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O ecossistema criativo de Otoni Mesquita.

The creative ecosystem of Otoni Mesquita.

Resumo

O artigo propõe uma leitura ecossistêmica comunicacional sobre aspectos da obra do artista visual amazonense Otoni Mesquita, com destaque para seus vídeos experimentais. A perspectiva metodológica segue preceitos do Pensamento Complexo e Sistêmico. A investigação sugere que o fluxo comunicacional que emerge da criatividade e postura ética do artista, impulsiona percepções sobre processos de experimentação na arte contemporânea e reflexões acerca de sustentabilidade na Amazônia.

palavras-chave:
ecossistemas comunicacionais; arte; audiovisual; Amazônia; Otoni Mesquita

Abstract

This paper proposes an ecosystem reading on aspects of the visual artist's collection Otoni Mesquita, highlighting experimental videos. The methodological approach follows the precepts of the Paradigm of Complexity. Research suggests that semiosis communicative course, emerging creativity and ethical artist provides insights mainly on developments on creative processes in contemporary art and reflections on the Amazon.

keywords:
communicational ecosystems; art; video; Otoni Mesquita; Otoni Mesquita

Introdução

O artigo explora aspectos do contexto criativo-comunicacional que envolve a vida e a obra do artista visual amazonense Otoni Mesquita, destacando uma de suas facetas menos conhecidas: a produção audiovisual. Buscamos uma compreensão ecossistêmica ao refletir sobre desdobramentos do universo imagético otoniano, partindo contextualmente da principal temática do trabalho intitulado Ciclos do Eldorado, em que o artista delineia uma visão particular sobre a Amazônia.

Otoni Mesquita interage com um repertório multi-expressivo de linguagens artísticas, tais como pintura, escultura, gravura, instalação, ensaio literário, performance, teatro e audiovisual. A essa dinâmica rede de manifestações artísticas e comunicativas, que se configura como um ecossistema comunicacional, denominamos ramagens otonianas. Consequentemente, por entre essas ramagens, florescem o que chamamos de suas experimentações audiovisuais, interpretados por nós como ideias-imagens-reverberantes em transmutação, ressoando inúmeros discursos e experimentações estéticas.

Nossa investigação é orientada por novos paradigmas da ciência, estabelecidos pelo Pensamento Complexo e com base no filósofo Edgar Morin1 1 . Cf. MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand, 2002. , que propõem a construção de um conhecimento compreensivo e a defesa de um processo auto-eco-organizador, sempre em transformação, devido às dimensões sensíveis e cognitivas que organizam e desorganizam a consciência sobre o que nos rodeia. Um circuito em movimento ativando inter-relações entre os sistemas da vida. Segundo o autor, o pensamento complexo é ecológico porque não separa a dimensão humana (biológica, psíquica, espiritual) da relação com seus ambientes (social, cultural, econômico, político, natural etc.). Portanto, o “sentido dialógico do princípio hologramático”2 2 . Ibidem, p. 56. , defendido por Morin, é uma associação de complementaridades, concorrências e antagonismos, em constantes divergências e conciliações provisórias.

Sendo assim, nos guiamos pela perspectiva teórico-metodológica, inter e transdisciplinar, dos Ecossistemas Comunicacionais, proposta pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade Federal do Amazonas, em consonância com princípios e pensadores que acreditam em uma reforma de ordem epistemológica e prática do fazer científico, compreendendo que há “inter-relações e interdependências entre os fenômenos físicos, biológicos, psicológicos, sociais e culturais”3 3. MONTEIRO, Gilson Vieira; ABBUD, Maria Emília de Oliveira Pereira; PEREIRA, Mirna Feitosa (orgs.). Estudos e perspectivas dos ecossistemas na comunicação. Manaus: Edua/Ufam, 2012, p. 09. .

Essa visão transcende as atuais fronteiras disciplinares e conceituais (...). Não existe no presente momento, uma estrutura bem estabelecida, conceitual ou institucional, que acomode a formulação do novo paradigma, mas as linhas mestras de tal estrutura já estão sendo formuladas por muitos indivíduos, comunidades e organizações que estão desenvolvendo novas formas de pensamentos e que se estabelecem com novos princípios.4 4. Cf. CAPRA, Fritjof. Teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 259.

Na visão do físico teórico e escritor Fritjof Capra5 5 . CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. São Paulo: Cultrix, 2002. o maior desafio é mudar a maneira de pensar a ciência, descortinando uma nova visão da realidade e ultrapassando as noções mecanicistas e reducionistas, que ainda guiam muitas teorias ancoradas no pensamento cartesiano-newtoniano. Segundo o autor, o pensamento ecológico (que para ele é sinônimo de sistêmico e, portanto, para nós, ecossistêmico) não percebe os elementos de forma isolada, nem os segmenta ou padroniza. Para compreendê-los faz relações por interdependências contextuais com variados níveis de complexidade e incertezas. É uma perspectiva intrinsicamente dinâmica, capaz de aliar o conhecimento racional com a intuição da natureza não linear do ambiente.

Pelo fato de nos concentrarmos em torno da obra de um artista que busca inspiração nas multiplicidades da Amazônia e a representa por diferentes ângulos e suportes, procuramos inter-relacionar estéticas e linguagens artísticas com aspectos históricos, humanos, ambientais, socioculturais e tecnológicos, a fim de apresentarmos uma possibilidade de leitura sobre o fenômeno.

Além da pesquisa bibliográfica, para a fundamentação teórico-conceitual, foi realizado um estudo de campo virtual, fundamentado na netnografia6 6. AMARAL, Adriana; NATAL, Geórgia; VIANA, Luciana. Netnografia como aporte metodológico da pesquisa em comunicação digital. In: Revista Sessões do Imaginário. Porto Alegre, v. 2, n. 20, p. 34-40, dez. 2008. , para compreender processos criativos-comunicacionais do artista por meio de seu acervo na web.

A netnografia, como transposição virtual das formas de pesquisa face a face e similares, apresenta vantagens explícitas tais como consumir menos tempo, ser menos dispendiosa e menos subjetiva, além de menos invasiva já que pode se comportar como uma janela ao olhar do pesquisador sobre comportamentos naturais de uma comunidade durante seu funcionamento, fora de um espaço fabricado para pesquisa, sem que este interfira diretamente no processo como participante fisicamente presente. Por outro lado, ela perde em termos de gestual e de contato presencial off-line que podem revelar nuances obnubiladas pelo texto escrito, emoticons, etc.7 7 . Idem, p. 36.

Como aporte metodológico para leitura e análise das mensagens visuais, principalmente acerca da imagética audiovisual criada por Otoni Mesquita, nos embasamos na ideia de Iluska Coutinho8 8. COUTINHO, Iluska. Leitura e análise da imagem. In: DUARTE, Jorge; BARROS, Antônio (org.). Métodos e técnicas da pesquisa em comunicação. São Paulo: Atlas, 2008. , que propõe traduzir códigos de linguagens artísticas mediante uma interpretação que não seja meramente perceptiva e descritiva de aspectos técnicos, comunicacionais e artísticos, mas transcodifique o que é apreendido pelos sentidos, ao relacionar as circunstâncias onde seus componentes se inserem e se estabelecem imageticamente. Já que não significam por si, enquanto imagens que são, mas dentro de contextos de representação. A complexa simultaneidade de elementos que as peças audiovisuais apresentam, objetiva e subliminarmente, assumindo seu lugar entre expressão e comunicação, pode gerar interpretações de maneiras diferenciadas.

Portanto, para estabelecermos relações e interpretações sobre a produção audiovisual de Otoni Mesquita foi necessário caracterizar aspectos do conjunto de sua obra. Nos aproximamos desse amplo panorama, a partir de noções contextuais de sua vida e arte ou “vidarte”, salientando que o trabalho do artista representa a realidade local e repercute inquietações universais. Um corpo que é catalizador de ideias e ignição comunicacional.

Para Christine Greiner9 9. Cf. GREINER, Christine. O corpo, pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. o corpo não é apenas um recipiente e transmissor de informações, mas um organismo transformador em constante evolução pela contaminação entre o fluxo informacional que percorre seu contexto sensitivo interno e externo. As experiências decorrentes dessas relações geram comunicação, percepção e relação. A autora propõe pensar o corpo como um sistema complexo e interativo e não apenas como um instrumento, com um lado biológico e outro cultural, ou material e mental. O corpo muda cada vez que percebe o mundo, despertando metáforas mutantes que geram novas ações, caracterizando um “corpo artista”. Isso porque o corpo é provido de uma dramaturgia que dá sentido e coerência ao fluxo incessante de informações entre o corpo e o ambiente, “organizando-se como processos latentes de comunicação”10 10 . Ibidem, p. 73. .

Nesse sentido, procuramos compreender Otoni Mesquita analisando seus arquivos de criação contemplando a diversidade de manifestações artísticas, as ramagens otonianas. Pois, além de indicarem aspectos de seu processo artístico e experimentações imagéticas, trazem um forte discurso político, de caráter étnico, social e ambiental. Procuramos mapear como se configuram essas ramificações, ao discutirmos seus fluxos, nas inter-relações e interdependências entre linguagens artísticas e seus entrelaçamentos com o ambiente que as envolve e outros sistemas. Tal procedimento foi necessário para criar um contexto-conceitual a fim de prosseguirmos na segunda fase da investigação, voltada aos vídeos criados pelo artista.

Artes visuais no Amazonas: um breve contexto

As pesquisas sobre artes visuais no Amazonas ainda são escassas e os registros sobre manifestações culturais e expressões artísticas, pela historiografia tradicional, em geral, remontam concepções ideológicas, sociais, geográficas, urbanísticas, políticas e econômicas centradas em aspectos que atendem aos interesses das “forças dominantes”. Desse modo, um amálgama de manifestações e criações, ao serem marginalizadas pelo discurso do “poder instituído”, foram esquecidas11 11 . Cf. FREITAS, Ítala Clay de Oliveira. Tramas comunicativas da cultura: a dança no jornalismo impresso em Manaus (1980-2000). Tese de doutorado em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2010. .

Segundo a historiadora Luciane Páscoa12 12 . Cf. PÁSCOA, Luciane. As artes plásticas no Amazonas: o Clube da Madrugada. Manaus: Valer, 2011. as informações de registros sobre a produção de artes visuais no Amazonas, especialmente relacionados à fotografia, à pintura, à escultura e à decoração, surgiram por volta de 1850, a partir da repercussão do trabalho de fotógrafos e pintores decorativos, oriundos da Europa e do Rio de Janeiro, impulsionados pelo poder econômico da região, durante Ciclo da Borracha. Esses artistas tinham a incumbência de imprimir às residências e prédios públicos (entre eles o Teatro Amazonas) a estética europeia. Conforme a autora, destacam-se nomes como Arturo Luciani (pintor), Enrico Quartini (escultor), Georg August Hübner (fotógrafo), Crispim do Amaral (decorador) e ainda Fernando Machado, Aurélio de Figueiredo e Antônio Parreiras (especializados em pinturas históricas, paisagens e retratos).

O primeiro pintor amazonense de renome nacional e internacional foi Manoel Santiago, que estudou no Rio de Janeiro e em Paris e que adotou um estilo impressionista. O período das duas Guerras Mundiais e o fim do Ciclo da Borracha influenciaram na redução das atividades artísticas em Manaus, mas a partir dos anos de 1950 começou a despontar o trabalho de Branco Silva (retratista), Moacir Andrade (expressionista), Álvaro Páscoa (gravurista) e Óscar Ramos (construtivista).

Entre as décadas de 1960 e 1970 o Clube da Madrugada foi o movimento cultural de maior efervescência no Amazonas, influenciado por movimentos de vanguarda e contestação social. Formado por artistas plásticos, poetas, cineastas, músicos e intelectuais que buscavam divulgar novos talentos e incentivar a produção de seus integrantes, promovendo exposições, conferências, publicações literárias, festivais de cinema e programas de rádio. O movimento tinha um caráter “anárquico libertário” no intuito de incentivar as expressões culturais regionais e criticar a supervalorização dada aos modelos culturais importados.

A partir das ideias difundidas pelo Clube da Madrugada, o cenário artístico em Manaus ganhou mobilidade e originalidade. Surgiram nomes reconhecidos nacional e internacionalmente como Zeca Nazaré (artista gráfico), Van Pereira (ilustrador) e Hahnemann Bacelar (expressionista). Outro artista marcante é Roberto Evangelista, que contribuiu para o panorama artístico amazonense contemporâneo com suas criações experimentais de arte conceitual e videoinstalação, participando de eventos importantes como a Bienal de São Paulo, além de exposições nos Estados Unidos e na Europa.

É nesse contexto que o trabalho de Otoni Mesquita emerge, em meados da década de 1970, recebendo influências tanto de reminiscências da opulência de Belle Époque manauara quanto das tradições da cultura cabocla e ribeirinha, do ímpeto transgressor de artistas locais, além de múltiplas referências externas, como Cildo Meireles, Antônio Henrique do Amaral, Lygia Pape, Arthur Bispo do Rosário, Paulo Bruscky e Peter Greenaway.

Ramagens otonianas: um ecossistema criativo-comunicacional

Ramagens otonianas é a expressão poética que criamos para simbolizar a busca de uma compreensão ecossistêmica no tocante à “vidarte” de Otoni Mesquita. Podemos vislumbrar algumas imagens para ilustrar essa ideia, a exemplo do crescimento de uma planta, desde a semente, suas raízes, galhos, folhas, frutos e brotações; ou de uma rede neural provocando sinapses em cadeia; ou da contínua construção de uma teia, com interconexões para novas relações e significados. Um ecossistema comunicacional.

São ramificações que fluem a partir de um corpo-artista. Inquieto, original e criativo, que exerce sua expressividade com base em memórias, questionamentos, sonhos, técnicas, experimentações, relações interpessoais, perturbações, influências visuais, que se mesclam na transfiguração de uma estética ético-político-imagética, articulada num sistema sociocultural e ambiental, ecoando inquietações tanto pessoais quanto universais. Um processo que implementa dinâmicas combinações, pela ampla gama de atividades desenvolvidas pelo artista visual que também é historiador, jornalista, contista, ilustrador, educador social, professor universitário, performer e um cidadão crítico que persegue ideais de sustentabilidade.

Essas ramagens hibridizam-se e entrelaçam-se por diferentes linguagens artísticas. Embora Otoni Mesquita seja mais conhecido por suas pinturas, gravuras, esculturas e instalações, também revela-se em outras vertentes expressivas, como a poesia, a performance, a atuação teatral e a produção de vídeos. Há mais de três décadas propõe experimentações audiovisuais, as quais se tornaram mais frequentes nos últimos anos, devido às facilidades dos recursos tecnológicos que permitem gravar, editar e exibir filmes com equipamentos caseiros.

Por essas peculiaridades, acreditamos que Otoni Mesquita seja um dos artistas mais instigantes no cenário cultural amazonense contemporâneo, destacando-se tanto por sua postura crítica em relação à sociedade, quanto pela criativa plasticidade do universo alegórico que representa em suas criações, voltadas principalmente à natureza e aos mitos amazônicos.

Esse breve relato sobre Otoni Mesquita e a explanação que faremos a seguir tem base na netnografia realizada no perfil do artista no Facebook, que além de apresentar material de arquivo sobre suas criações, traz entrevistas concedidas a jornais e emissoras de TV, o que possibilitou extrair depoimentos e impressões para análise e interpretação do seu processo de criação. Portanto, temos consciência que observamos um recorte comunicacional por uma configuração digital, inclusive, com filtros e escolhas do próprio artista nas decisões de postagens, e não os objetos-sujeitos em si, concebidos e caracterizados em outros contextos, passíveis a outros desdobramentos, subjetividades e textualidades múltiplas.

A opção por trabalhar apenas com os registros na rede social do artista se deve às inúmeras possibilidades de se pensar a ideia de “Arquivos de Criação”, proposta por Cecilia Salles13 13 . SALLES, Cecília Almeida. Arquivos de criação: arte e curadoria. São Paulo: FAPESP/Ed. Horizonte, 2010. . Pelo museu virtual captamos um recorte dado pelo artista sobre sua obra e suas transformações, o que nos permite conhecer tanto seu processo de experimentação quanto de armazenamento. A internet, segundo Salles, pela mobilidade do ambiente online, expande as possibilidades de discutir a curadoria de processos criativos ou redes de criação. Pois, pelas dinâmicas interações proporcionadas na web, é possível estimular bancos de dados, gerar curadorias, exposições virtuais e novos conceitos, “com a possibilidade de estarem sempre em expansão”14 14 . Ibidem, p. 218. .

Por isso, antes de pincelarmos considerações sobre aspectos estéticos e de conteúdo em vídeos de Otoni Mesquita é preciso que tenhamos uma breve noção sobre sua obra artística e motivações criativas. É importante reforçarmos que a análise do trabalho de um artista tão multifacetado é uma tarefa complexa. Neste estudo, não temos a intenção de abarcar tamanha dimensão e, por isso, vamos apenas pontuar algumas características.

Otoni Mesquita nasceu no município de Autazes (AM), em 1953. Mudou-se para Manaus com pouco mais de um ano de idade e teve uma infância marcada pelo exercício livre e criativo de desenhar e pintar. Por isso, acredita que a arte esteja intrínseca desde sempre em sua vida, fazendo parte de um processo tão natural quanto respirar, beber, caminhar e falar. Para Otoni “a arte é uma expressão que independe de vontade, é incandescente”, como definiu o próprio artista em entrevista à jornalista e atriz Norma Araújo, no programa Via de Regra, dirigido pelo cineasta Roberto Kahane, em 1994, no período da exposição “Fragmentos, bichos e personas”, no Centro Cultural Chaminé, em Manaus, e postada no dia 23 de dezembro de 2014, em sua página no Facebook.

Começou a atuar profissionalmente como artista plástico em 1975, após participar de um curso livre promovido pela Pinacoteca do Estado do Amazonas, numa época em que ainda não havia um curso universitário de artes em Manaus. Por isso, primeiramente, graduou-se em Comunicação Social (Jornalismo) pela Universidade Federal do Amazonas (1979), por acreditar que o curso era o que mais se aproximava das artes. Depois de formado seguiu para o Rio de Janeiro, onde graduou-se em Belas Artes (Gravura), pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1983). Prosseguiu seus estudos acadêmicos e obteve o título de mestre em Artes Visuais (1991) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e de doutor em História Social (2005) pela Universidade Federal Fluminense. Em 1994, passou a fazer parte do quadro de professores do Departamento de Artes da Universidade Federal do Amazonas e posteriormente também integrou-se ao grupo de pesquisadores do Núcleo de Antropologia Visual da UFAM, voltado à pesquisas sobre cinema na Amazônia.

Seu currículo conta com a participação em mais de cem exposições coletivas e individuais, no Brasil, países da América do Sul e Estados Unidos, inclusive, com a obtenção de prêmios em Salões de Arte. Além de ter publicado dois livros sobre história e arquitetura de Manaus, também atuou na gestão pública, no cargo de Coordenador do Patrimônio Histórico da Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas.

Otoni Mesquita é movido pela vontade de externar sentimentos e se considera um “romântico”, não no sentido sentimentalista, mas “pela eterna busca de ideais”, como salienta em várias entrevistas disponíveis em seu arquivo. Não gosta de ser enquadrado em nenhuma corrente estética, mas assume uma grande influência do surrealismo, com tendências antropológicas e arqueológicas de cunho amazônico, por ser fascinado pelo ambiente que o cerca, desenvolvendo obras em variados suportes, gêneros e materiais.

O artista diz que traz em sua arte o somatório de experiências da infância, da imaginação, de inquietações, do repertório de leituras, de aprimoramento técnico, das viagens por diversos países, dos museus que conheceu, do comportamento e das expressões de pessoas, do que observa nos detalhes da arquitetura urbana e das paisagens naturais da Amazônia.

Sendo assim, quando contemplamos seus trabalhos, percebemos que em muitas de suas telas há estruturas que lembram catedrais ou templos de cidades perdidas, painéis com cenas de natureza, gravuras com grafismos que remetem a pinturas indígenas, desenhos de seres que são meio bicho e meio gente, esculturas que sugerem artefatos de civilizações antigas e a montagem de instalações onde todos esses elementos se conjugam. Quanto ao significado desse universo representativo, nem mesmo o artista sabe explicar, pois alega ser movido por forças inconscientes e prefere que cada espectador tenha a própria interpretação sobre suas obras. No entanto, acredita que em seu ímpeto expressivo também haja uma atitude consciente que é a busca pela harmonia entre o homem e a natureza.

Por isso, desde o início de sua carreira artística tem preferência por trabalhar com materiais recicláveis, como papel e papelão, além de objetos que encontra no quintal de casa e em suas andanças pelas ruas, recolhendo, reaproveitando e transformando o que o ambiente oferece, como ossos e espinhas de peixes, terra, troncos de madeira, galhos, folhas, raízes, fibras e penas. Para o artista esses materiais carregam histórias, têm impressa uma força que não há nos materiais comprados em lojas e proporcionam uma experimentação plástica mais desafiadora.

A criação na arte tem uma relação direta do artista com seu ambiente e seu tempo, mas também se organiza por memórias, num percurso labiríntico que segue e deixa rastros. Muitas vezes, numa lógica de incertezas e também intervenções do acaso, o artista cria contextos para a leitura das obras. Esse processo complexo, pode ser expresso num amálgama de linguagens, uma trama de ideias, reminiscências, matérias-primas, objetos, formas, suportes, sentidos, espaços, impressões, sensações táteis, afetividades, sonoridades, aromas, que fazem do ato de criação um processo comunicativo e conectivo que, conforme Cecília Salles, pode ser observado sob o ponto de vista de seus aspectos sociais, culturais e também subjetivos.

A obra em construção, carrega as marcas singulares do projeto poético que a direciona, que faz parte de complexas redes culturais, na medida em que se insere na frisa do tempo da arte, da ciência e da sociedade em geral. O aspecto comunicativo do processo de criação envolve também uma grande diversidade de diálogos de natureza inter e intrapessoais: do artista com ele mesmo, com a obra em processo, com futuros receptores e com a crítica.15 15 . Ibidem, p. 89.

Em 2015, Otoni Mesquita completou quatro décadas de uma diversificada trajetória artística, portanto, seria inviável expor seu legado em um artigo. Como estratégia, buscamos identificar, no arcabouço de sua carreira, alguns traços ou facetas recorrentes. Encontramos esses indícios sintetizados em Ciclos do Eldorado, que não compreende uma fase específica da obra de Otoni Mesquita, mas é um tema recorrente de seu percurso criativo, sobre o qual interpreta e representa a Amazônia.

A escolha deste recorte metodológico é baseado na ideia de estética da continuidade, que Cecilia Salles compreende como um ideal perseguido pelo artista, para o qual não é possível precisar o ponto de origem, mas pode ser reflexo de indagações complexas que ao longo do tempo vão ganhando diferentes narrativas, com desdobramentos que podem ser inesgotáveis, pois o conjunto da obra de um artista também pode ser interpretado como o encadeamento de processos de transformação.

Desse modo, podemos dizer que a concepção e execução de uma obra de arte se dá no estabelecimento de relações e interdependências, numa permanente rede em construção, como um ecossistema comunicacional. Os processos que envolvem a criação, por mais que possam ter explicações racionais, são extremamente subjetivos e individuais, sendo assim, imagens, sons, temáticas, sensações, lembranças e quaisquer outras possibilidades sensoriais e expressivas, codificadas em obras artísticas, podem ser ressignificadas ou modificadas em diferentes momentos e contextos vivenciados pelo artista, sem que se percam da sua gênese conceitual.

As tendências do percurso podem ser observadas como atratores, que funcionam como uma espécie de campo gravitacional, indicando a possibilidade de determinados eventos ocorrerem. Nesse espaço de tendências vagas está o projeto poético do artista, princípios direcionadores, de natureza ética e estética, presentes nas práticas criadoras, relacionados à produção de uma obra específica e que atam a obra daquele criador como um todo.16 16 . Ibidem, p. 46.

A sustentabilidade artística na reverberação de (((eco)))poiesis

Eco, em acústica, é reflexão sonora. A reverberação de um som, que se propaga... Eco, na ecologia, do grego oikos, é casa, e ecossistema é a casa em que se vive. Poiesis, também do grego, é criação e inspirou os biofilósofos Francisco Varela e Humberto Maturana17 17 . MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. Campinas: Psy II, 1995. , na ideia de autopoiesis ou autopoiese (autocriação), um conceito teórico científico que se insere nas esferas bio-ético-culturais por ressaltar as dinâmicas internas dos seres vivos e sua interação com o meio onde vivem. Sendo assim, para a arte de Otoni Mesquita, em livre abstração metafórica, dizemos que (((eco)))poiesis são as ideias que ressoam de um artista que cria e recria seu repertório imagético nas relações entre o humano, o social, o ambiental e acoplamentos tecnológicos, a partir das trocas de significados em que todos esses sistemas estão implicados. Dessa maneira, estabelece um conjunto relacional de linguagens e expressões artísticas que também são fenômenos ou objetos comunicacionais, passíveis de serem estudados e compreendidos em suas articulações e produção de sentidos

Otoni, cidadão amazonense, artista, historiador, educador, comunicador... Em todas essas atividades o seu discurso é ecológico. Vemos isso, entre outras atitudes, quando: aponta o problema do lixo nas ruas por onde passa; contesta a derrubada de árvores para construção de um estacionamento; cria instalações chamando a atenção para a extinção de espécies; puxa os fios da história para evidenciar causas de problemas atuais; estimula a liberdade criativa em seus alunos na universidade; conversa com os visitantes de suas exposições; se insere nas comunidades onde ministra oficinas; critica o sistema econômico e político. Todas essas situações, ficam evidentes em suas postagens diárias na internet, como um crítico feroz do comportamento “insustentável” da sociedade e também em suas entrevistas nos meios de comunicação tradicionais da mídia.

Mas o que é sustentável? Para Fritjof Capra é importante não perder o senso de que todas as ações precisam atender as necessidades do presente sem comprometer as necessidades futuras, pois a sustentabilidade é a capacidade intrínseca de sustentar a vida de forma equilibrada. A arte de Otoni Mesquita também propõe isto, como se pode perceber em Ciclos do Eldorado, em suas ramagens e suas experimentações audiovisuais. Desse modo, para a discussão que se segue, faremos um breve relato em torno das três exposições que marcam os Ciclos do Eldorado.

Ciclos do Eldorado: a grande narrativa do artista

As três mostras artísticas envolvendo o tema Ciclos do Eldorado provocaram inúmeros questionamentos sobre o processo de colonização e ocupação da Amazônia, reforçando ponderações sobre suas consequências. O encadeamento cíclico propõe reflexões críticas sobre a supressão de culturas ancestrais a partir da disseminação e manutenção da ideologia etnocêntrica europeia que perdura até os dias atuais.

Nas exposições transitam manifestações de diferentes linguagens desenvolvidas pelo artista, como pintura, gravura, instalação, indumentária, vídeo e performance. O material não foi observado in loco. Como já foi explicado, optamos por acompanhar os registros feitos no museu virtual intitulado Memória da Exposição que o artista mantém em sua página no Facebook, com o portfólio fotográfico das mostras realizadas, informações técnicas, material de divulgação, críticas e resenhas, atividades extensivas à comunidade e experiências de bastidores, reunindo 442 postagens18 18 . O álbum foi criado em 26 de janeiro de 2012, mas tem uma dinâmica contínua, pois acompanha o trajeto criativo do artista voltado a recorrente temática dos Ciclos do Eldorado, portanto, o número referenciado de 442 postagens corresponde ao final do período de observação realizado para este estudo, em 12 de agosto de 2016. .

Além de questões históricas e étnicas, as indagações do artista expuseram feridas sociais, ambientais e políticas sobretudo, destacando o perigo da devastação da floresta em nome de um suposto desenvolvimento econômico. Como metáfora poética, plantas foram pintadas com tinta dourada, compondo instalações, para simbolizar que a verdadeira riqueza é a diversidade da floresta Amazônica e não o ouro da mitológica cidade perdida, que aguçou a ganância dos exploradores europeus a partir do século XVI. Obviamente, a Amazônia continua excitando ambições mundiais, mas agora com outros interesses.

“Em busca do Eldorado” (2007) foi a primeira exposição sobre o tema, mas apresentou reflexões e releituras visuais de criações do artista desde 1984, sendo realizada no Atelier Vila Venturosa, no Rio de Janeiro. Nessa fase Otoni trabalhou uma série de gravuras feitas em metal com imagens que remetiam a referências da cultura pré-colombiana e uma pesquisa cromática no intuito de criar uma tonalidade de dourado que não fosse apenas material, mas traduzisse uma atmosfera sensorial do Eldorado. Algumas pinturas eram elaborações alegóricas sobre templos na floresta, mas que também sugeriam o aspecto de grandes catedrais de cidades europeias, fazendo uma analogia das riquezas minerais que eram levadas da Amazônia, evidenciando o processo violento que dizimou milhares de indígenas. Há também a presença das personas, pinturas de figuras hibridas compostas por formas humanas, animais e míticas, com inspiração em grafismos da etnia Carajá e indumentárias da etnia Ticuna, e que seriam a interpretação do artista para o que ele chama “sincretismo amazônico”.

“Achados do Eldorado” (2012-2014) foi a segunda exposição sobre o tema e percorreu três cidades brasileiras (Manaus, Belém e Rio). Permitiu a ampliação da experimentação visual com papel reciclado, relevos, arte digital, pintura, a coleta de vários tipos de terra, pedras e também materiais vegetais, como folhas, galhos e raízes. Estabelecendo uma espécie de jogo, no qual buscava enxergar nas andanças cotidianas ou em passeios na floresta e nas margens dos rios objetos e materiais que poderiam ser achados de uma civilização perdida, e a partir desses fragmentos criar instalações. Primeiramente, o trabalho foi exposto na Galeria de Arte do Sesc Amazonas, em Manaus, em 2012, e no ano seguinte agregou outros elementos e foi exposta no 32° Salão de Arte do Pará, no Museu Emílio Goeldi, em Belém (2013). Uma das peças dessa exposição, Oferendas da Floresta, foi apresentada na exposição “Amazônia Ciclo de Modernidade”, no Palácio da Justiça, em Manaus (2014), e no mesmo ano integrou a exposição “Pororoca”, no MAR, Museu de Arte do Rio, sendo adquirida para o acervo deste.

“Ciclos do Eldorado” (2015-2016), terceira exposição da temática, marcou os 40 anos de trajetória artística de Otoni Mesquita, fazendo um resgate dos trabalhos pregressos. Ficou em cartaz no Museu Amazônico, em Manaus, de dezembro de 2015 até fevereiro de 2016, sendo ainda mais conceitual comparada as anteriores, reforçando o discurso crítico e reflexivo sobre o futuro do planeta, tratando de questões como o aquecimento global, o problema da água, a poluição a ocupação desordenada das cidades e o desmatamento das florestas, sobretudo da Amazônia. Na abertura do evento, as personas da primeira exposição transformaram-se em personagens “reais” numa performance interativa junto ao público. A exposição apresentou treze instalações, com o intuito de promover uma reflexão e possível discussão sobre aspectos ambientais e políticos que afetam o cotidiano da sociedade, especialmente a amazonense. Destacando-se: Buscas e achados, composta por gravuras e papeis tratados com técnicas mistas. Oferendas saqueadas, com ídolos dourados, cédulas de dinheiro, moedas e um altar, simbolizando o capitalismo e o apagamento das culturas ancestrais e seus símbolos. Seres do rio de água doce, enfatizando o problema da água. Minha terra tem palmeiras, Tapetes da floresta e Construção do deserto, elaboradas com diversos materiais orgânicos, tratam diretamente de questões da degradação ambiental e o superaquecimento global. Em Ciclo gastronômico, elaborada com farinha, frutos, folhas, sementes e outros produtos naturais, o artista ironizou a apropriação da culinária regional em modismos da alta gastronomia. E em Promessas de futuro expressa as incertezas sobre o que virá pela frente em nossa sociedade, entre possibilidades sustentáveis e atitudes marcadas pela ignorância ecológica.

Essa breve descrição é para apontar que a postura do artista torna-se uma atitude ecológica-ética-estética, um manifesto ecopoiético, no sentido de criação e autocriação, gerando transformações constantes na sua interação com o meio, por um fluxo criativo-comunicacional, expressando ideias que vão da reivindicação política ao sentimento de amor à natureza e à urgência por princípios sociais sustentáveis.

Desse modo, ao envolver diversas linguagens artísticas reconfiguradas no tempo e no espaço, o caráter cíclico de sua abordagem temática também pode ser interpretada como signos em transformação. Por exemplo: numa determinada exposição, o artista exibe uma gravura em meio a outros objetos e em outra exposição tal gravura passa a ser digitalizada e animada, reconfigurando-se em vídeoarte; galhos, folhas, pedras e caracóis podem servir como elementos de uma instalação e em outro momento tornam-se composições numa fotografia; ou ainda, tecidos pintados com grafismos e vistos como faixas em uma ocasião, podem transformar-se em indumentária para uma performance e assim sucessivamente.

Podemos dizer que Ciclos do Eldorado nos mapeia trajetórias ecossistêmicas, configurando e reconfigurando imaginários, por meio de memórias e metamorfoses, construindo novas cartografias sígnicas, numa transformação contínua no fluxo comunicativo, com suas inter-relações e interdependências, pois o processo de criação de Otoni Mesquita é caracterizado pela constante metamorfose e ressignificação de imagens.

As diferentes tendências e linguagens orbitam no mesmo campo gravitacional, o que dá uma espécie de unicidade ou identidade harmônica na elaboração de um ideal artístico ou o projeto poético, que por sua vez é influenciado por princípios éticos e estéticos, além de se manifestar num forte discurso ecológico, reforçando sua postura política crítica em relação ao processo histórico e suas reverberações na sociedade contemporânea. Esse processo é cíclico e em constante transformação, nunca se completa.

Portanto, visto por um ângulo mais aberto, a semiose do transcurso comunicativo que emerge da criatividade e postura ética de Otoni Mesquita, impulsiona inúmeras percepções e desdobramentos sobre processos socioculturais e ecológicos, reverberando ideias e imagens polêmicas, e fazendo arte para a transformação social e política, deixando inúmeras reflexões sobre o futuro da Amazônia e da humanidade.

VideOtoni

O caráter comunicacional da “vidarte” de Otoni Mesquita, um corpo-artista com raízes subliminares e ambiências relacionais, também se desdobra em manifestações do cotidiano, como nas redes sociais da internet, especialmente no Facebook, utilizado pelo artista como um jornal virtual ou um mosaico de ideias e reflexões. Assuntos que se conectam com os questionamentos expressados em Ciclos do Eldorado, evidenciando sua postura crítica, no intuito de chamar a atenção sobre manifestações artísticas, a transformação do espaço e a destruição da natureza.

No caso da internet, a mesma atmosfera “tempestuosa” criada em torno de suas manifestações artísticas se mantém no contexto cibernético. Ou seja, além da transmissão de informações, ideias e visualidades, há um fascinante refluxo estético no compartilhamento de sentidos, com dinâmicas e ressonâncias que variam conforme as sistemáticas envolvidas.

A comunicação e a arte na era digital ou da “convergência”, seguindo a ideia de Henry Jenkins, vêm provocando rupturas sociais e influenciando novas relações culturais, conforme Pollyana Ferrari19 19 . Cf. FERRARI, Pollyana. Comunicação digital na era da participação. Porto Alegre: Editora Fi, 2016. , pesquisadora em Comunicação Digital. A autora acredita que a hipermídia (conjunto de meios que se fundem num ambiente digital, não linear e interativo) criou o corpo social contemporâneo. Segundo ela, é uma linguagem híbrida que mistura formatos e softwares, configurando-se como a escrita imagética do século XXI, mas que também reflete um anseio ancestral da humanidade: a busca por interação.

A multiplicidade de ferramentas e a habilidade em lidarmos com a plasticidade dos aparatos que giram em torno do ciberespaço “nos permite misturar, articular e incorporar formatos não textuais em textuais, imagéticos em sonoros e vice-versa - tudo em fluxo de negociações intersemióticas”20 20 . Ibidem, p. 21. . Conforme Lucia Santaella21 21 . Cf. SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003. , a verticalidade da produção audiovisual e da circulação de informações a partir da internet passou a ser “trans-horizontal” e, das possibilidades que emergem a partir dessa reconfiguração, surgem novos formatos, estéticas, dinâmicas de produção e maneiras de se relacionar com o público.

Cada um pode tornar-se produtor, criador, compositor, montador, apresentador, difusor de seus próprios produtos. Com isso, uma sociedade de distribuição piramidal começou a sofrer a concorrência de uma sociedade reticular de integração em tempo real. Isso significa que estamos entrando numa terceira era midiática, a cibercultura22 22 . Ibidem, p. 82. .

É nesse ambiente digital que Otoni Mesquita compartilha suas experimentações audiovisuais, divulgadas no âmbito de sua rede social na internet, como intervenções cotidianas. As interpretamos como espectros que, além da reverberação no espaço imagético e ecológico, são propulsores de reações multissensoriais. Caracterizam-se como um exercício lúdico, portanto, desabrocham como pequenas flores ou experimentos despojadamente livres, entre o emaranhado de suas ramagens. Os vídeos são curtos, têm em média dois minutos, sendo que alguns têm menos de trinta segundos e o mais longo, uma espécie de autodocumentário sobre a última exposição de Ciclos do Eldorado, decorre em sete minutos e quarenta e cinco segundos. Entretanto, todas as peças resplandecem a força do pensamento e a representação imagética de sua poética artística.

O corpus de análise, feita entre maio e agosto de 2016, reuniu 106 vídeos postados num período de três anos pelo artista. Em cada postagem, além do vídeo, disponível para visualização online, há uma descrição ou sinopse, na qual aparece o título, a técnica utilizada e algumas considerações sobre o contexto da obra. Outras informações e desdobramentos também são feitos durante os comentários e a interação do artista com os internautas, muitas vezes com opiniões bastante divergentes e conflituosas.

Ressaltamos que neste trabalho o intuito não é fazer uma análise quantitativa ou qualitativa das peças audiovisuais, mas por meio de um exercício descritivo buscar conexões entre os vídeos e o projeto poético do artista, considerando questões de linguagem, estética e representação.

Os vídeos produzidos pelo artista são realizados com simplicidade tecnológica, utilizando basicamente os programas Photoshop, Movie Maker e Midea Show. As imagens são captadas por celular e editadas no computador de sua casa. Otoni é quem grava, retrabalha digitalmente as imagens, edita e mixa o som (muitas vezes também é personagem) de todos os vídeos, alegando assim ter mais liberdade artística.

O primeiro vídeo, postado em 20 de junho de 2013, denominado Mana, Manaus ferveu. Foi bonita a festa, pai. Cheiro de alecrim..., refere-se a uma manifestação pública que reuniu cerca de 100 mil pessoas no centro da capital amazonense, integrando a série de protestos ocorridos em todo o Brasil no ano de 2013. O vídeo que tem um minuto e meio, foi gravado de cima de uma árvore por celular e mostra a passeata, com som ambiente, compreendendo a primeira parte do hino nacional brasileiro, cantado pelos manifestantes. É interessante as referências que o artista faz no título sobre as impressões dessa manifestação, inclusive, no cheiro que pairou pelo ar.

O último vídeo visualizado para a pesquisa, postado em 08 de agosto de 2016, é uma vinheta em animação artesanal, chamada Olimpíadas em Manaus (publicada três dias após o início da Olimpíada do Rio). Foi criada a partir de desenhos encomendados ao artista para o projeto de um aplicativo para celular que acabou sendo cancelado. Otoni aproveitou o material para fazer uma espécie de zombaria sobre modalidades esportivas que poderiam ser típicas competições manauaras, brincando com símbolos arquitetônicos de Manaus e arquétipos (ou seriam estereótipos?) amazônicos, como a figura do índio e das guerreiras amazonas. A trilha em estilo noise music, corrente musical que utiliza sonoridades dissonantes, foi acelerada, causando ainda mais estranheza.

Uma das tendências no trabalho audiovisual de Otoni Mesquita é o registro de flagrantes do cotidiano. São cenas captadas pelo artista em diferentes situações, desde uma caminhada por ruas de Manaus, passando pela reunião com amigos, a montagem de uma exposição, ou peripécias em viagens turísticas, por exemplo. O material posteriormente passa por uma edição, na qual o ritmo das imagens e do som ambiente geralmente são acelerados ou retardados para enfatizar a expressividade das situações. Eventualmente, opta pelo tratamento de cor e a mixagem do som ambiente com trilha sonora musical.

No fluxo criativo-comunicacional, Otoni conserva o frescor da curiosidade infantil, fazendo com que acontecimentos banais ganhem contornos pitorescos e cômicos: um cachorro se coçando e rolando numa calçada; uma minhoca bailarina que dança entre os dedos do artista; a louca movimentação de formigas de bunda dourada; brincadeiras em uma aula de estamparia na Faculdade de Artes; o embate entre um pavão e uma cotia em um parque no Rio de Janeiro; e até uma performance com a própria sombra projetada na parede de um prédio, com fusões e deslocamentos, conforme a passagem de carros em uma rua movimentada durante à noite.

Labirinto da caverna, postado em 5 de setembro de 2014, registra a performance de Otoni pintando telas com grandes figuras humanas, cercado de um aparato de som e luz, num “processo show”, em parceria com os artistas Fabiano Barros e Mazo Rodrigues, realizada em março de 2012, no Centro Cultural Povos da Amazônia. Já em Performance no ICBEU, com Nina e André, improvisa uma performance descontraída, durante a montagem de uma exposição coletiva, com dois amigos, quando se entrelaçam e ficam de perfil, fazendo expressões corporais, em tríade sinuosa, subindo e descendo, imprimindo uma visualidade em movimento que lembra as pinturas de suas personas.

Ainda na vertente de documentar o dia a dia, há peças de delicadeza lírica, como uma revoada de borboletas que formavam um tapete às margens de um rio, um bando de periquitos se aninhando em uma árvore no centro histórico de Manaus, o som da chuva captado à bordo de flutuante num igarapé. Já o cunho crítico sobre questões políticas, ideológicas e ambientais se expressa desde passeatas e manifestações sociais, até situações extremamente chocantes, como o flagrante do desespero de um bicho-preguiça carregando o filhote após o desmatamento de uma área verde no campus da UFAM para a construção de um estacionamento.

Percebemos algumas reelaborações sobre o mesmo tema e o reaproveitamento de imagens. Por exemplo, o vídeo intitulado Dia das bruxas em Manaus, postado em 31 de outubro de 2015, repleto de humor negro, faz uma crítica mordaz à falta de consciência ecológica, ao denunciar a situação de descaso em relação às toneladas lixo acumuladas na praia da Manaus Moderna, no período de seca. Mostra também a questão do esgoto que é jogado sem tratamento no Rio Negro, de onde é retirada a água para o abastecimento da população manauara, evidenciando a negligência tanto da população quanto de órgãos de fiscalização. As imagens são reforçadas pela narração do próprio Otoni, feita no local, a partir das impressões do artista, com um tom que alia reportagem e fabulação, ao mostrar uma situação de risco ambiental e ironizar que as águas jorrando do esgoto seriam a “fonte das bruxas”.

Posteriormente, o vídeo Olhar indiscreto sobre a cidade - por cima e pelas beiras, postado em 27 de maio de 2016, apresenta cenas panorâmicas de Manaus registradas do alto de um prédio. As vistas lembram cartões-postais, com o skyline do centro da cidade, detalhes da cúpula do Teatro Amazonas, a ponte sobre o Rio Negro, enquadrados em ângulos que transmitem a estabilidade de uma cidade bem urbanizada. Em seguida, corta para detalhes de esgoto sem tratamento, entulhos e lixo, um aglomerado de embarcações que servem de moradia para a população do entorno dos igarapés de Manaus. A metáfora de abandono e caos atravessa, como uma espada, a paisagem idealizada de um cartão-postal. Para essa segunda parte, utiliza-se das imagens da praia que haviam ilustrado o vídeo citado anteriormente. Mas, neste caso não há qualquer narração ao vivo ou em off, toda a banda sonora é trabalhada com a música “Perdi meu coração velho” de autoria dos compositores e instrumentistas Zeca Torres Torrinho e Aldísio Filgueiras, poetas do cenário cultural amazônico, com versos que iniciam dizendo “olha pra essa paisagem de silêncio e paz, na moldura da parede armo a minha rede, devolve o meu verde verão...”.

Outra tendência percebida nos vídeos de Otoni Mesquita é a digitalização de algumas de suas pinturas, gravuras e fotografias para posterior manipulação, animação e ressignificação.

Em Genética da obra, postado em 23 de agosto de 2014, o artista resgata trabalhos de 1983. São esboços feitos durante o curso de Belas Artes, nos quais representa construções e templos de cidades imaginárias e figuras humanas perfiladas que por meio digital vão se desmaterializando em fusões e distorções. Muitas dessas experiências gráficas iniciais tornaram-se características marcantes na obra de Otoni, como os fragmentos e as personas, que nesse vídeo regressam do passado, ou de suas origens imagéticas.

Reconstrução, postado em 24 de março de 2016, é a mutação de um desenho feito com canetinhas hidrocor e pincel atômico, em 1975, retrabalhado em Photoshop e animado em Movie Maker. No vídeo, um cubo em perspectiva, aos poucos se transforma numa figura humana estilizada, cheia de arestas geométricas, como se a pele fosse um jogo de xadrez, gerando embate com uma força interna querendo romper o traçado que a recobre e a enclausura. Quando consegue se libertar vai adquirindo formas orgânicas e figurativas até se transformar em curvas totalmente abstratas.

Em Mutante a cada instante, postado em 27 de março de 2016, o artista reprocessa digitalmente estudos feitos em 2003, compostos por anotações e desenhos em caneta esferográfica, que se fundem a padrões e texturas elaborados para pinturas, relevos de reciclagem de papel, criando o que ele chama de “gravuras digitais”, realizadas “num sábado meio nublado em Manaus”

Em Caras e bocas, postado em 01 de abril de 2015, resgata desenhos de uma caderneta de 1978, cujo propósito, na época, eram estudos para uma animação. A primeira parte do vídeo que tem dois minutos, mostra uma mulher, em close, apenas delimitando seu rosto, fazendo caretas. Na segunda parte, a boca protagoniza a cena, com inúmeras possibilidades de movimentos entre os lábios, a língua e os dentes.

Um dos trabalhos que mais chama a atenção, tanto pelo contexto da concepção quanto pelo impacto audiovisual, é a animação Criação, postada em 30 dezembro de 2014. Na descrição do vídeo, o artista explica que, em 1979, quando cursava a disciplina de Cinema, na fase de conclusão do curso de Comunicação, havia produzido mais de 400 telas para uma animação que seria finalizada em película Super-8. O trabalho chegou a ser realizado, mas foi engavetado por o resultado não ter lhe parecido satisfatório. Trinta e cinco anos depois resolveu voltar àquela ideia e com equipamentos digitais retrabalhou a animação e a publicou em sua rede social, recebendo inclusive um grande número de compartilhamentos elogiosos pela criatividade do vídeo. Nele, as aquarelas digitalizadas trazem uma gama de cores vibrantes, bichos e pessoas entram dançando e se transformam em letras, compondo a palavra “Desenho”, em seguida palavras “Otoni Mesquita”, fundem-se formando o contorno de cúpulas e minaretes de uma mesquita. A tela fica azul e entra uma bisnaga de tinta. Dos respingos surge um feto humano, que vai se desenvolvendo e sai andando, envelhece, vira luz, planta, árvore, planeta. Paralelamente a esta sequência, um peixe, que do mar salta para o ar, vira pássaro e depois astronauta. E assim, outros elementos que surgiram dos respingos de tinta vão interagindo entre si e se transformando, preenchendo a tela, compondo paisagens fantásticas e situações surreais, sempre em metamorfose, finalizando com uma bailarina que dança com o sol nas mãos, até virar pegadas de gente e tudo escurecer. A criação desse universo dura apenas um minuto.

Opereta do solitário segue essa mesma poética mutante, com desenhos produzidos no final da década de 1970, misturando ideias da biogenética, transformação urbana das cidades, experiências místicas e extraterrestres, com trilha acelerada de Nino Rota, feita para o filme Casanova (Federico Fellini, 1976). Já o clipe Lá vai Teteá, baseado em desenhos de 2002, animado em 2010 e postado 2014, mostra a metamorfose de três jovens caboclas sensuais que dançam, se exibem e aos poucos vão se deformando até “apodrecerem”, com trilha acelerada, no rock pós-punk gótico da banda escocesa Cocteau Twins.

Bonequitas de Goya, postado em 20 e janeiro de 2016, é um ensaio visual de dois minutos e quarenta e cinco segundos, em homenagem ao pintor espanhol Francisco de Goya. Poderia ser até considerado um videodança, a partir da sequência em movimento de fotografias de um guardanapo amassado, feito num voo entre Rio e Manaus. O vídeo, que tem um clima nostálgico pelos tons âmbar, remetendo à paleta cromática de Goya, é um balé digital e investiga a plasticidade da representação do corpo, explorando possibilidades de movimentos, expressões e impressões.

De modo geral, as peças evidenciam a dinâmica de memórias e metamorfoses do processo criativo do artista, que constrói um repertório sígnico por trajetórias ecossistêmicas, propondo inter-relações em metáforas mutantes, ao sobrepor camadas entre o cotidiano social, os mitos, a natureza, suas influências artísticas e o seu imaginário particular. Ao enfatizarmos tais características na obra de Otoni Mesquita, percebemos como esse ecossistema reverbera reflexões sobre a crise da sociedade contemporânea, por meio de fluxos criativo-comunicacionais sobretudo, enfatizado por desdobramentos da produção de sentidos e pela emergência de uma valorização ética e sociocultural sustentável.

Seguindo esse raciocínio, podemos compreender que na contemporaneidade a imagem, o som, as emoções, as sensações, o pensamento estão “corporificados” no espaço hipermidiático, transitando numa rede de circuitos relacionais e interdependentes. Como uma “rota transmutar” em múltiplas órbitas de aparente caos. Por determinada perspectiva essa premissa reforça a questão da ubiquidade, mas também pode apresentar tantos fragmentos de realidades ressignificadas a ponto de muitos sistemas simbólicos descodificarem-se. Nesse sentido, as manifestações artísticas (e cotidianas) expressadas de diferentes formas, mas com grande tendência a uma convergência audiovisual (devido à internet), paradoxalmente, ganham uma dimensão cada vez mais complexa no contra fluxo de sua efemeridade, sobretudo, pelo poder da imagem na produção de sentidos e na desconstrução dos mesmos.

Indefinições necessárias para definições desnecessárias

As experiências no campo da videoarte, conforme Arlindo Machado23 23 . MACHADO, Arlindo. A arte do vídeo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. , desde a década de 1960, propõem articular reflexões estéticas. Artistas como Nam June Paik, Wolf Vostell, Joseph Beuys e Bill Viola, se dedicaram à experimentação entre linguagens das artes plásticas e do cinema, tendo o vídeo como suporte, no intuito de provocar impressões e experiências passageiras, ampliando possibilidades de criação audiovisual. Nesse sentido, o debate sobre o fazer artístico, suas relações com realidades urbanas, preocupações com a natureza e o desenvolvimento tecnológico, integrando diferentes suportes e linguagens por meio do vídeo, têm resultado em obras multimídias como, videoinstalações, videoperformances, videoesculturas, videodança, videoclipe, videotexto entre outras possibilidades.

O desenvolvimento tecnológico e a diversificação de experimentações e artistas envolvidos com a videoarte, foram transformando as relações da obra de arte com o espaço e o espectador, despertando outros olhares e perspectivas expandidas sobre arte, comunicação, cultura e sociedade. Aqui, não aprofundaremos a discussão conceitual acerca da videoarte e suas diferentes esferas expressivas. Mas, achamos importante sinalizar que há inúmeras possibilidades de criação audiovisual que extrapolam meios tradicionais, como o cinema e a TV.

Desde os primórdios do cinema, especialmente com Georges Méliès, e depois com a evolução da produção audiovisual, os artistas buscam criar novas visualidades e experiências sensoriais, conforme os meios e aparatos disponíveis, seja pelo celuloide, por fitas eletromagnéticas ou por suportes digitais. Nesse sentido o trabalho de Otoni, não traz nenhuma atitude inovadora, mas ganha originalidade pelo contexto em que se insere e em como o interpreta e o representa. Muitos outros artistas contemporâneos também se valem das inúmeras possibilidades do meio digital para expressarem suas ideias e interagirem com o público, como o multimídia Alexandre Navarro Moreira, o videoblogger Nacho Duran, o publicitário Jarbas Agnelli, o videasta e poeta Tadeu Jungle.

Portanto, os vídeos de Otoni Mesquita, na web, também são possibilidades de expressão artística e comunicacional marcadas pelo exercício criativo da experimentação. Não são propriamente documentários nem ficções, no sentido clássico de gênero, mas são representações de realidades e devaneios tangíveis. Fortuitamente, evocam a gênese conceitual imbuída nas demais expressões artísticas que florescem do criador, que com seu espírito aberto às experiências do mundo vai reelaborando e construindo um universo particular, reflexo de seu imaginário, percepções, valores éticos e consciência cidadã.

Sem buscar enquadramentos conceituais, poderíamos dizer que em suas fábulas experimentais do cotidiano real; nas suas animações existenciais de sonhos; ou nos fragmentos de documentários da ilusão, a sua inventividade plástica e o seu discurso político ecoam, desafiando classificações habituais e ampliando a discussão sobre o caráter das representações, especialmente, em relação à Amazônia.

O cineasta Silvio Da-Rin24 24 . DA-RIN, Silvio. Espelho partido: tradição e transformação do documentário. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2006. acredita que as abordagens teóricas sobre a produção audiovisual que fogem do convencional, sobretudo, obras de não ficção, como o documentário contemporâneo que se apresenta de forma híbrida, se defrontam com um desafio quase intransponível para delimitar um campo conceitual. Por isso, é uma discussão complexa, que não deve ser esvaziada em tentativas simplistas de enquadrar por gêneros, estéticas e formatos. Conforme o cineasta, o percurso da história do cinema traz, na diversidade de manifestações, uma fluidez estética que transmite ao entendimento contemporâneo a noção de que a produção audiovisual não cabe em fronteiras fáceis de se delimitar, pois implica em inscrever por imagens e sons, subjetividades, afetividades e valores. Para Da-Rin é importante contextualizar, pois não se pode conhecer uma realidade sem estar mediado por algum sistema significante, portanto, a superioridade de uma verdade absoluta deve ser desmitificada, fazendo até mesmo do gênero documentário um “constructo”, assim como os filmes de ficção.

Representações só assumem uma dimensão política quando seu sentido não se deixa aprisionar na univocidade e na totalidade. Uma pedagogia da imagem, no atual contexto audiovisual, é aquela que estimula o esvaziamento das agências de poder e promove o descentramento de suas representações prontas e acabadas.25 25 . Ibidem, p. 233.

Nesse sentido, acreditamos que as experimentações audiovisuais de Otoni Mesquita sejam manifestações que podem instigar questionamentos às estruturas de poder e suas verdades institucionais, questionando as representações dominantes e a retórica que age sobre nós, buscando outras imagens, outros discursos e outras verdades.

Verdades fragmentárias, que estimulam uma subjetividade capaz de abordar mais criticamente o próprio processo social da produção de sentido. Um atributo cada vez mais importante, em meio ao dilúvio de representações que caracteriza o mundo contemporâneo, chamado por alguns de sociedade da imagem.26 26 . Ibidem, p. 224.

O teórico Christian Metz27 27 . Cf. METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 2007. , embasado em André Bazin, Serguei Eisenstein, Bela Balázas e Rudolf Arnheim, também compreende o audiovisual (aborda o cinema, mas podemos trazer sua perspectiva para a nossa discussão) como um campo complexo de ser analisado, porque é necessário compreender a fenomenologia da narração, ou seja, um sistema de transformações espaço-temporais e acontecimentos, numa sequência de elementos significantes visuais, verbais e sonoros. A compreensão desse universo diegético é proporcionada pela conjunção de uma gramática composta por diálogos, encenação, fotografia, trilha sonora etc.

Portanto, além de ser constituído por uma essência intercambiável e complexa de códigos técnico-artísticos, próprios do universo audiovisual, ainda se articula entre ambientes configurados por elementos de ordem sociocultural, política, econômica e tecnológica, configurando um ecossistema que pressupõe a percepção e a relação para sua significação. Assim, nas ambiguidades de ser “uma linguagem que quer se tornar arte no seio de uma arte que, por sua vez, quer se tornar linguagem”28 28 . Ibidem, p. 76. , desencadeia inúmeras abordagens teóricas, metodológicas e procedimentos de investigação, tais como análise de discurso, análise de conteúdo, exploração etnográfica, pelo viés fenomenológico, sociológico, semiótico, pela psicologia da percepção entre outros.

Nesse sentido, toda a construção que fazemos sobre a videografia Otoniana é significada pela teia de relações a partir da compreensão de sua “vidarte”, apresentando-se como uma possibilidade interpretativa, que não tem a intenção de esgotar-se em uma verdade, haja vista que estamos trabalhando com multiexpressões, em diferentes linguagens entrelaçadas, e sua decodificação é um conjunto de ações perceptivas, intelectivas, iconológicas, ideológicas etc.

As experimentações audiovisuais otonianas, em suas contestações irônicas inclusive, ao fantasiar imaginários, tira suas máscaras e desmascara a sociedade, em percepções anticonvencionais do mundo e pela valorização da identidade artística amazônida. Metamorfoseia imagens-ideias-sensações, assumindo (trans)reconfigurações imprevistas. Assim, o artista canibaliza a sua própria arte, no universo iconofágico da cultura contemporânea, com a autenticidade do vivido e demostra que é impossível fugir das ambiguidades e apagar as memórias.

Na ebulição de uma mistura heterogênea, o que apresentamos é uma leitura ou interpretação relacional para visualidades, inscritas na rota transmutar dos processos de criação artística. Assim, a arte de Otoni Mesquita se estabelece como um recurso ecológico e sustentável para dar sentido à reflexões de agora e outrora, percorrendo e fechando ciclos sígnicos que se abrem para outros. Mas, sem pontos de corte, pois ocorrem em fusão, atados por nós conectivos, num tecer contínuo.


  • 1
    . Cf. MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand, 2002.
  • 2
    . Ibidem, p. 56.
  • 3.
    MONTEIRO, Gilson Vieira; ABBUD, Maria Emília de Oliveira Pereira; PEREIRA, Mirna Feitosa (orgs.). Estudos e perspectivas dos ecossistemas na comunicação. Manaus: Edua/Ufam, 2012, p. 09.
  • 4.
    Cf. CAPRA, Fritjof. Teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 259.
  • 5
    . CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. São Paulo: Cultrix, 2002.
  • 6.
    AMARAL, Adriana; NATAL, Geórgia; VIANA, Luciana. Netnografia como aporte metodológico da pesquisa em comunicação digital. In: Revista Sessões do Imaginário. Porto Alegre, v. 2, n. 20, p. 34-40, dez. 2008.
  • 7
    . Idem, p. 36.
  • 8.
    COUTINHO, Iluska. Leitura e análise da imagem. In: DUARTE, Jorge; BARROS, Antônio (org.). Métodos e técnicas da pesquisa em comunicação. São Paulo: Atlas, 2008.
  • 9.
    Cf. GREINER, Christine. O corpo, pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005.
  • 10
    . Ibidem, p. 73.
  • 11
    . Cf. FREITAS, Ítala Clay de Oliveira. Tramas comunicativas da cultura: a dança no jornalismo impresso em Manaus (1980-2000). Tese de doutorado em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2010.
  • 12
    . Cf. PÁSCOA, Luciane. As artes plásticas no Amazonas: o Clube da Madrugada. Manaus: Valer, 2011.
  • 13
    . SALLES, Cecília Almeida. Arquivos de criação: arte e curadoria. São Paulo: FAPESP/Ed. Horizonte, 2010.
  • 14
    . Ibidem, p. 218.
  • 15
    . Ibidem, p. 89.
  • 16
    . Ibidem, p. 46.
  • 17
    . MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. Campinas: Psy II, 1995.
  • 18
    . O álbum foi criado em 26 de janeiro de 2012, mas tem uma dinâmica contínua, pois acompanha o trajeto criativo do artista voltado a recorrente temática dos Ciclos do Eldorado, portanto, o número referenciado de 442 postagens corresponde ao final do período de observação realizado para este estudo, em 12 de agosto de 2016.
  • 19
    . Cf. FERRARI, Pollyana. Comunicação digital na era da participação. Porto Alegre: Editora Fi, 2016.
  • 20
    . Ibidem, p. 21.
  • 21
    . Cf. SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
  • 22
    . Ibidem, p. 82.
  • 23
    . MACHADO, Arlindo. A arte do vídeo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.
  • 24
    . DA-RIN, Silvio. Espelho partido: tradição e transformação do documentário. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2006.
  • 25
    . Ibidem, p. 233.
  • 26
    . Ibidem, p. 224.
  • 27
    . Cf. METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 2007.
  • 28
    . Ibidem, p. 76.
  • 29
    Henri Michaux, Sem título, Nanquim sobre papel. 1957

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2016
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