutindo e batalhando de forma sempre empenhada por questões curriculares.
  • 11
    . A não percepção dessa diferença alimenta enganos de leitura que se perpetuam até hoje, por exemplo, nas leituras “regionalistas” ou low-tech da obra de Paulo Mendes da Rocha, surgidas por ocasião do prêmio Pritzker recebido por ele em 2006.
  • 12
    . “É impossível pensar em transformações formais se não se sabe como realizá-las. Raciocina-se com a engenhosidade possível, não se pensa com formas autônomas ou independentes de uma visão fabril delas mesmas”. (ROCHA, 2000, p. 71-72)
  • 13
    . “O não-objeto não é um antiobjeto mas um objeto especial em que se pretende realizada a síntese de experiências sensoriais e mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, integralmente perceptível, que se dá à percepção sem deixar resto”. (GULLAR, 1977GULLAR, Ferreira. Lições de Arquitetura. In Toda poesia (1950-1999). Rio de Janeiro: José Olympio, 2001, p. 301., p. 85) O texto foi originalmente publicado no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil em 1959.
  • 14
    . Esquema didático exposto pela primeira vez no projeto-protótipo da Maison Dom-Ino (1914-1917).
  • 15
    . Daí o recurso compositivo aos estudos de fachada e de planta por meio da seção áurea, por exemplo. Cf. Rowe (1947).
  • 16
    . No poema “Confidência do Itabirano”, publicado em Sentimento do mundo, de 1940.
  • 17
    . Amilcar de Castro chamava suas obras sobre tela de desenhos, e não de pinturas, para que não se procurasse nelas valores propriamente pictóricos.
  • 18
    . Retirado do poema “A máquina do mundo”, de Claro enigma, publicado em 1951.
  • 19
    . “Amilcar de Castro: na dobra do mundo”, ocorrida no MuBE em 2021, com curadoria minha e de Rodrigo de Castro.
  • 20
    . “Para um arquiteto, principalmente, a ideia de espaço implica a noção de público. Não existe espaço privado. Nem a nossa mente é um espaço privado. Nós sempre publicamos o que pensamos, senão não pensamos nada. Nós estamos condenados a uma relação dialógica entre ideia e coisa. Se você não produz uma coisa, sua ideia não aparece, não existe”. Paulo Mendes da Rocha, em depoimento a Guilherme Wisnik por ocasião da 10ª Bienal de Arquitetura de São Paulo, 2013.
  • 21
    . Ver a aula do arquiteto em fevereiro de 1989 na FAUUSP, gravada pelo VideoFau, e intitulada “MuBE 02: concepção arquitetônica”. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=bZ4ZN3kqOGQ À propósito, em 2017, o MuBE realizou a exposição “Pedra no céu: arte e arquitetura de Paulo Mendes da Rocha”, com curadoria minha e de Cauê Alves.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Out 2022
  • Aceito
    17 Nov 2022
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