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A SEMANA DE CEM ANOS* * Este texto foi apresentado no ciclo de encontros “1922: modernismos em debate”, promovido pelo Instituto Moreira Salles (IMS), em São Paulo, no dia 29 de março de 2021.

THE ONE-HUNDREAD YEARS WEEK

LA SEMANA DE CIEN AÑOS

RESUMO

Às vésperas de seu centenário, a Semana de Arte Moderna, ocorrida em fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo, se torna definitivamente uma efeméride nacional. A história dessa consagração, porém, é tortuosa e escrita por diferentes frentes de ação. Quase cem anos depois do evento - narrado pela sua fortuna crítica como, paradoxalmente, origem e destino da arte brasileira no século XX - sua força centrípeta paulistana e seu corte de classe colocam o arquivo modernista frente a novas perguntas e respostas sobre os impasses do Brasil contemporâneo. O artigo apresenta outros momentos em que o modernismo é questionado em sua excessiva “força fatal” e como, mesmo assim, se estabelece enquanto possibilidade transformadora de refletirmos sobre o país.

PALAVRAS-CHAVE:
Modernismo; Semana de Arte Moderna; Memória, História

ABSTRACT

Approaching its centenary, the Brazilian modernist event Semana de Arte Moderna, which took place in February 1922 in São Paulo, is about to unequivocally become a milestone. The story of its consecration, though, is tortuous and written through different lines of action. Almost a hundred years after the event, paradoxically defined by critics as origin and destiny of 20th Century Brazilian Art, its centralizing force as a phenomenon restricted to São Paulo and its social basis pose the modernist archive new questions and answers on the deadlocks of contemporary Brazil. This article presents other moments that have challenged the excessive “fatal force” of modernism and how, nonetheless, it can still constitute a transformative possibility to reflect upon the country.

KEYWORDS:
Modernism; Semana de Arte Moderna; Memory; History

RESUMEN

A punto de su centenario, la Semana de Arte Moderna, ocurrida en febrero de 1922 en São Paulo, se vuelve definitivamente una efeméride nacional. Sin embargo, la historia de su consagración es tortuosa y escrita por distintas líneas de acción. Casi cien años después del evento - narrado en la fortuna critica cómo, paradojalmente, origen y destino del arte brasileño del siglo XX -, su fuerza centrípeta cómo fenómeno restricto a São Paulo y su corte de clase plantean a lo archivo modernista nuevas preguntas y respuestas sobre los impases del Brasil contemporáneo. Este artículo presenta otros momentos en que el modernismo es cuestionado en su excesiva “fuerza fatal” y cómo aun así se establece en cuanto posibilidad transformadora de reflexionar sobre el país.

PALABRAS CLAVE:
Modernismo; Semana de Arte Moderna; Memoria; Historia

“Aliás, é cousa que se defenda uma perplexidade”?

Mário de Andrade, “Da fadiga intelectual”, Revista do Brasil, 1924ANDRADE, Mário. Da fadiga intellectual. Revista do Brasil, vol. 26, n. 102, ano 8 (jun. 1924), pp. 113-121.

O que proponho a seguir é um exercício especulativo, breve e específico, sobre os muitos prismas que o título propõe. Em 2012, escrevi um livro sobre a comemoração dos noventa anos da Semana de Arte Moderna, porém com um recorte bem restrito que me será útil neste texto - isto é, apresentar as formas que uma “narrativa épica” foi construída ao redor do tema do Modernismo (COELHO, 2012COELHO, Frederico. A Semana sem fim: celebrações e memória da Semana de Arte Moderna de 1922. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012. ). A partir da Semana, a recepção nas décadas que se seguiram a 1922 fizeram do movimento uma história de nascimento, ascensão, queda e retorno permanente de um herói.

Aqui, mais do que mostrar uma narrativa subjacente a essa recepção crítica e jornalística ao longo de cem anos, partirei desse viés centenário para apontar como o fato de comemorarmos com questões contemporâneas a Semana e o modernismo de matriz paulista nos cria uma armadilha, ou melhor, um paradoxo que já anuncio: ao mesmo tempo que o evento do Teatro Municipal proclama uma origem em um local específico e com nomes determinados por documentações da época, o desdobramento do que ali ocorreu inventa aos poucos uma ideia de Brasil que será a base para que possamos deslocar São Paulo como o único espaço moderno que rompeu com a tradição local e se afiliou às correntes de vanguarda e demais rupturas que ocorriam no mundo. Ou seja, ao mesmo tempo que a centralidade do modernismo paulista apagou os demais modernismos brasileiros, talvez só possamos pensar nesses outros modernismos porque o modelo paulista se espraiou como vetor histórico e estético sobre os demais espaços modernos ao redor do país.

Indo direto ao ponto que dá o tom das comemorações que surgem no horizonte, é preciso rever as histórias ligadas à Semana de Arte Moderna de 1922. Nesse exercício crítico fundamental, três eixos se tornam basilares nessa revisão centenária: as transformações teóricas, estéticas e, por que não, políticas que o país atravessou e, principalmente, atravessa neste momento; a limitação da amostragem do que se poderia ver, já àquela altura, como arte moderna; e a alegada excessiva centralidade paulista em prol de uma série de acontecimentos modernos simultâneos ao redor do país. Esses três pontos têm, como nó górdio, uma aceitação tácita daquilo que precisa ser desmontado, isto é, a referência ao evento ocorrido nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro no Teatro Municipal como origem. Se pudermos jogar com as palavras, essa referência se torna um espaço de tensão em que reverência e resistência configuram dois polos extremos de ação.

De fato, o que se pede nestas revisões é que possamos, de alguma forma, nos deslocar desse mito de origem da arte moderna brasileira (mito, aliás, já desmontado por estudiosos das cenas artísticas do final de século XIX e início do século XX) em prol de uma leitura que o escove a contrapelo, para ficarmos na famosa frase de Walter Benjamin (2012BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In BARRENTO, João (org. e trad.). Walter Benjamin - o anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, pp. 7-20., p. 7) em “Sobre o conceito de história”. Apesar do filósofo e crítico alemão - contemporâneo da Semana e do Modernismo brasileiro - fazer em seu texto uma defesa específica do materialismo histórico, podemos partir de duas concepções ali presentes para sintetizar o gesto que aqui iniciamos: a primeira, de que a história “é objeto de uma construção cujo lugar é constituído não por um tempo vazio homogêneo, mas por um tempo preenchido pelo Agora” (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In BARRENTO, João (org. e trad.). Walter Benjamin - o anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, pp. 7-20., p. 18). Já a segunda, é a de que “a crítica da ideia historicista de progressão deve ser a base da crítica da própria ideia de progresso” (Ibidem, p. 17).

Esses trechos se tornam atrativos ao exercício aqui proposto se assumirmos que a Semana de Arte Moderna ainda pulsa em nosso imaginário nacional justamente pelo seu excessivo caráter histórico de fundação, origem, começo, início, e por sua inexorável qualidade de progressão - a ruptura que instaura o novo rumo aos avanços permanentes das artes brasileiras. Ela define um pré e um pós, ela demarca influências e deflagra dissidências. Trata-se da instituição de um evento cujas dimensões transcendem os dias de espetáculo, os nomes envolvidos, as obras expostas ou até mesmo a qualidade de “moderno” ali em jogo. Ela está ainda viva e incômoda porque não cessamos de preencher seu infinito arquivo com as demandas de um tempo prenhe de Agora. Ela também permanece em debate porque sua marca enquanto um divisor de águas a devolve sempre a essa espécie de progressão que precisa ser criticada na própria ideia de progresso nela embutida. Afinal, que futuro brasileiro semearam os modernistas? Mário de Andrade, já em 1940, defendendo o movimento de que participara - ou defendendo apenas a si mesmo -, recorre a imagens sonoras e luminosas para dar a ideia de que o tempo seria decisivo na apreensão de um legado:

O Modernismo foi um toque de alarme. Todos acordaram e viram perfeitamente a aurora no ar. A aurora continha em si todas as promessas do dia, só que ainda não era o dia. Mas é uma satisfação ver que o dia está cumprindo com grandeza e maior fecundidade, as promessas da aurora. Ficar nas eternas aurorices da infância não é saúde, é doença. E a literatura brasileira aí está, bastante sã. Adulta já? Quase adulta... (ANDRADE, 1972ANDRADE, Mário. Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972., p. 189)

Saíamos então da doença infantil em direção à saúde de uma maturidade. Como toda leitura feita a contrapelo, cabe, antes do gesto de desconstrução, sua pergunta motivadora: por que ainda vivemos a disputa ao redor da Semana e de seus espólios? Ou melhor, por que a necessidade constante de reabrirmos seus arquivos para esvaziarmos sua importância em um quase sisudo centenário? Ao vermos os ímpetos críticos ao redor do evento e de seus desdobramentos, é possível achar que se dispute mais o seu legado hoje do que nas décadas seguintes à sua realização. Trata-se, muitas vezes, de uma memória que, simultaneamente, se arraiga e se apaga, um arquivo que todos buscam ver a partir dos temas atuais, mesmo que em 1922 esse evento reivindicasse sua atualidade radical frente a um passado brasileiro.

Sem dúvida, como nos ensinam os estudiosos de arquivos, a cada época, novas respostas reinventam as perguntas, novas experiências reordenam os enunciados mobilizados a respeito de um evento como a Semana. Dessa vez, as perguntas dizem respeito tanto a uma perspectiva retrospectiva - Ainda se pode falar da Semana como evento nacional? - quanto prospectiva - O que a Semana ainda diz sobre o país e sobre nós em 2022?

De fato, o que ocorre é uma operação intrincada em que a Semana e o Modernismo se tornam faces de uma mesma moeda, apesar de não serem a mesma coisa. Separar essas duas faces é importante para que possamos apreciar cada uma delas em suas singularidades. Afinal, se o Modernismo poderia existir sem a Semana, ele não teria longevidade na nossa “tradição da ruptura” sem o evento que amarra sua história em um gesto inaugural. Assim, só estamos aqui falando da Semana por causa dos seus efeitos. Só nos referimos a uma origem do grupo modernista em 1917 (a formação do grupo dos cinco a partir da exposição de Anita Malfatti) porque ele culminou com a participação desse mesmo grupo no evento no Teatro Municipal. Não é a Semana que sustenta sua força, mas sim os seus vetores futuros de Andrades, Malfattis e Bandeiras. A Semana em si, como todo mito de fundação, torna-se uma narrativa em repetição que demarca um espaço-tempo de algo antes e além.

O que fez, portanto, com que ela ficasse cristalizada em nosso imaginário a ponto de um rapper como Emicida desejar fazer o show de lançamento do seu disco Amarelo no Municipal, ato que é verbalizado pelo músico como uma espécie de desagravo histórico à ausência da arte preta brasileira naquele palco? Provavelmente esse gesto decorre da ideia de que o Modernismo se estabelece ao longo das décadas como um evento de amplitude nacional. Reocupar o palco elitista do Teatro Municipal, fundar uma nova origem de uma outra história moderna brasileira - dessa vez, com a matriz ligada às populações fruto da diáspora escravagista - é um gesto tanto de desconstrução quanto de afirmação da centralidade desse mito de origem. Mito cuja urdidura foi fruto de um trabalho tenaz e constante por parte de alguns dos seus principais nomes - e, principalmente, por parte de seus sucessores críticos, que defendiam constantemente a importância do Modernismo para uma matriz estrutural da cultura brasileira no século XX. Podemos, inclusive, arriscar aqui a seguinte especulação: as diversas modernidades locais do país, com suas práticas culturais cosmopolitas e a série de atividades que ocorria de forma isolada em ilhas viradas para o Atlântico e o mundo, precisaram desse marco ocorrido no Teatro Municipal para olhar para si mesmas como rupturas tanto locais quanto nacionais.

Na verdade, a Semana só se torna um marco definitivo, um mito de origem, muitos anos depois de ocorrida. Para os que viviam o período, a figura de Graça Aranha era mais mobilizadora de um debate nacional do que a própria Semana, com seus jovens paulistanos sem projeção. O escritor e diplomata maranhense foi um dos destaques no Municipal com uma palestra, além de ter sido uma espécie de nome forte que avalizava a iniciativa dos jovens. Em 1924, em evento que ficou famoso, ele renunciou à sua cadeira na Academia Brasileira de Letras em prol das novas tendências estéticas que a casa se recusava a aceitar. A renúncia de Graça Aranha - que foi assunto de um texto inflamado de Gilberto Freyre em que lemos “O Brasil deve estar farto de futurismo, pois há cinquenta anos fala e ri com uma dentadura postiça por cima dos seus dentes de leite” (FREYRE, 1924FREYRE, Gilberto. Em torno de uma revolta (1924). In: SANT’ANA, Moacir Medeiros. Documentário do Modernismo. Maceió: Universidade Federal de Alagoas, 1976, pp. 12-14. apud SANT’ANA, 1976, p. 12) - foi também a senha para que os ainda chamados futuristas de São Paulo percebessem que a Semana, na verdade, se tornava aos poucos um evento mais ligado ao autor de Estética da Vida do que às suas iniciativas.

Cinco anos depois dos dias no Municipal, Tristão de Athayde1 1 Pseudônimo do crítico Alceu Amoroso Lima. , um dos principais nomes da crítica literária de então, publicava a segunda série dos seus Estudos e abria as páginas do volume com o texto “Os novos de 1927” (ATHAYDE, 1928ATHAYDE, Tristão de. Estudos - segunda série. Rio de Janeiro: Terra do Sol, 1928.). Ali, buscando situar linhas de força do “esforço moderno” que eclodira no pós-guerra (o que chama de “Momento Modernista”), Athayde diz que o modernismo que se espraiava pelo país com feições de movimento tinha origem tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo. Em um artigo do ano anterior, 1926, ele dividira o movimento - ou melhor, o impacto e a circulação das ideias modernistas que estavam em movimento pelo país - entre autores ligados a um “dinamismo objetivista”, que aspiravam progressos e futuros em busca de uma equiparação com a civilização, e outros ligados a um “primitivismo”, ou seja, a uma espécie de “retorno” ao pré-civilizado. Como destaque do primeiro grupo, o crítico situa o papel basilar de Graça Aranha. Não é à toa que Mário e Oswald passam a atacá-lo publicamente logo após 1923. Naquele ano, o episódio envolvendo o último número de Klaxon, em que editores da revista, como Rubens Borba de Moraes, acusam o intelectual maranhense de praticamente coagi-los a fazer uma edição dedicada a ele e sua obra, teve em Mário o efeito de uma desconfiança: tal gesto do mais velho era a tentativa de marcar permanentemente os mais novos como seus discípulos. Também não é à toa a insistência de Mário para assumirem publicamente, já em 1922, o nome Modernismo no lugar do importado Futurismo. E também não é coincidência a expansão dos paulistas em direção a outros espaços, como a ida ao Rio de Janeiro e Minas Gerais na companhia de Blaise Cendrars. São esforços para o grupo marcar o frescor geracional que existia no país e a ampliação geográfica da experiência paulista.

Mesmo com toda essa movimentação ao redor do então batizado Modernismo, a Semana, aos poucos, vai se tornando um evento menor, já que contou com nomes que, de alguma forma, aprisionavam a iniciativa a um espaço de classe e de tradição que seus promotores iconoclastas queriam superar. O próprio Mário de Andrade, em seu relato de 1942 para a Casa do Estudante, balanço de vinte anos da Semana realizado no Palácio do Itamaraty, assume o caráter superficial do evento ao afirmar que estava cego pelo entusiasmo alheio. Mesmo na forma respeitosa com que se direciona ao que fizera no passado, ele coloca a Semana em segundo plano em relação ao Modernismo. Segundo ele, “com ou sem ela a minha vida intelectual seria o que tem sido” (ANDRADE, 1972ANDRADE, Mário. Modernismo. In ANDRADE, Mário. O Empalhador de Passarinhos. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972., p. 231).

Mesmo assim, vale lembrar que, logo no início dessa fala, Mário não deixa margem para dúvidas sobre o escopo do que ocorrera em São Paulo: “O movimento modernista foi o prenunciador, o preparador e por muitas partes o criador de um estado de espírito nacional” (Ibidem). O crítico e poeta acreditava que o movimento modernista era, de fato, na sua própria origem local, a materialização de algo muito mais amplo em curso no país. Tudo que ocorria nas demais cidades brasileiras, a despeito da Semana ter sido em São Paulo, estaria invariavelmente ligado ao Modernismo. Aqui, percebemos que, para Mário, mais do que um movimento, o Modernismo era uma movimentação nacional em curso ou, em suas famosas palavras, “uma força fatal” (Ibidem).

Ocorreram momentos, porém, em que Mário acusou o golpe quando confrontado com a afirmação acerca de uma excessiva centralização no modernismo paulista e sua suposta “origem” irradiadora de uma posterior revolução nacional. Esse tipo de olhar crítico sobre os modernistas de São Paulo não demorou a ocorrer nos anos posteriores à Semana. De alguma forma, em pouco mais de dez anos, aquilo que funcionara como ato de ruptura se transformava em uma espécie de tradição aprisionadora que precisava, novamente, ser superada. Era como se a força do modernismo produzido em São Paulo se tornasse um discurso canônico que devia ser esvaziado, desacreditado e descartado.

Aos poucos, portanto, ocorre no meio literário brasileiro um deslocamento sutil, porém, decisivo: ao invés de situar o Modernismo como espécie de dínamo constante das inovações culturais do país, as novas gerações passaram a encará-lo como história. Sai o movimento, entra o evento. Sai o futuro, entra o passado. Sai a aurora, entra a noite. Já na década de 1930, a Semana de Arte Moderna se torna arquivo morto, etapa superada. Ao remetê-la à história, esses novos escritores da década de 1930 e 1940 podem proclamar, como Peregrino Júnior, em 1947, que “O modernismo pertence hoje ao passado. Foi superado e foi quase totalmente esquecido. Não seria justo, porém, negar-lhe a significação histórica”. Trata-se, portanto, de exumar o suposto cadáver.

Não é à toa que essa abordagem histórica ocorre após o falecimento de Mário de Andrade, em 1945. A tendência - ou tentação - de associar o período cronológico do modernismo paulista ao período de atuação de Mário crescia cada vez mais dentre os novos “neomodernistas’, epíteto que Tristão de Athayde, novamente ele, tentou utilizar para classificar os escritores desse período. Se, para os paulistas de 1922, a luta era para não se tornarem na posteridade “discípulos de Graça Aranha”, para os escritores e artistas de diversas regiões do país, era o momento de não aceitarem o papel de meros seguidores do grupo paulistano. Ao acompanharmos os debates daquelas duas décadas após a Semana, constatamos que sua desconstrução já teve tons até mais radicais do que os reivindicados atualmente.

Essa resistência à acusação de centralidade excessiva dos paulistas aparece, por exemplo, na resposta de Mário de Andrade à publicação de Estética do Modernismo, livro do escritor paraibano Ascendino Leite, lançado em 1938. Como já dito, o livro seguia a linha de diversos intelectuais fora de São Paulo que proclamavam sem medo o fim do Modernismo: eram nomes ligados à revista de matriz carioca e gaúcha Lanterna verde (como Augusto Frederico Schmidt, Renato Almeida, Ribeiro Couto, entre outros) ou à nova leva de autores da região Nordeste - como Graciliano Ramos, Ledo Ivo e o próprio Ascendino. Mais uma vez, Mário rebate a importância dada a Graça Aranha e defende o caráter de ruptura do movimento, situando-o numa breve duração de dez anos (que compreende, basicamente, a década de 1920).

Sobre as críticas que o movimento recebia, Mário afirmou que “ultimamente alguns representantes das gerações mais novas, verdadeiros recordistas do salto sem vara, se puseram a maldar do Modernismo e a se julgar inteiramente isentos de qualquer influência dessa tão próximo passado” (ANDRADE, 1972ANDRADE, Mário. Modernismo. In ANDRADE, Mário. O Empalhador de Passarinhos. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972., p. 187). Reparemos que a imagem do salto sem vara também traz um travo histórico, já que demonstra que certos intelectuais queriam afirmar-se no tempo presente pulando a etapa modernista. É em Lanterna verde, aliás, que a ideia de um “pós-modernismo” começa a circular no país. Por fim, Mário reafirma o caráter “universal” do Modernismo, confirmando seu papel de “atualização das artes brasileiras” e o colocando-o como “um trabalho pragmatista, preparador e provocador de um espírito inexistente então, de caráter revolucionário e libertário” (ANDRADE, 1972ANDRADE, Mário. Modernismo. In ANDRADE, Mário. O Empalhador de Passarinhos. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972., p. 188).

Em um resumo muito sintético, ao longo das décadas que faziam da Semana uma efeméride, as reações do meio literário sempre foram dúbias. A partir de 1942, ela aparece como assunto para algum tipo de reflexão - e mesmo assim, em boa parte negativa, a ponto de produzirem uma enquete no jornal literário Dom Casmurro com a pergunta “O Modernismo morreu?”; proposta, aliás, confirmada pela maioria dos entrevistados. Em 1952, ela surge em meio a questionamentos sobre sua real importância, e como anedota emblemática; Manuel Bandeira pede a um jornalista para não o incomodarem mais com esse tema - a não ser quando chegasse o seu centenário (COELHO, 2012COELHO, Frederico. A Semana sem fim: celebrações e memória da Semana de Arte Moderna de 1922. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012. , p. 89).

Ao mesmo tempo, a Semana seguia crescendo como ponto de inflexão incontornável no campo cultural do país. Só em 1972, porém, ela se estabelece como um evento histórico de caráter nacional, que precisa ser incorporado às datas oficiais brasileiras. Seu cinquentenário é tratado pelo governo civil-militar de Médici como grande marco comemorativo, com publicações alentadas e exposições nacionais e internacionais. A imprensa começa a fazer detalhados cadernos especiais, inimigos da Semana aparecem como detratores que “denunciam mentiras” e desfazem o mito e tanto participantes ainda vivos como especialistas passam a escrever textos e conceder entrevistas sobre o evento.

Durante a longa construção dessa narrativa, arrisco dizer que a dimensão nacional sempre esteve presente, desde os primeiros passos ocorridos nos salões da aristocracia paulistana. Mário sempre falou dessa perspectiva, mesmo que defendesse São Paulo como espaço que reunia condições perfeitas para uma manifestação como a Semana. A percepção posterior e crescente de que a centralidade da experiência paulistana conduzia os rumos da história do modernismo brasileiro foi reforçada não por seus participantes, mas sim pela ação sistemática de uma crítica universitária que privilegiou os arquivos dessa geração e sua produtividade intelectual e política. Basta acessarmos o ensaio definitivo de Antonio Candido, “Literatura e Cultura - de 1900 a 1945 (panorama para estrangeiros)”, escrito em 1953, para lermos frases como “A Semana de Arte Moderna foi realmente o catalisador da nova literatura, coordenando, graças ao seu dinamismo e à ousadia de alguns protagonistas, as tendências mais vivas e capazes de renovação, na poesia, no ensaio, na música, nas artes plásticas” (CANDIDO, 2010CANDIDO, Antonio. Literatura e Cultura - 1900 a 1945. 11ª ed. In CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: Estudos de Teoria e História Literária. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010, pp. 117-146., p. 125, grifo meu) ou “Parece que o Modernismo (tomado o conceito no sentido amplo de movimento de ideias, e não apenas das letras) corresponde à tendência mais autêntica da arte e do pensamento brasileiro” (Ibidem).

O mesmo arquivo que expõe os limites do modernismo de matriz paulista em relação a uma série de outras manifestações contemporâneas pelo país também permite que se delineie a rede modernista que aos poucos constituiu uma dimensão nacional do que ocorrera após a Semana. Um dos seus vetores de nacionalização foi, por exemplo, as inúmeras cartas de Mário de Andrade para escritores do Rio Grande do Norte, do Rio de Janeiro, de Pernambuco de Minas Gerais. Há, também, o avanço dos autores radicados em São Paulo em direção aos temas de outras regiões, temas amazônicos, caipiras, ameríndios, africanos, nordestinos. Em abril de 1922, Raul Bopp escrevia sobre poetas maranhenses no jornal local A Pacotilha. Em 1924, o pernambucano Joaquim Inojosa publicava a carta “Arte Moderna” na revista Paraibana Era Nova, já incorporando a Semana de Arte Moderna de 1922 como “o primeiro grito atroador do Credo Novo em plagas brasílicas” (INOJOSA, 2012INOJOSA, Joaquim. A Arte Moderna (1924). In: DINIZ, Clarissa, HEITOR, Gleyce Kelli e SOARES, Paulo Marcondes (org.). Crítica de Arte em Pernambuco - Escritos do Século XX. Rio de Janeiro: Azougue Editoral, 2012, pp.38., p. 38). O autor tinha visitado São Paulo e recolhido uma série de experiências literárias e revistas que confirmavam aquilo que ele já via ocorrendo de forma esporádica em Recife, João Pessoa, Belém e outras capitais do Nordeste. As revistas modernistas surgiram, ainda na década de 1920, em Salvador (Arco e Flexa), Fortaleza (Maracajá), Cataguases (a famosa Verde) ou em Porto Alegre (Madrugada). O signo histórico e diacrônico do “novo” como traço antepassadista era a cola estética entre todas as manifestações.

Ainda na expansão desse raio de ação do grupo de 22, é em 1924 que, ao lado do poeta franco-suíço de um braço só e eterno cigarro na boca Blaise Cendrars, a missão paulista visita o carnaval carioca e as cidades barrocas de Minas, colaborando com a articulação das cenas literárias do Sudeste. Nesse sentido, afirmar desde já que o Modernismo pregou uma espécie de hierarquia nacional, ou que se propôs de forma estratégica e exclusiva como origem organizada de algo maior que suas próprias fronteiras locais, pode ser uma armadilha, já que não só reifica o espaço de fundação única da Semana como apaga as premissas nacionais de gestos criativos feito por alguns de seus principais participantes. Com isso, não se quer aqui recusar o reducionismo que muitas vezes o tema apresenta, mas vale sempre pensarmos se foram os agentes do momento ou as narrativas de futuros que cristalizaram a situação sobre a qual, agora, nos debruçamos de forma crítica e necessária.

Talvez o que estejamos iniciando vá além de um debate sobre a imensa sombra que o modernismo paulistano decorrente da Semana de Arte Moderna criou em cima das muitas rupturas modernistas que ocorriam em diversas regiões do país. Uma sombra que secundariza tais experiências ao colocá-las como meros resultados locais de um evento distante sem aspirações nacionais. O que proponho pensarmos, como especulação, é: como esses diversos modernismos ao redor do Brasil seriam lidos sem o evento catalisador (para ficarmos com o termo de Antonio Candido) da Semana? Como eles seriam articulados sem uma espécie de mito fundacional que organiza uma narrativa histórica, que centraliza e distribui ao redor do país uma espécie de corte seco necessário com o passado? Como podemos entender os limites de um legado inventado (como, aliás, qualquer tradição) sem diminuirmos a importância, mesmo temporária e residual, que seus contemporâneos viram naquele ato de ruptura, quase ingênuo e epidérmico aos olhos de hoje?

Sabemos que muitas outras origens de uma era modernista no Brasil poderiam ser reivindicadas. Em 1917, por exemplo, não foi a exposição de Anita Malfatti para algumas centenas de paulistanos burgueses que se apropriou dos princípios tecnológicos e populares de seu tempo, mas sim a gravação de Pelo Telefone, samba composto e assinado por Donga e Mauro Duarte que impactou de forma perene um imaginário nacional através de uma moderna cultura de massas. Sabemos, aliás, como o cinema, a música popular, o teatro de revista, a fotografia e muitas outras formas urbanas e maquínicas de modernidade não foram parte da Semana, apesar de serem referências para os poemas e livros que surgiam nas cidades. Sabemos que a pintura brasileira já era moderna antes do corte da Semana, que a música brasileira que foi vista no Teatro Municipal não dialogava com nenhuma forma vanguardista daquele tempo ou que a própria literatura ali declamada seria rapidamente envelhecida pelos próprios esforços dos jovens que participaram do evento. Sabemos, portanto, do caráter limitado de “modernismo” que a Semana trazia. Só que toda essa crítica, toda essa revisão, não só já era feita nos anos seguintes ao evento como não a deslocou desse lugar central na memória nacional. Na verdade, a Semana se torna importante porque Mário de Andrade e Oswald de Andrade se tornam importantes. Porque Di Cavalcanti e Villa-Lobos se tornam importantes. Porque Tarsila do Amaral e Anita Malfatti se tornam importantes.

Além disso, é inegável a força de paradigma que o evento de 1922 produziu no imaginário nacional, funcionando como modelo de organização estética coletiva com vistas à demarcação discursiva ao redor da ruptura. Ou, ao menos, ao redor da afirmação de uma especificidade artística frente aos cânones de seu tempo. Em novembro de 2007, um dos saraus mais famosos do país - aquele da Cooperifa, de Sérgio Vaz e seus parceiros -, assumia publicamente sua inspiração na Semana de Arte Moderna de 1922 para apresentar ao mundo suas ações poéticas em bares da periferia paulistana. Citando Vaz:

A Cooperifa e um grupo de artistas propõe, 85 anos depois, uma nova Semana de Artes, só que agora oriunda da periferia. Uma nova história, escrita e contada por quem realmente vive por ela e para ela. Uma nova versão da Semana, contada não de fora para dentro, mas de dentro para fora. Construída com as mesmas mãos calejadas que construíram a cidade de São Paulo. Uma Semana Cultural criada e produzida com o mesmo suor desse povo que tanto luta por um Brasil melhor. (VAZ, 2017, n.p.)

Mesmo com o conteúdo radicalmente oposto ao que ocorreu no Teatro Municipal em 1922, a forma, o modelo de um evento de intervenção estética amarrado em uma Semana segue pulsando, até mesmo para aqueles que entendem e denunciam o caráter altamente exclusivista e branco do evento original. Dos saraus dos palacetes para os saraus das quebradas, a “força fatal” segue sendo ressignificada e expandida.

Se a Semana de 1922 chega ao seu centenário nas bordas de um país em vias de uma eleição tensa, atravessando um tempo e um espaço esgarçados pelo cenário desolador de violências, racismos, feminicídios e pandemias, sua convocação para nos repensarmos criticamente à luz - ora pálida, ora excessiva - do seu arquivo nos obriga a acreditar que, com todos seus limites, o que ocorreu de forma breve naqueles três dias de fevereiro ainda mobiliza as máquinas de futuros possíveis que temos a obrigação de inventar para seguirmos na luta criadora pelos muitos passados em aberto e, principalmente, pelo tempo presente que precisamos reinventar a cada dia. E para responder à epígrafe inicial de Mário de Andrade, talvez tudo que nos resta seja, sim, defender nossa perplexidade - frente ao centenário da Semana e frente a tudo mais que nos mobiliza aqui e agora.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • VAZ, Sérgio. Periferia Moderna. In: Vermelho (website), publicado em 1910/2007, in: https://vermelho.org.br/2007/10/19/do-sarau-da-cooperifa-a-semana-de-arte-moderna-da-periferia/
    » https://vermelho.org.br/2007/10/19/do-sarau-da-cooperifa-a-semana-de-arte-moderna-da-periferia/
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    Pseudônimo do crítico Alceu Amoroso Lima.
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    Este texto foi apresentado no ciclo de encontros “1922: modernismos em debate”, promovido pelo Instituto Moreira Salles (IMS), em São Paulo, no dia 29 de março de 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2021
  • Aceito
    19 Abr 2021
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