Acessibilidade / Reportar erro

Estratégias de ressignificação no cinema de found footage feito por mulheres

Resignification Strategies in Found Footage Cinema Made by Women

Estrategias de resignificación en el cine de found footage hecho por mujeres

RESUMO

Neste artigo, propomos o levantamento e análise da prática do found footage na obra de cineastas e artistas mulheres. Aproximamos os estudos de found footage aos estudos de gênero através da ideia de ressignificação presente na obra de Judith Butler, para quem as identidades de gênero são construídas socialmente por meio da repetição de identidades coletivas dominantes e podem ser ressignificadas também na sua repetição. Ao transpormos a ideia de ressignificação para o audiovisual, nossa intenção será pensar como a repetição de imagens em novos contextos pode desafiar seu significado original. A partir desta hipótese, proporemos um conjunto de estratégias de ressignificação empregadas com relevância nessa produção: a repetição, a compilação, o conflito, a continuidade e a materialidade.

PALAVRAS-CHAVE:
Found footage; Mulheres; Ressignificação; Identidade de gênero

ABSTRACT

This article proposes the survey and analysis of the practice of found footage in the work of women filmmakers and artists. We draw found footage studies closer to gender studies through the idea of resignification as seen in the work of Judith Butler, for whom gender identities are socially constructed through the repetition of dominant collective identities, and can also be resignified through such repetition. By transposing the idea of resignification to the audiovisual field, we aim to reflect on how the repetition of images in new contexts can challenge their original meaning. From this hypothesis, we propose a set of resignification strategies seen as regularly employed in this production: repetition, compilation, conflict, continuity, and materiality.

KEYWORDS:
Found Footage; Women; Resignification; Gender Identity

RESUMEN

En este artículo proponemos un mapeo y análisis de la práctica del found footage en la obra de mujeres cineastas y artistas. Acercamos los estudios de found footage a los estudios de género por medio de la idea de resignificación presente en la obra de Judith Butler, para quien las identidades de género se construyen socialmente a través de la repetición de las identidades colectivas dominantes y pueden resignificar también por su repetición. Al transponer la idea de resignificación para lo audiovisual, nuestra intención es pensar cómo la repetición de imágenes en nuevos contextos puede desafiar su significado original. A partir de esta hipótesis, proponemos un conjunto de estrategias de resignificación empleadas con relevancia en la producción: la repetición, la compilación, el conflicto, la continuidad y la materialidad.

PALABRAS CLAVE:
Found footage; Mujeres; Resignificación; Identidad de género

Em um dos primeiros estudos de fôlego sobre a reutilização de imagens e sons no cinema, o livro Films Beget Films, Jay Leyda (196413. LEYDA Jay. Films Beget Films: A Study of the Compilation Film. Nova York: Hill and Wang, 1964.) demonstra como a prática de reciclar trechos de filmes, remontando-os em novos contextos, esteve presente desde os primeiros anos da história do cinema. Leyda atribui a uma mulher, no entanto, o desenvolvimento da prática no que se consideraria um novo gênero, o filme de compilação. A diretora e montadora soviética Esfir Chub realizou, entre 1927 e 1928, três filmes montados a partir de material de arquivo histórico, mostrando que a realização de cinema poderia prescindir inteiramente de câmeras de filmagem. A obra de Chub marca o início de uma associação entre realizadoras mulheres e a remontagem de imagens pré-existentes que vai perdurar ao longo da história do cinema. Durante o século XX, diversas diretoras e montadoras fizeram uso dessa associação para, através de imagens apropriadas, articular leituras feministas sobre a cultura audiovisual hegemônica. O fenômeno se dá de forma mais marcada no contexto do cinema experimental estadunidense onde, nos anos 1980, as cineastas feministas têm um papel fundamental na ampliação e diversificação dos usos daquilo que viria a ser conhecido como cinema de found footage 1 1 . Cinema de compilação e found footage foram considerados formas de reemprego audiovisual distintas, em especial a partir da obra de William Wees (1993), que associava a primeira ao cinema documentário, e a segunda, ao cinema de vanguarda. Mais recentemente, no entanto, alguns autores têm questionado essa separação. Jaimie Baron (2014) fala em filmes de apropriação para se referir a um corpus diverso de filmes que produzem aquilo que chamou de “efeito de arquivo”, ou a sensação de estar assistindo a uma imagem que foi produzida para outro contexto. Catherine Russell (2018) cria o neologismo “arquiveologia” para designar a “prática de coletar imagens e as compilar de maneiras novas e surpreendentes”. Já Patrick Sjöberg (2001) amplia o uso do termo "compilação" para uma variedade de formas de reemprego, entendendo que esses filmes se esquivam de distinções genéricas ou categóricas, muitas vezes borrando as linhas entre documentário e experimental . A partir dos anos 1990, com a ampliação do acesso a arquivos digitais e à prática da montagem, o uso do found footage na ressignificação feminista de representações e narrativas audiovisuais se expande e descentraliza, passando a estar presente em cinematografias de nacionalidades diversas e ocupando frequentemente também as galerias de arte e meios digitais.

Embora não faltem pontos de intersecção entre o audiovisual feito por mulheres e a prática do found footage, essa relação ainda foi muito pouco explorada pela produção crítica, ficando em geral restrita a comentários passageiros ou a textos dedicados a uma ou outra realizadora específica. A exceção é o dossiê Found Footage: Women without a Movie Camera, realizado em 2016 pela revista Feminist Media Histories, cuja organização parte justamente da percepção dessa afinidade. Na introdução escrita pelas editoras Monica Dall’Asta e Alessandra Chiarini, a ligação das mulheres com o found footage é explorada a partir de uma ideia de autonomia criativa possibilitada pela sala de montagem: “A sala de montagem como um local de separação e autonomia é um espaço onde as mulheres aprenderam a fazer de sua intimidade uma política, obtendo assim uma margem de movimento no mundo (objetivamente hostil) da indústria cinematográfica” (DALL’ASTA; CHIARINI, 20165. DALL'ASTA Monica, CHIARINI Alessandra. Editors' Introduction, Feminist Media Histories, S. l. , v. 2, n. 3, 2016, pp. 1-10., p. 8, tradução minha). As dinâmicas de acesso e restrição têm sido determinantes na produção de mulheres no audiovisual, mas o found footage feito por mulheres interessa também por suas possibilidades estéticas e formais e seu potencial expressivo para a criação filmes de posicionamento feminista ou que discutem especificamente questões de gênero, identidade e representação.

A intenção deste artigo será realizar um levantamento e análise da prática do found footage na obra de cineastas e artistas mulheres, em especial na construção de leituras feministas sobre as imagens apropriadas. Para isso, iremos aproximar os estudos de found footage aos estudos de gênero por meio do conceito de ressignificação presente na obra de Judith Butler. Ao transpormos a ideia de ressignificação para o audiovisual, nossa intenção será pensar como a repetição de imagens em novos contextos pode desafiar seu significado original. Trabalhamos com o found footage como a prática de criar obras audiovisuais a partir da apropriação de imagens e sons produzidos com outra intenção ou propósito, remontando-os de formas diversas e fazendo emergir novos significados no processo. O entendimento do found footage como uma prática pretende dissociá-lo de uma aproximação exclusiva a determinado gênero, concebendo-o como um procedimento transversal que atravessa formatos diversos, seja o cinema experimental, o documentário, a videoarte, a ficção, os vídeos de internet ou as obras voltadas a galerias de arte.

Um aspecto central nessa prática é a relação contraditória que os realizadores e realizadoras estabelecem com o material fílmico. Se por um lado a apropriação parte de uma fascinação ou interesse despertado por aquelas imagens, esse movimento costuma coexistir também com uma postura crítica ao material. No processo de apropriação, o ponto de vista mobilizado na captação das imagens coexiste com o de quem delas se apropria na obra final. Em outras palavras, o found footage coloca necessariamente um embate entre duas posições, sem apagar completamente o sentido social inicial inscrito no material, mas o contrapondo a um outro sentido, reativo a esse material e marcado pelo novo contexto. Ou, como afirma Paul Arthur (19981. ARTHUR Paul. On the Virtues and Limitations of Collage, Documentary Box, S. l. , v. 11, 1998, n.p.), o found footage seria por definição uma operação dialógica, que coloca dois ou mais agentes enunciativos em oposição. Esse caráter dialógico, ou mesmo dialético, da prática do found footage permite a formação de contradiscursos a partir da ressignificação do material original, muitas vezes representativo de um discurso hegemônico.

A ressignificação operada no found footage se relaciona intimamente com o campo dos estudos de gênero, em especial com o trabalho de Judith Butler - autora fundamental tanto para a teoria queer e os estudos da sexualidade quanto nas reconfigurações do debate feminista e de gênero que ocorrem a partir da Terceira Onda do Feminismo nos anos 1990. Em seu livro Problemas de gênero, Butler (2013) propõe o afastamento da ideia de gênero como diferença sexual, até então hegemônica no feminismo da Segunda Onda, passando a descrevê-lo como um conjunto de gestos performativos que são repetidos de forma inconsciente desde a primeira infância, conformando a identidade de um indivíduo às expectativas vigentes dentro de determinada sociedade. Assim, no trabalho de Butler, o gênero passa a ser enxergado como parte de uma construção social.

Entender a identidade de gênero como algo que não é fundante ou fixo, mas constituído culturalmente, permite pensar certas possibilidades de ação sobre as identidades, ainda que inseridas e delimitadas pelo contexto social que as constitui. Na obra de Butler, as possibilidades de ação aparecem ligadas também à ideia de repetição, mas a uma repetição variante, excessiva, deslocada. Butler trabalha com exemplos como as identidades lésbicas butch e femme ou a performance drag queen, e demonstra como a imitação da identidade tradicional e normatizada de gênero de forma parodística ou deslocada por outros corpos evidencia o fator de construção cultural determinante nessas identidades. A ideia de repetição é, portanto, essencial para o trabalho de Butler, que afirma:

A repetição imitativa do “original” revela que o original nada mais é do que uma paródia da ideia do natural e do original. … que possibilidades existem de recirculação? Que possibilidades de fazer o gênero repetem e deslocam, por meio da hipérbole, da dissonância, da confusão interna e da proliferação, os próprios construtos pelos quais os gêneros são mobilizados? (BUTLER, 20134. BUTLER Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 6a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013., p. 57)

O found footage também nada mais é do que uma “repetição imitativa do ‘original’”, uma vez que desloca imagens e sons de seu contexto primeiro para repeti-los em uma nova obra. A repetição no novo contexto faz com que esses materiais assumam significados diversos dos que assumiam inicialmente, mas transforma também a relação que se estabelece com o original, ao manter algum traço de reconhecibilidade na nova obra, o que produz sobre ela novas leituras. Teresa de Lauretis mostrou como as mídias audiovisuais, como constituintes de uma tecnologia do gênero2 2 . No ensaio “A tecnologia do gênero”, publicado originalmente em 1987, De Lauretis descreve o gênero como uma representação. Para a autora, não existe uma oposição a priori de dois gêneros que sejam objetos da representação, mas eles são criados justamente no processo de sua representação - seja por discursos e aparelhos presentes na sociedade, seja na auto representação de determinados indivíduos. Cf. DE LAURETIS (1994). , atuam também na formação do gênero nos sujeitos. Nesse sentido, a prática do found footage parece oferecer a possibilidade de criar um movimento de desconstrução e simultânea produção de lugares de gênero, a partir da exploração das fissuras existentes nas práticas audiovisuais dominantes. Entendendo o audiovisual como um dos agentes de conformação das identidades de gênero nos indivíduos, é possível aproximar a ideia de ressignificação, ligada à ressignificação dos lugares de gênero, ao trabalho de ressignificação das imagens reapropriadas nesses filmes. Para usar as palavras de Butler, buscamos formas de reemprego de imagens que “repetem e deslocam, por meio da hipérbole da dissonância, da confusão interna e da proliferação” (2013, p. 57), as representações de gênero vigentes nos meios audiovisuais.

Frente a um campo amplo e heterogêneo de found footage de autoria feminina, propomos então o levantamento de algumas estratégias de ressignificação empregadas com relevância nessa produção audiovisual. O conjunto de estratégias exposto é composto pela repetição, a compilação, o conflito, a continuidade e a materialidade. É importante ressaltar que o presente levantamento se distingue das importantes cartografias e categorizações já existentes, em parte justamente pelo entendimento do found footage como uma prática. Não nos interessa filiar os filmes a diferentes tradições estéticas, como ocorre na separação de William Wees (1993) entre compilação, apropriação e colagem. Tampouco pretendemos identificar intenções distintas atuantes na reapropriação e remontagem do material, como já fizeram Nicole Brenez e Pip Chodorov (20143. BRENEZ Nicole, CHODOROV Pip. Cartografia do Found Footage, Revista Laika, S. l. , v. 3, n. 5, 2014, pp. 1-11.) ao descrever os usos elegíaco, crítico, estrutural, materiológico e analítico do found footage. Ao contrário, as estratégias aqui levantadas dizem respeito a recursos formais mobilizados por essas realizadoras e seus efeitos na representação de lugares de gênero nos produtos audiovisuais mais do que a categorias de filmes.

Ademais, embora sejam procedimentos comuns aos filmes de found footage de forma geral, o recorte de gênero aqui proposto orienta o levantamento e a análise de cada estratégia descrita, buscando sempre compreender como os recursos identificados atuam na construção de pontos de vista feministas sobre o material. Por fim, lembramos que os recursos descritos são frequentemente mobilizados em combinação, uma vez que a maioria dos filmes mencionados acumula uma multiplicidade de estratégias em sua construção, não podendo ser identificados exclusivamente com uma ou outra.

REPETIÇÃO

A repetição tem um papel central na prática do found footage e na ressignificação de material audiovisual, em primeiro lugar por se tratar de uma prática que reapresenta, em um novo contexto, imagens e sons que já circularam de alguma forma. É importante também notar que a repetição é frequentemente empregada enquanto um recurso de montagem, em obras que apresentam repetidamente um filme inteiro, determinadas cenas, trechos, planos ou fragmentos. Muitas vezes essa repetição é acompanhada de algum tipo de variação sobre o material, de modo que, cada vez que o vemos, o novo contexto marcado pelas variações faz emergir diferentes sentidos sobre as imagens. A repetição - aliada a variações - se relaciona intimamente com a ideia de ressignificação das identidades de gênero de Butler e sua sugestão de que se “toda significação ocorre na órbita da compulsão à repetição; a ‘ação’ ... deve ser situada na possibilidade de uma variação dessa repetição” (2013, p. 209).

Diversos vídeos, filmes e instalações feministas trabalham a ressignificação de imagens produzidas pela grande mídia a partir da repetição. É o caso de Technology/Transformation: Wonder Woman (1978-1979), de Dara Birnbaum, vídeo montado a partir de cenas do seriado Mulher maravilha, no qual gestos como o giro que a personagem faz para se transformar são repetidos incessantemente, em uma análise da passagem da mulher ordinária para a super-heroína. Ou ainda as instalações de Candice Breitz, como Her e Him (2008) ou Mother e Father (2005), nas quais a repetição de trechos de falas de grandes atores do cinema hollywoodiano forma monólogos e diálogos em estrutura espiral que desvelam as obsessões de gênero encenadas nesses filmes. A repetição é também frequentemente associada à postura de devoção às imagens, ligada à cinefilia. No video-essay Gentlemen Prefer Blondes (Remix Remixed by Laura Mulvey) (2013), a crítica e realizadora Laura Mulvey repete cinco vezes um trecho de uma performance musical de Marilyn Monroe, realizando pausas e ralentações a cada nova repetição, de forma a empregar um olhar cinéfilo que simultaneamente cultua e desconstrói o gestual da atriz, símbolo do prazer visual no cinema de Hollywood. Nesse vídeo, um fator importante para a ressignificação é a apresentação do trecho na íntegra, sem alterações, no início e no final do vídeo. Embora se trate do mesmo trecho, a experiência de assisti-lo novamente ao final, após as repetições e variações realizadas pelo vídeo, é diferente da experiência inicial.

A repetição também pode servir como ferramenta analítica que incide sobre materiais não ficcionais, mostrando como os papéis de gênero se constroem também na vida de homens e mulheres reais. Essa relação mais ambígua entre performance e performatividade, representação e realidade, também explorada pela repetição na montagem, aparece, por exemplo, em Covert Action (1984), de Abigail Child. Nesse curta, Child trabalha com imagens totalmente anônimas, filmes caseiros encontrados por ela, um material sobre o qual tem pouca ou nenhuma informação, mas a partir do qual constrói, através da repetição na montagem, um movimento especulativo e investigativo. Quase todo o material fílmico utilizado no curta parece advir de uma única fonte: os registros caseiros em 16mm preto e branco de dois homens sobre seus vários encontros amorosos com mulheres diversas em uma casa de campo. O material é montado junto a cartelas de texto e sobreposto por um diálogo improvisado entre um homem e uma mulher.

Em uma montagem fragmentada, de ritmo rápido, Child repete diversas vezes ao longo do filme alguns motivos visuais recorrentes no material encontrado: planos próximos de rostos de diversas mulheres brancas e cenas de beijos entre os homens e essas múltiplas mulheres. Devido ao ritmo acelerado da montagem, somente após algumas repetições é possível identificar os personagens e ações postos em cena. A fragmentação dos gestos pela montagem enfatiza uma impressão de violência nessas relações, mostrando o constrangimento que as mulheres sentem diante da câmera - em geral empunhada por um dos dois homens - ou enfatizando pequenos movimentos em que parecem buscar escapar do enlace masculino. Mais do que o acesso a um real sem mediação, as imagens acabam por se mostrar embebidas de relações de poder: as mulheres posam, e os homens detêm o controle da imagem.

FIGURA 1
Abigail Child, Covert Action, 1984. Fotogramas do filme.

Covert Action revela, por meio da repetição, padrões inconscientes (GUNNING, 200510. GUNNING Tom. Poetry in Motion. In CHILD, Abigail. This is Called Moving: A Critical Poetics of Film. Tuscaloosa: The University of Alabama Press, 2005, pp. xi-xx.) que dizem respeito à sociabilidade heterossexual, e a decomposição dos gestos enfatiza o que há de violento nessas relações. A montagem cíclica de Child, calcada no procedimento de repetição e variação, é expressiva para a revelação de padrões de comportamento. Por exemplo, em dado momento, lê-se em um intertítulo: “5 years later cinco anos depois ”. O plano imediatamente posterior é um dos muitos planos de beijo usados repetidamente por Child, nesse momento já visto pela espectadora. Essa operação coloca uma contradição entre a linearidade sugerida pelo intertítulo e a repetição do material, indicativa da continuidade de um tipo de performatividade social violenta. Perto do fim do filme, lê-se em outro intertítulo: “ It seems strange to me now Parece-me estranho agora ”. O texto exprime o percurso do filme, de desconfiar das imagens, remexer o material, olhar mais uma vez, empregando uma montagem curiosa, até que aquilo tudo se torne estranho. Assim, o filme submete os papéis de gênero nas relações heterossexuais à análise da montadora-espectadora, mostrando-os por fim também como performativos, pautados em gestos aprendidos e repetidos.

Nesse sentido, a defesa de Butler de uma repetição disruptiva das identidades de gênero parece encontrar ecos no uso da repetição na montagem. Nos filmes de found footage, a repetição figura com frequência como forma de realizar uma análise minuciosa de um determinado material, reproduzindo-o em novos contextos e, muitas vezes, empregando sobre ele variações - de tempo, som, enquadramento, cor etc. - até desnaturá-lo. Por vezes, o uso desse recurso faz referência a uma espectatorialidade cinéfila, e alude a uma fascinação provocada por uma cena, plano ou gesto. A experiência de assistir a um fragmento audiovisual repetidas vezes, no entanto, inevitavelmente enfraquece seu sentido inicial, sua narrativa ou conteúdo imagético imediato, chamando a atenção para novos detalhes, gestos dos personagens, movimentos de câmera, a textura da imagem. Uma das consequências desse efeito é trazer à tona o processo de construção dessas imagens, que não mais se apresentam como um real ou natural inocente ou sem mediação. Nesse contexto, aponta-se também o processo de construção de gênero operante nessas representações, desnaturalizando as ideias de feminino e masculino.

COMPILAÇÃO

Embora o termo "compilação" seja frequentemente utilizado para descrever uma forma de apropriação de materiais de arquivo própria ao documentário, Catherine Russell (2013) entende essa prática como uma estratégia ligada à ideia de “coletânea”, podendo ser encontrada em uma variedade de obras audiovisuais, dos documentários históricos de tom realista aos filmes experimentais de found footage; dos fan videos às galerias de arte. A compilação, quando entendida como coletânea ou seleção, é frequentemente utilizada com o intuito de condensar imagens normalmente recebidas de forma dispersa, fazendo emergir delas um sentido de enunciação que antes não estava evidente.

Frequentemente, o uso da compilação por realizadoras feministas tem também relação com a ideia de repetição, na medida em que esses filmes concentram, em um curto espaço de tempo, planos, gestos ou falas muito similares entre si, que se repetem exaustivamente na cultura audiovisual. A reiteração causada por esse tipo de compilação evidencia discursos correntes que atuam na formação de identidades de gênero e papéis sociais, ainda que, quando vistos dispersamente, não pareçam ter importância ou enunciar algo muito claro. Essa estratégia se aproxima daquilo que Nicole Brenez e Pip Chodorov chamam de anamnese, ou o ato de “reunir e aproximar imagens de uma mesma natureza de modo a fazê-las significar não algo diferente do que elas dizem, mas precisamente aquilo que elas mostram e que nos recusamos a ver” (2014, p. 4).

São muitos os exemplos do uso de compilação em filmes feministas de found footage. Em Autópsia (2016, Mariana Barreiros), por exemplo, vemos uma compilação de cenas de televisão, publicidade e internet, entre outras, juntamente a registros sonoros e canções populares, que mostram a proliferação de discursos e representações violentos com as mulheres na cultura brasileira. Materiais que nos contextos originais passam despercebidos ou são tidos como meras brincadeiras, quando condensados no filme, apresentam-se como parte de um discurso articulado e profundamente relacionado com as vidas de mulheres reais. Já em Kali-Filme (1988, Birgit Hein e Wilhelm Hein), são as mulheres que cometem atos de violência. Cenas de filmes de terror, pornografia, e de filmes WIP (Women in Prison) são compiladas para mostrar mulheres lutando umas com as outras, ou se voltando contra homens, em brigas e agressões, com o clímax formado por uma compilação de cenas de castração. O filme acaba por revelar algo não sobre as mulheres representadas, e sim sobre a ansiedade de castração latente na sociedade que produz, consome e faz circular essas narrativas. No mexicano De cuerpo presente (1997, Marcela Fernandez Violante), trechos de filmes do melodrama mexicano são compilados para formar a trajetória de uma vida marcada pelo gênero: o nascimento, a maternidade ressentida, relações heterossexuais violentas e uma morte pautada pela culpa cristã. Em outro caminho, o curta-metragem francês Tears (2004), de Sabine Massenet, reúne close-ups de mulheres chorando em diversos seriados norte-americanos dublados, retirados da televisão francesa. Conforme repete cenas com uma semelhança impressionante entre si, o filme chama a atenção para o choro da atriz como um gesto aprendido, ensaiado e repetido em uma infinidade de imagens.

FIGURA 2
Sabine Massenet, Tears, 2004. Fotogramas do vídeo.

Recentemente, uma variedade de trabalhos feitos para exibição em galerias, como grande parte da obra da sul-africana Candice Breitz ou da australiana Tracey Moffatt, realiza compilações de filmes hollywoodianos, em um movimento que Thomas Elsaesser (20159. ELSAESSER Thomas. The Ethics of Appropriation: Found Footage between Archive and Internet, Found Footage Magazine, S. l. , n. 1, out. 2015, pp. 30-37.) associa ao mash-up de internet transportado ao contexto dos museus e da obra de arte “legitimada”. A obra de Moffatt é exemplar do uso dessa estratégia. Entre 1999 e 2015, a artista realizou, em parceria com o montador Gary Hillberg, uma série de oito compilações, baseadas em filmes hollywoodianos e destinadas à exibição em looping em galerias, composta pelos curtas Lip (1999), Artist (2000), Love (2004), Doomed (2007), Revolution (2008), Mother (2009), Other (2009) e The Art (2015). Os filmes são divididos tematicamente, compilando as representações feitas pelo cinema para os assuntos indicados em seus respectivos títulos. Assim, a série perpassa, entre outros, arquétipos maternos, a representação da violência no amor romântico e estereótipos raciais presentes no cinema hollywoodiano. O olhar empregado por Moffatt, marcado por sua origem familiar aborígene3 3 . Filha de mãe aborígene, Tracey Moffatt foi adotada na infância por uma mulher branca, como parte de uma política de adoção forçada que vigorou na Austrália entre as décadas de 1950 e 1970 e que visava ao embranquecimento da população. Cf. LLOYD (2014). , é sensível a atravessamentos diversos, incluindo questões de gênero, raça, sexualidade e colonialismo, em suas diversas intersecções.

Em Other (2009), por exemplo, o olhar da artista se volta para as relações coloniais, através da compilação de uma série de filmes hollywoodianos que retratam o encontro de figuras brancas ocidentais com “o outro”, uma categoria ampla que abrange povos orientais, negros e indígenas. O filme se detém especialmente sobre representações do desejo e do encontro sexual inter-racial, evidenciando a intersecção entre medo e desejo nesses encontros. A compilação feita pela artista revela recorrências de estereótipos e de elementos formais, com “o outro” frequentemente representado em grandes grupos frente a um europeu individualizado, em close up, detentor do olhar. Em sua repetição incessante de estereótipos, Other torna inegável e por vezes até risível a problemática representação do “outro” feita por Hollywood. Ainda, o filme coloca gênero e sexualidade no centro de questões coloniais e de assimilação cultural, ao explorar as representações de Hollywood do “outro” como objeto de desejo.

Assim, o ato de condensar em uma só obra imagens produzidas de forma dispersa, e que reiteram um mesmo discurso, representação ou estereótipo, faz emergir um sentido de enunciação construído no conjunto dessas imagens que muitas vezes não está evidente nas obras quando vistas isoladamente. Tanto a repetição quanto a compilação apontam a importância da ideia de repetição na conformação de identidades de gênero nos sujeitos e para sua simultânea importância na ressignificação dessas identidades, a qual se dá através da repetição hiperbólica, das variações, das disrupções, que mostram o gênero como um ato, um conjunto de ações, algo que é formado inclusive em seu processo de representação, e não como uma identidade profunda e inefável.

CONFLITO

A estratégia chamada aqui de "conflito" é talvez uma das mais simples e comuns no cinema de found footage. Consiste meramente em cortar de uma imagem a outra de natureza, forma, conteúdo ou temática contraditória ou bastante distinta, fazendo com que esse corte produza algum tipo de associação, preferencialmente dialética, entre as duas imagens.

No já mencionado Autópsia, o impacto da compilação é amplificado a partir da promoção do conflito, ou choque, entre as imagens. O principal elemento de conflito se dá pela aproximação entre materiais de natureza distinta. Ao lado de imagens e sons claramente entendidos como representações (novelas, propagandas), Barreiros seleciona materiais do campo não ficcional, como a sessão parlamentar em que o então deputado Jair Bolsonaro afirmou que não estupraria a deputada Maria do Rosário, pois ela “não merece”, as notícias do feminicídio de Eloá e, principalmente, dois trechos de vídeos amadores em que homens registram suas próprias agressões a mulheres. Ao empregar essas imagens “reais” de agressão, Barreiros reforça o outro lado da moeda da representação: as imagens violentas são parte constituinte de uma sociedade que é violenta em relação às mulheres. Dessa forma, a diretora mostra com clareza como opera, no plano da circulação das imagens, a cultura do estupro e da violência contra mulheres no Brasil.

A estratégia é similar à utilizada por um dos primeiros filmes de found footage encontrados a empregar um discurso feminista. Schmeerguntz (1965, Gunvor Nelson e Dorothy Wiley) usa como material bruto peças publicitárias dos anos 1940 a 1960, vídeos de ginástica e transmissões televisivas de concursos de miss, imagens que promovem um ideal de feminilidade branco típico do pós-guerra estadunidense, no qual as mulheres são retratadas sempre muito arrumadas, seguindo um padrão de beleza estreito e, ao mesmo tempo, conformadas em um modelo de domesticidade. Nessas representações, a casa e os eletrodomésticos brilham e são associados a uma ideia geral de felicidade da família estadunidense. Nelson e Wiley promovem o choque entre o imaginário construído pela publicidade e pela televisão e o dia a dia de Wiley, então grávida do segundo filho, lidando com o acúmulo de louça, sujeira na casa, trocas de fraldas e o estranhamento com seu próprio corpo.

Realizado durante o início do que ficou conhecido como a Segunda Onda do Feminismo, o filme apresenta preocupações típicas desse momento do movimento feminista e parece estar alinhado à palavra de ordem “o pessoal é político”. Sua estrutura é mais ou menos dividida em sessões que trabalham com grandes temas ligados aos ideais de feminilidade (nesse filme, branca, cis e heterossexual): os padrões de beleza, os cuidados com a casa, amor romântico e casamento e a maternidade. Em geral, as associações criadas no filme seguem um determinado padrão: imagens de propagandas de eletrodomésticos são contrapostas a cozinhas sujas e geladeiras lotadas; cenas de concurso de miss onde as mulheres performam inocência e docilidade são cotejadas com trechos violentos de partidas de roller derby; vídeos de ginástica são cortados junto à imagem de Wiley grávida sem conseguir alcançar os próprios pés.

FIGURA 3
Gunvor Nelson e Dorothy Wiley, Schmeerguntz, 1965. Fotogramas do filme.

A montagem de conflito utilizada por esses filmes remete à montagem dialética como proposta por Eisenstein (19908. EISENSTEIN Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.), na qual o choque ou conflito entre dois planos produz uma ideia, um sentido novo. Essa estratégia foi empregada frequentemente e de formas diversas na história dos filmes de found footage feitos por mulheres. Em Intermitent Delight (Akosua Adoma Owusu, 2007), por exemplo, imagens similares de propagandas estadunidenses de geladeira nos anos 1960, nas quais os refrigeradores são estampados e coloridos, são cotejadas a filmagens feitas pela diretora nas quais homens e mulheres trabalham com tecidos igualmente estampados no Gana. Nesse caso, o conflito promove uma leitura das imagens diferente da de Schmeerguntz, trazendo ao primeiro plano as dimensões de raça e nacionalidade. O conflito pode se dar, ainda, na relação entre imagem e áudio. Em Pets (2012, Albertina Carri), por exemplo, um registro fonográfico em que uma voz calma procura ensinar as mulheres a alcançar o orgasmo, através de medidas como o relaxamento, a comunicação e o autoconhecimento, é sobreposto a imagens antigas de pornografia, algumas advindas do cinema silencioso, em que as mulheres ora são submetidas a violência masculina, ora aparecem em situações de zoofilia - em choque direto com o cenário evocado pela pista de áudio.

Assim, o conflito aparece com frequência como uma forma de produzir uma operação de contradição ou choque entre as imagens e sons apropriados e um imaginário mobilizado pela realizadora. Esse tensionamento pode ter efeitos diversos: mostrar aquilo que as imagens apropriadas escondem - por exemplo, aquilo que precisa ser ignorado para a perpetuação de um fetiche; mostrar os efeitos desse material, às vezes denunciando-o como parte de um contexto de circulação de imagens mais perverso do que parece a princípio; ou aproximá-lo de imagens que dizem ou representam o exato oposto, o que torna impossível a síntese entre os dois planos, desautorizando o material apropriado.

CONTINUIDADE

As obras mencionadas até o momento trabalham com estratégias que, em suas repetições, conflitos ou ressonâncias não lineares, criam rupturas, fragmentação, descontinuidades, que desnaturalizam as representações existentes no material apropriado e dele fazem emergir um significado oculto, reprimido. Há uma outra abordagem possível no trabalho com found footage que consiste justamente em se apropriar das convenções de continuidade na montagem clássica, criando conexões, ou mesmo uma sensação de unidade, entre materiais de naturezas distintas. Constitutivas de um repertório comum de códigos entre os espectadores, essas convenções de montagem fazem com que os diferentes materiais apropriados, dispostos em sequência, pareçam apresentar uma história, uma continuidade espacial e temporal.

No início da compilação em Other, por exemplo, recursos como plano/contra plano e continuidade de movimento são utilizados para fabricar um encontro do branco ocidental com o “outro”, a partir de cenas de diferentes filmes, em diferentes países, que parecem ocupar o mesmo espaço fílmico. Em Loose Ends (1979, Chick Strand), planos de origens distintas de um homem atirando, um menino caindo, uma mulher que se assusta e sai correndo, deixando de lado um ferro de passar ligado, e labaredas de fogo se espalhando, são articulados de forma a contar uma pequena estória: o homem atirou no menino, o barulho do tiro assustou a mulher, e o ferro ligado causou o incêndio. Em History Lessons (2000), Barbara Hammer utiliza a convenção do plano detalhe para inserir materiais heterogêneos que imprimem um subtexto lésbico a materiais narrativos apropriados, ocupando um lugar ambíguo entre a diegese e a colagem.

Encuentro entre dos reinas (1991) é um caso exemplar do uso da continuidade. No vídeo, a realizadora chilena Cecília Barriga se utiliza da convenção do plano/contra plano para promover o encontro amoroso entre duas das maiores estrelas da Hollywood pre-code 4 4 . Hollywood pre-code compreende o período entre a expansão do som no cinema estadunidense no final dos anos 1920 e o estabelecimento do Motion Picture Production Code - código de valores que regeu Hollywood entre os anos 1930 e 1960. O período pre-code é marcado por uma tematização mais livre da sexualidade, além de outros assuntos que seriam posteriormente censurados, como violência e consumo de drogas. : Greta Garbo e Marlene Dietrich. O curta é dividido em sequências montadas a partir de imagens dos filmes hollywoodianos estrelados pelas duas atrizes e separadas por intertítulos que indicam o tema, objeto ou locação central de cada cena. Em “O lago”, por exemplo, Garbo parece olhar horrorizada o beijo de Dietrich com um homem. Já em “A biblioteca”, as duas flertam a sós: Dietrich em cima de uma escada é sujeita ao olhar de Garbo, que olha para cima e parece conversar com ela. Ao longo do vídeo, diversas cenas como essas promovem um verdadeiro encontro entre Dietrich e Garbo, criando uma geografia criativa a partir, principalmente, das relações de eixo de olhar em planos próximos - enquadramento símbolo do melodrama. O clímax se dá no encontro, também em plano/contraplano entre a Rainha Cristina de Garbo (Queen Christina, 1933, Rouben Mamoulian) e Catarina da Rússia, interpretada por Dietrich em A imperatriz vermelha (The Scarlet Empress, 1934, Josef von Sternberg).

FIGURA 4
Cecília Barriga, Encuentro entre dos reinas, 1991. Fotogramas do vídeo.

Encuentro entre dos reinas pode ser lido como um filme de fã, expressivo de uma imensa admiração pelas duas estrelas. No entanto, Barriga emprega uma leitura a contrapelo desse corpus de filmes, ou aquilo que Richard Dyer chamou de bricolage 5 5 . Dyer (1977) parte do termo bricolage, de Claude Levi-Strauss, para indicar uma possibilidade para o espectador homossexual de mexer com as imagens que lhe são oferecidas, dobrando seu significado a seu próprio desejo. , como forma de tornar visível sua própria leitura das imagens enquanto espectadora lésbica. O filme traz ao primeiro plano aspectos da sexualidade dessas mulheres6 6 . Para mais sobre o papel das duas atrizes em uma espectatorialidade LGBTQI+ da Hollywood clássica, ver HORAK (2014); RUSSO (1987). até então relegados à esfera do subtexto, insinuações e fofocas. Assim, ao empregar convenções narrativas de montagem e de continuidade para fabular uma relação entre as duas atrizes, Barriga produz um espaço fílmico em que o desejo entre mulheres pode ser livremente compartilhado e representado. Ao mesmo tempo, a instabilidade dessas representações, com suas descontinuidades e com o conhecimento extrafílmico que aponta sua artificialidade, produz também a imagem da ausência dessas representações. Em outras palavras, ao produzir essas representações e simultaneamente desestabilizá-las, o filme torna visíveis as lacunas e silêncios da história que apagam das imagens a existência lésbica.

O uso das convenções de montagem se mostra como mais uma camada de apropriação, que se soma à apropriação de imagens e sons. Assim como planos e cenas encontrados, as escolhas de montagem reapropriadas também ocupam uma posição necessariamente contraditória ou dialética, em sua simultânea construção e desconstrução do espaço fílmico. A criação de continuidade entre materiais descontínuos serve não só para construir novos significados, mas também para mostrar a própria ideia de continuidade como uma construção baseada em convenções, o que desestabiliza não só o novo contexto de utilização das imagens, mas também as narrativas das quais elas provêm.

MATERIALIDADE

A ressignificação feita a partir da manipulação das propriedades materiais da película fílmica é recorrente em filmes de found footage e se relaciona com o trabalho de mulheres tanto pelas suas possibilidades estéticas de ressignificação quanto pela própria condição material do trabalho. Essa estratégia pode ser realizada seja através de processos mecânicos, com intervenções físicas quadro a quadro, seja com processos químicos, nos quais a película é exposta a reagentes que modificam a natureza das imagens. Assim como o trabalho analógico de montagem foi associado a um universo feminino, é frequente também a associação entre o emprego de procedimentos manuais sobre a película fílmica e uma ideia de trabalho doméstico e, portanto, feminino. A realizadora francesa Cécile Fontaine, por exemplo, cuja extensa obra de found footage explora diversas formas de manipulação material, declara: “eu uso métodos que não têm nada a ver com o cinema, como as ferramentas da pintora (a faca), ou da escultora, ou da dona de casa” (apudTRALLI, 201618. TRALLI Lucia. Layers of Film, Encrusted Images, Feminist Media Histories, S. l. , v. 2, n. 3, 2016, pp. 73-89., p. 73, tradução minha). Em seus filmes de found footage, trabalha diretamente sobre a película, criando sobreposições com técnicas caseiras que envolvem tirar a emulsão superficial com fita adesiva, ou com uma faca de cozinha, após lavar o material com sabão. O processo de Fontaine, realizado sobre a pia da cozinha, foi frequentemente descrito como íntimo e feminino (Ibidem).

A associação entre essa forma de trabalho e o espaço doméstico, feminino, torna-se redutiva quando não admite as possibilidades de criação e autoria também presentes na prática, mas ela pode também ser positivada ou subvertida pelas próprias artistas. O filme Handtinting (1967, Joyce Wieland) é um exemplo precursor dessa forma de apropriação. Em seus trabalhos nas artes visuais, Wieland já se reapropriava de tradições femininas de trabalho têxtil, com a produção de quilts, ou colchas, e sua transposição para o universo artístico. Em Handtinting, Wieland utiliza outtakes de um documentário em que havia realizado operação de câmera para a Job Corps, organização governamental dos Estados Unidos destinada à capacitação profissional. As imagens mostram apenas mulheres, em sua maioria negras, realizando atividades como dança e natação, no que se imagina ser parte de um treinamento vocacional. Nesse filme, como em sua prática com quilts, Wieland recupera a tradição da costura, realizando o tingimento manual da película - daí o nome Handtinting - e perfurando o filme com agulhas de costura. A impressão material de gestos de trabalho artesanal tidos como femininos sobre a película fílmica reforça o conteúdo do próprio material, trazendo ao primeiro plano a temática da divisão de gênero no trabalho.

Uma série de diretoras utilizaram intervenções materiais na película fílmica para tecer uma aproximação entre corpo e filme, ou corpo filmado e corpo do filme. Em Self Portrait Post Mortem (2002, Louise Bourque), por exemplo, a diretora enterra uma série de materiais descartados em seu quintal para recuperá-los anos depois. Uma das imagens que encontra ao desenterrar os pedaços de filme é um curto trecho de seu rosto quando jovem, encoberto pelo mofo e pelas manchas de degradação do material. O título do filme e o gesto de exumação do material apontam um espelhamento entre o corpo do filme e o corpo da realizadora. Já em The Color of Love (1994), Peggy Ahwesh trabalha a partir de um filme pornográfico em Super-8 encontrado em uma lixeira, no qual mulheres têm relações sexuais sobre o corpo de um homem inerte, desacordado. As mulheres cortam o homem e espalham seu sangue sobre o corpo deitado, além de usar seu pênis inerte como um brinquedo sexual. Quando encontrado, o filme havia sido extensamente degradado pela ação do tempo e da água, adquirindo manchas rosas com tons turquesa e verde. O vai e vem das manchas laterais remete aos lábios da vulva, e o corpo do filme assume o primeiro plano no campo de visão.

Removed (1999, Naomi Uman) é um exemplo de filme cujas manipulações da materialidade apontam um universo de trabalho e materiais tidos como femininos, ao mesmo tempo que tensionam discursos e representações sobre o corpo. Nele, um soft porn alemão em 35mm é transformado a partir da intervenção manual da diretora. Em um trabalho próximo à técnica de rotoscopia, Naomi Uman pintou cada fotograma do filme com esmalte, exceto os corpos nus das mulheres. O filme foi então mergulhado em alvejante, de forma que a parte pintada da imagem foi preservada, enquanto os corpos de mulheres perderam a emulsão, o que formou vazios na imagem pelos quais a luz passa livremente, delineando borrões brancos.

FIGURA 5
Naomi Uman, Removed, 1999. Fotograma do filme.

Ao usar como material bruto a pornografia, um gênero tão marcado pela superexposição do corpo feminino, a intervenção da diretora cria uma cisão no universo representado. Por um lado, as figuras femininas se tornam fantasmagóricas, quase invisíveis, manchas brancas e intocáveis pelos homens com os quais elas contracenam. Por outro lado, cada frame carrega em si a marca do toque da realizadora, um trabalho extenuante de manipulação quadro a quadro, artesanal, que deixa marcas da manipulação em sua necessária imprecisão.

Assim, o trabalho com a materialidade fílmica, quando realizado sobre materiais encontrados, muitas vezes se mostra como uma forma de reinscrever sobre a película tradições de trabalho manual tidas como femininas. Além disso, trata-se de uma estratégia efetiva para “subverter a lógica referencial que sustenta a representação, e esvaziar o referente de seu significado, de seu status como representação” (KOTZ, 199312. KOTZ Liz. Complicity: Women Artists Investigating Masculinity. In GIBSON, Pamela Church; GIBSON, Roma. Dirty Looks: Women, Pornography, Power. Londres: British Film Institute, 1993, pp. 101-123., p. 106, tradução minha). Frente aos “gêneros do corpo”, no caso exposto aqui, a pornografia, essas estratégias são capazes de promover um retorno das imagens à corporalidade da película. Esse efeito desloca a relação com a imagem para um domínio háptico, rompendo com mecanismos voyeuristas, sem deixar de oferecer prazer ao espectador.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entendemos que o found footage tem se mostrado uma prática privilegiada para a expressão da relação contraditória que muitas mulheres estabelecem com as representações audiovisuais hegemônicas correntes na sociedade. A opção de cineastas mulheres pelo found footage, parece-nos, vai além da viabilidade econômica da prática ou de uma familiaridade técnica com o trabalho de montagem. De seu lugar de silêncio, ou de confinamento - a área de montagem e a ilha de edição -, muitas mulheres encontraram um lugar também de potência e de poder, uma possibilidade de dobrar imagens alheias, submetê-las ao seu desejo em uma postura de espectatorialidade ativa, produtiva, que se utiliza dos recursos da mesa de montagem para imprimir sobre essas representações uma leitura própria.

As estratégias descritas neste artigo são recursos comuns na prática do found footage, não sendo empregadas exclusivamente em obras de realizadoras mulheres. No entanto, destacamo-nas com o intuito de demonstrar de que forma esses recursos formais podem ser mobilizados na ressignificação feminista do material, ao desnaturalizar representações correntes na mídia, abrir brechas para novas leituras sobre os discursos audiovisuais, ou analisar criticamente como se dá a construção social do gênero nessas representações.

Ao trabalhar diretamente com imagens criadas pela mídia tradicional, entre outras, o found footage parece ser uma prática privilegiada para a articulação de uma oposição a um discurso dominante no qual não há espaço para as mulheres reais, possibilitando a criação de embates entre esses discursos públicos e a subjetividade das mulheres, sujeitos históricos, que recebem essas imagens e se apropriam delas. Obras feministas de found footage não apenas recusam as representações muitas vezes misóginas produzidas pelos discursos dominantes, mas as encaram e escancaram, trazendo-as para dentro da nova obra e assumindo o embate. Ferramentas de montagem como repetição, compilação, continuidade e justaposição, aliadas a variações como o ralentamento, aceleração e dessincronia sonora, entre outros procedimentos, possibilitaram que uma série de cineastas feministas fizessem vir à tona, no material reciclado, um aspecto reprimido dessas imagens, ou o excesso da representação do gênero, que, embora oculto, está contido nas próprias imagens que os escondem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    ARTHUR Paul. On the Virtues and Limitations of Collage, Documentary Box, S. l. , v. 11, 1998, n.p.
  • 2
    BARON Jamie. The Archive Effect: Found Footage and the Audiovisual Experience of History. 1ª ed. Nova York: Routledge, 2014.
  • 3
    BRENEZ Nicole, CHODOROV Pip. Cartografia do Found Footage, Revista Laika, S. l. , v. 3, n. 5, 2014, pp. 1-11.
  • 4
    BUTLER Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 6a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
  • 5
    DALL'ASTA Monica, CHIARINI Alessandra. Editors' Introduction, Feminist Media Histories, S. l. , v. 2, n. 3, 2016, pp. 1-10.
  • 6
    DE LAURETIS Teresa. A Tecnologia do Gênero. In HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Tendências e impasses - O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, pp. 206-242.
  • 7
    DYER Richard. Gays and Film. Londres: British Film Institute, 1977.
  • 8
    EISENSTEIN Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
  • 9
    ELSAESSER Thomas. The Ethics of Appropriation: Found Footage between Archive and Internet, Found Footage Magazine, S. l. , n. 1, out. 2015, pp. 30-37.
  • 10
    GUNNING Tom. Poetry in Motion. In CHILD, Abigail. This is Called Moving: A Critical Poetics of Film. Tuscaloosa: The University of Alabama Press, 2005, pp. xi-xx.
  • 11
    HORAK Laura. Queer Crossings: Greta Garbo, National Identity, and Gender Deviance. In BEAN, Jennifer; KAPSE, Anupama; HORAK, Laura. Silent Cinema and the Politics of Space. Bloomington / Indianapolis: Indiana University Press, 2014, pp. 270-294.
  • 12
    KOTZ Liz. Complicity: Women Artists Investigating Masculinity. In GIBSON, Pamela Church; GIBSON, Roma. Dirty Looks: Women, Pornography, Power. Londres: British Film Institute, 1993, pp. 101-123.
  • 13
    LEYDA Jay. Films Beget Films: A Study of the Compilation Film. Nova York: Hill and Wang, 1964.
  • 14
    LLOYD Justine. Domestic Destinies: Colonial Spatialities, Australian Film and Feminist Cultural Memory Work, Gender, Place & Culture, S. l. , v. 21, n. 8, 2014, pp. 1045-1061.
  • 15
    RUSSELL Catherine. Archiveology: Walter Benjamin and Archival Film Practices. Durham e Londres: Duke University Press, 2018.
  • 16
    RUSSO Vito. The Celluloid Closet: Homosexuality in the Movies. Nova York: Harper&Row, 1987.
  • 17
    SJOBERG Patrik. The World in Pieces: A Study of Compilation Film. Estocolmo: Aura förlag, 2001.
  • 18
    TRALLI Lucia. Layers of Film, Encrusted Images, Feminist Media Histories, S. l. , v. 2, n. 3, 2016, pp. 73-89.
  • 19
    WEES William C. Recycled Images: The Art and Politics of Found Footage Films. Nova York: Anthology Film Archives, 1993.

NOTAS

  • *
    Este artigo deriva da dissertação A ressignificação no cinema de found footage feito por mulheres, apresentada em 2020 à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo para obtenção do título de mestre em Meios e Processos Audiovisuais.
  • 1
    . Cinema de compilação e found footage foram considerados formas de reemprego audiovisual distintas, em especial a partir da obra de William Wees (1993), que associava a primeira ao cinema documentário, e a segunda, ao cinema de vanguarda. Mais recentemente, no entanto, alguns autores têm questionado essa separação. Jaimie Baron (2014) fala em filmes de apropriação para se referir a um corpus diverso de filmes que produzem aquilo que chamou de “efeito de arquivo”, ou a sensação de estar assistindo a uma imagem que foi produzida para outro contexto. Catherine Russell (2018) cria o neologismo “arquiveologia” para designar a “prática de coletar imagens e as compilar de maneiras novas e surpreendentes”. Já Patrick Sjöberg (2001) amplia o uso do termo "compilação" para uma variedade de formas de reemprego, entendendo que esses filmes se esquivam de distinções genéricas ou categóricas, muitas vezes borrando as linhas entre documentário e experimental
  • 2
    . No ensaio “A tecnologia do gênero”, publicado originalmente em 1987, De Lauretis descreve o gênero como uma representação. Para a autora, não existe uma oposição a priori de dois gêneros que sejam objetos da representação, mas eles são criados justamente no processo de sua representação - seja por discursos e aparelhos presentes na sociedade, seja na auto representação de determinados indivíduos. Cf. DE LAURETIS (1994).
  • 3
    . Filha de mãe aborígene, Tracey Moffatt foi adotada na infância por uma mulher branca, como parte de uma política de adoção forçada que vigorou na Austrália entre as décadas de 1950 e 1970 e que visava ao embranquecimento da população. Cf. LLOYD (2014).
  • 4
    . Hollywood pre-code compreende o período entre a expansão do som no cinema estadunidense no final dos anos 1920 e o estabelecimento do Motion Picture Production Code - código de valores que regeu Hollywood entre os anos 1930 e 1960. O período pre-code é marcado por uma tematização mais livre da sexualidade, além de outros assuntos que seriam posteriormente censurados, como violência e consumo de drogas.
  • 5
    . Dyer (1977) parte do termo bricolage, de Claude Levi-Strauss, para indicar uma possibilidade para o espectador homossexual de mexer com as imagens que lhe são oferecidas, dobrando seu significado a seu próprio desejo.
  • 6
    . Para mais sobre o papel das duas atrizes em uma espectatorialidade LGBTQI+ da Hollywood clássica, ver HORAK (2014); RUSSO (1987).
  • Clara Bastos Marcondes Machado é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais, na Universidade de São Paulo (PPGMPA-USP). Atualmente, pesquisa mobilizações feministas do arquivo cinematográfico em filmes de found footage feitos por mulheres. Formou-se em Audiovisual pela USP em 2016 e concluiu mestrado no PPGMPA-USP, em 2020, com a dissertação "A ressignificação no cinema de found footage feito por mulheres”. Diretora, roteirista e montadora, escreveu e dirigiu os curtas-metragens Tempo (2014) e Diva (2016).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Abr 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Set 2021
  • Aceito
    18 Mar 2022
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Depto. De Artes Plásticas / ARS, Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, 05508-900 - São Paulo - SP, Tel. (11) 3091-4430 / Fax. (11) 3091-4323 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: ars@usp.br