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A CONDIÇÃO DO EXÍLIO: A PERMANÊNCIA DE DAVID PERLOV POR DETRÁS DA IMAGEM EM DIARY 1973-1983

THE CONDITION OF EXILE: DAVID PERLOV’S PERMANENCE BEHIND THE IMAGE IN DIARY 1973-1983

LA CONDICIÓN DEL EXILIO: LA PERMANENCIA DE DAVID PERLOV EN DIARY 1973-1983

RESUMO

O texto propõe pensar a condição do exílio na obra Diary 1973-1983 de David Perlov, cineasta brasileiro radicado em Israel, para além de sua concepção usual (a de um recolhimento do cineasta para dentro de seu próprio apartamento, de onde produziria as primeiras imagens de seu diário fílmico). Tomando como ponto de partida o sentimento de estrangeirismo que o cineasta carregava e seu anunciado desejo de documentar o cotidiano (os fatos e nada mais), apresento um exílio de outra natureza que se caracteriza como um recolhimento para detrás da imagem, ou, ainda, para um espaço-tempo metafísico entre imagem e espectadores.

PALAVRAS-CHAVE
Diary 1973-1983 ; Diário fílmico; Exílio; Narração; Imagem

ABSTRACT

The article proposes a reflection on the condition of exile in the work Diary 1973-1983 by David Perlov, a Brazilian filmmaker based in Israel, beyond its usual conception (that of a filmmaker retreating into his own apartment from where he would produce the first images of his filmic diary). Taking as a starting point the feeling of foreignness that the filmmaker carried and his announced desire to document everyday life (the facts and nothing else), I present an exile of a different nature that is characterized as a retreat behind the image or to a metaphysical space-time between image and spectators.

KEYWORDS
Diary 1973-1983; Filmic Diary; Exile; Narration; Image

RESUMEN

Este texto resulta de mi investigación de maestría titulada A condição do exílio. En ello, propongo reflexionar sobre la condición del exilio en la obra Diary 1973-1983 de David Perlov – cineasta brasileño radicado en Israel – más allá de su concepción habitual: la de un retiro del cineasta dentro de su propio apartamento, desde donde produciría las primeras imágenes de su diario fílmico. Partiendo del sentimiento de extranjerismo que llevaba consigo, el cineasta y su declarado deseo de documentar lo cotidiano (los hechos y nada más), propongo un exilio de otra naturaleza, como un espacio-tiempo metafísico entre la imagen y los espectadores.

PALABRAS CLAVE
Diary 1973-1983; Diario fílmico; Exilio; Narración; Imagen

PRIMEIRAS IMAGENS

Fala sintética do cineasta David Perlov1 1 David Perlov é brasileiro radicado em Israel, país onde assume importância e reconhecimento fundamental para o desenvolvimento cinematográfico documental, especialmente em decorrência da marca não convencional que permeia toda sua produção, que resultou em inúmeras discordâncias e atritos com o instituto de cinema israelense. No Brasil, apesar de vir recebendo crescente notoriedade, Perlov ainda não é amplamente conhecido. em seu diário fílmico, Diary 1973 - 1983, durante sua visita a São Paulo após uma ausência de 20 anos do território brasileiro: “Estrangeiro aqui, estrangeiro ali, estrangeiro em todo lugar. Eu gostaria de poder voltar para casa, meu bem, mas sou um estrangeiro lá também. Uma música por Odetta”.2 2 Todas as citações que faço de Diary 1973-1983 são de traduções livres do inglês, língua falada pelo cineasta na obra, para o português. A sensação de não pertencimento, de estrangeirismo, está presente no conjunto do diário de Perlov, seja por compartilhamento direto de sensações e pensamentos por meio de sua narração, seja pela própria natureza investigativa da obra. Já nos primeiros minutos de Diary 1973 - 1983 somos apresentados através da citada narração àquele que se sente um estrangeiro no próprio lar. Mas, mesmo antes, já intuímos Perlov como alguém que vem de fora: sua voz, que acompanha as imagens de seu diário do começo ao final, tem um peculiar sotaque na pronúncia do inglês, língua que, apesar de pronunciada com exatidão, deixa a inequívoca sensação de não ser a materna do cineasta.

O título Diary 1973 - 1983 é indicativo: trata-se de um diário audiovisual cujos registros foram captados durante os dez anos que compreendem o período de 1973 a 1983. Ao longo dos seus seis capítulos de aproximadamente uma hora cada, notam-se algumas características formais e conceituais bastante regulares do diário. Como introdução às considerações sobre o tema que proponho – o exílio para detrás da imagem –, gostaria de destacar algumas dessas características, pois compreendo que o desenvolvimento desse artigo requer atenção para algumas qualidades fundamentais da obra.

Ao assistir a Diary 1973 - 1983, por exemplo, rapidamente é possível perceber que Perlov, que fez todos os registros com sua câmera portátil, emprega uma precisa intuição cinematográfica: há uma linguagem visual bem definida presente desde o primeiro momento. E no ato de filmar nota-se um modo de atuação bem marcado: a câmera na mão é privilegiada, os movimentos são meticulosos. O equipamento cinematográfico constantemente se passa pelos olhos de Perlov: as imagens produzidas geralmente são da natureza do plano subjetivo, com inúmeras ocasiões nas quais o cineasta passeia pelo ambiente e capta os detalhes da altura de seu rosto. A visão do cineasta e a imagem produzida imbricam-se uma na outra. Há, entretanto, certo grau de experimentação costurado no fazer cinematográfico. Independentemente do modo como escolhe filmar, porém, as lentes do equipamento parecem sempre estar inquietamente à procura de algo. Algo que Perlov anuncia nos moldes de um objetivo declarado nos momentos iniciais do diário: “Documentar o cotidiano, o ordinário. Sem mais histórias, sem mais enredos, nada artificial”.

Discorrerei mais detalhadamente sobre esse objetivo, mas destaco agora que o cinema de Perlov parece almejar à simplicidade equivalente a que sugere procurar na autenticidade do objeto de sua filmagem (o cotidiano, o ordinário) – e é nos contornos dessa simplicidade que reside a complexidade da obra. Desse modo, não entendo o diário como uma busca ou extrapolação dos limites da imagem produzida pela câmera, nem uma transgressão a priori da linguagem cinematográfica, mas uma busca pela linguagem própria, uma que esteja de acordo com as necessidades e ideais daquele que filma. Necessidades que estão pautadas na simplicidade dos procedimentos e na vontade de uma relação direta e intuitiva entre artista, aparelho cinematográfico e tudo aquilo que é filmado.

Na organização e edição da obra, o corte é um piscar de olhos. A montagem de Diary 1973 - 1983 é dinâmica, cada cena do diário geralmente dura alguns segundo e, em sequência, resulta em uma espécie de fluxo hipnótico de registros visuais da vida cotidiana doméstica e urbana. Esses registros se alternam e se encadeiam fragmentariamente em um ritmo que se mantém constante. A sensação resultante é de que seguimos com Perlov e nos atemos à viagem, ao momento vigente da apresentação das imagens. A montagem não cria a sensação de um caminhar por entre um começo, um meio e um fim, mas a de um eterno presente. E como a própria vida, o diário se pauta na complexa relação desse momento presente com as intenções e digressões daquele que o vivencia.

Testemunhamos, assim, fragmentos visuais do cotidiano que não evocam precisão temporal específica, sem distinção aparente de importância ou intencionalidade entre os diferentes acontecimentos retratados. Frequentemente, os registros são cenas corriqueiras e desconexas, sem relação de causa e efeito, como a de um cachorro passeando pela calçada, uma mulher andando de bicicleta e pessoas tomando banho de sol na praia. São eventos do dia a dia registrados pela câmera de Perlov, cujo foco, como o cineasta diz por meio de sua narração no diário, não está na motivação da ação, mas no ato em si: é o próprio gesto que toma lugar dentro do quadro que importa – e nada mais.

Aliás, é essa outra característica fundamental do diário de Perlov: sua narração a chegar até nós mediando todas as imagens a que assistimos. Se o cineasta observa através do visor da câmera como se fosse a mira de um canhão, como dirá no primeiro capítulo de Diary 1973 - 1983, parece-me que desfere suas palavras com precisão semelhante. A narração, em voice over, é constante, rítmica e monótona. Sua voz tem algo de uma placidez exausta. O conteúdo da fala dá complexidade singular a Diary 1973 - 1983, porque se as imagens evocam a sensação do eterno presente, a narração tem liberdade para viajar no tempo: Perlov constantemente comenta sobre o seu passado e indaga sobre o presente.

É por meio da narração que conhecemos gradualmente e de forma fragmentária sua história pessoal, sua inquietação como cineasta, suas motivações para dar início ao seu diário filmado e seu sentir-se estrangeiro em Tel Aviv. Perlov, que imigrou do Brasil para Israel aos 28 anos, não se sentia estrangeiro apenas no país onde passou a residir em sua vida adulta: sentia-se estrangeiro aonde quer que fosse. Essa é uma das questões fundamentais de seu diário: ele experimenta a constante sensação de deslocamento de quem reside em um território com costumes muito distintos dos habituais de sua terra natal. O retorno para o Brasil, entretanto, não se coloca como alternativa: em Israel construiu seus laços e ergueu sua família, e no Brasil não parece encontrar paz. Suas visitas às cidades brasileiras são carregadas de tensão e de lembranças de natureza traumática, como a sua conturbada separação de sua mãe quando ainda era muito jovem e a quase enigmática relação com seu pai.

Paola Lagos Labbé, doutora em Comunicação Audiovisual pela Universidad Autónoma de Barcelona, dedica um artigo para analisar os diários de viagem de autores cujas identidades se encontram assinaladas pela vivência do desenraizamento (desarraigo, no original). A autora investiga em sua pesquisa os vínculos entre as estratégias narrativas, estéticas e formais de Diary 1973 - 1983, obra que considera transitar entre o diário de viagem, o diário de vida, o ensaio e o cinema doméstico familiar. Labbé percebe o estabelecimento de um território próprio (familiar) para Perlov como um dilema que marca sua individualidade e assinala sua existência.

Para quem, como David Perlov, teve que tomar a decisão forçada ou voluntária de abandonar o lugar natal por razões de deslocamento, exílio ou emigração, a construção da figura do lar constitui um dilema existencial para a vida, mesmo apesar de haver a possibilidade de um retorno fugaz, pois definitivamente nunca se voltará a recobrar o tempo perdido, para citar Proust.

(Lagos Labbé, 2012, p. 555LAGOS LABBÉ, Paola. Viajes de ida y retorno entre la pertenencia y el desarraigo. La construcción narrativa del hogar y la identidad en los diarios cinemautobiográficos de David Perlov. Revista Internacional de Comunicación Audiovisual, Publicidad y Estudios Culturales, n. 10, p. 531-546, 2012., tradução minha)

Esse dilema de natureza existencial que Perlov vivencia em Tel Aviv e que manifesta em Diary 1973 - 1983 tem ainda um fator agregante substancial. Como se não bastassem as diferenças culturais e a recorrência de memórias que não parecem descansar no passado, Perlov inicia uma longa série de relações frustradas com o Estado israelense e seu aparato institucional. Ao procurar estabelecer diálogo, com o objetivo de levar adiante suas ideias e projetos cinematográficos pessoais, ele não teve sorte: o governo e as instituições financiadoras estavam absolutamente preocupados com o papel positivo que o cinema poderia ter em prol do regime político do país. “Eles veem com os ouvidos”, Perlov costumava dizer. Os filmes do cineasta frequentemente apresentavam alto grau de inventividade e não eram bem-vistos pelo governo, que estimulava formas mais diretas e evidentes de produzir conteúdo de acordo com os “interesses nacionais”, que prezavam pela propaganda política em detrimento do realismo socialista.

Perlov procurava liberdade e experimentação, mas encontrou somente o conservadorismo e a negação. E perante tamanho conflito, não se conforma: renuncia à instituição cinematográfica de Israel. Decisão que o conduz a um estado de ociosidade e desemprego forçado. É nessa condição – que denomino em minha pesquisa de mestrado como “a condição do exílio” (Fampa, 2018FAMPA, Gabriel. A condição do exílio. 2018. Dissertação (Mestrado em Linguagens Visuais). Escola de Belas Artes – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2018.) –, permeada pela sensação de estrangeirismo, pelo tormento de um nebuloso passado familiar, pela instabilidade política de Israel, pelo acontecimento da Guerra do Yom Kippur e pela inquietação aguda que sofria, que Perlov inicia o ato de registrar imagens com sua própria câmera pessoal, imagens que viriam a compor Diary 1973 - 1983.

A insatisfação e a angústia são sentimentos que impelem Perlov para o que a pesquisadora e crítica brasileira Ilana Feldman considera um “‘exílio’ forçado em seu próprio apartamento” (2017FELDMAN, Ilana. As janelas de David Perlov: autobiografia, luto e política. In Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG, vol. 11, n. 20, 2017. Disponível em: https://9h.fit/SmN3OE. Acesso em: 2 ago. 2022.
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), de onde irromperiam as primeiras imagens do diário.

Em plena Guerra de Yom Kippur, Perlov reivindica a liberdade de um escritor e a precisão de um atirador para filmar e mirar a realidade do mundo exterior através dos enquadramentos de suas janelas, janelas do apartamento, janelas da televisão.

(Feldman, 2017FELDMAN, Ilana. As janelas de David Perlov: autobiografia, luto e política. In Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG, vol. 11, n. 20, 2017. Disponível em: https://9h.fit/SmN3OE. Acesso em: 2 ago. 2022.
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, p. 8)

Acredito que seja oportuno relembrar que, ao examinar a vida e obra do dramaturgo alemão Bertolt Brecht – cuja trajetória é marcada pela busca por refúgio em diversos países em decorrência da ascensão do nazismo –, Georges Didi-Huberman (2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição – O olho da história, I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017.) entenderá a situação de exílio como possibilidade de um leito de tomada de posição e de execução de um trabalho, ambos permeados pela manutenção de uma duplicidade espacial e temporal. Essa tomada de posição diria respeito ao sentido próprio do deslocar-se físico e errante no mundo, assim como à afirmação de um posicionamento ético, político, intelectual e passional frente às condições históricas em curso. E o trabalho em questão seria fecundado mediante a posição do exilado, que “torna a ‘acuidade da visão’ ou a ‘potência do ver’ (Schaukraft) tão vital, tão necessária quanto problemática, destinada como está à distância e às lacunas da informação” (Didi-Huberman, 2017, p. 22DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição – O olho da história, I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017.).

Para tomar posição seria preciso, de algum modo simultaneamente, “implicar-se” no conflito vivenciado e “afastar-se” dele, de maneira a enfrentá-lo em seu coração, assim como mantê-lo a uma distância que permita sua elaboração e a construção de um olhar crítico em sua direção. Desse modo, compreendemos a vivência do exílio – essa condição de elaboração de uma posição – como um “mover-se e constantemente assumir a responsabilidade de tal movimento (…) [ela] supõe um contato, mas o supõe interrompido, se não for quebrado, perdido, impossível ao extremo” (Didi-Huberman, 2017, p. 16DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição – O olho da história, I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017.).

É interessante indagar, em diálogo com a perspectiva trabalhada por Didi-Huberman, se seria possível reconhecer em Perlov e em sua condição migratória a presença de manifestações de semelhante natureza. Creio que essa indagação nos auxilia a perceber em Diary 1973 - 1983 uma complexa rede de aproximações e distanciamentos explícita nas diversas esferas da vida do cineasta. Manifesta na ambiguidade das imagens televisivas de uma guerra em acontecimento, nas idas e retornos a São Paulo, na relação espinhosa com um passado que continuamente permeia o presente, dentre muitos outros elementos percebidos no diário.

Nessas circunstâncias, o cineasta continuamente reitera por meio de suas imagens seu posicionamento antiguerra, tecendo fortes e constantes críticas ao conflito armado, à conduta política e à administração das instituições locais. Diary 1973 - 1983 é o resultado formal do trabalho de Perlov, é a obra construída no interior de uma dolorosa dinâmica de implicações e afastamentos diários e inelutáveis. Esse trabalho é de tal natureza que se volta ciclicamente para um conflito interno, operando na manutenção do mal-estar de um estrangeirismo permanente, de uma impossibilidade de contato e de uma inconclusividade e incerteza da trajetória pessoal. Ele explicita posições políticas assumidas pelo cineasta, mas expõe também uma posição dúbia de natureza outra em seu próprio diário, marcada pela ausência e uma imprecisão latente. Retornarei a esse ponto em breve.

Por ora, destaco que nos minutos iniciais da obra o cineasta anuncia seu interesse pelo cotidiano, e o faz como ponto de partida de uma busca ao sinalizar desgaste e necessidade de mudança: “Procurar algo distinto. Quero me aproximar do cotidiano. Acima de tudo, em anonimidade”. Poderíamos considerar que aqui estão as bases da execução do trabalho que o cineasta faria em Tel Aviv. A alternativa que procura seria uma que evita conscientemente determinadas características do fazer cinematográfico profissional – como a fábula, o roteiro, a atuação, os truques de edição e as ilusões do cinema – e se afasta temporariamente dos vínculos institucionais e demandas mercadológicas. É para o cotidiano a sua volta – que recebe de Perlov certa aura enigmática, genuína e autêntica – que ele lança seu olhar e mira sua câmera na perseguição desse desejo.

Em sua visita a São Paulo, Perlov afirma por meio de sua narração: “Mas era aqui que gostaria de chegar. O bairro judeu, Bom Retiro, que significa a boa aposentadoria. Naqueles tempos, eram judeus, comércio, ativismo político, prostitutas e talvez aqui e ali um pequeno convento. Tudo isso me parece representar a verdade absoluta”. As imagens que acompanham sua fala são do fluxo de pessoas caminhando pelas calçadas, pedestres em uma situação característica das metrópoles. Perlov queria se afastar das mentiras do cinema profissional e se sentia convocado por essa verdade que identificava no fluxo orgânico e ordinário da vida diária.

Figura 1.
David Perlov, Diary 1973 - 1983. Audiovisual. Duração: 330 min.

Movido por sua intuição e insatisfação, o cineasta passa a realizar uma série de registros com sua câmera ainda sem certeza do que faria com todo o material gravado (sem, em outras palavras, vincular o ato de filmar à confecção terminante de uma obra). “Eu sentia que estava deixando o cinema, que iria acumular esse material e que poderia ou não editá-lo posteriormente”, disse Perlov a Talya Halkin na ocasião de uma entrevista fornecida por ele (Halkin, 2003HALKIN, Talya. The Diary of David Perlov. The Jerusalem Post, 23 out. 2003. Disponível em: http://davidperlov.com/text/The_Diary_of_David_Perlov.pdf. Acesso em: 2 ago. 2022.
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). Diary 1973 - 1983 é, notemos, uma jornada que se inicia sem ponto de chegada definido. Enquanto a condução da instituição seria marcada pela autoridade que guia em direção a um objetivo decretado, Perlov caminha pelas águas da incerteza. Se o cinema israelense documental transitava pela noção de uma utilidade – a da propaganda política –, Perlov escolhe o caminho contrário quando filmava sem a certeza do que pretendia.

A DISTÂNCIA INFINITA

Apesar da busca pela autenticidade do cotidiano por meio da imagem, a câmera, diz Perlov (2004PERLOV, David. My Diaries. 2004. Disponível em: http://davidperlov.com/text/My_Diaries.pdf. Acesso em: 25 mai. 2023.
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), é um instrumento morto, ela precisa de uma pessoa dotada de intenção para dar sentido ao que grava. Paradoxalmente, aponta o cineasta, isso nos faz pensar se não seriam as câmeras de segurança, essas que gravam continuamente sem nenhuma seleção prévia, que dariam fruto aos melhores documentários. Essa indagação, apesar de pensamento especulativo e sem conclusão por parte de Perlov, sinaliza uma inquietante contradição em Diary 1973 - 1983 entre a busca por documentar fatos – e nada mais – e a seleção, edição e narração por parte Perlov de tudo o que ele filma com sua câmera.

Perlov (2004, p. 1PERLOV, David. My Diaries. 2004. Disponível em: http://davidperlov.com/text/My_Diaries.pdf. Acesso em: 25 mai. 2023.
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, tradução minha) diz: “(…) meu diário é minha identidade. Procuro tocar na linha tênue entre vida e arte; fazer tal trabalho pessoal é extremamente difícil e um processo vulnerável”. A própria estrutura da obra, que se pauta na sequência de imagens cotidianas sem vínculo narrativo aparente, dialoga com a percepção de realidade de Perlov mediante sua exaustão dilatada. “Estou ciente de momentos, não de dias. De palavras, não de frases”, diz no diário. Para Lagos Labbé (2012, p. 552LAGOS LABBÉ, Paola. Viajes de ida y retorno entre la pertenencia y el desarraigo. La construcción narrativa del hogar y la identidad en los diarios cinemautobiográficos de David Perlov. Revista Internacional de Comunicación Audiovisual, Publicidad y Estudios Culturales, n. 10, p. 531-546, 2012., tradução minha), a identidade do cineasta, “cuja imagem se assemelha à de um retrato fragmentado nas pequenas peças de um quebra-cabeça, busca ser encaixada, completada e recomposta como tal”. Em Perlov, entretanto, creio que a figura que se forma a partir dessa recomposição é um quebra-cabeça em si.

Diary 1973 - 1983 é, como caracteriza a autora, uma viagem de investigação pessoal que se apoia em fatos passados em aberto da vida do cineasta. Aponto, entretanto, que no caso de Perlov, a viagem é uma em cujo final não se encontra revelação – sua conclusão não se coloca como um fim propriamente dito, mas como sugestão de que a trajetória é contínua e o acompanhará por toda sua vida. O perpétuo estado de busca é a marca daquele que dedica sua vida a uma investigação. Em Diary 1973 - 1983, essa investigação não soa como uma escolha, mas como algo que se impõe.

O diário do cineasta é tecido como a procura de um lugar. Um lugar onde Perlov possa se situar, fixar-se. Mas ele não o encontra nas terras distantes da infância, onde reside parte de sua família, pois estas não representam um território no qual acha paz. Não o encontra tampouco na terra em que escolheu habitar, porque se sente estrangeiro à vida nela. E não o encontra, finalmente, no trabalho junto aos colegas de seu ofício, porque estes atuam em meio ao aparato institucional com o qual definitivamente não se identificava. Pela impossibilidade de encontrar esse lugar, Perlov se recolhe, vivencia a condição de um autoexílio cujo ponto central será, como aponta Feldman, a sala de estar do seu apartamento, de onde observará o mundo que o circunda pelas suas janelas, pelo noticiário televisivo e pelos relatos dos seus familiares que eventualmente protagonizam seu diário.

No segundo capítulo de Diary 1973 – 1983 há uma seção intitulada “Insônia” – uma breve passagem de 4 minutos na qual Perlov expõe seus sentimentos de cansaço e apatia. O tom de sua voz revela exaustão e desânimo, e a sequência de imagens é permeada por uma sensação de distanciamento total. Falar sobre as frustrantes batalhas (ao se referir às tentativas não sucedidas de realizar projetos) o conduz a compartilhar seu estado de insônia, que não se limita simplesmente a uma condição de incapacidade de se atingir o sono, mas confere também a permanente sensação da sonolência frustrada. Intensifica-se a sensibilidade (que ganha caráter lúdico, absurdo), mas se compromete o interesse: tudo parece fazer parte de um mesmo, um plano homogêneo de imagens de cores mortas. Aquele que sofre de insônia é aquele que busca paz, a recompensa natural do trabalho, mas a mente operante nega esse privilégio, sua atividade incessante impossibilita o descanso e promove o labirinto sem fim das ideias não resolvidas

‘’Sinto-me diminuindo para o tamanho de um pequenino pássaro’‘, Perlov diz enquanto filma o chão do seu apartamento, mirando os cantos e as quinas do corredor de piso preto.’‘Em casa, eu me torno uma criatura, não um ser humano’‘. O ângulo da câmera sugere, como de costume, a visão do próprio artista: de cima (da altura dos olhos), o chão é visto por alguém que percorre a casa e olha para baixo demoradamente, sem objetivo pronunciado, procurando ali a imaterialidade do peso de todas as coisas. E entre o canto que se forma no encontro do piso com as paredes e as lentes da câmera abre-se uma distância infinita sentida por Perlov, uma impossibilidade do contato. O cineasta tenta superar essa distância por meio do ato de filmar:’‘Ainda assim, eu tento manter uma conexão com o mundo, eu quero fazer filmes apenas para reviver um pouco, para manter contato com a realidade’’, dirá no segundo capítulo de seu diário.

Apresenta-se, assim, um objetivo segundo em Diary 1973 - 1983. Uma finalidade mais complexa e oculta do que a declarada investigação cinematográfica a respeito do cotidiano. A cena que acompanha a fala em questão remete à enigmática busca que permeia o diário: um passarinho quase escondido, visto por entre as folhas e galhos de uma planta enterrada em um vaso na rua. Uma imagem corriqueira filmada com a câmera em mãos que traz a sensação de algo que foi achado por Perlov, uma breve preciosidade que passa despercebida pelos transeuntes anônimos que andam pela calçada, mas que se revela no quadro cinematográfico. O passarinho, finalmente, põe-se a voar. Mais tarde, ao gravar sua filha no momento em que boceja com a mão sobre a boca, o cineasta diz: ‘’É o seu sorriso que tento capturar. Para ter conexão com alguém’’.

Figura 2.
David Perlov, Diary 1973 - 1983. Audiovisual. Duração: 330 min.

Por trás da mão, Perlov pressente a boca, e nesse jogo de esconder e revelar, procura o sorriso onde o quadro da câmera não chega. Sinto que, para ele, a bidimensionalidade do plano cinematográfico é um poço para se mergulhar. Ele procura por algo que transcenda os limites da imagem, mas que ainda assim possa ser revelado por ela. Nessa investigação contraditória, Perlov vê sempre “logo ali” o que procura, mas nunca consegue efetivamente alcançar o que busca. Há sempre uma distância, uma lacuna operante. Isso confere ao diário uma continuidade guiada por incansável procura e necessidade de filmar. “Ainda acredito que para além daqueles arbustos, irei encontrar uma pequena baía aquecida e vozes receptivas”, diz enquanto filma algumas árvores nas calçadas.

Perlov prossegue: “Eu não posso mais ver rostos humanos. Costumava amá-los”. O cineasta continua a filmar sua casa, mas o faz quando está vazia; continua a filmar as calçadas, mas o faz quando os pedestres estão de costas para câmera. E se há possibilidade de pensar que, quando sai pelas ruas, Perlov busca alguma forma de conexão, é preciso lembrar que ele declara no diário sua interferência como preferencialmente anônima, e sua câmera no rosto, como uma máscara, algo que viria a repetir para Halkin (2003HALKIN, Talya. The Diary of David Perlov. The Jerusalem Post, 23 out. 2003. Disponível em: http://davidperlov.com/text/The_Diary_of_David_Perlov.pdf. Acesso em: 2 ago. 2022.
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) durante a mencionada entrevista. Se há contradição na declaração do uso da câmera como máscara e uma necessidade latente de conexão com a realidade a sua volta, há também contradição na utilização da imagem cinematográfica como ferramenta de busca por uma imagem desprovida de ilusão que seria alcançada registrando o cotidiano.

Coloco, finalmente, a questão que norteou em primeira instância minha pesquisa de mestrado: se o objetivo de Perlov é se aproximar do cotidiano – dos fatos e nada mais – em anonimato, por que Diary 1973 - 1983 é marcado, do início ao final, por sua própria narração, com seu próprio discurso? Em outras palavras: por que Perlov insiste em se fazer presente como autor em sua obra que anunciadamente seria uma aproximação em anonimato do cotidiano? Por que sua obra documental se transformou em sua identidade?

Porque Diary 1973 - 1983, respondo, apesar das declarações de seu autor, não é apenas sobre o cotidiano em si, mas também sobre a busca que incide sobre ele. É, ainda, uma vivência da inalcançabilidade dessa busca, da inalcançabilidade por meio da imagem de uma verdade que esse cotidiano, de caráter utópico, contém. Essa inalcançabilidade coincide com a impossibilidade de paz ou redenção que permeia Diary 1973 - 1983, com a negativa de um lugar estável em que Perlov possa se situar e com seu consequente recolhimento para uma esfera particularizada (uma esfera, como apontarei, de natureza outra em relação ao seu próprio apartamento). É por isso, parece-me, que o resultado da obra de Perlov é um diário narrado, porque é um relato de viagem, em seu sentido literal e metafórico. Uma viagem que, pela impossibilidade de sua natureza, não tem previsão de término. Um trajeto em que investigação e dia a dia se fundem incessantemente sem clímax possível. Um aflitivo caminho cujo horizonte mantém-se sempre intuído, porém perpetuamente distante.

O EXÍLIO PARA DETRÁS DA IMAGEM

Diante da percepção do diário de Perlov como uma trajetória de conclusividade impossível, parto para uma segunda etapa de minha investigação. Pensemos no momento em que Perlov percorre como passageiro de um carro as ruas de Paris, apontando sua câmera pela janela: “Eu sonho em ter uma câmera de vídeo comigo para vagar pelas cidades, se possível, em um táxi, deixando o ritmo dos semáforos ditar o frame”,3 3 “I dream of having a video camera with which to roam the cities, if possible, in a taxi, letting the chance rhythm of the traffic light dictate the frame.” diz. Eis uma forma de permitir que a imprevisibilidade tenha papel primário na captura desse cotidiano que se desenrola na frente de Perlov. É como se o cineasta e sua câmera ficassem sujeitos ao mesmo acaso ao qual a vida lá fora também está. As forças invisíveis que guiam o dia a dia agora definem também o percurso de Perlov e o desenrolar do registro fílmico.

Nessa passagem, acho curioso como Perlov descreve um sonho, no sentido de uma vontade última inacessível, que resume exatamente o que já se desenrola na cena. Ao frisar o aspecto onírico desse desejo, o cineasta nos deixa perceber, afinal, o caráter verdadeiramente utópico de suas motivações. O sonho do ritmo dos sinais que guia o enquadramento é o sonho da integração com o cotidiano, é a captura da essência que procura. Deixar o carro guiar o quadro é um modo de se aproximar dessa vontade ideal, segundo a qual autor, equipamento e objeto se fundem em um fluxo movido por certa naturalidade e casualidade genuína do movimento cotidiano.

“A sopa quente é tentadora”, afirma Perlov em outra ocasião de seu diário, “mas eu sei que tenho que escolher daqui em diante: tomar a sopa ou filmar a sopa”. Para Paola Lagos Labbé (2012LAGOS LABBÉ, Paola. Viajes de ida y retorno entre la pertenencia y el desarraigo. La construcción narrativa del hogar y la identidad en los diarios cinemautobiográficos de David Perlov. Revista Internacional de Comunicación Audiovisual, Publicidad y Estudios Culturales, n. 10, p. 531-546, 2012.), essa passagem indica uma dificuldade característica do diário filmado: definir os limites entre autor e aquilo que filma (o cineasta corre o risco constante de se tornar um espectador da própria vida). Quando observa através da câmera, o que o cineasta vê adquire de imediato o status de imagem. Ou seja, para Perlov, que procura uma forma de aproximação e conexão, reside aí uma problemática: ao manter uma câmera sobre o rosto cria uma divisão radical entre si e aquilo que persegue. Perlov vê através do próprio instrumento da divisão aquilo com o que gostaria de se conectar.

Em Diary 1973 - 1983 a câmera permanece sempre nas mãos e sobre o rosto do autor. O cineasta não abre mão do controle e manuseio do equipamento. E enquanto não há separação entre ele e sua ferramenta, noto essa separação entre artista e o objeto filmado não apenas no sentido da impossibilidade de seu alcance, mas na literalidade da distância ou separação espacial. Feldman observa um exílio para dentro do apartamento, mas podemos perceber um enclausuramento para além do espaço propriamente doméstico: no caso do automóvel, e em muitos outros ao longo do diário, o cineasta filma detrás de uma janela, em um ambiente fechado.

O ponto central a que desejo chegar nesse artigo, entretanto, toca em um outro patamar de exílio, um que lida não somente com o agir do cineasta no mundo que habita, mas com o modo como se apresenta a nós na materialidade de sua própria obra-diário. Em outros termos, se sinto que Perlov permanece em um espaço reservado, entendo que essa sensação está para além da constatação de seu recolhimento em locais mais circunspectos de onde filma. Para responder à pergunta “Qual é, então, a condição desse exílio outro e onde se localiza?”, proponho seguir um determinado caminho investigativo. Aponto que há duas características no diário de Perlov que precisamos observar.

Primeiramente, é raro ver a presença física de Perlov em Diary 1973 - 1983: ele está sempre fora da imagem. Podemos apenas intuir sua presença pelo conduzir da câmera, pelo fluir do registro. Sua ausência do quadro dosa o cineasta de participação simultaneamente invisível e onipresente em seu diário. Em segundo lugar está a natureza e o processo de sua narração. Se o plano da visão subjetiva reforça a noção da observação e do anonimato e confere importância e direcionamento às ações que tomam lugar diante da câmera (ou seja, se a visão subjetiva valoriza a imagem apresentada), a narração traz o centro gravitacional da obra para dentro, para o interior. A fala de Perlov fecunda o diário com a esfera da intimidade. A narração ajuda a tornar ainda mais própria a experiência do autor. Mais do que isso, ela constrói uma esfera particularizada, na qual somente nós, os espectadores, somos convidados a entrar. Perlov se dirige a nós, fala diretamente conosco como se estivéssemos ao lado dele; com muito menos frequência, entretanto, dirige-se no diário àqueles que aparecem em quadro, àqueles que compõem a imagem.

Para continuar a analisar a relação entre imagem, narração e exílio em Diary 1973 - 1983, é preciso atentar para uma particularidade constitutiva da obra que Ilana Feldman sintetiza brevemente a partir de uma entrevista fornecida por Mira Perlov, esposa do cineasta e produtora do filme:

É interessante notar que, embora o Diário 1973-1983 tenha começado a ser filmando em 1973, o processo de montagem e construção dos comentários era esporádico até o início dos anos 80. (...) Apenas em 1982, David Perlov e Mira encontram o diretor do Channel 4 inglês, Michael Kustow, que decide financiar o projeto a partir do piloto que ele assistira (o qual corresponderia hoje a partes do capítulo 3). (...) Em 1988, os seis capítulos do Diário são exibidos pelo Channel 4 na Inglaterra, ao longo de seis dias, e só no ano seguinte, em 1989, eles são projetados em Israel, no Museu de Tel Aviv.

(Feldman, 2017, p. 11FELDMAN, Ilana. As janelas de David Perlov: autobiografia, luto e política. In Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG, vol. 11, n. 20, 2017. Disponível em: https://9h.fit/SmN3OE. Acesso em: 2 ago. 2022.
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)

Há uma distância temporal entre imagem registrada e narração adicionada. Enquanto produto fílmico finalizado, o diário é um imbricado de intenções e temporalidades de naturezas distintas: se, em primeiro período, Perlov filmava sem sequer saber se iria algum dia montar o material, em um segundo momento, esse mesmo material é organizado e ganha uma narração, esta sim, objetiva e estruturante. Mesmo que Perlov já desejasse adicionar futuramente a narração ao material enquanto registrava, há uma dualidade temporal entre imagem e fala simultâneas na experiência da obra. Feldman, atenta a esse aspecto, percebe no diário uma paradoxal relação entre a imagem e a memória em uma

operação de montagem e construção da narração que durou vários anos. Entre o plano das imagens e o plano do som, muitas vezes fora de sincronia, haveria, portanto, algo de subterrâneo, uma anacronia que sempre nos escapa: espécie de eterno mistério do fluir indomesticável e incontornável do tempo. Espécie de insinuante profecia.

(Feldman, 2017, p. 10FELDMAN, Ilana. As janelas de David Perlov: autobiografia, luto e política. In Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG, vol. 11, n. 20, 2017. Disponível em: https://9h.fit/SmN3OE. Acesso em: 2 ago. 2022.
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)

Essa dupla temporalidade se manifesta no que caracterizo em minha pesquisa como uma espécie de cisão entre as etapas de experimentação e produção e as etapas de pós-produção e estruturação do material. Aponto que ela tem como fator resultante (na nossa experiência do diário enquanto espectadores) uma indefinição temporal do ato de fala: sabemos exatamente quando cada capítulo foi filmado, mas não sabemos, ao assistir Diary 1973 - 1983, de quando se fala. Um hábito comum, aliás, nos diários escritos é informar, acima da descrição do evento em questão narrado, a data em que a escrita é feita. Não é o caso no filme.

É instigante pensar em um diário como o de Perlov – um que tem duas etapas definidas que se dão em tempos espaçados – justamente porque se rompe com a tradição da fala que quer se localizar temporalmente. O que se quer localizar em Diary 1973 - 1983 são as imagens, tanto em tempo, pela indicação da data no início de cada episódio, quanto em espaço, dada a recorrência com que Perlov descreve os locais onde se encontrava enquanto filmava e oferece informações sobre eles.

Adiciono que a fala de Perlov se caracteriza não somente pela indefinição temporal, mas também por uma particularidade espacial. Ela não tem o aspecto da produção doméstica das imagens. Ainda que Perlov possa ter narrado, de fato, de dentro de sua casa, a materialidade da narração remete a um ambiente clean, como um estúdio de gravação. Não há ruídos ou imprevistos. Há, em oposição, uma qualidade controlada, técnica e poética. O próprio autor pontua, ao se referir a seu diário fílmico: “Foi comentado que eu tenho uma aproximação especial e original para abordar a relação entre minha narração, que soa como literatura, e o diálogo e fala natural das personagens” (PERLOV, 2004, p. 3PERLOV, David. My Diaries. 2004. Disponível em: http://davidperlov.com/text/My_Diaries.pdf. Acesso em: 25 mai. 2023.
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, tradução minha).

Essa diferença é especialmente sentida em Diary 1973 - 1983 porque a obra se configura como o relato de um recolhimento daquele que nega o cinema profissional para dentro do ambiente doméstico. Nesse sentido, há um contraste de natureza técnica entre imagem e fala. Uma discrepância entre o fazer amador e o uso subsequente dos procedimentos do cinema tradicional e profissional, tanto no sentido técnico (pela qualidade e natureza do voice over) quando conceitual e operante (pelo papel estruturante que a narração exerce nas imagens fragmentadas). Uma contradição que desloca o campo do narrador para uma esfera dúbia de pertencimento e estrangeirismo dentro da própria obra.

Mediante os fatores apresentados (dos quais destaco a ausência de Perlov do quadro e a dubiedade temporal manifesta em sua narração), considero que a sensação resultante é de que aquele que narra o faz de uma esfera outra, de um exílio dentro da materialidade de sua própria obra. O narrador-autor – David Perlov – está, para nós, no impreciso espaço atrás da imagem que a câmera produz. Estar atrás da imagem implica ter como referência o próprio equipamento que a produz, mas este é móvel, está em constante fluxo. Câmera e corpo imbricam-se como índices um do outro. O espaço que existe por trás da imagem – fora de suas bordas – é indefinido, enigmático, infinito e atemporal. E é justamente essa a natureza do espaço que ocupa Perlov. Se há uma impressão hipnótica de sua voz, ela é consequência de uma onipresença circundante e invisível que permeia todas as imagens em Diary 1973 - 1983.

Pergunto-me se nós também não ocuparíamos o espaço detrás da câmera. Porque se somos confrontados com as imagens que o equipamento produz, nos situamos fora delas, em um ambiente à parte. Somos espectadores que se alimentam do ponto de vista de Perlov. Somos observadores das imagens feitas por um observador. Para o cineasta, existe a tentativa de contato com a realidade tendo na imagem uma forma de mediação. Para nós, existe o consumo das imagens gravadas por Perlov, tendo como mediadora a narração, ou melhor, essa presença invisível do corpo do artista.

A narração, a dualidade temporal, a imprecisão do momento da fala, a estética no diário pautada no presente, a ausência física de Perlov e a impossibilidade do lugar próprio – para ser mais específico – situam o cineasta em um exílio no espaço-tempo metafísico entre imagem e espectador. Condição reforçada pela justaposição das etapas do processo de criação de Diary 1973 - 1983 que são de naturezas diferentes e evocam experiências distintas. Essa justaposição cria um lugar ambíguo para Perlov, que é sentido com certo estranhamento resultante da simultaneidade da recepção da narração e da recepção das imagens. A narração de Perlov não cria apenas um laço particularizado entre espectador e autor; devido às interessantes características que sua presença assume, Perlov permanece em uma esfera à parte, em um ambiente intimista de natureza particular.

Na relação conosco, evidencia-se outra interessante característica de sua narração: sua fala não está nem em português, nem em hebraico – idiomas dos países que adotou como lar. Perlov se comunica conosco a todo momento em inglês, inglês carregado de forte e curioso sotaque, deve-se frisar. Sotaque que é difícil de identificar exatamente de qual país é. Para nós, espectadores, intensifica-se, como consequência, a sensação de que aquele que fala é estrangeiro, e não apenas um estrangeiro no território em que reside: em Diary 1973 - 1983, Perlov se coloca como estrangeiro no modo como estabelece sua comunicação conosco. Esse deslocamento escapa, aqui também, da relação entre artista e o mundo particular no qual reside: manifesta-se na sua relação direta conosco, destinatários de sua fala.

UM NARRADOR SEM CORPO

Demorei a perceber que durante todo o diário fílmico Diary 1973 - 1983 a narração se dá no tempo verbal do presente. A princípio, essa característica passa despercebida, pode mesmo parecer de menor importância, mas acredito que tenha papel direto na estruturação de Diary 1973 - 1983 e, principalmente, na labiríntica condição que Perlov assume na obra.

As palavras, a estrutura das frases, o aspecto linguístico e a entonação são extremamente dominantes em Diary. (…) A língua, o jeito de falar, é uma ferramenta da mente, enquanto escutar e ver são ferramentas dos sentidos, da percepção.

(Perlov, 2004, p. 3PERLOV, David. My Diaries. 2004. Disponível em: http://davidperlov.com/text/My_Diaries.pdf. Acesso em: 25 mai. 2023.
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, tradução minha)

Se Perlov considera a língua como uma ferramenta da mente, da racionalidade, creio que seja porque ela se apoia em um sistema – o código linguístico. No diário, esse código é utilizado para estruturar o que está sujeito, segundo Perlov, ao campo dos sentidos. Parece-me, de fato, que a língua cumpre um papel duplo: por um lado, dá contexto às imagens, codifica a experiência e estrutura os temas em cada um dos seis capítulos do diário, por outro, funciona como meio de expressão, de manifestação individual, de narração no sentido do compartilhamento da trajetória pessoal do autor.

A história narrada é a marca daquele que fala, a perpetuação da sua memória e, como consequência, a manutenção da sua existência através de sua crônica. Para aprofundar a reflexão a respeito do papel da narração na configuração do exílio de Perlov em sua própria obra, relembro os apontamentos do crítico e filósofo alemão Walter Benjamin (1987BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.), que considera a figura do narrador no século XX uma figura em extinção. Ao escrever, em 1936, sobre sua percepção a respeito da condição do narrador, Benjamin aponta uma ascendente dificuldade em se relatar dignamente histórias e eventos extensos. A arte de narrar estaria cada vez mais distante no passado e haveria crescente mal-estar que tomaria conta daquele a quem é pedido que se narre determinado fato. Este, incapaz de se pronunciar com eloquência, permaneceria encabulado, inapto a compor suas frases e se fazer entender.

Em A condição do exílio (Fampa, 2018FAMPA, Gabriel. A condição do exílio. 2018. Dissertação (Mestrado em Linguagens Visuais). Escola de Belas Artes – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2018.), discorro sobre como Perlov, apesar de aparentar representar o narrador benjaminiano em sua forma ideal, encontra-se mais próximo da imagem do romancista. O ponto em que desejo focar nesse artigo, entretanto, é o tempo verbal em que se faz a narrativa de Diary 1973 - 1983. Não seria uma característica do narrador, nos termos tradicionais, compartilhar sua história no pretérito perfeito? Implicada a essa pergunta, faço uma outra: o narrador não é aquele que se alimenta de histórias passadas (estas, que chegaram a uma conclusão), que faz da imagem dele as aventuras pelas quais passou e das quais saiu em segurança e ainda mais sábio? É possível observar que para Benjamin indagações dessa natureza remetem a uma resposta positiva e se relacionam, como veremos, à imanência da morte daquele que conta sua história, afinal “A morte é a sanção de tudo que o narrador pode contar. É da morte que ele deriva sua autoridade. Em outras palavras: suas histórias remetem à história natural” (Benjamin, 1987, p. 208BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.).

A morte implica, naturalmente, um término. É ela que define, em última instância, como se concluem todas as histórias. Era na sua experiência pública, segundo Benjamin, que o narrador – essa figura em extinção para o autor – assumia o papel daquele que viveu, ou melhor, daquele que vivenciou.

Morrer era antes um episódio público na vida do indivíduo, e seu caráter era altamente exemplar: recordem-se as imagens da Idade Média, nas quais o leito de morte se transforma num trono em direção ao qual se precipita o povo, através das portas escancaradas. Hoje, a morte é cada vez mais expulsa do universo dos vivos

(Benjamin, 1987, p. 207BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.).

Se, para Benjamin, a morte é o momento da sanção, da configuração da autoridade do narrador, é no leito de morte partilhado que a história adquire seu valor máximo. A morte (ou, ainda, o envelhecimento) funciona como prova ou índice palpável de tudo que é contado. Mais do que isso, é o próprio ponto para onde toda história de vida caminha. O falecimento iminente confere à narrativa a marca das últimas palavras, de conclusão, de que essa será a única vez em que será contada em sua plenitude, para depois passar apenas a existir na memória daqueles que a ouviram e na fala daqueles que a perpetuarem. Logo, concluo que é preciso que se veja quem fala; o narrador ideal, em termos benjaminianos, é aquele que pode ser visto e ouvido nos seus momentos finais.

Retorno ao meu apontamento de que não se vê aquele que narra e que filma. Se para Benjamin, para que haja potência é essencial a existência de uma relação explícita entre o instante em que se narra e o momento dos acontecimentos narrados, em Perlov, esses dois tempos se misturam, não assumem distanciamento nítido um do outro. Seria esse – permeado por um eterno presente das imagens e da conjugação verbal – sinal de uma incapacidade de concluir, de dar fim a um processo?

O narrador autor no diário de Perlov é aquele cuja trajetória não é concluída (e, suspeitamos, seja também não concluível). Essa mudança de percepção em relação ao narrador tradicional é fundamental. Em Diary 1973 - 1983, a noção de um fim – no sentido da finalidade e do término – deixa de ser palpável ao dar lugar a uma conduta que se atêm indefinidamente ao momento presente. A consequência é uma ruptura estrutural entre índice (corpo) e acontecimento narrado (apresentados por meio da fala e das imagens).

A CONDIÇÃO DO EXÍLIO

Identifico neste artigo a manifestação de um patamar outro de exílio vivido por David Perlov em Diary 1973 - 1983. Não se trata apenas de um recolhimento para dentro de seu apartamento e da permanência em espaços fechados, seccionados, enquanto filma. Recolhimento esse relacionado, fica sugerido no diário, ao sentir-se estrangeiro de Perlov, desavenças com a instituição cinematográfica local, falta de oferta de trabalho, impossibilidade de paz (e retorno) consequente de problemas em aberto com sua terra natal e demais condições apontadas no presente texto. Todos esses fatores, fundamentais na experiência do diário, manifestam-se mediante outro brutal exílio corporal. A condição do exílio, primariamente caracterizada por um afastamento pessoal, atinge assim um novo patamar: ela está também, afinal, na manifestação de David Perlov em sua própria obra e em suas consequências na experiência de recepção da obra para nós, espectadores.

Em Diary 1973 - 1983, o cineasta existe em uma esfera outra, que julgo como o espaço-tempo metafísico entre imagem e nós, espectadores de seu diário. O exílio de Perlov está manifesto em seu corpo ausente e sua voz onipresente: mais do que em seu recolhimento para a espacialidade de seu apartamento em Tel Aviv, em seu infinito estar por detrás da imagem e em sua fala hipnótica e precisa sempre no presente. O exílio não é apenas um distanciamento entre Perlov e os outros que habitam seu mundo, é manifesto, como apontei, em sua relação conosco, consumidores de suas imagens e de sua fala, na materialidade da obra. Esse exílio, que considero de uma natureza outra, é reforçado pelas características estruturais da obra de Perlov, dentre as quais destaco com particularidade a notável cisão em Diary 1973 - 1983 entre as etapas de registro de imagens e uma posterior, de adição da narração e estruturação das imagens gravadas.

REFERÊNCIAS

  • BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.
  • FAMPA, Gabriel. A condição do exílio. 2018. Dissertação (Mestrado em Linguagens Visuais). Escola de Belas Artes – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2018.
  • FELDMAN, Ilana. As janelas de David Perlov: autobiografia, luto e política. In Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG, vol. 11, n. 20, 2017. Disponível em: https://9h.fit/SmN3OE Acesso em: 2 ago. 2022.
    » https://9h.fit/SmN3OE
  • FELDMAN, Ilana. David Perlov: epifanias do cotidiano. In FELDMAN, Ilana; MOURÃO, Patrícia (org.) David Perlov: epifanias do cotidiano. São Paulo: Centro da Cultura Judaica, 2011.
  • HALKIN, Talya. The Diary of David Perlov. The Jerusalem Post, 23 out. 2003. Disponível em: http://davidperlov.com/text/The_Diary_of_David_Perlov.pdf Acesso em: 2 ago. 2022.
    » http://davidperlov.com/text/The_Diary_of_David_Perlov.pdf
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição – O olho da história, I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017.
  • LAGOS LABBÉ, Paola. Viajes de ida y retorno entre la pertenencia y el desarraigo. La construcción narrativa del hogar y la identidad en los diarios cinemautobiográficos de David Perlov. Revista Internacional de Comunicación Audiovisual, Publicidad y Estudios Culturales, n. 10, p. 531-546, 2012.
  • PERLOV, David. My Diaries. 2004. Disponível em: http://davidperlov.com/text/My_Diaries.pdf Acesso em: 25 mai. 2023.
    » http://davidperlov.com/text/My_Diaries.pdf
  • 1
    David Perlov é brasileiro radicado em Israel, país onde assume importância e reconhecimento fundamental para o desenvolvimento cinematográfico documental, especialmente em decorrência da marca não convencional que permeia toda sua produção, que resultou em inúmeras discordâncias e atritos com o instituto de cinema israelense. No Brasil, apesar de vir recebendo crescente notoriedade, Perlov ainda não é amplamente conhecido.
  • 2
    Todas as citações que faço de Diary 1973-1983 são de traduções livres do inglês, língua falada pelo cineasta na obra, para o português.
  • 3
    “I dream of having a video camera with which to roam the cities, if possible, in a taxi, letting the chance rhythm of the traffic light dictate the frame.”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sept-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2022
  • Aceito
    24 Maio 2023
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