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PINTURAS DE MASSIMO CAMPIGLI NO MAC USP: ENTRE ARQUEOLOGIA, MEMÓRIA E MODERNIDADE*

MASSIMO CAMPIGLI’S PAINTINGS AT MAC USP: AMIDST ARCHEOLOGY, MEMORY AND MODERNITY

PINTURAS DE MASSIMO CAMPIGLI EN MAC USP: ENTRE ARQUEOLOGÍA, MEMORIA Y MODERNIDAD

RESUMO

O artigo trata das seis pinturas do artista alemão naturalizado italiano Massimo Campigli, do acervo do MAC USP. Esse conjunto, ainda não analisado em profundidade pela historiografia da arte no Brasil, será discutido no contexto mais amplo de sua produção artística. Para tanto, recuperamos aspectos da biografia de Campigli e de sua produção e indicamos como as obras chegaram ao acervo do antigo MAM-SP. Por fim, apresentamos a análise plástica e as considerações finais. Para tratar das telas, nos apoiamos em seus escritos autobiográficos, catálogos de exposições, textos críticos, além de informações fornecidas pelo Arquivo da Bienal de São Paulo e pelo Arquivo Campigli. Sobre a incorporação ao museu, nos valemos das pesquisas da professora Ana Gonçalves Magalhães.

PALAVRAS-CHAVE:
Massimo Campigli; Acervo MAC USP; Arte moderna italiana; Ciccillo Matarazzo e Yolanda Penteado

ABSTRACT

Our article discusses the six paintings by the German naturalized-Italian artist Massimo Campigli which belong to the MAC USP collection. This set, not yet analyzed in depth by the historiography of art in Brazil, will be discussed in the broader context of Campigli’s production. Therefore, we recovered Campigli’s biographical aspects and that of his production, and then indicated their path until they integrate the collection of the former MAM-SP. Finally, we present a plastic analysis and the final considerations. To discuss the paintings, we rely on autobiographical writings, exhibition catalogs, critical texts, and information provided by the São Paulo Biennial Archive and Campigli’s Archive. Regarding the incorporation into the museum, we counted on the research by Professor Ana Gonçalves Magalhães.

KEYWORDS:
Massimo Campigli; Collection of the Museum of Contemporary Art of University of São Paulo; Italian Modern Art; Ciccillo Matarazzo and Yolanda Penteado

RESUMEN

Este artículo aborda las seis pinturas del artista alemán naturalizado italiano Massimo Campigli de la colección MAC USP. Discutiremos este conjunto aun no analizado en profundidad por la historiografía del arte brasileña en el contexto más amplio de su producción. Para ello, empleamos aspectos de la biografía de Campigli y de su producción que revelan cómo las obras llegaron a la colección del antiguo MAM-SP. Finalmente, presentamos un análisis plástico y las consideraciones finales. El marco teórico utilizado consistió en escritos autobiográficos, catálogos de exposiciones, textos críticos y informaciones del Archivo de la Bienal de São Paulo y del Archivo Campigli. Sobre la incorporación de las obras al museo, utilizamos la investigación de la profesora Ana Gonçalves Magalhães.

PALABRAS CLAVE:
Massimo Campigli; Colección MAC USP; Arte moderno italiano; Ciccillo Matarazzo y Yolanda Penteado

INTRODUÇÃO

Nome pouco conhecido no Brasil, o artista Massimo Campigli (1895-1971), nascido em Berlim como Max Ihlenfeldt e naturalizado italiano, foi um dos grandes mestres do século XX italiano. Criou afrescos, murais e pinturas de cavalete, além de ser exímio artista gráfico e escritor. Representado em museus e coleções privadas na Europa e Estados Unidos, em território brasileiro a obra do artista, além de circular no mercado secundário1 1 Como nos leilões realizados por Soraia Cals (2010) e James Lisboa (2017). , está presente nos acervos do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), da Pinacoteca do Estado de São Paulo2 2 Instituição que possui uma litogravura sua: Interior da Sala de espetáculo. Dados da obra em: http://pinacoteca.org.br/acervo/obras/. Acesso em: 5 mai. 2020. e nos de colecionadores privados, como o de Adolpho Leirner3 3 Leirner possui duas gravuras suas: Donna in blu (1959) e A Giuditta (1953). . Tal circulação se deve, em parte, à participação do artista na representação italiana na primeira e na terceira edições da Bienal de São Paulo (1951 e 1955), quando atraiu a atenção da crítica especializada e teve obras adquiridas por colecionadores e museus, como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM RJ)4 4 A tela Duas Atrizes, produzida entre 1950 e 1951, foi adquirida na I Bienal de São Paulo, mas perdida no incêndio do MAM RJ em 1978. , e uma mostra individual na Galeria Sistina, em 1960.

As pinturas de Campigli do MAC USP advêm das aquisições realizadas pelo casal Francisco Matarazzo Sobrinho (Ciccillo) e Yolanda Penteado para o acervo do antigo MAM-SP5 5 Diremos “antigo MAM-SP” em referência ao Museu de Arte Moderna de São Paulo até o ano de 1962, quando suas obras foram transferidas por Ciccillo para a Universidade de São Paulo (USP). entre 1946 e 1947, com exceção de A cantora (1949-50), que foi doada pelo governo italiano ao museu na I Bienal de São Paulo. Logo, Os noivos (1929), Mulheres a passeio (1929), Três mulheres (1940), Mulher velada (1946) e Mulheres ao piano (1946) fizeram parte das aquisições de 71 pinturas italianas de incensados artistas - como Amedeo Modigliani e Giorgio Morandi -, tendo o casal acionado, para tanto, a intermediação de agentes, como a crítica de arte Margherita Sarfatti6 6 Sobre a atuação de Sarfatti e suas relações com Brasil, cf.: MAGALHÃES (2016). , e de uma rede de artistas e galerias italianos. Essas obras, embora expostas com certa frequência alguns anos após as aquisições, apenas foram apresentadas como um conjunto relevante e coeso no início dos anos 2000, com as pesquisas de Ana Gonçalves Magalhães, que resultaram na exposição “Classicismo, Realismo e Vanguarda: pintura italiana no entreguerras”, realizada no MAC USP, em 2013MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - MAC USP. Classicismo, realismo, vanguarda: pintura italiana no entreguerras. Organizado por Ana Gonçalves Magalhães. São Paulo: MAC USP , 2013. (Figura 01), e na sua tese de livre-docência (MAGALHÃES, 2016MAGALHÃES, Ana Gonçalves. Classicismo Moderno: Margherita Sarfatti e a Pintura Italiana no Acervo do MAC USP. São Paulo: Alameda, 2016.)7 7 Há uma série de pesquisas de iniciação científica e pós-graduação orientadas por Magalhães em torno desses artistas. . Esse estudo deixou claro que, longe de ser uma aquisição sem critérios, ela foi, ao contrário, a reunião de uma das mais importantes coleções de pintura de arte moderna italiana no período entreguerras fora do seu país de produção.

No entanto, as pinturas de Campigli ainda não foram estudadas em profundidade. Assim como os conjuntos de Arturo Tosi, Mario Sironi e Gino Severini presentes no acervo, o de Campigli é bastante representativo de sua trajetória artística no entreguerras8 8 Com exceção das experiências abstratas que tiveram mais expressividade a partir da década de 1930. e no período imediatamente posterior. Suas pinturas, no geral, tanto respondem às tendências do chamado “retorno à ordem” que ocorria nos ambientes francês e italiano quanto, a partir de 1928, refletem o renovado interesse pela cultura etrusca em voga na Itália. Além disso, as obras trazem aspectos importantes, tais como a relação com as associações, como o grupo dos Italianos de Paris - dos quais o MAC USP possui algumas pinturas9 9 Sobre os Italianos de Paris no acervo do MAC USP, cf. ROCCO (2013). -, o reconhecimento nos meios artísticos europeu e o relacionamento com galeristas importantes, como Carlo Cardazzo - o que também se sucede com outras obras compradas por Ciccillo.

Figura 1
Vista com destaque ao conjunto de pinturas de Campigli e de A adivinha, de Achille Funi, no MAC USP10 10 Exposição primeiramente realizada na sede na Cidade Universitária, da Universidade de São Paulo, em 2013; depois, na nova sede no Ibirapuera, entre 2013 e 2017, e, por último, no Centro Cultural Branco do Brasil de Brasília, em 2018. .

Logo, analisar a produção de Campigli é iluminar esse artista pela primeira vez em nossa historiografia, ao mesmo tempo que coopera com a compreensão do conjunto maior de pinturas italianas adquiridas pelo casal Matarazzo.

DE MAX IHLENFELDT A MASSIMO CAMPIGLI

Em todos os detalhes da minha pintura consigo reencontrar na minha infância a origem. Tudo é evasão da realidade atual. Minha tendência ao antigo em geral e ao museu não é estética, responde a uma necessidade profunda. A singularidade da minha pintura não é desejada. (CAMPIGLI, 1955CAMPIGLI, Massimo. Scrupoli. Veneza: Cavallino, 1955., p. 13, tradução minha)

O trecho extraído da autobiografia Scrupoli, publicada por Campigli em 1955CAMPIGLI, Massimo. Scrupoli. Veneza: Cavallino, 1955., é um dos vários em que fala sobre a importância da sua infância em sua obra e o quanto ela o levou a buscar diálogos com produções antigas, “de museu”. Essa mesma infância e a tal “singularidade não desejada” serviriam para que se afirmasse como artista único, desvinculado de outras tendências, desde seus primeiros escritos nos anos 1930 (MASSIMO…, 1931Massimo Campigli. Milão: Hoepli , 1931.) até Scrupoli, quando posiciona sua produção artística, ao construir uma narrativa para sua figura como artista totalmente ligada à Itália. Assim, embora Scrupoli seja um registro valioso por ser fonte de primeira mão que ilumina o fazer artístico do artista e suas crenças, foi escrito por alguém que, antes de se tornar pintor, havia sido jornalista e que, como seus contemporâneos, buscava descolar-se dos horrores da guerra nos anos que a sucederam.

Sempre citado em publicações como florentino, o artista era, na verdade, alemão. A informação da suposta origem italiana era sempre reiterada por ele, que pedia segredo aos que conheciam a verdade. Mas o fato é que em 1989, o filho do artista, Nicola Campigli, encontra no ateliê do pai, falecido então há quase vinte anos, outro manuscrito autobiográfico em que relatava ter nascido em Berlim sob o nome de Max, da jovem Anna Paolina Luisa Ihlenfeldt, de 18 anos, solteira e de família abastada. Surpresa para família e estudiosos do artista, essa autobiografia “não oficial” em tom confessional foi chamada de Nuovi Scrupoli e publicada em 1995. Provavelmente escrita pelo artista no início da década de 1950, ela contém trechos muito semelhantes a Scrupoli, por vezes complementares, com a diferença da revelação de sua infância, ou, em suas palavras, da sua “confissão” (CAMPIGLI, 1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., p. 24).

Segundo conta Campigli, para evitar o escândalo de seu nascimento, a família decide enviá-lo com a avó para Settignano, na Itália11 11 Sobre a escolha da Itália como destino, a justificativa não é conhecida, já que não há documentação comprobatória de qualquer ligação prévia da família com o país. , enquanto Anna, também transferida, fora introduzida a ele como sua “tia” (CAMPIGLI, 1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., p. 56). Em 1899, Anna se casa com o comerciante inglês Giuseppe Bennett, e Max passa a viver com eles. Poucos anos depois, o casal tem duas filhas e, em 1909, eles vão viver em Milão. Adolescente, ele descobre ao acaso a verdade e afirma que naquele momento tudo fez sentido e que acordou ao ver o mundo “externo” pela primeira vez, pois antes sua vida era cheia de mistérios e contradições. Dizia que aquilo tudo não tinha lhe criado um trauma, mas em certas passagens fica evidente que na verdade havia, como nos momentos em que afirma que suas “singularidades” tinham a ver com uma “educação errada” e que seu maior pavor era de que nenhuma mulher o amasse por conta de seus segredos (CAMPIGLI, 1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., pp. 52-55).

Além disso, há a questão da origem germânica que ele afirmava negar por achar os alemães “odiosos, os mais horrendos seres do mundo”. E completa, dizendo ter carregado por toda sua vida a vergonha de seu sangue alemão e que sua mãe, a quem não enxergava como uma alemã (CAMPIGLI, 1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., pp. 61-65), partilhava de seu desprezo.

Ao negar sua origem, é possível que Campigli quisesse se distanciar do nazismo, mesmo que dissesse que a política não tinha a ver com seu sentimento (CAMPIGLI, 1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995.); o fascismo também não é diretamente citado nessa e na outra autobiografia12 12 Isso mesmo entre escritos de outros autores que negam que Campigli tenha tido uma relação mais profunda com o Regime ou que afirmam que seu interesse pela política era algo marginal. Cf.: INSTITUT MATHILDENHÖHE (2003, p. 44). , ainda que tivesse tido orgulho de ser italiano e desejado obter reconhecimento por isso em pleno Regime13 13 Pautamos-nos nos comentários de Campigli sobre o assunto, mas é crível pensar que ele talvez desejasse obter posteriormente reconhecimento em território alemão, de onde precisou sair “clandestinamente” quando nascido. Talvez, por isso também não tenha levado a cabo a publicação de Nuovi Scrupoli, crítica aos alemães. .

Sua escrita procura, assim, desvinculá-lo de tais posições políticas e situá-lo como alguém imerso em seu próprio mundo e ligado exclusivamente a suas poucas relações afetivas, à sua arte e a seu mundo de imaginação, por meio da qual recuperava sua memória. Além disso, conta ter sido praticante assíduo da hipnose, abandonando a atividade no início dos anos 1920 tão logo “descobriu” Freud, Jung e a psicanálise. Lendo-os no original, Campigli afirmava ter tido com a psicanálise “o grande encontro de sua vida”, pois ela serviu para que colocasse em ordem a si mesmo, assim como a sua “loucura” (CAMPIGLI, 1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., p. 64, p. 117).

Recuperar o histórico familiar é imprescindível para a discussão sobre o artista, já que ele povoava suas obras com a figura feminina a partir de diversas referências plásticas. A representação aparecia sozinha, em pares ou grupos; no teatro e na ópera como protagonista, ou em atividades como a costura, jogando diabolô ou penteando os cabelos umas das outras. Como discutiremos, essas representações, mesmo em tais atividades, parecem estáticas, atemporais, por vezes divinas ou totêmicas. A estudiosa Elena Pontiggia ressalta que a dolorosa história familiar de Campigli pode explicar, do ponto de vista psicológico, seu universo artístico pleno de mulheres distantes, ícones da “deusa-mãe, da Grande Mãe ou da dupla mãe” (PONTIGGIA, 2003PONTIGGIA, Elena. Campigli platonico, Campigli mediterraneo. In Institut Mathildenhöhe. Massimo Campigli: Mediterraneità und Moderne. Darmstadt: Institut Mathildenhöhe ; Milão: Mazzota, 2003, pp. 15-29., p. 15, tradução minha), com quem, no entanto, Campigli devia ter uma relação ambígua, que passava pela vergonha do local de nascimento e pelo sentimento de não pertencimento.

Voltando ao histórico familiar, em 1911, em Milão, falece seu padrasto, e Campigli continua com a mãe e as irmãs e passa a trabalhar, a partir de 1914, no Corriere della Sera. É esse o momento de sua aproximação com os futuristas Umberto Boccioni e Carlo Carrà e da publicação de Lacerba (CAMPIGLI, 1914CAMPIGLI, Massimo. Giornale + Strada: parole in libertà. Lacerba, Florença, 15 jul. 1914.)14 14 Trata-se da primeira vez que usa o nome Massimo Campigli. Esse foi, segundo Eva Weiss, uma tradução literal ou onomatopeica de seu nome alemão para o italiano, conforme relatado em troca de e-mails com a autora em 10 de abril de 2020. .

Quando a Itália entra na I Guerra Mundial, Campigli se alista voluntariamente, desejoso de obter a cidadania italiana, para a qual já havia entrado com pedido. Passada a guerra, ao retornar para a Itália, obtém-na e volta a trabalhar no Corriere della Sera, do qual se tornaria correspondente em Paris, no ano seguinte, em 1919. Trabalhando como jornalista, inicia-se na pintura em 1920, com plano fixo de dedicar-se inteiramente a ela (CAMPIGLI, 1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., p. 23). Em suas palavras, aos 26 anos decidiu que seria um grande pintor (CAMPIGLI, 1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., p. 49), projeto para cuja concretização ele tinha toda uma prescrição.

Em Paris, conheceu os expoentes da vanguarda, entusiasmando-se pelo Cubismo, que o levou a frequentar o Louvre (CAMPIGLI, 1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., p. 42). No museu, viu enaltecidos os objetos do mundo antigo com os quais tinha tido contato em Florença e que seriam posteriormente peças-chave para suas criações.

O Cubismo a que se refere Campigli não é o chamado analítico ou sintético, mas, em suas palavras, seria o “Cubismo em sua fase construtiva”, fase “Cristallo” (CAMPIGLI, 1955CAMPIGLI, Massimo. Scrupoli. Veneza: Cavallino, 1955., p. 14). Ou seja, quando aborda o assunto retrospectivamente, refere-se ao Cubismo metabolizado pelo purismo francês, que se circunscrevia, por sua vez, ao clima do “retorno à ordem”, fenômeno de revalorização da tradição clássica da arte e de linguagens plásticas baseadas em princípios imutáveis, sem abrir espaço a certas experimentações das vanguardas do início do século XX15 15 Não nos esqueçamos que, poucos anos depois, em Paris, é publicado por André Breton o “Le Manifeste de surréalisme”. Campigli afirmava ser refratário às suas ideias (UN’ORA…, 2012). . O “retorno à ordem” pôde ser sentido no entreguerras em várias manifestações artísticas e em diferentes territórios, que, por sua vez, procuravam se reorganizar - alguns sob regimes totalitários16 16 Para saber mais sobre o assunto, cf.: PONTIGGIA (2005) e GUGGENHEIM MUSEUM (2010). Para reflexos no caso sul-americano, cf. CHIARELLI (2003). . Como muitos artistas, Campigli é nesses anos atravessado por tal fenômeno, e uma obra como Donna con le braccia conserte, de 1924 e hoje pertencente à Galleria Civica d’Arte Moderna, Turim17 17 A obra pode ser vista em: https://www.gamtorino.it/en/node/35356. Acesso em: 10 mai. 2020. , o demonstra claramente.

O fenômeno na Itália, além da produção artística feita por artistas como Severini e Carlo Carrà, tinha amparo teórico na revista Valori Plastici, que teve sua primeira edição publicada em 1918 com ensaios de Carrà e Giorgio de Chirico. No ambiente francês, havia, por sua vez, o manifesto “Après le Cubisme” (1918), escrito por Amédée Ozenfant e Le Corbusier, o qual pregava a criação de obras cuja prerrogativa era obter ordem por meio de formas geométricas absolutas, imutáveis e eternas. O manifesto foi ponto de partida para outros escritos como “Purismo”, publicado na revista L’Esprit Nouveau, reconhecida por Campigli como uma referência para suas próprias pesquisas. Nos mesmos anos, Picasso pinta suas figuras femininas solenes e monumentais - circunscritas em sua fase chamada clássica.

Mesmo morando em Paris, Campigli participa, em 1926, da antológica “I Mostra del Novecento Italiano”, em Milão, organizada pela crítica de arte italiana e ideóloga do fascismo, Margherita Sarfatti. Tratava-se de uma mostra com centenas de artistas do país que, embora utilizassem linguagens plásticas diferentes, aos olhos de Sarfatti respondiam à tradição clássica da arte e à noção de mediterraneidade18 18 A exposição tinha tido sua semente na mostra organizada por Sarfatti em 1923, em Milão, com um grupo de seis pintores batizado de Novecento. Para mais informações sobre o Novecento, cf. MAGALHÃES (2016). . Sarfatti promoveria depois diversas mostras do grupo na Bienal de Veneza (1924 e 1928) e no exterior até ano de 1931, e Campigli exporia em quase todas elas.

No entanto, ao final dos anos 1960 ele procurou descolar sua história do Novecento italiano, afirmando que, depois da primeira guerra na Itália, teria havido uma divisão entre o grupo da Valori Plastici e do Novecento e que ele escolhe a si próprio e sua “problematicidade” (UN’ORA…, 2012Un’ora con Massimo Campigli. Entrevista de Massimo Campigli para o programa Incontri da Radiotelevisione Italiana (RAI) em 1969. [S. l.]: [s. n.], 2012. Publicado pelo canal jjpcondor. 1 vídeo (52 min). Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Tf2d45KPU6w . Acesso em: 5 dez. 2019.
https://www.youtube.com/watch?v=Tf2d45KP...
), mais uma vez procurando estabelecer para a posterioridade uma persona específica.

A “REVELAÇÃO” ETRUSCA

1928 é um ano emblemático para Campigli. Tendo abandonado o Corriere Della Sera para dedicar-se exclusivamente à pintura, esse ano marca o início de sua atuação junto ao grupo dos “Italianos de Paris”, sua primeira exposição como convidado na Bienal de Veneza e um ponto de virada plástica nas suas produções, indicado por críticos, historiadores da arte e por ele próprio mais tardiamente.

Comecemos pela Bienal de Veneza. Tendo como secretário-geral o escultor e escritor Antonio Maraini, a mostra contava com salas dedicadas aos futuristas italianos, à pintura italiana do Ottocento e às artes do espetáculo, entre outras. Nessa Bienal, Campigli expôs 13 obras19 19 Relação das obras em: http://asac.labiennale.org/it/passpres/artivisive/annali.php?m=2&c=l&a=377298. Acesso em: 9 dez. 2019. , entre retratos e o afresco Construtores20 20 Acervo MART Rovereto. A imagem pode ser vista em: http://www.mart.tn.it/collections.jsp?ID_LINK=688&area=137&id_context=3389. Acesso em: 14 mai. 2020. , cuja linguagem plástica estava ligada ao purismo francês e ao Quattrocento italiano. Na Sala da Escola de Paris, que contava com 71 obras de artistas diversos com organização de Renato Paresce e introdução de Mario Tozzi, Campigli participou junto aos “Italianos de Paris”, grupo do qual se falará adiante.

No entanto, de acordo com seus testemunhos, Campigli não sentia que aquele tipo de linguagem que expôs o representasse, e se refere a ela como pintura “infeliz” (CAMPIGILI, 1955CAMPIGLI, Massimo. Scrupoli. Veneza: Cavallino, 1955., p. 33). Nesse momento de insatisfação, conta ter sido impactado pela arte etrusca vista no Museu de Villa Giulia, em Roma21 21 O pintor narra o episódio em Campigli (1955, pp. 31-32). :

No primeiro ano de vida com Dutza [sua companheira à época], fomos a Roma, e foi aquele encontro com a arte etrusca que teve tanta influência na minha arte. Era 1928, data dos meus primeiros quadros típicos. Naquele mesmo ano, exibi 13 pinturas na Bienal de Veneza (…). (CAMPIGILI, 1955CAMPIGLI, Massimo. Scrupoli. Veneza: Cavallino, 1955., pp. 31-32, tradução minha)

Ele conta que, a partir daquele ano, havia um espírito superior em sua pintura, pois tinha tido seu coup de foudre22 22 Ele usa a expressão em referência ao episódio em Campigli (1955, pp. 31-32). nesse museu, embora admitisse que já tivesse tido contato com aquela produção:

Talvez há algum tempo, antes mesmo do fatal encontro com os etruscos, sob meu descontentamento com a minha pintura e pelos prazeres puros e estéreis da geometria, deva ter crescido uma necessidade de espanto e sorriso, e o subconsciente já tinha escolhido a nova fonte de inspiração. Digo isso justamente para não dramatizar meu encontro com os etruscos em Villa Giulia. Obviamente, eu já tinha visto arte etrusca nas reproduções e também no Museu de Florença [Museu Arqueológico Nacional de Florença], mas se há uma bela visão de uma obra de arte, se não estamos maduros para ela, é como se não a víssemos. No Museu de Florença, então, toda a minha atenção tinha sido voltada para os egípcios e, para uma arte que não fosse precisa e geométrica, não tinha olhos. Somente em 1928 fui capaz de acolher a mensagem dos etruscos como alguém que pode encontrar repetidamente uma mulher que se está destinado a amar e sentir amor à primeira vista (…). Em Villa Giulia, encontrei algo que já estava em mim. Vejo, compreendo, retenho somente aquilo que me dá uma sensação precisa de algo conhecido, talvez remotamente. (…) eu, em Roma, nem posso dizer que vi uma ou outra obra etrusca. É o espírito desse mundo que me envolveu e me pareceu “recordar” (…) como a ajuda de um pouco de sentimento poético fui levado em tais casos a pensar: “Essa vida eu já vivi”. (CAMPIGLI, 1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., p. 122-123, tradução minha)

É importante discutir alguns aspectos dessas passagens. Primeiro, reforçar que foram escritas no início dos anos 1950, quando Campigli procurava dar legibilidade e sentido ao seu percurso como artista, o que significa que olhava em retrospectiva para sua vida e filtrava e enquadrava os fatos de acordo com aquilo que queria legar para as gerações vindouras.

Segundo, Campigli transmite a ideia de que andava buscando uma linguagem que remontasse às “origens”. Essas origens, em seu caso, tinham dimensões distintas dependendo do momento em que vivia, que, a grosso modo, poderíamos dividir em duas fases: 1) até o final dos anos 1920, sob a influência do ambiente francês e do Novecento italiano, seriam as criações vinculadas ao “retorno à ordem”, em que as fontes orbitavam em torno da produção dos primitivos e dos renascentistas italianos, e também de ideias de “síntese e universalidade”, dadas pelas produções dos puristas franceses; 2) a partir de 1928, quando abraça “origens” anteriores, genericamente colocadas sob o guarda-chuva de “arcaicas”, como a egípcia, a grega e a etrusca, esta última aquela que indica mais de modo mais veemente como sua.

Como ele mesmo diz, tal busca não era aleatória, pois estava descontente com sua produção naquele momento; no entanto, o fato de conviver no epicentro da Escola de Paris certamente o obrigava a assumir um lugar, encampar alguma “via”. Por isso, mesmo tendo tomado contato com a arte etrusca antes, ele acreditava que aquilo só lhe “acendeu” uma luz quando estava em meio ao seu processo de busca. Contudo, essas novas referências não somente serviam para que se descolasse dos “ismos”, mas também ajudavam a estreitar seus laços com a Itália, que, como vimos, era uma questão crucial para ele. Nesse sentido, ser um moderno intérprete da arte etrusca poderia fazer todo sentido nesse projeto, pois o ligaria umbilicalmente à região da Toscana23 23 Antiga Tuscia, dos Tuscoi, ou Tirrehnia, dos Tyrsoi, povo pré-romano, berço dos primeiros reis de Roma, região modernamente chamada de Etruria, nas atuais regiões da Toscana, Umbria e Lácio, e seus habitantes, de etruscos. .

A seguir, ao pedir que não se dramatizasse sua visita ao museu de Villa Giulia por já ter tido contato com a arte etrusca antes, mas afirmando que somente em 1928 pôde acolher a mensagem dos etruscos24 24 Citamos o trecho de Nuovi Scrupoli, mas o artista já tinha afirmado o mesmo em Scrupoli (CAMPIGLI, 1955, pp. 31-32). , fica evidente que Campigli queria marcar nesse encontro um ponto-chave de virada em sua trajetória, aquilo que queria deixar registrado para a posterioridade como distintivo em sua produção.

Como explica Elena Calandra (2017CALANDRA, Elena. Massimo Campigli e La Folgorazione Per L’arte Etrusca. Anais Museo Claudio Faina, Orvieto, v. 24, pp. 371-384, 2017., p. 376), não se sabe exatamente quais peças Campigli viu quando esteve em Villa Giulia, à exceção do Sarcófago dos Esposos e o Apollo di Veio25 25 As imagens do sarcófago e da escultura podem ser vistas em: https://www.museoetru.it/. Acesso em: 7 fev. 2020. . No entanto, os objetos expostos na época seriam praticamente os mesmos até a década de 1970, dentre os quais vasos, pratos e urnas acumulados em vitrines, estantes suspensas, além de outras esculturas e fragmentos26 26 Como se pode ver pelo histórico do museu e fotos da expografia em: http://luciademarchis.altervista.org/?page_id=94. Acesso em: 15 dez. 2019. .

Mas olhar para a arte etrusca não foi algo exclusivo a Campigli. Ao contrário, tratou-se de um movimento mais amplo que vinha na esteira de outros encontros com o mundo antigo, quando milhares de peças foram reveladas pela construção de estradas de rodagem regionais e pelo aumento das ferrovias, sobretudo no eixo Milão-Florença-Roma-Nápoles. Além disso, houve a descoberta da tumba de Tutancâmon, em 1922, pelo arqueólogo britânico Howard Carter, que deu origem à “tutancomania”, com grande corrida em busca de itens “egipcizantes”.

No que concerne à etruscologia,Calandra (2017CALANDRA, Elena. Massimo Campigli e La Folgorazione Per L’arte Etrusca. Anais Museo Claudio Faina, Orvieto, v. 24, pp. 371-384, 2017., pp. 373-374) aponta alguns acontecimentos decisivos entre 1925 e 1930: a realização, em 1926, do primeiro congresso nacional etrusco; a publicação de Storia dell’arte etrusca, de Pericle Ducati, em 1927; a fundação da revista Studi Etruschi, no mesmo ano; e o primeiro Congresso Internazionale Etrusco, em 1928. O próprio “descobrimento” da escultura Apollo di Veio, em 1916, foi de enorme ressonância na época.

A estudiosa Martina Corgnati (2018CORGNATI, Martina. L’ombra lunga degli etruschi: echi e suggestioni dell’arte del Novecento. Monza: Johan & Levi, 2018.) aponta que há ondas de valorização da arte etrusca. Leon Battista Alberti foi um dos primeiros a reconhecê-la, no século XV, seguido por intelectuais, arqueólogos e colecionistas do século XIX que começaram a publicar e documentar as produções sobreviventes. No século XX, segundo a autora, o interesse pelo mundo etrusco seria renovado por duas vias: 1) científica, como alvo de estudos e encontros acadêmicos; e 2) idealizada, imaginada, misteriosa. Essa segunda forma foi justamente a abraçada por escritores, como Enrico Prampolini, e por artistas, como os irmãos Basaldella, Arturo Martini, Campigli e Marino Marini. Há ainda algumas produções mais pontuais, como de Henry Moore, de Gio Ponti e Roberto Sebastián Matta. Entre os artistas citados, Dino Basaldella e Arturo Martini também “descobriram” o mundo etrusco em Villa Giulia; Martini reivindicava ser o primeiro a usar os etruscos como referência em sua escultura, colocando quase como se fosse descendente direto desse povo. Algo que Campigli também fez, pela via da pintura e sem mencionar outros artistas, implicitamente pleiteando seu lugar de destaque nessa genealogia.

A produção artística dos etruscos esclareceu como viviam e quais eram suas crenças. A decoração de túmulos com afrescos, urnas, esculturas nos sarcófagos demonstra, entre outras coisas, que os etruscos acreditavam em vida após morte e que na organização social da região da Etrúria as mulheres eram ativas e fortemente valorizadas. Dotadas de nome próprio, eram autônomas, alfabetizadas e participavam da vida social, como os banquetes, por exemplo.

É justamente a figura feminina a protagonista das criações de Campigli. A partir de 1928, ela recebe um tratamento pictórico com um forte acento da cultura material etrusca, seja pela superfície colorida em tons próximos à terracota, seja pelo olhar distante e congelado e pelo sorriso arcaico.

Como dito, a inspiração veio ao encontro do desejo de descobrir uma via original em sua pintura a partir do reforço de seus vínculos com a Itália. Campigli seria esse agente capaz de metabolizar suas raízes, tornando-as apresentáveis e legíveis no presente. Não nos esqueçamos, porém, que abraçar a arte etrusca poderia ter para ele, ainda, uma dimensão não declarada: o distanciamento da origem alemã.

OS “ITALIANOS DE PARIS”

O projeto plástico de Campigli estaria em consonância com aquele dos chamados “Italianos de Paris”. Formado por Alberto Savinio, Renato Paresce, Mario Tozzi, Filippo De Pisis, Gino Severini e Giorgio de Chirico, o grupo expôs em vários países europeus entre os anos de 1928 e 1933 e tinha como interlocutores Tozzi e o crítico de arte polonês radicado em Paris, Waldemar George. Morando naquela cidade por motivos diversos, esses artistas estavam ligados pela nacionalidade e pelo desejo de ressaltar as raízes e a potência da arte italiana em suas produções de modo a fazer frente, sobretudo, à Escola de Paris e ao movimento surrealista. Suas criações tinham, no entanto, soluções plásticas e temas bastante distintos, como indicam os gladiadores de De Chirico, as figuras classicizantes de Tozzi, as criaturas e cenários “surreais” de Savinio e Paresce, as naturezas-mortas de Pisis e de Severini, assim como suas pinturas ligadas ao tema da Comedia dell’Arte. As palavras de Waldemar George do texto de introdução da “Prima Mostra di pittori italiani residenti a Parigi”, na Galleria Milano, em 1930, são esclarecedoras sobre a vontade de reforçar a italianidade em território estrangeiro:

O fato fundamental da arte de hoje é o retorno ofensivo da Itália (…). A Itália dará novamente à arte uma vontade de conhecimento universal. Alguns pintores, cansados daquela tal forma de arte que desconhece as exigências imperiosas do espírito, já retornam aos mestres que precederam o Renascimento (…). (GEORGE apudDELL’ARCO, 1998dell’Arco, Maurizio Fagiolo (ed.). Les Italiens de Paris: de Chirico e gli altri a Parigi nel 1930. Milão: Skira , 1998., p. 58, tradução minha)

Os anos em que expôs junto aos “Italianos de Paris” são lembrados por Campigli em sua autobiografia como aqueles de intensa euforia por ter encontrado um caminho na pintura e por ter obtido sucesso em contratos com marchands de arte (CAMPIGLI, 1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., p. 127). Mas esse “caminho” tem mais a ver com a forma como queria se apresentar em Paris, como ele própria revela:

E que também tenha contribuído, no reconhecer-me nos etruscos, ainda que estivesse em Paris, a nostalgia da Itália? De longe, se é levado a condensar a pátria em símbolos (…) a arte etrusca também é um belo símbolo da Itália para quem vive na modernidade de Paris. (CAMPIGLI, 1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., p. 123, tradução minha)

OS ANOS 1930-1940: PROJEÇÃO NACIONAL E INTERNACIONAL

Campigli afirma que, após 1928, sua arte continuaria sem “renovações”27 27 Importante nos atentarmos para essa afirmação, porque muitos artistas impactados pela arte etrusca nos anos 1920 a abandonam no decênio seguinte, sobretudo após a promulgação das Leis Raciais, em 1938, na Itália, quando a origem e “raça” etruscas passam a ser dadas como “incertas”. Sobre o assunto, cf. HAACK (2016). , mesmo que sua vida tivesse mudado bastante (CAMPIGLI, 1955CAMPIGLI, Massimo. Scrupoli. Veneza: Cavallino, 1955., p. 39; CAMPIGLI, 1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., pp. 127-128). Com efeito, ela se alterou consideravelmente na década de 1930, com sua maior projeção no meio artístico italiano e, no âmbito pessoal, com seu segundo casamento, com Giuditta Scalini, em 1937. São anos em que ele colhe reconhecimento internacional e financeiro na esteira das mostras junto aos Italianos de Paris e ao Novecento italiano, com exibições individuais, participação em edições da Bienal de Veneza, da Quadrienal de Roma, da Trienal de Milão, além da publicação de monografias a seu respeito, como aquela lançada em 1931 pela editora Hoepli (MASSIMO…, 1931Massimo Campigli. Milão: Hoepli , 1931.)28 28 Nessa obra, prefaciada pelo próprio artista, ele já reforça sua paixão pelos “museus e as necrópoles, a Villa Giulia e o Vaticano”. . Nesses anos, ainda, há uma profícua produção de afrescos e murais por encomenda do Estado para a V Trienal de Milão (1933)29 29 Mesmo ano em que o artista assina o “Manifesto Pintura Mural” com Mario Sironi, Severini, Achile Funi e Carrà. Cf.: SIRONI (1933). e de mosaicos - como os para a VII Trienal de Milão (1939) -, além de Campigli continuar com a pintura de cavalete, algumas vezes por encomenda.

Em 1940, transferiu-se para Veneza, onde passaria os anos da Segunda Guerra Mundial, e começou a se dedicar à ilustração de livros, como o Poesie, de Verlaine. São anos em que toma parte de exposições importantes, como a IV Quadrienal de Roma (1943), e realiza individuais em prestigiadas galerias, como na Barbaroux, em 1942, em Milão, e na Galleria del Cavallino, de Cardazzo, em 1942. A pesquisadora Eva Weiss indica que, a partir dessa década, junto aos retratos femininos individuais ou em grupo, Campigli passa a representá-los em cenários, como no teatro e em salas de música, nos quais tocam, cantam e atuam (WEISS, pp. 47-48).

Depois da Segunda Guerra, o artista passa a ter mais projeção internacional. Em 1946, transferiu-se para Amsterdã para a organização de sua mostra individual no Stedelijk Museum e, em 1948, foi agraciado com uma sala especial na Bienal de Veneza. Essa mostra foi importante por ser a primeira após o término do fascismo, e é aquela que historicamente marca a recuperação das vanguardas artísticas do início do século XX, antes do seu banimento pelos regimes totalitários. Tendo como secretário-geral Rodolfo Pallucchini, a organização de algumas salas coube a nomes como o crítico Roberto Longhi e o pintor Renato Guttuso. A sala de Campigli é uma retrospectiva de sua trajetória com óleos que datam de 1929 a 194830 30 Relação das obras em: http://asac.labiennale.org/it/passpres/artivisive/annali.php?m=227&c=l&a=377298. Acesso em: 13 mai. 2020. , ou seja, constitui um arco temporal que cobre desde a produção iniciada um ano após a “revelação etrusca”, com o emblemático Donne e Vasi (1929), até a mais recente, em que a figura feminina aparece em variações como bustos, jogadoras de tênis, banhistas, entre outras. Assim, a sala exclui sumariamente toda produção anterior de Campigli, claramente ligada ao Novecento italiano e ao purismo francês da década de 1920. O texto da sala é escrito pelo historiador da arte italiano Umbro Apollonio, que reforça que, se Campigli tinha como base de sua pintura os retratos fayum e a arte egípcia, etrusca e pompeiana, isso não estava ligado à poética do Novecento - embora pudesse parecer -, mas sim a uma forma de fantasiar o ideal (XXIV BIENNALE DI VENEZIA, 1948XXIV Biennale di Venezia. La XXIV Biennale di Venezia. Veneza: Edizioni Serenissima, 1948., pp. 33-34).

Essa leitura de Apollonio é interessante, uma vez que enquadra a produção de Campigli em uma chave diferente da que estava colocada até então. Se antes suas obras produzidas entre 1928 e o final da Guerra Mundial eram lidas como fruto de seu tempo e associadas seja aos Italianos de Paris, seja ao ambiente mais amplo do “retorno à ordem”, mais especificamente ao “Picasso clássico”, nessa bienal histórica imprimia-se uma ideia de que, a partir de 1928, sua produção tinha mudado de rumo. Nas palavras de Apollonio, afirma-se que, desse ano em diante, o fazer artístico de Campigli foi “gradualmente ficando mais leve até que chegasse a uma formulação rítmica em que o decorativo encontra sua expressão regulada com novo requinte” (XXIV BIENNALE DI VENEZIA, 1948XXIV Biennale di Venezia. La XXIV Biennale di Venezia. Veneza: Edizioni Serenissima, 1948., p. 33, tradução minha). Assim, as mesmas produções e linguagens são apresentadas e teoricamente defendidas a partir de um novo ponto de vista, o qual associava Campigli sobretudo a um pintor de caráter mais decorativo.

CAMPIGLI E CICCILLO MATARAZZO

Ao final da década de 1930, as pinturas de Campigli já estavam presentes em coleções fora da Itália, o que se intensificou na década seguinte no meio holandês e no imediato pós-Segunda Guerra, com novos colecionadores e museus por trás de importantes aquisições, como as de Ciccillo para o antigo MAM SP, as de Eric Estorick em Londres e as de Riccardo Gualino em Turim (FERRARIS, 1994FERRARIS, Patrizia Rosazza. Nemo propheta in pátria. In MANTURA, Bruno; FERRARIS, Patrizia Rosazza. Massimo Campigli. Milão: Electa, 1994. pp. 65-71., pp. 68-69).

As aquisições de Ciccillo vêm sendo investigadas pela estudiosa Ana Magalhães desde 2008. Ela explica que Ciccillo não viajou para a Itália para realizá-las, e que a maior parte das compras foi feita pelo genro de Sarfatti, o conde Livio Gaetani, que morava na Itália. Sarfatti, mesmo fora de seu país no momento da aquisição das obras, teve um papel crucial para escolha de muitas delas. Outra figura que Magalhães indica como agente realizador das aquisições na Itália foi o veneziano Enrico Salvatore Vendramini, o qual, por sua vez, tinha surgido nas negociações por intermédio de Pietro Maria Bardi. Ao seu nome, relacionam-se as pinturas da importante coleção veneziana de Cardazzo (MAGALHÃES, 2013MAGALHÃES, Ana Gonçalves. Classicismo, Realismo e Vanguarda: pintura italiana no entreguerras. In MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - MAC USP. Classicismo, realismo, vanguarda: pintura italiana no entreguerras. Organizado por Ana Gonçalves Magalhães. São Paulo: MAC USP, 2018 2ª ed. (1ª. Ed. 2013). pp. 11-27., pp. 11-15). No caso das aquisições das obras de Campigli para o antigo MAM SP, apenas Mulheres a Passeio veio por intermédio de Vendramini, justamente a que havia pertencido a Cardazzo; as demais vieram por intermédio de Gaetani31 31 Importante lembrar que quando foram transferidas do antigo MAM SP para a USP, em 1963, as cinco obras de Campigli vinham de duas doações: 1) Francisco Matarazzo Sobrinho (Os noivos); 2) Yolanda Penteado e Francisco Matarazzo Sobrinho (as outras pinturas). No segundo caso, as obras permaneceram na residência de Yolanda até serem entregues ao MAC USP em 9 de março de 1973, o que sugere seu apreço por essas obras. Mulher velada, inclusive, ficava ao lado da cama de Yolanda (conforme inscrição no verso da obra, informada pela Seção de Catalogação e Documentação do MAC USP à autora). .

Também na coleção de livros e revistas de arte de Ciccillo, encontramos a produção de Campigli. São duas publicações: o exemplar único de Poesie, de Paul Verlaine, que conta com ilustrações originais de Campigli autografado por ele e pelo editor e com dedicatória para Ciccillo32 32 Conservada na ECA USP. Para mais informações: https://bibliotecadaeca.wordpress.com/2013/09/30/colecao-ciccillo-matarazzo/. Acesso em: 21 jan. 2020. , e Il Milione, de Marco Polo (1942POLO, Marco. Il Milione. Milão: Hoepli , 1942.), com 30 litografias do artista33 33 Conservada na Fundação Edson Queiroz, Fortaleza. .

AS OBRAS DO MAC USP: ANÁLISE PLÁSTICA

Realizada após a “revelação etrusca”, a tela (Figura 2) apresenta um casal de noivos, como de acordo com título dado pelo artista35 35 Vale assinalar que não se tem conhecimento das mostras em que Os noivos tomou parte antes da aquisição para Ciccillo em 1947, muito embora tenha sido discutida por Franchi na monografia sobre o artista em 1944 (FRANCHI, 1944, pp. 9-11.) . Eles estão em posição frontal, de meio corpo, no interior de um local, como se percebe pelo traçado vertical atrás da figura feminina, que indica o encontro entre duas paredes. A figura masculina apoia a mão na parede e no lado oposto há uma sombra azul estilizada junto à sua cabeça. Trata-se dos únicos indícios de espacialidade na tela, mas não dá para saber onde o casal está. Nesse espaço, os dois estão estáticos, quase como se estivessem em um tempo congelado. A figura masculina olha para frente, de modo claro para o espectador, enquanto a feminina, que tem sua cabeça aparentemente apoiada no braço do noivo, tem o olhar levemente desviado, como que para fora do quadro, para um personagem que talvez esteja ao lado do observador da tela, ou para o nada.

Figura 2
Massimo Campigli, Os noivos, 192934 34 A documentação preservada na Seção de Catalogação e Documentação do MAC USP indica como data realização da obra o ano de 1924. Já questionada no Catalogo Ragionato do artista (ARCHIVES CAMPIGLI, 2013, p. 432), passou pela análise da pesquisadora Eva Weiss - uma das responsáveis pelo Arquivo Campigli e pela elaboração do Ragionato -, que afirmou que a obra fora certamente realizada em 1929, conforme informado em conversa de e-mail com a autora em 15 de setembro de 2019. . Têmpera sobre tela, 59 x 80 cm. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo.

Os noivos estão enquadrados horizontalmente em uma composição que privilegia três grandes porções de tamanhos praticamente iguais, dadas pelo risco que aponta para o encontro das paredes ao fundo e pelo corte imaginário no centro do nariz da figura masculina. Seu braço, apoiado na parede, coopera com a sensação de verticalidade, ao mesmo tempo que determina duas linhas horizontais, recurso largamente empregado pelo artista. O cruzamento entre essas divisões horizontais e a vertical leva o olhar do espectador para a figura feminina. Ela é, assim, a protagonista da tela, por sua posição privilegiada no encontro de tais linhas.

Os noivos é única tela do conjunto do MAC USP pintada com a técnica da têmpera. Cara ao artista naquela época, foi depois abandonada em detrimento do óleo. As representações dos noivos foram coloridas apenas nas cabeças, com uma grande economia de tons, assim como nos traços usados para construção dos rostos, bastante sintéticos. Há o predomínio do terra de siena no contorno dos corpos e nas cabeças, pescoços e braço da figura masculina. Tanto no fundo quanto em parte dos corpos foi empregado um bege pálido, que possui poucas nuances de outras aplicações de tons. A contraposição entre as figuras e o fundo claro dá um respiro à composição, confere força às figuras e ressalta o silêncio, que dá o tom à tela. Esse, no entanto, é conquistado também pelas referências utilizadas pelo artista. A frontalidade das representações, por exemplo, alude tanto à expressão da arte egípcia, vista no Louvre e valorizada por Campigli desde suas primeiras incursões artísticas, quanto à arte etrusca, por meio da cor que remete à escultura em argila etrusca e, sobretudo, àquela de uma peça em argila como o Sarcófago dos esposos (530-520 a.C.), presente no Museu de Villa Giulia e que também tem uma versão no Louvre, talvez vista pelo artista. Na pintura e no sarcófago, a representação masculina parece abraçar a figura feminina, e ambos têm uma expressão enigmática, não se olham e parecem mirar para algo que está fora da cena. O casal representado no sarcófago, assim como em Os noivos, não é uma representação fiel, mas estilizada, à diferença de que, no caso da pintura, talvez se trate de um casal imaginário.

O Sarcófago, obra tumular que carrega tanto restos mortais e objetos do morto quanto presentes post mortem, reforça a relação íntima entre as duas figuras, que esboçam um “sorriso arcaico” enquanto estão sentados em um leito, como se estivessem em um banquete36 36 Interpretação recorrente sobre a peça. Veja-se Astier (2008) , e parecem compartilhar algo com as mãos, talvez um frasco de perfume ou vinho - elementos recorrentes em representações de cerimônias funerárias da época. Vida e morte se encontram pacificamente nessa peça, e podemos sugerir que talvez isto fosse almejado por Campigli em Os noivos. Afinal, o artista afirmava ter: “… um sentimento pacífico e amigável em relação à morte que se concilia perfeitamente com o amor à vida e com a aprovação da vida. Algumas coisas me fazem pensar na morte quase com nostalgia…” (CAMPIGLI, 1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., p. 12, tradução minha)

Um quadro curioso que remete diretamente a Os noivos é Os esposos [também chamado de Dois nus]37 37 A imagem pode ser vista em: https://exchange.umma.umich.edu/resources/22309/view. Acesso em: 14 mai. 2020. , do mesmo ano, parte do acervo do University of Michigan Museum of Art. Realizado em orientação vertical, com mais elementos ao fundo, o casal nu é apresentado de corpo inteiro, e as posições das figuras estão invertidas, quase como se fossem feitas em espelho em relação à obra do MAC USP. A representação da coluna grega jônica (século VI a.C.) ao lado da representação masculina ressalta o quanto o artista tomava outras referências do mundo antigo de empréstimo, não apenas se limitando à arte etrusca. Além disso, a existência dessa pintura, quase como um par de Os noivos, acentua a prática de repetição de temas e de soluções em sua trajetória e, em especial, em algumas telas do MAC USP, como Mulheres a passeio (Figura 3).

FIGURA 3
Massimo Campigli, Mulheres a Passeio, 1929. Óleo sobre tela, 80,9 x 64,6 cm. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo.

Nessa tela, as duas hieráticas figuras da frente são as mesmas de Marché de Femmes et de pots [Donne e Vasi], de 1929, hoje parte da coleção Assitalia, e que seriam repetidas ainda em outras obras da mesma época38 38 A imagem da obra pode ser vista em: http://www.fondazionestudistoriciturati.it/wp-content/uploads/2017/11/Pieraccini_volume_immagini.pdf. Acesso em: 14 mai. 2020. .

Elena Pontiggia observa que pouco depois de uma pintura como Os Noivos, cuja composição monocêntrica era estabelecida sobre duas figuras dominantes, Campigli passa a trabalhar com uma composição policêntrica, em que a tela se subdivide em vários retângulos justapostos, como nos afrescos etruscos ou romanos, sem haver uma única perspectiva (PONTIGGIA, 2003PONTIGGIA, Elena. Campigli platonico, Campigli mediterraneo. In Institut Mathildenhöhe. Massimo Campigli: Mediterraneità und Moderne. Darmstadt: Institut Mathildenhöhe ; Milão: Mazzota, 2003, pp. 15-29., p. 24). De fato, vemos que isso ocorre de forma mais ou menos regular nas demais pinturas do MAC USP, como é o caso de Mulheres a passeio.

Nessa pintura, vemos a representação de seis figuras femininas em um espaço arquitetônico que sugere a existência de uma área externa à frente e uma interna ao fundo. Na externa, há duas figuras femininas de corpo inteiro em primeiro plano, em que uma se apoia a uma grade enquanto a outra a segura pela cintura; há mais duas figuras femininas de corpo inteiro, de costas, dirigindo-se ao espaço interno. Neste, no andar de cima, vemos dois contornos de bustos à janela.

Ainda que pintada a óleo, Campigli conseguiu obter a impressão de afresco, com uma superfície aparentemente granulada e áspera. Vemos que se empenhou em transmitir a sensação de fragmento, de ruína, visto que há partes propositalmente inacabadas, como na figura feminina da esquerda, que tem apenas parte do braço realizado.

A paleta é reduzida, com uso de siena queimado nas representações femininas no primeiro plano, enquanto ocres e beges são abundantemente aplicados no piso e na parede, cooperando, por serem quase um bloco de cor, com a sensação de aprisionamento das figuras.

A questão da luz é um elemento interessante na obra, pois ela está presente no primeiro plano, vindo da esquerda e incidindo sobre as duas figuras da frente, mas é inexistente sobre as representações do fundo, em que não há indício de sombra, ao mesmo tempo que as duas figuras de costas parecem flutuar.

Em termos compositivos, vemos que há um aceno à perspectiva geométrica, dado pelo piso em quadrados que correm ao fundo da composição39 39 A ideia de criar “falsa perspectiva” é explicada em Campigli (1995, p. 137). , um recurso que liga sua produção à tradição clássica da arte, mais propriamente aos ensinamentos do renascimento italiano. O peso desse tipo de referência era significativo, se considerarmos que, logo na primeira página de Scrupoli, Campigli fala sobre “imposições que eram mais fortes do que ele”, regras da arte às quais “devia se curvar porque as tinha adotado no momento de sua formação”.

Três blocos dividem verticalmente a composição. As duas colunas das pontas são equivalentes em medidas, enquanto a do meio é um pouco mais estreita, emoldurando a figura com seio desnudo e de saia longa. Algumas linhas horizontais dadas pela janela, pelo gradil e pelos elementos arquitetônicos cortam a tela, gerando vários encontros e estabelecendo uma grade invisível. Sobre a geometrização, Campigli explica que há uma tendência em sua direção em toda pintura moderna, mas que, em seu caso, talvez não se trate apenas de algo exclusivamente estético, mas que também sirva “para manter minhas figuras a uma certa distância da realidade ou para incluí-las em um ritmo, mas, por outro lado, também aprisioná-las, talvez castigá-las, por um impulso sádico que existe em mim e se manifesta contra minha vontade, nas pinturas” (CAMPIGLI, 1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., p. 44, tradução minha).

Assim, as representações, que aparentemente estão num espaço fora do tempo, talvez imaginado como idílico por conta do título Mulheres a passeio, ao estarem fixamente distribuídas nesses três grandes blocos verticais, nessas grades, reforçam a sensação de que são prisioneiras, como desejado por Campigli40 40 De acordo com sua fala: “No fundo não pinto além de prisioneiras” (CAMPIGLI, 1955, p. 12). . Há, portanto, a contradição entre o título, a estrutura compositiva e o tratamento plástico empregado.

Diferente das figuras do primeiro plano, as quatro do fundo são vultos; as da janela no andar de cima são quase dois manequins, bustos sem vida, enquanto as que estão de costas transmitem a mesma sensação, sobretudo pela ausência de braços. Tanto as figuras de costas quanto as duas da frente têm seus corpos em formato de ampulhetas, elemento recorrente em suas composições (UN’ORA…, 2012Un’ora con Massimo Campigli. Entrevista de Massimo Campigli para o programa Incontri da Radiotelevisione Italiana (RAI) em 1969. [S. l.]: [s. n.], 2012. Publicado pelo canal jjpcondor. 1 vídeo (52 min). Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Tf2d45KPU6w . Acesso em: 5 dez. 2019.
https://www.youtube.com/watch?v=Tf2d45KP...
). O olhar do observador triangula entre as figuras no primeiro plano, as figuras de costas e os vultos imediatamente acima num movimento ininterrupto.

O espaço terracota com nichos, embora sem indicação precisa de onde seja, pode carregar a lembrança das Termas de Diocleciano, em Roma41 41 Essas obras podem ser visualizadas em: https://www.museonazionaleromano.beniculturali.it/it/163/terme-di-diocleziano. Acesso em: 21 fev. 2020. , que haviam impressionado Campigli, como indicam suas palavras:

Em Villa Giulia, e também depois nas Termas de Diocleciano, minhas relações com a morte se tornaram mais claras (…) não é de surpreender que minha pintura a partir desse momento tivesse uma nova identidade e finalmente começasse a ser o que seria por tantos anos. Lá encontrei um mundo de serenidade, o céu azul, as plantas queimadas, os rostos de terracota, um busto sorridente pelo qual me apaixonei (…). (CAMPIGLI, 1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., p. 125, tradução minha)

Nessa passagem, vemos novamente a questão da morte em seu discurso, tema que poderia se aplicar a Mulheres a passeio se pensarmos que esse espaço idílico ao qual as figuras estão presas, ou fadadas a habitar, poderia ser um lugar de não vida em que elas são esculturas petrificadas.

Uma das figuras está nua, enquanto a outra veste apenas uma saia de pregas marcadas que ela segura, deixando apenas um de seus pés aparente. Pouco usual em sua produção, o pé aparente sob a saia drapeada que veste metade do corpo da figura poderia ter ligação com as esculturas da Antiguidade e com os drapejados conhecidos pelo artista.

Vemos também a presença da arte egípcia nas figuras da frente42 42 Campigli não escondia a presença da arte egípcia em sua pintura. Cf. CAMPIGLI (1995, p. 42). e da Roma Imperial e suas termas, da arte metafísica de De Chirico e Carrà nas figuras de costas que flutuam e nos bustos-manequins sem vida, tudo isso colocado em um espaço pictórico que se propõe índice de um fragmento retirado de sítio arqueológico. Assim, ele consegue fazer arte “de museu” ao realizar uma bricolagem altamente moderna.

Mulheres a passeio do MAC USP fez parte de prestigiosas coleções43 43 De acordo com dados fornecidos por Eva Weiss, a obra fez parte da coleção da alsaciana Jeanne Bucher, do marchand Julien Levy, de Nova York, e de Cardazzo. e foi bastante exposta antes de chegar ao Brasil em 194644 44 Dentre o conjunto das cinco obras do MAC USP, Mulheres a passeio é a que foi mais reproduzida e que contou com maior circulação expositiva não exclusiva à época de sua feitura. Em 1929, figurou no “Le Salon des Tuileries” no Palais des Expositions, em Paris, depois, além da mostra dos “Italianos de Paris”, em 1930, participou de uma mostra individual na Julien Levy Gallery de Nova York em 1931 e em exposições entre 1941 e 1942 em Roma e Veneza, circunscrita na coleção Cardazzo. A última mostra que se tem notícia antes da vinda ao Brasil foi a exposição individual no Stedelijk Museum em 1946. Quanto à reprodução em publicações, destacamos como uma das mais importantes a sua monografia publicada no contexto da série Arte Moderna Italiana, em 1931, pela Hoepli, e sua versão francesa, publicada por Bucher no mesmo ano. Depois, em 1944, é reproduzida novamente na monografia editada pela Hoepli no escopo da mesma série, mas desta vez com texto de Raffaello Franchi (1944). Ainda na década de 1940, a obra ilustraria artigos na revista Emporium assinados por críticos como Carlo de Roberto (1942) e Giuseppe Marchiori (1946), entre outras publicações, como Giani (1942), Franchi (1943), Solmi (1943) e Carrieri (1945). . Destacamos sua participação junto com outras nove pinturas suas na importante exposição dos Italianos de Paris em Milão em 1930, a “Prima Mostra di pittori italiani residenti a Parigi. Por seu conjunto exposto, Campigli seria definido por Waldemar George como um “pioneiro da arte mental”, que conseguia criar um universo onde os mitos encontravam seus lugares perfeitos ao lado dos postulados da ciência, do espírito crítico e da inquietude moderna (GEORGE apudDELL’ARCO, 1998dell’Arco, Maurizio Fagiolo (ed.). Les Italiens de Paris: de Chirico e gli altri a Parigi nel 1930. Milão: Skira , 1998., p. 61).

Uma pintura muito semelhante a Mulheres a passeio, intitulada As amigas, de 1929 e parte do acervo do Moderna Museet em Estocolmo45 45 A obra pode ser vista em: https://sis.modernamuseet.se/en/view/objects/asitem/search$0040/0/primaryMaker-asc?t:state:flow=1a4b4878-51d6-4872-ba2a-09f73f98b8a8. Acesso em: 14 mai. 2020. , também foi exposta numa mostra junto aos Italianos de Paris46 46 A segunda mostra do grupo em Paris, na Galerie Zak. , o que indica que esse tipo de produção era aquele pelo qual o artista queria obter reconhecimento no seio dessa agremiação. As diferenças de As amigas com relação à pintura do MAC USP é que, na primeira, além do formato horizontal, há uma abundância de detalhes, com contornos mais precisos e com uma coluna jônica no lado direito.

Como comentado, do final dos anos 1930 até os anos 1950, a linguagem plástica da pintura de Campigli não passa por mudanças radicais. E, de fato, Três mulheres (Figura 4)47 47 No mesmo ano em que foi pintada, Três mulheres foi exposta na individual do artista na Galleria Barbaroux de Milão, única exposição de que se tem notícia antes da vinda ao Brasil, quando foi comentada pelo crítico Raffaele Carrieri (CARRIERI apudMANTURA; FERRARIS, 1994, p. 16). carrega as mesmas características das produções que o pintor vinha desenvolvendo até então. As três figuras femininas frontais de corpo inteiro vestidas com seios desnudos à frente estão em contraposição a um fundo e um piso novamente todo em siena queimado. Elas olham para frente, cada uma em uma atitude diferente, como se se oferecessem ao olhar do espectador. Mas, ainda que estejam fazendo alguma coisa, puxando a lateral da saia ou com os braços à cabeça, são totalmente estáticas. Não sabemos se elas se encontram em um espaço fechado ou aberto, apenas que há uma decoração na parte superior, quase como se elas estivessem emolduradas em nichos arquitetônicos.

Figura 4
Massimo Campigli, Três Mulheres, 1940. Óleo sobre tela, 46,3 x 36,5 cm. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo.

Pintada a óleo, a tela recebeu poucas camadas de tinta, parecendo inacabada. Diferentemente de Mulheres a passeio, em que o artista busca o efeito de fragmento, aqui realmente a pintura parece não ter sido concluída. Isso se percebe pelo fato da figura da esquerda de vestido verde ter seu braço posicionado sobre um quadril de proporções irreais e dos seios estarem em um ângulo de visão diferente daquele do restante do corpo, quase como se o artista ainda estivesse estudando como resolver a questão - algo que fica claro pelo esboço aparente. Ainda assim, olhos e bocas receberam maior acabamento com um pincel extremamente fino, como se a coisa mais importante fosse estabelecer o contato com o observador.

O tom predominante da tela é o siena queimado que cobre tudo, com exceção das três representações. Vemos que há uma economia grande de cores, e com exceção do siena, o artista usa as cores primárias e o verde nas roupas e adornos.

Na tela de pequena dimensão, não há projeção de sombras, e a pouca iluminação parece difusa. O único elemento que o artista oferece é o piso quadriculado, em referência à perspectiva geométrica e que leva o olhar do espectador diretamente às figuras, aproximando-os, já que o que se vê na sequência é o fundo, construído com pinceladas verticais até encontrar o adorno ou friso. Não fosse pelos nichos atrás das representações, elas pareceriam colagens, figuras flutuantes no espaço.

A três figuras de tamanhos praticamente iguais ocupam quase a totalidade da superfície em uma distribuição calculada, já que foram enquadradas dentro de três blocos verticais sugeridos pelos nichos, dentro de uma composição com margens quase iguais nas laterais e nas partes de cima e de baixo. O formato das três representações é novamente aquele da ampulheta, que, mais do que um recurso formal, tem a função simbólica de representar o tempo e sua passagem. Isso poderia assumir várias camadas de significados na produção do artista, ligando-se internamente com sua necessidade de permanência e de pertencimento e, plasticamente, como símbolo de um tempo que não corre, cena atemporal que pode ser lida como idílica ou como aprisionadora. E qualquer que seja o motivo, a tela parece ter um espectador primordial: o próprio artista.

Novamente, a linguagem plástica empregada faz referência a várias épocas, seja a cultura artística etrusca, no tom terracota, que remete à escultura em argila ou ao modo de segurar os vestidos, seja o mundo egípcio, na frontalidade e imobilidade das representações ou nos seus vasos canópicos, ou mesmo na alusão a figuras minoico-micênicas.

Poderíamos, ainda, pensá-la à luz da leitura do estudioso Simone Rambaldi, que acredita que a produção de Campigli foi fortemente marcada por estelas e monumentos funerários romanos, o que nessa pintura significaria, por exemplo, relacioná-la à necrópole Statilia, em Roma, na qual os bustos estão contidos dentro de nichos (RAMBALDI, 2014RAMBALDI, Simone. Massimo Campigli e i Ritratti Funerari Romani. Bollettino D’arte, Roma, ano 89, n. 22-23, pp. 165-176, 2014. (Série VII).).

Do conjunto de obras do MAC USP, Mulher velada48 48 Tudo indica que a obra não chegou a ser exposta antes de sua aquisição para o antigo MAM SP, sendo vista na Itália e reproduzida em ensaios sobre o artista apenas posteriormente. (Figura 5), Mulheres ao piano49 49 A única mostra de que Mulheres ao piano tomou parte antes de vir ao Brasil foi a individual do artista no Stedelijk Museum. Na Itália, não havia contado com comentários específicos em catálogos ou artigos de jornais. (Figura 6) e A cantora (Figura 7)50 50 Não se tem notícias de exposições de que tenha tomado parte ou artigos em que foi reproduzida antes de ser adquirida pelos Matarazzo. foram pintadas após o final da Segunda Guerra Mundial.

Figura 5
Massimo Campigli, Mulher velada, 1946. Óleo sobre tela, 78 x 48,5 cm. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo.

Figura 6
Massimo Campigli, Mulheres ao piano, 1946. Óleo sobre tela, 69,5 x 80 cm. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo.

Figura 7
Massimo Campigli, A cantora, 1949-1950. Óleo sobre tela, 57,3 x 68,3 cm. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo.

Em Mulher velada, a figura de meio corpo em posição frontal ocupa a quase totalidade da tela e parece estar imóvel. Vestida inteiramente, apenas suas mãos, pescoço e parte do colo estão desnudos. Seus olhos chamam a atenção por estarem desalinhados, terem formatos ligeiramente diferentes e por parecerem mirar o nada. Efeito nada aleatório, trata-se de algo desejado pelo artista, que afirmava que a “qualidade desse olhar é provavelmente uma característica da minha pintura. É um pouco inexpressivo, ausente, sem drama, sem pensamento”, representado por dois olhos independentes que “são mais pictóricos porque mais distantes da realidade” (CAMPIGLI, 1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., pp. 137-138, tradução minha). E conclui: “Pintei em alguns quadros olhos dos quais um traz uma expressão um pouco contente e o outro, um pouco triste. O resultado é de uma expressão vaga, complexa, que hipnotiza.”

A explicação do artista ilumina o que vemos na obra, ao mesmo tempo que esclarece seu desejo de hipnotizar o outro, prática que o ocupou por alguns anos.

Enfeitada com chapéu e colar, a figura está protegida como se estivesse escondendo o corpo. O fundo todo em ocre, construído sobretudo por linhas verticais, não dá indícios do espaço em que ela se encontra. No entanto, um discreto friso emoldura a tela, dando a sensação de fechamento do espaço. É possível que a figura seja novamente uma “prisioneira” que tenta, de alguma forma, controlar o que deve dar a ver ao seu principal observador - provavelmente, o artista. Novamente, uma passagem autobiográfica lança pistas sobre suas intenções:

Como não me questionar se o fato da minha pintura ter ignorado por anos as pernas de suas mulheres (e ainda agora seus pés mal aparecem) não se explique com as várias saias que as escondiam do menino que eu era há 50 anos. Ainda hoje, de uma mulher vejo apenas o rosto e as mãos. E para que é a forma fechada, a tendência a fechar, senão para aprisionar e imobilizar? (CAMPIGLI, 1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., p. 43, tradução minha)

Assim, podemos imaginar que a figura se esconda, se proteja, como nas suas memórias, e que o pintor tente desesperadamente mantê-la sob a sua vigilância.

Pintada em óleo sobre tela, o artista parece ter empregado várias mãos de tinta, retirando-as em algumas partes ao formar sulcos. A superfície, de aspecto matérico, granulado e arenoso, tem como tom predominante o ocre.

A tela é marcada pela geometrização, e novamente o formato de ampulheta determina a figura feminina. Ela parece estar estaticamente enclausurada dentro desse espaço retangular, quase como se Campigli desejasse que estivesse incrustrada ao fundo, o que dá a ela a sensação de fragmento e, talvez, de mural.

Como vimos, os temas e a “pátina antiga” se mantêm nessa produção do artista e se repetem em Mulheres ao piano (Figura 6).

Nessa pintura, vemos duas figuras femininas em meio corpo e em posição frontal tocando piano em um local fechado, decorado com arabescos ao fundo, que talvez façam parte de biombos. Elas parecem estar em pé, não sentadas, como pressuposto em um concerto, e usam vestidos decotados, de cintura marcada. Olham para frente em vez de para o teclado, e seus dedos, inclusive, nem parecem tocá-lo. Estão estáticas, esboçando um sorriso, quase como se estivessem posando para uma foto ou simplesmente hipnotizadas. Há algo de artificial em toda cena. Ou talvez isso fosse o que repetiu Campigli: nas suas fantasias, suas mulheres eram “prisioneiras”, a quem ele desejava por detrás de um vidro - etiquetadas e intocadas, como nos museus (CAMPIGLI, 1955CAMPIGLI, Massimo. Scrupoli. Veneza: Cavallino, 1955., p. 11).

A pintura é realizada com economia de cores, a paleta varia entre tons terrosos, alaranjados, ocres, de preto - para o teclado do piano - e de verde-oliva no vestido da figura feminina à direita. Há uma luminosidade mais difusa, que vem do fundo da tela ao mesmo tempo que o nariz e a mão esquerda da figura feminina trajada em vestes ocre, pintados em tons mais claros, indicam que haja iluminação vindo da frente também. Logo, é possível pensar que o artista quisesse sugerir que justamente o espaço do observador, ou melhor, o dele próprio, fosse aberto, como um emissor de luz para o espaço em que se encontravam suas “prisioneiras”.

Contornadas em marrom, essas figuras são ligeiramente diferentes no que concerne aos tons de pele, aos penteados, às vestimentas e à altura. O observador é levado a confrontar essas representações dentro desse espaço, algo cuidadosamente calculado por Campigli:

Eu componho o quadro com muito cuidado (…) quando faço figuras combinadas e semelhantes, obtendo um resultado da mesma ordem: o olho é induzido a ir e vir de uma figura a outra para compará-las. (…) O vai e vem do olho como um pêndulo…

Em seguida, Campigli distingue as figuras do fundo ao registrar o distanciamento entre eles, mas o teclado voltado à frente da composição lhe oferece outro ângulo de visão, pois é como se fosse visto de cima, em oposição à visão frontal dada pelas figuras e o fundo.

A geometria é o elemento estruturante da composição. Há uma linha que corta verticalmente a superfície em duas partes, e cada uma das figuras femininas está dentro de uma delas. Apenas seus braços “invadem” o bloco ao lado, formando um “X” justamente onde corre a linha do fundo em vertical. Esses blocos possuem uma decoração em arabesco, elemento ornamental recorrente na produção de Campigli. Na leitura de Eva Weiss sobre uma pintura semelhante, os arabescos funcionam simbolicamente como grades, assim como o teclado, que parece ser uma barreira em razão de sua posição. Ou seja, esses dois elementos, fundo e teclado, somados, enclausuram as figuras no espaço (WEISS, 2003WEISS, Eva, ‘Nel regno dei segni’ Sulla vita e sull’opera di Massimo Campigli In Institut Mathildenhöhe. Massimo Campigli: Mediterraneità und Moderne. Darmstadt: Institut Mathildenhöhe ; Milão: Mazzota, 2003, pp. 31-59., p. 48).

Mulheres ao piano, assim como as demais obras analisadas, combina referências como a frontalidade egípcia e o sorriso arcaico - grego e etrusco. O tom de pele diferente das figuras também remonta à produção etrusca, e a diferenciação entre masculino e feminino a partir de tons mais claros ou avermelhados, nesse caso, suprime o masculino, como se apenas a figura feminina lhe bastasse. Annateresa Fabris, em verbete sobre a obra, ressalta que ela também rememora a pintura mural (FABRIS, 1988FABRIS, Annteresa. Massimo Campigli. In Amaral, Aracy A. (org). Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo: perfil de um acervo. São Paulo, MAC USP: Techint, 1988, p. 126., p. 126)

Como vimos, dentre o conjunto de Campigli no MAC USP, A cantora é a única obra que chega ao antigo MAM SP por intermédio da I Bienal de São Paulo51 51 Na I Bienal de São Paulo exibiu: Seis cabeças (1949), Quatro tecedoras (1950), A cantora (1950), Busto (1950), Nu (1950), Jogo de Cartas (1950), A torre e a roda (1951), Duas atrizes (1950-1951) e Diabolô (1951). . Com ela é doado o bronze Cardeal, 1948, de Giacomo Manzù. Segundo artigos de jornais e correspondências localizadas no Arquivo da Bienal de São Paulo, o governo italiano decidira doar obras de artistas de “valor incondicional” com anuência dos próprios e intermediação da Bienal de Veneza (DOADAS…, 1951Doadas ao Museu de Arte Moderna de São Paulo uma tela de Campigli e uma escultura de Manzú. Correio Paulistano, São Paulo, 22 nov. 1951.; MATARAZZO, 1951MATARAZZO, Ciccillo. [Correspondência]. Destinatário: Mario Augusto Martini, embaixador da Itália no Brasil. São Paulo, 24 nov. 1951. 1 carta. Arquivo Wanda Svevo da Fundação Bienal de São Paulo.).

Na tela, vemos duas figuras femininas de corpo inteiro, uma de frente para o espectador com braço erguido - e é a protagonista, que dá título à obra -, e outra de perfil, sentada, que toca o piano. Essa segunda figura tem uma posição congelada e não olha para o instrumento, mas para frente, ou seja, para a parede, enquanto a outra olha para o observador e insinua um movimento, ao ter os lábios levemente entreabertos, o que faz imaginar que ela cante. Ela segura um papel com o outro braço, junto ao corpo, mas ainda assim parece estática.

As figuras estão num espaço aparentemente fechado e diminuto, sem janelas ou decoração alguma, nada que sugira a localização desse evento ou local. O tom predominante da obra é o ocre, empregado no piso, teto e fundo, como que emoldurando as figuras femininas pela cor.

O piano tem sua face frontal mais escurecida, sem incidência de luminosidade, em oposição a outras partes que refletem a cor das paredes, vindo do lado direito e de cima. O ocre aplicado ao fundo e ao piso confere uma sensação de encerramento dessas figuras, assim como o discreto friso que emoldura a composição. Colabora com isso o uso da forma geométrica do cubo, levando a crer que a única possibilidade de abertura é pela frente. Nesse cubo que estrutura o espaço há o tapete, que segue proporcionalmente o formato do piso e delimita o espaço do piano e da figura que o toca, enquanto a cantora desloca-se ligeiramente para frente. E é justamente ela com seu braço erguido ao alto, que indica uma diagonal que corta a tela, em oposição às formas retangulares citadas e à vertical que corta o quadro ao meio, destinando uma metade da tela a cada figura. O piano serve também como elemento estruturador ao traçar linhas horizontais e verticais que se cruzam. O procedimento fica claro nas palavras do artista:

(…) sempre volto para cruzar uma forma vertical com uma horizontal, como se vê em muitos quadros, e às vezes há duas mulheres, uma deitada e uma de pé, outras vezes há o pretexto da forma horizontal do cavalo ou cachorro ou do piano ou sofá. Talvez o impulso para essa composição me venha simplesmente de uma boa regra de composição (…). (CAMPIGLI, 1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., p. 143, tradução minha)

Não é à toa, portanto, que a disposição de elementos nessa tela esteja totalmente calculada, e que tudo convirja para a sugestão de que as figuras estejam enclausuradas apenas para seu observador, talvez, de novo, para apenas um: o artista. Seria possível sugerir tratar-se de uma visão “suavemente” sádica, já que as figuras se encontram encerradas e isoladas em um recinto fechado, apertadas em suas vestimentas.

Realizada entre 1949 e 1950, a obra segue o mesmo procedimento das demais analisadas, ao trazer uma soma de referências a outras épocas, como a escolha da paleta de cores e a representação da figura sentada de perfil, de acordo com a arte egípcia, e cujo penteado remonta às representações etruscas.

A cantora foi pintada pouco antes de sua exibição na Bienal de São Paulo, mas o assunto foi trabalhado por Campigli em outras telas em diferentes formas de apresentação. Um desses casos pôde ser visto pelo público brasileiro na Galeria Sistina, em 1960, como se vê pelo recorte de jornal (Figura 8). Notam-se diferenças com relação à pintura do MAC USP, sobretudo porque o fundo é composto por uma plateia que assiste sentada ao concerto. Além disso, a posição do braço da figura que canta está invertida, não há um tapete geometricamente posicionado e as pinceladas parecem mais aparentes, soltas. Mas o que mais chama a atenção é a cantora estar de costas para sua plateia, o que talvez reforce a ideia de que o foco de sua ação seja o “espectador-pintor”.52 52 O artigo também foi encontrado na pasta de Campigli no Arquivo Wanda Svevo da Fundação Bienal de São Paulo.

Figura 8
“Massimo Campigli”, matéria de José Geraldo Vieira publicada na Folha de S. Paulo, 14 de fevereiro 1960VIEIRA, José Geraldo. Massimo Campigli. Folha de S.Paulo, São Paulo, 14 fev. 1960. Ilustrada, p. 5. . Caderno Ilustrada, página 552 52 O artigo também foi encontrado na pasta de Campigli no Arquivo Wanda Svevo da Fundação Bienal de São Paulo. .

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Uma infância remota e imóvel emerge dela: é como uma delicada escavação de fragmentos pré-históricos” (CARRIERI, 1941CARRIERI, Raffaele. Massimo Campigli. Milão: Hoepli, 1941., p. 5, tradução minha). Essas são as palavras de Raffaele Carrieri na monografia dedicada a Campigli em 1941, quando sua história de infância ainda não era conhecida. O trecho nos faz pensar sobre a ideia da infância do pintor cultivada pelo artista e por aqueles que se debruçaram sobre sua produção, relacionada às suas raízes toscanas, à sua posição como artista singular e à sua pintura como fragmento físico e psicológico. Tais conceitos expressos nessa e em outras publicações, além dos testemunhos autobiográficos, foram providenciais para que Campigli criasse o mito em torno de si, por meio do qual pode colher, em vida, frutos materiais e imateriais. Não por acaso, os escritos de Campigli fundamentaram sua fortuna crítica na Itália e na França, mas também em outros países, como no Brasil53 53 No meio brasileiro, as palavras publicadas em Scrupoli se fazem ecoar. Nos anos imediatamente seguintes à sua publicação, trechos são citados, por exemplo, em Silva (1956, 1957) ou páginas inteiras são reproduzidas em artigos de jornais, como em “I miei visi vogliono essere consolante” (1957). .

Mas, para além de definir seu campo teórico e formal, o processo de trazer uma matriz arqueológica para a superfície plana da tela também tinha algo de confessional e terapêutico, como se escavasse dentro de si para depois povoar o mundo de fora com figuras mortas-vivas, ao mesmo tempo em que podiam ser entendidas como figuras no museu para sua admiração ou para seu aprisionamento, o que faz pensar justamente nos vasos etruscos emparedados dentro de armários apertados do museu de Villa Giulia. A pintura o leva à busca de sua própria história e vice-versa, num movimento possivelmente infinito. Tudo isso é apresentado em seus depoimentos, que procuraram reposicioná-lo na época de revisão das vanguardas artísticas no pós-Segunda Guerra, quando via-se nascer uma série de autobiografias de outros artistas italianos com o mesmo intuito, como Tutta la vita di un pittore, de Severini, publicada em 1946.

Todos esses aspectos estão latentes no conjunto de pinturas de Campigli do MAC USP. Ele mapeia sua produção, expressa seus vínculos com a Itália, remonta aos escritos autobiográficos e, assim como outras obras italianas do acervo, põe acento nos debates e anseios da época. Estes vão desde a busca por uma linguagem em meio aos artistas do Novecento e da Escola de Paris ao inegável apoio recebido pelo sistema artístico formado durante o fascismo, com seus agentes, instituições e suas relações exteriores. Os artistas no entreguerras se projetaram a partir desse sistema, mesmo que depois tenham procurado desvincular sua imagem dele. Foi certamente essa associação que obliterou por tanto tempo a qualidade plástica e a inventividade dessas obras italianas, muitas vezes marcadas como antimodernas. O caso de Campigli, muito bem representado pelas pinturas do MAC USP, demonstra precisamente o contrário.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Eva e Marcus Weiss, do Arquivo Campigli, e à professora doutora Marlene Suano.

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    » https://www.youtube.com/watch?v=Tf2d45KPU6w
  • VIEIRA, José Geraldo. Massimo Campigli. Folha de S.Paulo, São Paulo, 14 fev. 1960. Ilustrada, p. 5.
  • WEISS, Eva, ‘Nel regno dei segni’ Sulla vita e sull’opera di Massimo Campigli In Institut Mathildenhöhe. Massimo Campigli: Mediterraneità und Moderne. Darmstadt: Institut Mathildenhöhe ; Milão: Mazzota, 2003, pp. 31-59.
  • XXIV Biennale di Venezia. La XXIV Biennale di Venezia. Veneza: Edizioni Serenissima, 1948.

ARQUIVOS CONSULTADOS

  • MAC USP
  • MASP
  • Wanda Svevo/ Fundação Bienal de São Paulo
  • 1
    Como nos leilões realizados por Soraia Cals (2010) e James Lisboa (2017).
  • 2
    Instituição que possui uma litogravura sua: Interior da Sala de espetáculo. Dados da obra em: http://pinacoteca.org.br/acervo/obras/. Acesso em: 5 mai. 2020.
  • 3
    Leirner possui duas gravuras suas: Donna in blu (1959) e A Giuditta (1953).
  • 4
    A tela Duas Atrizes, produzida entre 1950 e 1951, foi adquirida na I Bienal de São Paulo, mas perdida no incêndio do MAM RJ em 1978.
  • 5
    Diremos “antigo MAM-SP” em referência ao Museu de Arte Moderna de São Paulo até o ano de 1962, quando suas obras foram transferidas por Ciccillo para a Universidade de São Paulo (USP).
  • 6
    Sobre a atuação de Sarfatti e suas relações com Brasil, cf.: MAGALHÃES (2016)MAGALHÃES, Ana Gonçalves. Classicismo Moderno: Margherita Sarfatti e a Pintura Italiana no Acervo do MAC USP. São Paulo: Alameda, 2016..
  • 7
    Há uma série de pesquisas de iniciação científica e pós-graduação orientadas por Magalhães em torno desses artistas.
  • 8
    Com exceção das experiências abstratas que tiveram mais expressividade a partir da década de 1930.
  • 9
    Sobre os Italianos de Paris no acervo do MAC USP, cf. ROCCO (2013)ROCCO, Renata Dias Ferraretto Moura. O Caso dos Italianos de Paris. In MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - MAC USP. Classicismo, realismo, vanguarda: pintura italiana no entreguerras. Organizado por Ana Gonçalves Magalhães. São Paulo: MAC USP , 2018, 2ª ed. (1ª. Ed. 2013), pp. 31-35..
  • 10
    Exposição primeiramente realizada na sede na Cidade Universitária, da Universidade de São Paulo, em 2013; depois, na nova sede no Ibirapuera, entre 2013 e 2017, e, por último, no Centro Cultural Branco do Brasil de Brasília, em 2018.
  • 11
    Sobre a escolha da Itália como destino, a justificativa não é conhecida, já que não há documentação comprobatória de qualquer ligação prévia da família com o país.
  • 12
    Isso mesmo entre escritos de outros autores que negam que Campigli tenha tido uma relação mais profunda com o Regime ou que afirmam que seu interesse pela política era algo marginal. Cf.: INSTITUT MATHILDENHÖHE (2003Institut Mathildenhöhe. Massimo Campigli: Mediterraneità und Moderne. Darmstadt: Institut Mathildenhöhe; Milão: Mazzota, 2003., p. 44).
  • 13
    Pautamos-nos nos comentários de Campigli sobre o assunto, mas é crível pensar que ele talvez desejasse obter posteriormente reconhecimento em território alemão, de onde precisou sair “clandestinamente” quando nascido. Talvez, por isso também não tenha levado a cabo a publicação de Nuovi Scrupoli, crítica aos alemães.
  • 14
    Trata-se da primeira vez que usa o nome Massimo Campigli. Esse foi, segundo Eva Weiss, uma tradução literal ou onomatopeica de seu nome alemão para o italiano, conforme relatado em troca de e-mails com a autora em 10 de abril de 2020.
  • 15
    Não nos esqueçamos que, poucos anos depois, em Paris, é publicado por André Breton o “Le Manifeste de surréalisme”. Campigli afirmava ser refratário às suas ideias (UN’ORA…, 2012Un’ora con Massimo Campigli. Entrevista de Massimo Campigli para o programa Incontri da Radiotelevisione Italiana (RAI) em 1969. [S. l.]: [s. n.], 2012. Publicado pelo canal jjpcondor. 1 vídeo (52 min). Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Tf2d45KPU6w . Acesso em: 5 dez. 2019.
    https://www.youtube.com/watch?v=Tf2d45KP...
    ).
  • 16
    Para saber mais sobre o assunto, cf.: PONTIGGIA (2005)PONTIGGIA, Elena. Il ritorno all’ordine. Itália: Abscondita, 2005; e GUGGENHEIM MUSEUM (2010)GUGGENHEIM MUSEUM. Chaos and Classicism. Nova York: Guggenheim Museum, 2010. . Para reflexos no caso sul-americano, cf. CHIARELLI (2003)CHIARELLI, Tadeu (org.). Novecento Sudamericano: relazioni artistiche tra Italia e Argentina, Brasile, Uruguay. Milão: Skira, 2003..
  • 17
    A obra pode ser vista em: https://www.gamtorino.it/en/node/35356. Acesso em: 10 mai. 2020.
  • 18
    A exposição tinha tido sua semente na mostra organizada por Sarfatti em 1923, em Milão, com um grupo de seis pintores batizado de Novecento. Para mais informações sobre o Novecento, cf. MAGALHÃES (2016)MAGALHÃES, Ana Gonçalves. Classicismo Moderno: Margherita Sarfatti e a Pintura Italiana no Acervo do MAC USP. São Paulo: Alameda, 2016..
  • 19
  • 20
    Acervo MART Rovereto. A imagem pode ser vista em: http://www.mart.tn.it/collections.jsp?ID_LINK=688&area=137&id_context=3389. Acesso em: 14 mai. 2020.
  • 21
    O pintor narra o episódio em Campigli (1955CAMPIGLI, Massimo. Scrupoli. Veneza: Cavallino, 1955., pp. 31-32).
  • 22
    Ele usa a expressão em referência ao episódio em Campigli (1955CAMPIGLI, Massimo. Scrupoli. Veneza: Cavallino, 1955., pp. 31-32).
  • 23
    Antiga Tuscia, dos Tuscoi, ou Tirrehnia, dos Tyrsoi, povo pré-romano, berço dos primeiros reis de Roma, região modernamente chamada de Etruria, nas atuais regiões da Toscana, Umbria e Lácio, e seus habitantes, de etruscos.
  • 24
    Citamos o trecho de Nuovi Scrupoli, mas o artista já tinha afirmado o mesmo em Scrupoli (CAMPIGLI, 1955CAMPIGLI, Massimo. Scrupoli. Veneza: Cavallino, 1955., pp. 31-32).
  • 25
    As imagens do sarcófago e da escultura podem ser vistas em: https://www.museoetru.it/. Acesso em: 7 fev. 2020.
  • 26
    Como se pode ver pelo histórico do museu e fotos da expografia em: http://luciademarchis.altervista.org/?page_id=94. Acesso em: 15 dez. 2019.
  • 27
    Importante nos atentarmos para essa afirmação, porque muitos artistas impactados pela arte etrusca nos anos 1920 a abandonam no decênio seguinte, sobretudo após a promulgação das Leis Raciais, em 1938, na Itália, quando a origem e “raça” etruscas passam a ser dadas como “incertas”. Sobre o assunto, cf. HAACK (2016)HAACK, Marie-Laurence. Conclusion. La crise de l’étruscologie de l’époque du fascisme et du nazisme. In HAACK, Marie-Laurence. Les Étrusques au temps du fascisme et du nazism. Pessac: Ausonius Éditions, 2016. pp. 281-286. Disponível em: Disponível em: http://books.openedition.org/ausonius/10707 . Acesso em: 12 maio 2020.
    http://books.openedition.org/ausonius/10...
    .
  • 28
    Nessa obra, prefaciada pelo próprio artista, ele já reforça sua paixão pelos “museus e as necrópoles, a Villa Giulia e o Vaticano”.
  • 29
    Mesmo ano em que o artista assina o “Manifesto Pintura Mural” com Mario Sironi, Severini, Achile Funi e Carrà. Cf.: SIRONI (1933)SIRONI, Mario. Manifesto della Pittura Murale. La Colonna, Milão, dez. 1933. pp. 11-12..
  • 30
  • 31
    Importante lembrar que quando foram transferidas do antigo MAM SP para a USP, em 1963, as cinco obras de Campigli vinham de duas doações: 1) Francisco Matarazzo Sobrinho (Os noivos); 2) Yolanda Penteado e Francisco Matarazzo Sobrinho (as outras pinturas). No segundo caso, as obras permaneceram na residência de Yolanda até serem entregues ao MAC USP em 9 de março de 1973, o que sugere seu apreço por essas obras. Mulher velada, inclusive, ficava ao lado da cama de Yolanda (conforme inscrição no verso da obra, informada pela Seção de Catalogação e Documentação do MAC USP à autora).
  • 32
    Conservada na ECA USP. Para mais informações: https://bibliotecadaeca.wordpress.com/2013/09/30/colecao-ciccillo-matarazzo/. Acesso em: 21 jan. 2020.
  • 33
    Conservada na Fundação Edson Queiroz, Fortaleza.
  • 34
    A documentação preservada na Seção de Catalogação e Documentação do MAC USP indica como data realização da obra o ano de 1924. Já questionada no Catalogo Ragionato do artista (ARCHIVES CAMPIGLI, 2013ARCHIVES CAMPIGLI. Massimo Campigli: catalogue raisonné. Milão: Silvana, 2013., p. 432), passou pela análise da pesquisadora Eva Weiss - uma das responsáveis pelo Arquivo Campigli e pela elaboração do Ragionato -, que afirmou que a obra fora certamente realizada em 1929, conforme informado em conversa de e-mail com a autora em 15 de setembro de 2019.
  • 35
    Vale assinalar que não se tem conhecimento das mostras em que Os noivos tomou parte antes da aquisição para Ciccillo em 1947, muito embora tenha sido discutida por Franchi na monografia sobre o artista em 1944 (FRANCHI, 1944FRANCHI, Raffaello. Massimo Campigli. Milão: Hoepli , 1944., pp. 9-11.)
  • 36
    Interpretação recorrente sobre a peça. Veja-se Astier (2008)ASTIER, Marie-Bénedicte. The « Sarcophagus of the Spouses ». Louvre, Paris, 20 abr. 2008. Disponível em: Disponível em: https://www.louvre.fr/en/oeuvre-notices/sarcophagus-spouses . Acesso em: 21 jan. 2020.
    https://www.louvre.fr/en/oeuvre-notices/...
  • 37
    A imagem pode ser vista em: https://exchange.umma.umich.edu/resources/22309/view. Acesso em: 14 mai. 2020.
  • 38
  • 39
    A ideia de criar “falsa perspectiva” é explicada em Campigli (1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., p. 137).
  • 40
    De acordo com sua fala: “No fundo não pinto além de prisioneiras” (CAMPIGLI, 1955CAMPIGLI, Massimo. Scrupoli. Veneza: Cavallino, 1955., p. 12).
  • 41
    Essas obras podem ser visualizadas em: https://www.museonazionaleromano.beniculturali.it/it/163/terme-di-diocleziano. Acesso em: 21 fev. 2020.
  • 42
    Campigli não escondia a presença da arte egípcia em sua pintura. Cf. CAMPIGLI (1995CAMPIGLI, Massimo. Nuovi Scrupoli. Turim: Umberto Allemandi, 1995., p. 42).
  • 43
    De acordo com dados fornecidos por Eva Weiss, a obra fez parte da coleção da alsaciana Jeanne Bucher, do marchand Julien Levy, de Nova York, e de Cardazzo.
  • 44
    Dentre o conjunto das cinco obras do MAC USP, Mulheres a passeio é a que foi mais reproduzida e que contou com maior circulação expositiva não exclusiva à época de sua feitura. Em 1929, figurou no “Le Salon des Tuileries” no Palais des Expositions, em Paris, depois, além da mostra dos “Italianos de Paris”, em 1930, participou de uma mostra individual na Julien Levy Gallery de Nova York em 1931 e em exposições entre 1941 e 1942 em Roma e Veneza, circunscrita na coleção Cardazzo. A última mostra que se tem notícia antes da vinda ao Brasil foi a exposição individual no Stedelijk Museum em 1946. Quanto à reprodução em publicações, destacamos como uma das mais importantes a sua monografia publicada no contexto da série Arte Moderna Italiana, em 1931, pela Hoepli, e sua versão francesa, publicada por Bucher no mesmo ano. Depois, em 1944, é reproduzida novamente na monografia editada pela Hoepli no escopo da mesma série, mas desta vez com texto de Raffaello Franchi (1944)FRANCHI, Raffaello. Massimo Campigli. Milão: Hoepli , 1944.. Ainda na década de 1940, a obra ilustraria artigos na revista Emporium assinados por críticos como Carlo de Roberto (1942)DE ROBERTO, Carlo. Artisti contemporanei: Il pittore Massimo Campigli. Emporium, Veneza, v. 95, n. 3, pp. 98-106, 1942. e Giuseppe Marchiori (1946)MARCHIORI, Giuseppe. Campigli. Emporium, Veneza, v. 104, n. 9, pp. 118-124, 1946., entre outras publicações, como Giani (1942)GIANI, Gianpiero (org.). Pittori Italiani Contemporanei. Milão: Edizioni della Conchiglia, 1942., Franchi (1943)FRANCHI, Raffaello. Massimo Campigli. Illustrazione toscana, Florença, ano 2, n. 1, pp. 29-32, 1943., Solmi (1943)SOLMI, Sergio (coord.). Massimo Campigli. Milão: Edizioni della Conchiglia , 1943. e Carrieri (1945)CARRIERI, Raffaele. Campigli. Veneza: Edizioni del Cavallino, 1945..
  • 45
  • 46
    A segunda mostra do grupo em Paris, na Galerie Zak.
  • 47
    No mesmo ano em que foi pintada, Três mulheres foi exposta na individual do artista na Galleria Barbaroux de Milão, única exposição de que se tem notícia antes da vinda ao Brasil, quando foi comentada pelo crítico Raffaele Carrieri (CARRIERI apudMANTURA; FERRARIS, 1994MANTURA, Bruno; FERRARIS, Patrizia Rosazza. Massimo Campigli. Milão: Electa , 1994. , p. 16).
  • 48
    Tudo indica que a obra não chegou a ser exposta antes de sua aquisição para o antigo MAM SP, sendo vista na Itália e reproduzida em ensaios sobre o artista apenas posteriormente.
  • 49
    A única mostra de que Mulheres ao piano tomou parte antes de vir ao Brasil foi a individual do artista no Stedelijk Museum. Na Itália, não havia contado com comentários específicos em catálogos ou artigos de jornais.
  • 50
    Não se tem notícias de exposições de que tenha tomado parte ou artigos em que foi reproduzida antes de ser adquirida pelos Matarazzo.
  • 51
    Na I Bienal de São Paulo exibiu: Seis cabeças (1949), Quatro tecedoras (1950), A cantora (1950), Busto (1950), Nu (1950), Jogo de Cartas (1950), A torre e a roda (1951), Duas atrizes (1950-1951) e Diabolô (1951).
  • 52
    O artigo também foi encontrado na pasta de Campigli no Arquivo Wanda Svevo da Fundação Bienal de São Paulo.
  • 52
    O artigo também foi encontrado na pasta de Campigli no Arquivo Wanda Svevo da Fundação Bienal de São Paulo.
  • 53
    No meio brasileiro, as palavras publicadas em Scrupoli se fazem ecoar. Nos anos imediatamente seguintes à sua publicação, trechos são citados, por exemplo, em Silva (1956SILVA, Quirino da. Massimo Campigli. Diário de São Paulo, São Paulo, 18 mar. 1956., 1957SILVA, Quirino da. Pinta sempre o mesmo modelo e nunca deixa de ser original. Diário da Noite, São Paulo, 30 abr. 1957.) ou páginas inteiras são reproduzidas em artigos de jornais, como em “I miei visi vogliono essere consolante” (1957I miei visi vogliono essere consolante. Fanfulla, São Paulo, 20 maio 1957.).
  • *
    Este artigo faz parte de pesquisa de pós-doutorado em andamento no projeto temático “A Formação do Acervo de Arte Moderna do MAC USP e o Antigo MAM”, conduzido pela doutora Ana Gonçalves Magalhães do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), com financiamento da Fundação de Apoio Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp): 2019/16810-8.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2020
  • Aceito
    09 Dez 2020
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