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Entre soirées e óperas: o espaço teatral na pintura

Between soirées and operas: the theatrical space in painting

Resumo

O desenvolvimento do edifício teatral moderno, iniciado no Renascimento, respondia não só às necessidades técnicas das artes cênicas, mas, e sobretudo, às prerrogativas da vida cortesã e posteriormente burguesa como ambiente primordial de sociabilidade. Desse modo, o teatro lírico, enquanto espaço, seria tema para a pintura a partir do século XVIII, época da fixação definitiva desses edifícios como símbolos de magnificência e poder. Já no século seguinte, o elogio a um estilo de vida cosmopolita e as vicissitudes associadas a este ambiente dariam o tom da representação pictórica do edifício teatral.

palavras-chave:
edifício teatral; representação; magnificência; sociabilidade; arquitetura; pintura

Abstract

The development of the modern theater building, begun in the Renaissance, corresponds not only to the technical needs of the performing arts but, and especially, to the prerogatives of the courtesan, and later bourgeois, life as a primordial ambience of sociability. Therefore, the lyric theater, as space, would be theme for painting from the eighteenth century on, time of definitive fixation of these buildings as symbols of magnificence and power. In the next century, the compliment of a cosmopolitan life style and the vicissitudes associated to this ambience would give the tone of the pictorial representation of the theater building.

keywords:
theater building; representation; magnificence; sociability; architecture; painting

A representação pictórica do espaço teatral não conhecera uma fatura exaustiva. Com efeito, não foi produzida, ao longo da história, uma quantidade considerável de pinturas nas quais a arquitetura dos grandes teatros, em especial aqueles voltados para a atividade operística, constituía a matéria-prima essencial dos artistas. Por um lado, isso se explica pela pouca individualização do edifício teatral face aos demais exemplares arquitetônicos civis desde sua retomada no Renascimento, quando o despertar de Vitrúvio lançou luzes sobre o tema. Por outro, a primazia de temas tidos como mais edificantes ou simbólicos - como a pintura de história, a mitologia e as narrativas cristãs - passava ao largo das atividades que se desempenhavam nesses recintos, que de maneira gradativa foram se conformando em espaços de lazer cortesão, muito mais afeitos aos jogos de representatividade social do que a uma exaltação de seu caráter artístico e erudito. Esta constatação empírica guarda em si uma certa contradição: o fascínio da arquitetura teatral fora indiretamente proporcional a seu apelo visual para o campo da pintura. Entretanto, a partir do século XVIII, verifica-se uma mudança nesse quadro: o ambiente cênico adquire considerável representatividade e autonomia, estabelecendo algumas fases distintas de interesse enquanto temática para a pintura. Em certo sentido, essa nova abordagem refletia, antes, o interesse crescente pelo papel civilizador do teatro em diversos níveis, fosse de um ponto de vista quase espiritual e transcendente - quando o teatro, como forma artística, promove a elevação intelectual dos sentidos - fosse por sua ascendência sobre a consolidação ou mudança de costumes e práticas sociais. André Chastel sintetiza essa função modelar, por assim dizer, do teatro que emergia da passagem de um século para o outro e acabava por influenciar a própria conformação da visualidade daqueles tempos: “Nesta época agitada e vivaz, o teatro aparece como um grande criador de convenções e de modelos visuais comparáveis ao que será, dois séculos mais tarde, o cinema”1 1 . CHASTEL, André. L’art Français - Ancien Régime 1620-1775. Vol. 3. Paris: Flammarion, 1995, p. 30, tradução minha. .

Desse modo, o século XVIII volta seus olhares para a opulência do espaço físico teatral, à época um símbolo por excelência da magnificência e poder das monarquias. Pintores como Giuseppe Grisoni, Giovanni Paolo Pannini e Graneri Giovanni Michele percebem a primazia dos teatros enquanto espaços de sociabilidade prediletos da sociedade cortesã do setecentos, cenários apropriados para bailes de máscaras e jogos sociais praticados em dias de espetáculos. Entretanto, os elementos constitutivos da gramática arquitetônica destes espaços ainda são mais relevantes para os artistas do que a ação humana desenrolada em seu interior.

Tomemos como exemplo a obra de Grisoni, Baile de máscaras no King’s Theatre, de 1724 (figura 1), pintado provavelmente durante a estada do pintor em Londres, quando tentara se estabelecer por lá como artista de corte. Os bailes de máscaras, remanescentes do carnaval veneziano, tornaram-se populares na Inglaterra apenas no século XVIII, ao serem introduzidos por lá pelo conde suíço John James Heidegger na década de 1720. Os primeiros aconteceram, inclusive, no King’s Theatre, um dos principais teatros londrinos da época. Estes bailes eram associados à frivolidade daquele século e, embora fossem uma prática atrelada à vida cortesã do Antigo Regime, eram universalmente condenados pelos moralistas como uma atividade corruptora2 2 . Cf. CASTLE, Terry. Masquerade and civilization. The carnivalesque in Eighteenth-Century English culture and fiction. Califórnia: Stanford University Press, 1986, p. 2. . Aqui, o King’s Theatre serve como moldura para esse evento que, evidentemente, não faz apelo à licenciosidade da qual era frequentemente acusado. A ambiência é muito intimista, banhada por uma luz quente e bruxuleante advinda das velas. Poucos indícios denunciam se tratar de um teatro: talvez os camarotes do primeiro plano e o plafond redondo com pinturas. O foco é muito mais a ação e o registro das roupas utilizadas. Assim, o pintor alinha-se, em suas escolhas compositivas, muito mais aos aspectos glamorosos, e por que não nobres, desse tipo de atividade, confirmando a tese de que possuíam uma importância simbólica e social muito mais real do que os simplórios apelos sexuais e corruptores associados a esses eventos e difundidos ao longo do tempo. É o que defende Castle:

Fig. 1
Giuseppe Grisoni, Baile de máscaras no King’s Theatre, Haymarket, 1724. Óleo sobre tela, 71 x 93 cm, Victoria and Albert Museum, Londres. 3. Ibidem, p. 3, tradução minha.

Além de sua manifestação local, no entanto, a mascarada figura poderosamente na ordem simbólica como parte do próprio imaginário da urbanidade. Para o londrino do século XVIII a ideia da mascarada, com suas erótica, turbulenta e enigmática associações era, ao menos, tão atraente quanto o evento real.3 3 . Ibidem, p. 3, tradução minha.

O que está em relevo, na pintura de Grisoni, é antes o jogo sedutor e libertário de ocultações e revelações do que um elogio ou uma condenação moralista sobre as mascaradas. Nesse sentido, a importância dos volumes arquitetônicos e sua mise-en-scène reforçam um olhar elegante de sua parte em contraposição ao que poderia ser visto como uma atividade vulgar: é justo afirmar que, aqui, o teatro absolve e serve de álibi às personagens que se entregam às delícias e alegrias do secreto numa sociedade permanentemente exposta e vigiada.

Em Festa musical (figura 2), de 1747, Pannini retrata o teatro Argentina inaugurado em 1732, encomenda da família Sforza-Cesarini. Em cena, a festa dada pelo Cardeal de la Rochefoucauld em honra ao casamento do Delfim da França, Luís de Bourbon (filho de Luís XV) com a princesa Maria Josefa da Saxônia. A pintura mostra o palco e parte da plateia, em especial as cinco fileiras de camarotes. A atenção do pintor se volta totalmente para a opulência arquitetônica do ambiente, com sua decoração exuberante que inclui o cenário da festa apresentada na ocasião. Ricos lustres pendem do teto. Os tons carnosos dos veludos que forram todo o espaço - uma marca da decoração teatral - emprestam pompa e distinção a este teatro. A exuberância decorativa e a monumentalidade espacial são, por extensão, atributos da própria aristocracia que se encerra sob seu teto para celebrar a continuidade das linhagens reais forjadas por meio de matrimônios tratados como coisas de Estado.

Fig. 2
Giovanni Paolo Pannini, Festa musical (Teatro Argentina), 1747. Óleo sobre tela, 207 x 247 cm. Musée du Louvre, Paris.

Na metade do setecentos, Giovanni Michele imortaliza o Teatro Real de Turim (figura 3). Costuma-se definir a ocasião como a inauguração da casa, na qual foi apresentada a ópera Antígona, de Giovanni Casali. De todo modo, toda a atenção de Michele está voltada para a imponência arquitetônica do teatro turinense: o arco do proscênio, amparado por dois pares de colunas compósitas, ostenta o brasão da Casa de Saboia, que governava a região do Piemonte há muito tempo. As duas Famas aladas que o sustêm nomeiam a origem e a magnificência da família que patrocinava o teatro (lembremos que a pintura anterior repete esse registro com o brasão dos Bourbon), prática comum naqueles tempos que tinham nas grandes dinastias os principais patronos do campo das artes. Ao mesmo tempo, um cenário representando uma arquitetura robusta formada por arcos, colunas, abóbadas e rotunda, demonstra a capacidade cenográfica do Real de Turim. A escolha de Michele não é aleatória: a Itália era o berço não só da ópera, mas de boa parte da tecnologia relacionada aos aparatos cênicos, e de lá partiram diversas inovações nesse campo que se espraiaram, por sua vez, pelos demais teatros europeus. É significativo que o pintor tenha optado por ocupar a maior parte de sua tela com a boca de cena, deixando às zonas periféricas da superfície pictórica alguns camarotes e assentos da plateia: seus pinceis exaltam, antes de tudo, a supremacia da arte, o poder arrebatador da junção de todas as formas artísticas aqui figuradas pela música, o canto, a encenação, a pintura e a arquitetura. O séc. XVIII é, com efeito, o momento de fixação do espaço teatral, dos parâmetros para a construção dos grandes teatros públicos europeus. A pintura em questão aponta estes sinais: o proscênio reduzido, o fosso da orquestra e a separação física da plateia e do palco por meio daquele. Além disso, é aos cantores que é dado o protagonismo da cena: vemos os cortesãos de costas ou praticamente impossíveis de serem identificados na clausura de seus camarotes. Entretanto, o palco, em sua magnitude cenográfica, emoldura a ação musical, e podemos observar o detalhismo dos figurinos e dos gestos.

Fig. 3
Graneri Giovanni Michele, O Teatro Real de Turim, 1752. Óleo sobre tela, 128,5 x 114 cm. Palazzo Madama, Turim.

Um pormenor importante na pintura de Michele é a presença de lacaios com bandejas servindo bebidas e refeições aos espectadores: eles nos lembram que o ambiente teatral, até pelo menos o final do século XIX, era um espaço pouco afeito a restrições de ordem fisiológica, por assim dizer. São conhecidos os relatos de que, principalmente nos exemplares italianos, os camarotes possuíam uma espécie de antessala denominada retropalco, onde se serviam jantares, por vezes banquetes, e se desenrolavam longas sessões de conversações que iam desde a banalidade aos acordos políticos e comerciais. Assim, “sentia-se na sala o odor de comidas e, até mesmo, segundo certos viajantes, aquele das necessidades as mais elementares”4 4 . BANU, Georges. Le rouge et or: une poétique du théâtre à l’italienne. Paris: Flammarion, 1989, p. 158. . A própria verticalização da plateia, fenômeno nascido juntamente com os primeiros teatros públicos de Veneza no começo do século XVII, refletia uma sociedade altamente segmentada cuja hierarquia estava impressa nesse tipo de disposição. Georges Banu traça um paralelo bastante pertinente entre a estrutura da sala, a disposição do público e a estruturação social da própria cidade: em sua visão, a hierarquização da plateia replicava a dinâmica da sociedade na qual ela estava inserida:

Na origem, o público popular ocupa a plateia e os dignitários se repartem na vertical, única localização que satisfaz sua dupla vocação de ator e espectador. Debaixo, vê-se sobretudo o palco, do alto, vê-se tudo e se é visto. Embaixo, a teatralidade do espectador é menor que aquela da qual se beneficia o público dos camarotes. A gestão geral do espaço reparte os campos de visão e suas virtualidades espetaculares no que diz respeito à ordem social. Como em uma peça onde encontramos os protagonistas, os papeis secundários e os figurantes, a sala possui lugares variados, adquiridos ou dispostos segundo a hierarquia da cidade. Ela se materializa sobre o cilindro do teatro à italiana, onde se distribuem os espectadores segundo as normas da “dignidade topográfica”. O teatro serve de lupa para a cidade. Ele respeita e desvenda esta organização urbana que, na noite dos grandes eventos, se desenrola sem reserva e nem segredo. Ele é assim o lugar luminoso de uma comunidade ordenada, de um escalonamento assumido e admitido.5 5 . Ibidem, p. 59-60, tradução minha.

Os camarotes tornaram-se uma extensão tão flagrante do ambiente doméstico de seus frequentadores que a expressão artística era muito mais um pretexto para o estar entre pares do que a real motivação para ir ao teatro. O cronista inglês Charles Burney relata, por exemplo, o quanto fora impressionado não só pela grandeza do teatro San Carlo, de Nápoles, em 1771, como também pelo barulho da plateia, cujo volume era tão elevado que impedia a plena audição do canto e da melodia dos instrumentos musicais, fato atenuado apenas quando o rei e a rainha estavam presentes6 6 . Cf. BERESON, Ruth. The operatic state - cultural policy and the opera house. New York: Routledge, 2002, p. 21. . Essa domesticação do espaço público teatral, que adquiria gradativamente dimensões bizarras a ponto de o próprio espetáculo em si ser preterido em nome da encenação social, seria combatida no século XVIII, quando o ímpeto reformista do Século das Luzes procurou regenerar não só a arte como os espaços dedicados à sua expressão. Nesse contexto, Francesco Milizia, importante teórico italiano do Neoclassicismo e da arquitetura teatral, declarara guerra aos camarotes italianos que, em sua visão, eram responsáveis pela pretensa decadência dessa tipologia arquitetônica diagnosticada naquela época: em nome de uma débil privacidade perniciosa, o teatro estava perdendo sua excelência técnica:

Se tem por grande vantagem o uso dos nossos camarotes, com os corredores continuados de tanta comodidade e liberdade para ir de lá para cá, estar, debruçar-se, retirar-se, esconder-se, e fazer o que quiser (como se estivesse no próprio gabinete com todas as comodidades) para gozar do teatro, e também de uma conversa particular, renovada continuamente. Admirável e aplaudida invenção! Está exatamente nessa invenção tão preciosa, se não me engano, todo o mal do teatro moderno: mal que produz os sintomas mais perniciosos. Ei-los: 1º estes camarotes (...) cortam de mil modos o ar sonoro, reverberam-no em múltiplos sentidos, e o devem, por força, confundir: daqui nasce o indispensável efeito de ouvir-se pouco e mal (...)7 7 . MILIZIA, Francesco. Trattato completo, formale e materiale del teatro. Veneza: Stamperia di P. & G. B. Pasquali, 1794, p. 88-89, tradução minha. .

Destarte, se a compartimentação da audiência em caixas privadas contribuía para um certo “decaimento dos costumes”, prejudicava em igual medida a função primordial desses espaços: ao fragmentar a superfície das salas, que se tornavam excessivamente angulosas, os camarotes se transformavam em obstáculos incômodos à boa propagação das ondas sonoras, ao passo que suas divisórias internas, mesmo quando feitas a meia altura, reduziam o campo visual dos espectadores8 8 . Ibidem, p. 90. Milizia é um opositor tão radical do camarote que chega a sugerir que seu advento teria arruinado o chamado “teatro formal”, pois o teatro italiano já não tinha tragédias, nem boas comédias: estes gêneros requeriam atenção total do começo ao fim, ou seja, o oposto da prática contemporânea: as meras trocas sociais. . Isso marcou, inclusive, uma forte oposição entre o modelo italiano de camarotes completamente encerrados entre si e o modelo francês, no qual se adotou divisórias de meia altura ou mesmo nenhuma compartimentação. Isso não impediu, no entanto, que os hábitos impolidos da plateia florescessem por lá: desde 1630 foi possível perceber o mal comportamento do público, que por vezes fora responsabilizado por uma hipotética estagnação da atividade teatral no reino de Luís XIV: François Hédelin, abbé d’Aubignac, respeitado dramaturgo francês do século XVII, fora encarregado pelo cardeal Richelieu de investigar tais causas, dando origem ao estudo Projet de rétablissement du théâtre français. Em linhas gerais, d’Aubignac atribuiu aos aspectos físicos das salas francesas os responsáveis pela face mais incômoda do teatro nacional: o mau comportamento do público. Segundo ele, as deficiências ligadas à visibilidade das salas - camarotes muito distantes do palco, parterre (plateia) sem elevação, falta de conforto - davam vazão às afamadas indisciplinas das audiências francesas9 9 . PASQUIER, Pierre; SURGERS, Anne. La situation du spectateur dans la salle française aux XVII et XVIII siècles. In: Le spectateur de théâtre à l’âge classique: XVIIe et XVIIIe siècles. Montpellier: L’Entretemps éditions, 2008, p. 62. .

Quando Voltaire esboça um quadro irascível de um teatro francês decadente e indisciplinado no prefácio de sua tragédia Sémiramis, em 1749, estava lançando as bases para a renovação não só da arquitetura teatral na segunda metade do século, cujo epicentro fora sem dúvida a França neoclássica, mas também evidenciava, de maneira espantosa, a permanência dos hábitos grosseiros da plateia diagnosticados há mais de um século. Com efeito, o filósofo se exacerba com o mau comportamento do público, no que enxerga uma forma de atraso rumo à excelência dramática, assim como, e principalmente, atribui à precariedade da estrutura física dos teatros franceses, que não seriam dignos nem de representar a própria nação e muito menos de acolher obras de tamanha envergadura, um tal entrave ao progresso artístico e intelectual da França:

Que nós estamos longe sobretudo da inteligência e do bom gosto que reina nesse aspecto em quase todas as cidades da Itália! É vergonhoso deixar subsistir ainda estes restos de barbárie em uma cidade tão grande, tão populosa, tão opulenta e tão polida. A décima parte do que nós gastamos todos os dias em bagatelas tão magníficas quanto inúteis e pouco duráveis, seriam suficientes para erguer monumentos públicos de todos os tipos, para tornar Paris tão magnífica quanto é rica e populosa, e para igualá-la um dia à Roma que é nosso modelo em tantas coisas (...)10 10 . VOLTAIRE. La tragédie de Sémiramis, par M. de Voltaire. Et quelques autres pièces de littérature du même auteur, qui n’ont point encore paru. Paris: P.-G. Le Mercier et M. Lambert, 1749 (Acervo Gallica), p. 22, tradução minha..

Todo esse cenário de vicissitudes privadas não está evidente nas pinturas acima, embora estivessem, certamente, presentes: elas se comprazem, antes, com o que há de ritualístico no espaço teatral, com a pompa e a circunstância que o diferencia de uma genérica soirée palaciana de códigos próprios. O teatro dos mascarados de Grisoni e dos cortesãos de Pannini e Michele é aquele que se identifica com o caráter elevado da atividade que abrigam, e até mesmo nos jogos amorosos galantes das mascarades que ecoam Watteau em suas saborosas fêtes galantes. Estes pintores ainda não estão voltados à exploração das minúcias da vida particular que se desenrolam dentro do edifício teatral e que será herdada pela sociedade burguesa pós-1789. Isso caberá às gerações seguintes, principalmente na segunda metade do século XIX.

Assim, encontramos Degas, um século depois, reavivando o interesse e a apropriação do espaço físico teatral pela pintura. A série de obras a seguir demonstram o apreço e fascínio do pintor pelo universo das casas de óperas. Elas se debruçam, antes de tudo, sobre a porção espiritual da arte que se desenvolve no interior destes recintos, devotam-se ao saldo perene da experiência artística fruída pelos espectadores. A isso se deve seu fascínio pelas partes da sala de espetáculos fundamentalmente dedicadas aos artistas: a saber, o fosso da orquestra e o palco. Comecemos por A orquestra na Ópera, de 1870 (figura 4), na qual o pintor adota o ponto de vista do espectador que se situa na primeira fileira de cadeiras da plateia, aquele que recebe com maior intensidade as notas musicais emanadas dos diversos instrumentos empunhados por músicos em trajes impecáveis. Tal é o respeito do pintor por essa categoria que ele lhes dedica retratos individuais, identidades singulares que não se perdem em meio à massa de músicos. Igualmente bem representados são os instrumentos musicais, formalmente belos em suas linhas esguias, volutas e arabescos entalhados em madeira. É impressionante a capacidade de Degas em elevar o ambiente aparentemente insípido de um fosso de orquestra - que nada mais é que uma câmara encravada entre a plateia e o palco, primordialmente um ambiente que favoreça a ótima propagação dos sons e, em geral, com pouca ou nenhuma concessão à beleza visual - ao patamar de espaço nobre do interior teatral. Isso se intensifica pela opção do artista em nos oferecer, logo acima, apenas as pernas das bailarinas que certamente monopolizam a atenção da plateia. Suas saias são como explosões suaves de cores sobre o universo musical solene da orquestra.

Fig. 4
Edgar Degas, A orquestra na Ópera, 1870. Óleo sobre tela, 57 x 46cm. Musée d’Orsay, Paris.

Anos depois, Degas eleva seu ponto de vista em Ensaio de um balé no palco (figura 5), e agora assistimos do alto a um ensaio de balé, tema obsessivo do pintor. Do canto esquerdo da tela, observamos uma porção do cenário, o formato curvo do proscênio, as linhas diagonais das tábuas que formam o assoalho do palco em oposição à verticalidade das coxias escuras em direção ao fundo e os nobilíssimos camarotes situados acima do proscênio. A ação - um ensaio exaustivo do balé da ópera, haja vista o grupo de bailarinas do canto esquerdo, aparentemente cansadas - domina o ponto focal por excelência de todos os teatros; observadas por um homem de cartola sentado em uma cadeira, as meninas se sustentam sobre as pontas dos pés, se contorcem e se atentam para executar a coreografia sem equívocos. A luminosidade quase fantasmagórica vem de baixo, e empresta às bailarinas um tom de pele excessivamente pálido, com poucos contrastes com a tonalidade da musselina de seus tutus.

Fig. 5
Edgar Degas, Ensaio de um balé no palco, 1874. Óleo sobre tela, 65 x 81 cm. Musée d’Orsay, Paris.

Em A cena do balé da ópera de Meyerbeer “Robert le Diable” (figura 6), Degas parece ter atingido um ponto de equilíbrio entre duas de suas paixões: a música e o balé. Assim, ele praticamente divide o plano pictórico ao meio, retratando ao mesmo tempo três espaços fundamentais da sala de espetáculos: a plateia, o fosso da orquestra e o palco. Mais uma vez, é como espectadores que observamos o balé pertencente à primeira ópera em francês especialmente composta pelo alemão Giacomo Meyerbeer para a Ópera de Paris em 1827 e que se tornaria um sucesso retumbante da carreira do compositor por quase todo o século11 11 . ABBATE, Carolyn; PARKER, Roger. Uma história da ópera: os últimos quatrocentos anos. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 314. . Aqui, dança e música não rivalizam, ao contrário se somam. No entanto, o pintor ainda identifica na atividade das bailarinas um viés deveras imaterial, quase dissolvido em pinceladas rápidas e não delimitadas. É o universo onírico por excelência, banhado por uma luz espectral intensificada pela rigidez das sombras e negros que dominam o fosso da orquestra. Se não podemos individualizar nenhum dançarino, o mesmo não podemos dizer dos músicos que, mesmo vistos de perfil ou de costas, possuem traços distintivos entre si. Um momento magistral dessa composição está no espectador do lado esquerdo, completamente alheio à ação cênica, voltado para as fileiras de camarotes a empunhar suas jumelles - o binóculo para teatro favorito dos homens -, muito mais interessado no jogo social do que na dança cerimonial do balé. Notemos, ainda, que essa pintura ocupa uma posição especial dentro de nosso tema: além de ser uma das primeiras representações da Ópera Garnier, Degas registra com maestria a profundidade do palco com seus grandes cenários formados por uma arquitetura de arcadas que definem porções distintas de luzes e sombras, denotando a imponência da caixa cênica da sala parisiense recém-inaugurada. Ratifica, portanto, sua escolha pela dimensão artística do espaço arquitetônico teatral, dando as costas para o mundano intimamente relacionado com a plateia.

Fig. 6
Edgar Degas, A cena do balé da ópera de Meyerbeer “Robert le Diable”, 1876. Óleo sobre tela, 75 x 81 cm. Victoria and Albert Museum, Londres.

De maneira concomitante, Renoir fora outro nome entre os impressionistas a se deixar seduzir pelo teatro e seus espaços. A tela O Camarote (figura 7), apresentada na primeira exposição impressionista no estúdio do fotógrafo Nadar, coincide com a juventude fascinante daquela que fora construída para ser a glória e o orgulho da nova Paris: a Ópera Garnier, aberta ao público no ano seguinte, 1875. A obra-prima de Garnier surgia como uma espécie de renascimento da vida noturna dominada pelos grandes espetáculos, uma tradução fiel das mudanças urbanas e sociais por que passara a Paris de Napoleão III12 12 . A esse respeito, ver importantes estudos do autor Jean-Claude Yon sobre a cena cultural parisiense sob o Segundo Império: YON, Jean-Claude (org.). Les spectacles sous le Second Empire. Paris: Armand Colin, 2010, e Histoire culturelle de la France au XIXe siècle. Paris: Armand Colin, 2010. . Na tela em questão, a Ópera ainda não era o espaço por excelência das cenas intimistas que se desenrolavam nos camarotes. Não sabemos ao certo a qual teatro ele pertence, muito provavelmente seja a Salle Ventadour, também conhecida como Théâtre des Italiens, mas identificá-lo escapa aos propósitos desta análise. O camarote de Renoir inaugura, antes de tudo, o olhar ampliado do artista para a vida moderna que tem nas idas ao teatro uma de suas vertentes mais concretas e duradouras.

Fig. 7
Auguste Renoir, La loge [O camarote], 1874. Óleo sobre tela, 80 x 63,5 cm. The Courtauld Gallery, Londres.

Em cena estão seu irmão, Edmond, e a modelo Nini Lopez, um casal burguês de extrema elegância, vestidos à moda da época, preparados para atuarem sem erros nas convenções sociais que aquele tipo de ambiente exigia. Contrapondo-se à atividade perscrutadora de Edmond, que direciona seus binóculos, item obrigatório em qualquer teatro de grande porte, para os camarotes acima do seu, Nini encara o observador, enquanto repousa sua lorgnette dourada - a versão mais delicada das jumelles - sobre o parapeito aveludado. Não sabemos se ela já mapeara toda a plateia como seu companheiro o faz, mas vislumbramos que em breve ela voltará a desbravar a sala de espetáculos à cata de seus iguais, procurando pessoas específicas, velhos conhecidos, talvez novos e proibidos amores. Aqui, Renoir aproxima sua visão ao máximo, deixando pouquíssimos detalhes que identifiquem o espaço teatral: os veludos carmins que forram o interior da câmara, lampejos dourados da decoração em geral.

Também contemporânea é a obra de Eva Gonzalès (figura 8), testamento óbvio de seu aprendizado com o mestre Manet: do tratamento pictórico ao buque de flores no lado esquerdo a evocar o mimo dedicado à Olympia. Aqui, o marido da pintora, Henri Guérard, e sua irmã, Jeanne Gonzalès se deixam vislumbrar na intimidade de um camarote de luxo. Mais uma vez, o universo de veludos e douramentos atesta o pertencimento deste teatro a um conjunto de locais dedicados ao entretenimento refinado e monopolizado por uma burguesia urbana afeita às soirées teatrais. Ou, como bem define Jean-Claude Yon, aos símbolos arquitetônicos da “dramatocracia” que imperou por mais de um século nas sociedades europeias mais desenvolvidas de então. A esse respeito, Yon a define como uma “sociedade onde o teatro está no centro da vida pública e onde ele participa consequentemente da constituição da opinião pública, ao mesmo tempo em seus aspectos mais importantes e mais fúteis”13 13 . YON, Jean-Claude. Théâtres Parisiens: un patrimoine du XIXe siècle. Paris: Citadelles & Mazenod, 2013, p. 10. . Todavia, Gonzalès também opta por um olhar bastante direcionado, sem permitir que o espaço físico do teatro domine o plano da tela, tornando possível sua identificação, assim como fizera Renoir, apenas por seus elementos decorativos: cortinas e forramentos aveludados. O parapeito do camarote, que jaz sobre a parte inferior da tela, serve de repouso para o antebraço de Jeanne, que assim como Nini, segura os binóculos característicos, em atitude distinta de Guérard, que parece alheio à multidão que se situa virtualmente a sua frente. De igual importância são os aparatos utilizados pela retratada, códigos visuais longevos no interior da etiqueta teatral - junto aos leques, lenços e vendedores de buquês14 14 . BANU, Georges. Op. cit., p. 148 et ss. : a mão enluvada em oposição à desnuda que segura as lorgnettes principia o jogo de exposição e ocultação que dava sabor às noites de espetáculo. Com efeito, mostrar os braços, mesmo que apenas uma porção do antebraço, era um sinal de sedução que fora herdado do século XVIII, ato propício para o ambiente de flertes que perdurava mesmo no ambiente burguês, a princípio mais recatado que o outrora lascivo do Ancien Régime. Se a Nini Lopez de Renoir aposta no total recato ao não abdicar de seu par de luvas, Jeanne se permite a entrega à ambiência galante ao deixar uma de suas mãos à mostra. Isso ressalta o apelo sedutor dos camarotes, inclusive, para a literatura do período, haja vista que o território da sedução para heroínas como a cortesã Marguerite Gautier de A dama das camélias, de Dumas Filho, e Nana, do romance homônimo de Zola, é a ambiência frenética dos teatros: o camarote de Gautier é não só o ponto focal da plateia como o palco do próprio encontro amoroso onde a protagonista deixa de ser a pária social e seleciona os homens aos quais julga dignos ou não de adentrarem seus domínios. É também a extensão de seu próprio corpo e sua dinâmica biológica: a presença do buquê de camélias brancas ou vermelhas indicava seu ciclo menstrual, particularidade que lhe rendera o epíteto que nomeia a obra. A descrição do narrador quanto aos hábitos de Marguerite no teatro dialoga não só com a postura de Jeanne como explicitam o quanto eram corriqueiros e reveladores da intimidade de seus frequentadores:

Fig. 8
Eva Gonzalès, Um camarote no Théâtre des Italiens, 1874. Óleo sobre tela, 98 x 130 cm. Musée d’Orsay, Paris.

Marguerite assistia a todas as estreias e passava todas as suas soirées no espetáculo ou no baile. Cada vez que se encenava uma nova peça, era certo encontrá-la com três coisas que não a deixavam jamais, e que sempre ocupavam a parte frontal de seu camarote térreo: sua lorgnette, um saco de bombons e um buquê de camélias.

Durante vinte e cinco dias do mês, as camélias eram brancas, e durante cinco elas eram vermelhas; nunca se soube a razão dessa variedade de cores, que eu assinalo sem poder explicar e que os habitués dos teatros onde ela ia com mais frequência e seus amigos tinham percebido como eu.15 15 . DUMAS FILS, Alexandre. La dame aux camélias. Paris: Éditions Gallimard, 1974, p. 27. Tradução minha. .

Mary Cassatt foi outra apaixonada pelo ambiente teatral, especialmente pelo aconchego dos camarotes. Em sua primeira tela do gênero (figura 9), ela nos proporciona um adorável jogo de olhares que tem lugar entre as fileiras almofadadas desses espaços privados: em primeiro plano, uma mulher vestida sobriamente para a moda das soirées operísticas, empunha seus binóculos para a frente, claramente resoluta em sua ação de observar seus pares longínquos no espaço da plateia. O que ela não percebe - ou talvez sim - é que um senhor, na outra extremidade, direciona seus binóculos para ela. Nada dessa magia seria possível não fosse a perícia da artista em retratar a curvatura dos andares de camarotes e suas respectivas divisórias internas: a imensa colmeia formada por caixas aveludadas em carmim se torna um caleidoscópio de faces, e podemos imaginar os efeitos da atividade observadora de ambas as personagens: o cruzamento ou não de seus olhares pode significar a vitória ou a derrota do espaço arquitetônico quando destinado à intimidade. A quentura geral das tonalidades acrescenta o frêmito que perpassa todas as pinceladas dessa cena de flerte tão comum e quase obrigatória no interior do recinto teatral.

Fig. 9
Mary Cassatt, No camarote, 1878. Óleo sobre tela, 81 x 66 cm. Museum of Fine Arts, Boston.

Em seguida, observamos o suposto retrato de sua irmã, Lydia (figura 10). E aqui, uma mudança óbvia se faz: Lydia está nitidamente posando para a artista. Estamos diante de um retrato gracioso, leve, onde pouquíssimos negros ponteiam para definir sombras. No mais, tudo é luminoso no interior desse camarote que utiliza o recurso do espelhamento como um artifício laborioso para emprestar amplidão ao espaço e registrar os camarotes à frente. Tais objetos costumavam forrar as paredes posteriores desses ambientes com diversas funções: aumentar a profundidade do espaço arquitetônico, intensificar a luminosidade do lugar e, talvez o mais importante, servir ao ritual feminino das toilettes. É, igualmente, o instrumento de uma sociedade narcísica que necessita ver-se refletida e assegurada em seu pertencimento de classe. Cassatt capta com maestria tais efeitos. Toda a luz emanada do lustre central que pende do plafond plasma sobre os dourados decorativos e o resultado é um misto de solenidade, leveza e otimismo. É o ápice da representação devota da arquitetura teatral do oitocentos, uma ode aos edifícios destinados a serem a materialização do bem viver e dos pequenos prazeres da vida urbana cosmopolita parisiense16 16 . Para um olhar aprofundado sobre a importância do teatro para a nascente indústria da cultura de massas do século XIX nas capitais europeias, ver THER, Philipp. Center stage: operatic culture and nation building in Nineteenth-Century Central Europe. Indiana: Purdue University Press, 2014, e CHARLE, Christophe. Théâtres en capitales: naissance de la société du spectacle à Paris, Berlin, Londres et Vienna, 1860-1914. Paris: A. Michel, 2008. . É, também, a fixação pictórica das intenções dos arquitetos daquele período, em especial Garnier, que enxergavam tais espaços como imensas caixinhas de joias, recintos feitos para e pela figura feminina. A defesa apaixonada da decoração do auditório de sua obra-prima, perpetuada pelo arquiteto francês, é exemplar dessa mentalidade que via na mulher o esplendor dos teatros:

Fig. 10
Mary Cassatt, Lydia no Teatro, 1879. Óleo sobre tela, 81 x 60 cm. Museum of Art, Filadélfia.

(...) pois em um teatro, e na Ópera sobretudo, o público forma também um espetáculo movente e animado, que está longe de ser desprovido de charme e poesia. Digam bem isto, minhas senhoras: que eu pensei em vocês ao dar à sala da nova Ópera a tonalidade que ela possui; digam que eu evitei o que pudesse lutar contra seu charme e seus acessórios, e que a arquitetura pode ser bela e grande mas ela não poderá jamais equivaler ao sorriso de uma jovem garota, ao olhar de uma jovem mulher e à elegância de todas as espectadoras. Então, ponham seus diamantes e suas joias, exibam seus ombros, cubram-se de seda e rendas, vocês serão sempre vistas e admiradas; eu só fiz o estojo que não afetasse às joias17 17 . GARNIER, Charles. Le nouvel Opéra. Paris: Éditions du Linteau, 2001 (3 ed.), p. 127. .

Devemos nos ater um pouco mais ao papel desempenhado pela nova Ópera no âmbito da iconografia relativa aos teatros na segunda metade do XIX. Sua exuberância era tão marcante que a ela caberá cumprir um duplo papel: fornecer subsídios para representações tanto de seus interiores quanto de seu aspecto exterior. Desse modo, o palácio situado em meio à Place de l’Opéra ganhará diversas representações enquanto marco arquitetônico fundamental da Paris recém-reformada. Seja como protagonista da paisagem urbana, como na pintura Grande Casa de Ópera, do franco-americano Frank Myers Boggs (figura 11), seja como cenário para uma cena banal do cotidiano da cidade, como na pintura que se passa diante do edifício, A Ópera, do espanhol Joaquin Pallares Y Allustrante, a obra de Garnier se destaca como exemplo único, e isso é totalmente novo, por fascinar não apenas pela sua opulência interna, explorada de maneira recorrente, mas por suas qualidades arquitetônicas, como geradora de ambientes atrativos ao olhar. Ela é o próprio monumento à joie de vivre da sociedade parisiense que habitava o monstruoso canteiro de obras que se tornara Paris sob o comando irascível de Haussmann, e é assim que ela se impõe sobre quase toda a superfície pictórica da tela de Boggs. Da praça adentramos seu vestíbulo e é Louis Béroud o responsável por imortalizar sua afamada escadaria principal, em 1877 (figura 12): em meio à luz onírica emanada das musas tocheiras sobre a balaustrada, a sociedade parisiense se entrega ao deleite das parades, evento quase tão importante quanto o próprio espetáculo do dia. Desfilam suas sedas e tafetás pelo saguão, conversam, observam, e aguardam o momento mais esperado de uma soirée na Ópera: a subida da escadaria rumo aos camarotes. Esse movimento, sempre de ascensão e a princípio banal, é a essência da arquitetura espetacular concebida por Garnier, que só se completa com o ritual do ver e ser visto desempenhado pelos seus frequentadores. Béroud soube captar a matéria-prima desse momento pois sua tela é cheia de brilho, um quase ofuscar de luzes que se refletem em ornamentos decorativos, nas joias e acessórios das mulheres em missão de gala. Com efeito, essa escadaria é totalmente irmã da própria sala de espetáculos em si: suas sacadas sobrepostas e incrustadas entre as colunas do vestíbulo, tumultuadas, bem se parecem com os balcões do auditório. O espetáculo começa, de fato, ali, onde a sociabilidade se faz teatral. É, ao mesmo tempo, um ritual de raízes quase sacras a ecoar a certeira definição de Théophile Gautier quanto à função do teatro de ópera na sociedade moderna emersa na metade do XIX: a “catedral mundana da civilização”18 18 . FONTAINE, Gérard. L’Opéra de Charles Garnier: architecture et décor extérieur. Paris: Éd. du Patrimoine, 2000, p.74. entrega seus dispositivos abarrocados para a encenação sagrada da bem-aventurança do viver em meio às mil possibilidades de uma vida regida por Epicuro. Não há outra saída para a vida moderna a não ser o gozo de um cotidiano ditado pela felicidade onipresente.

Fig. 11
Frank Myers Boggs, Grande Casa de Ópera, s.d. Coleção particulat.

Fig. 12
Louis Béroud, A escadaria da Ópera, 1877. Óleo sobre tela, 65 x 54 cm. Musée Carnavalet, Paris.

O olhar cronista de Jean Béraud no final do século XIX foi além das aparências inebriantes do teatro enquanto ratificação de uma vida burguesa que beirava à fantasia. Em sua cena de camarote (figura 13), um apanhado de situações corriqueiras desse cenário: o cavalheiro alheio, a dama impecável, a observação via binóculos. No entanto, Béraud propõe uma abordagem completamente nova para o tema. Em primeiro lugar, estamos no interior de um camarote em posição privilegiada: imediatamente próximo do palco e do fosso da orquestra. Além disso, o pintor acrescenta uma dose de ironia ao retratar hábitos que hoje julgamos descorteses no ambiente teatral, mas que apesar de corriqueiros provocavam certo incômodo, como vimos anteriormente, desde pelo menos a segunda metade do século XVIII, quando o público burguês começa a substituir gradativamente o aristocrata, com o total descompromisso do casal com o que se passa no palco - enquanto o homem dá as costas para a plateia, sua companheira se levanta e retoca sua maquiagem em frente ao espelho do camarote. Some-se a isso a postura mais inusitada e anedótica da cena: o senhor que se levanta da plateia para observar o interior deste camarote sem qualquer cerimônia. Não sabemos ao certo o que atraiu sua curiosidade: é bem provável que ele estivesse cortejando a mulher em questão. Seja lá qual for sua motivação, Béraud rebaixa a arquitetura teatral para um cotidiano menos mágico e inebriante do que vimos nos exemplos anteriores. As atitudes das personagens parecem demonstrar uma tamanha familiaridade com esse espaço a ponto de torná-lo ordinário de uma maneira inusitada. As barreiras físicas que se destinavam a resguardar minimamente a intimidade estavam pulverizadas.

Fig. 13
Jean-Georges Béraud, O camarote do proscênio, c.1883. Óleo sobre tela. Coleção particular.

Este argumento se confirma pelos exemplos seguintes. A discussão que ganha os corredores da Ópera Garnier (figura 14) trazem à tona uma outra percepção do teatro em meados do século XIX: as pequenas tramas da realidade adquiriam mais importância que os grandes enredos cantados por tenores e sopranos. A rusga entre dois senhores - sendo que um deles está em vias de desferir no outro uma bofetada - assistida por uma ampla plateia de iguais praticamente transforma o outrora ambiente de refinamento em uma rua de Paris tomada por uma briga de rapazes. A acentuar o tom caricatural da cena, Béraud dispõe, no canto esquerdo, um homem tentando agarrar uma mulher mascarada, e ficamos em dúvida se estamos na saída de um espetáculo ou em meio à um baile de máscaras durante o carnaval. O total desprendimento da ação, livre de regras e bons modos, transfere o foco de atenção do recôndito dos camarotes para os espaços mais internos da sala de espetáculos. Por outro lado, quando ele nos mostra os bastidores da Ópera (figura 15) tomados por homens abraçados às bailarinas que se preparam para entrar em cena, ele desvela, antes, os bastidores das relações amorosas que anos atrás estavam restritas ao anonimato dos bailes de máscaras, imortalizado pela célebre obra de Manet, Baile de máscaras na Ópera, de 187319 19 . T. J. Clark fala dessa e de outras obras capitais de Manet em sua célebre análise sobre as relações entre a pintura e a vida moderna na Paris do século XIX. A esse respeito, ver CLARK, T. J. A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e seus seguidores. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. . Agora, é no cotidiano das temporadas líricas que os homens ricos escolhem suas prediletas entre as bailarinas, sem a necessidade de restringir suas aventuras sexuais à época carnavalesca. Metaforicamente, o avesso dos cenários que podemos vislumbrar sobre o palco são o reverso do mundo de sonhos que se projetam do exterior para o microcosmos do teatro de ópera. Ao contrário de Manet que dispõe uma massa pesada de negros em um recorte arquitetônico indiferente, que quase nega sua filiação à gramática teatral, Béraud deixa claro que a permissividade, antes restrita à liberdade carnavalesca, é o motor primeiro das paixões humanas abrigadas sobre o palco, o foco visual de toda arquitetura desse gênero. Ao situar essa cena de galanteria sobre ele, o pintor demonstra o êxito da espetacularização da vida privada da maneira mais explícita possível, e o segredo passa a ser uma condição quase indesejada.

Fig. 14
Jean-Georges Béraud, Uma discussão nos corredores da Ópera, c.1889. Óleo sobre tela. Coleção particular.

Fig. 15
Jean-Georges Béraud, Os bastidores da Ópera, 1889. Óleo sobre tela, 38 x 54 cm. Musée Carnavalet, Paris.

É Béraud, também, que retrata o avesso do glamour do espaço teatral, dando voz àqueles que trabalham em silêncio nos bastidores dessa arquitetura magnífica. Na aquarela Uma noite agitada no teatro, c.1885 (figura 16), o pintor mostra a própria negação do espírito luminoso característico deste espaço: em uma cena soturna, duas mulheres sentadas, aparentemente encarregadas de cuidar da chapelaria repleta de casacos, cartolas e guarda-chuvas, miram o chão, cabeças baixas, melancólicas, banhadas por uma luz débil. Nada dos tons quentes e radiantes das cenas nas salas de espetáculos que vimos até então, nenhuma concessão aos brilhos e ao frescor dos frequentadores dos camarotes: aqui, tudo é sombrio, pesado, a antítese da alegria efêmera do auditório. Quase podemos escutar o som abafado que vem do palco, a princípio vivo, e que vai morrendo aos poucos, ao vencer cada anteparo, até se dissipar nas paredes, insistindo em escapar, moribundo, pelas frestas das portas que encerram o ambiente privado e altamente seletivo dos camarotes aos quais essas mulheres estão servindo. Para elas não é permitida qualquer teatralidade, qualquer gozo do espetáculo cotidiano fornecido pela bela vida burguesa daqueles tempos. Béraud quer registrar os deslizes de uma sociedade de aparências. É bastante plausível pensarmos nessas quatro pinturas como uma sequência decadentista da arquitetura teatral enquanto tema para a pintura e reflexo da conduta pública dessa mesma sociedade. Com efeito, ele nos leva por quatro camadas bem definidas deste espaço: do camarote efetivamente desprovido de intimidade já sobre o palco, escancarado, passando por seus corredores mundanos até chegarmos aos bastidores da caixa cênica tomada pela encenação galante. No fim de todo esse percurso, vamos encontrar as duas senhoras resignadas nas antecâmaras escuras dessa arquitetura quimérica, as entranhas sombrias que, como tal, devem permanecer ocultas.

Fig. 16
Jean-Georges Béraud, Uma noite agitada no teatro, 1885. Aquarela. Coleção particular.

A perda da magnificência do espaço teatral no que ele havia de mais caricatural estará presente, também, na obra de Albert Guillaume, na passagem do século XIX para o XX. Com efeito, ele dirige um olhar fotográfico para aquele ambiente, criando uma crônica divertida e altamente ácida sobre a banalidade e o automatismo das idas à ópera naquele contexto. Em Quinze minutos de entreato, de 1914 (figura 17), Guillaume expõe a exaustão de dois espectadores em meio à atividade abnegada das mulheres que tricotam de maneira concentrada. No canto direito, um homem calvo está imerso na leitura de seu jornal ao passo que uma jovem se distrai em seu ato de tecer. Em Os retardatários (figura 18), do mesmo ano, o artista aumenta o tom caricato de seus retratados, ao mostrar a contrariedade dos espectadores, pontuais e já acomodados em seus respectivos lugares, ao ter de darem passagem a um casal que chega atrasado. Em ambas as imagens, Guillaume recorta uma porção específica da plateia, foca-se, sobretudo, na conduta dos frequentadores desses espaços, demonstrando que o interesse pelo teatro enquanto repositório de temas e motivos pictóricos agora se restringia muito mais ao anedótico do que à representação de um espaço de opulência. Não que esta tenha sido deixada de lado: é que agora, o espaço teatral está dessacralizado. O brilho, a magnitude, a sinestesia dos veludos, a sensação de onipotência de toda uma geração, pareciam conhecer o princípio do fim. Quando Guillaume rechaça a primazia dos códigos arquitetônicos que haviam conhecido seu apogeu na obra máxima de Garnier para torná-los apenas motes de crônicas visuais debochadas, estamos diante de uma mudança significativa no entendimento do espaço teatral enquanto palco para uma sociedade revitalizada e fulgurante. É como se na maquiagem carregada e patética de suas personagens pudéssemos antever a própria maquiagem de um ambiente em falência.

Fig. 17
Albert Guillaume, Quinze minutos de entreato, de 1914. Postal.

Fig. 18
Albert Guillaume, Os retardatários, 1914. Óleo sobre tela, 47 x 91 cm. Musée Carnavalet, Paris.

Assim, do teatro enquanto arquitetura sublime e magnificente do setecentos, no qual a estrutura física das salas era um fim em si mesmo da pintura, chegamos gradualmente a uma espécie de humanização e decadência desse ambiente nos momentos finais do século XIX. É notável que a porção poética da ópera, que fascinara os impressionistas históricos como Degas, Renoir e Cassatt, fora um campo fecundo para a fatura leve e descompromissada desses pintores, interessados que estavam na dinâmica da ação humana em meio ao espaço urbano de múltiplas possibilidades prazerosas que se desnudavam na França recém-chegada à Belle Époque. Se pensássemos na vida cotidiana daquele momento como uma imensa e interminável ópera, certamente o palácio de Garnier, o paradigma supremo do grande teatro cosmopolita, seria o palco adotado para sua encenação. Todavia, o mundo de aparências que lhe era intrínseco desembocava na crônica ácida dos artistas finisseculares como Béraud e Guillaume, agora não mais inebriados pelo fascínio e pelo otimismo que infundia vida aos pintores da década anterior: a decadência moral, um tema caro a esse momento, também atingira o ambiente sacralizado da arquitetura teatral. O arco temporal e simbólico se faz claro: do teatro que se prestava à reverência e às solenidades maquinais desembarcamos num espaço domesticado, corriqueiro e banal, como se aquele equipamento cultural tão caro à etiqueta da vida moderna cosmopolita tivesse sido, irremediavelmente, abarcado pelas pequenas tiranias do cotidiano simplório. O edifício teatral, enquanto tipologia, seguiria ainda, por mais algumas décadas, uma senda de prestígio e magnificência, principalmente enquanto símbolo da cidade progressista e industrializada, mas o olhar da pintura sobre ele, àquela altura, já havia conseguido desnudá-lo e expor suas facetas mais ordinárias.


  • 1
    . CHASTEL, André. L’art Français - Ancien Régime 1620-1775. Vol. 3. Paris: Flammarion, 1995, p. 30, tradução minha.
  • 2
    . Cf. CASTLE, Terry. Masquerade and civilization. The carnivalesque in Eighteenth-Century English culture and fiction. Califórnia: Stanford University Press, 1986, p. 2.
  • 3
    . Ibidem, p. 3, tradução minha.
  • 4
    . BANU, Georges. Le rouge et or: une poétique du théâtre à l’italienne. Paris: Flammarion, 1989, p. 158.
  • 5
    . Ibidem, p. 59-60, tradução minha.
  • 6
    . Cf. BERESON, Ruth. The operatic state - cultural policy and the opera house. New York: Routledge, 2002, p. 21.
  • 7
    . MILIZIA, Francesco. Trattato completo, formale e materiale del teatro. Veneza: Stamperia di P. & G. B. Pasquali, 1794, p. 88-89, tradução minha.
  • 8
    . Ibidem, p. 90. Milizia é um opositor tão radical do camarote que chega a sugerir que seu advento teria arruinado o chamado “teatro formal”, pois o teatro italiano já não tinha tragédias, nem boas comédias: estes gêneros requeriam atenção total do começo ao fim, ou seja, o oposto da prática contemporânea: as meras trocas sociais.
  • 9
    . PASQUIER, Pierre; SURGERS, Anne. La situation du spectateur dans la salle française aux XVII et XVIII siècles. In: Le spectateur de théâtre à l’âge classique: XVIIe et XVIIIe siècles. Montpellier: L’Entretemps éditions, 2008, p. 62.
  • 10
    . VOLTAIRE. La tragédie de Sémiramis, par M. de Voltaire. Et quelques autres pièces de littérature du même auteur, qui n’ont point encore paru. Paris: P.-G. Le Mercier et M. Lambert, 1749 (Acervo Gallica), p. 22, tradução minha..
  • 11
    . ABBATE, Carolyn; PARKER, Roger. Uma história da ópera: os últimos quatrocentos anos. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 314.
  • 12
    . A esse respeito, ver importantes estudos do autor Jean-Claude Yon sobre a cena cultural parisiense sob o Segundo Império: YON, Jean-Claude (org.). Les spectacles sous le Second Empire. Paris: Armand Colin, 2010, e Histoire culturelle de la France au XIXe siècle. Paris: Armand Colin, 2010.
  • 13
    . YON, Jean-Claude. Théâtres Parisiens: un patrimoine du XIXe siècle. Paris: Citadelles & Mazenod, 2013, p. 10.
  • 14
    . BANU, Georges. Op. cit., p. 148 et ss.
  • 15
    . DUMAS FILS, Alexandre. La dame aux camélias. Paris: Éditions Gallimard, 1974, p. 27. Tradução minha. .
  • 16
    . Para um olhar aprofundado sobre a importância do teatro para a nascente indústria da cultura de massas do século XIX nas capitais europeias, ver THER, Philipp. Center stage: operatic culture and nation building in Nineteenth-Century Central Europe. Indiana: Purdue University Press, 2014, e CHARLE, Christophe. Théâtres en capitales: naissance de la société du spectacle à Paris, Berlin, Londres et Vienna, 1860-1914. Paris: A. Michel, 2008.
  • 17
    . GARNIER, Charles. Le nouvel Opéra. Paris: Éditions du Linteau, 2001 (3 ed.), p. 127.
  • 18
    . FONTAINE, Gérard. L’Opéra de Charles Garnier: architecture et décor extérieur. Paris: Éd. du Patrimoine, 2000, p.74.
  • 19
    . T. J. Clark fala dessa e de outras obras capitais de Manet em sua célebre análise sobre as relações entre a pintura e a vida moderna na Paris do século XIX. A esse respeito, ver CLARK, T. J. A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e seus seguidores. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
  • 21
    Annette Messager, Les Piques, 1991

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2016
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