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Uma ninfa a perseguir cabeças: imagens de Salomé na coluna Garotas do Alceu

A nymph to pursue heads: Salome pictures in the Alceu’s Girls.

Resumo

O presente artigo aborda as temporalidades das imagens da coluna Garotas do Alceu da revista O Cruzeiro. As pin-ups ilustradas por Alceu Penna para a coluna Garotas foram imagens permeadas de publicidades, comportamentos, morais e modas em voga em seu tempo histórico de produção. Contudo, segundo Georges Didi-Huberman, a imagem pertence ao tempo. Tempos múltiplos, impuros, heterogêneos, dialéticos, anacrônicos também perpassam as imagens da coluna em questão. Nas páginas que seguem as Garotas do Alceu, as pin-ups, foram também analisadas como ninfas modernas que associam o belo ao trauma. Entre as Garotas e as ninfas, as apresentações de Salomé e das cabeças decapitadas foram aqui destacadas e analisadas.

palavras-chave:
imagem; ninfa; Salomé

Abstract

The paper addresses the temporalities of images from the column Garotas of Alceu in the the pin-ups illustrated by Penna to the magazine were images surrounded by advertisements, behavior, morals and fashions in vogue in its historical production time. However, according to Georges Didi-Huberman, the image belongs to time. Multiple, impure, heterogenic, dialectic, anachronic times also permeate the images in study. The Garotas of Alceu (Girls of Alceu), pin-ups, were analyzed modern nymphs that associate beauty to trauma. Between the girls and the nymphs, the presentations of Salome and of the decapitated heads were here highlighted and analyzed.

keywords:
image; nymph: Salome

As garotas e as ninfas

Ninfa traverse tout cela comme un fantôme ou un vent de temps survivant. 1 1 . DIDI-HUBERMAN, Georges. L’image survivante. Histoire de l’art et temps des fantômes selon Aby Warburg. Paris: Minuit, 2002. p. 220.

A coluna Garotas coloria e divertia as páginas da conhecida revista semanal brasileira O Cruzeiro. As Garotas do Alceu estamparam as páginas em formato tabloide do periódico de variedades de 1938 até 1964; foram editadas semanalmente por ininterruptos 27 anos no mesmo magazine. Consistia numa coluna ilustrada de pin-ups sobre a vida cotidiana de jovens mulheres, suas personagens, naquele Rio de Janeiro de meados de século XX. Os textos eram vinculados aos desenhos de Alceu Penna, textos estes assinados por diferentes escritores ao longo dos anos de edição. A coluna Garotas era considerada a “expressão da vida moderna no Brasil”, apresentava semanalmente grupos de belas jovens vestidas segundo as últimas tendências da moda, conversando sobre os mais diversos assuntos.

Garota. Que brinca ou anda vadiando pelas ruas, travessa. Etimologicamente, a palavra garota, na língua portuguesa, tem como raiz a palavra celta gara, como as primeiras variantes: gala, cara, cala2 2 . Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999. . O significado primeiro seria pedra e rocha, em seguida passou a significar abrigo de pedra, depois, abrigo qualquer; derivaram-se a palavra em língua francesa gare e em língua portuguesa garagem. De abrigo atrelou-se a ideia de proteção. À raiz celta gar fora somado o sufixo oto, de pequeno. Garoto, ou garota, designaria menino, ou menina, criança que ainda precisa de proteção. Uma garota seria uma ainda não mulher - algo como um meio ponto entre criança e mulher. Uma menina que necessite proteção, travessa e brincalhona.

Como as garotas, as ninfas eram travessas, mentiam, capturavam e raptavam homens. Segundo Homero, o primeiro ser que Apolo encontrou ao chegar à terra fora uma ninfa: Telfusa3 3 . Cf. HOMERO. Ilíada. São Paulo: ebooksbrasil, 2009. . Ela imediatamente enganou o deus. A relação de Apolo com as ninfas foi, quase sempre, tortuosa, de atração, perseguição e fuga. As Thriai foram três ninfas que ensinaram Apolo a manejar o arco, quando comiam mel diziam a verdade, mas na privação do alimento mentiam e rodopiavam no ar.

As brincalhonas, jovens e belas ninfas encantaram um historiador da arte no final do século XIX. Em sua tese doutoral sobre o Nascimento de Vênus e A Primavera, de Sandro Botticelli, Aby Warburg4 4 . WARBURG, Aby. A renovação da Antiguidade pagã. Contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013. teve seus olhos raptados pelas ninfas. Após sua tese e ainda em Florença, o jovem historiador de arte alemão trocou inúmeras cartas com um amigo holandês: André Jolles. Tal correspondência5 5 . Idem. Domenico Ghirlandaio. Lisboa: Projecto Ymago, KKYM, 2015. tratava de um “jogo de espírito”, de uma “brisa imaginária”6 6 . AGAMBEN, Giorgio. Ninfas. São Paulo: Hedra, 2012. p.45. . Referiam-se a uma imagem feminina que saltava das paredes da igreja florentina Santa Maria Novella, era uma serviçal que figurava no fresco O nascimento de São João Batista (1485-1490), de Domenico Ghirlandaio. Dos poucos fragmentos publicados dessa correspondência, duas perguntas nos são caras. Jolles pergunta à Warburg: Mas afinal quem são as ninfas? E de onde elas vieram?7 7 . Cf. JOLLES, André. Correspondência sobre as ninfas. In: WARBURG, Aby. Op. cit., 2015. . A resposta de Aby Warburg foi simples: segundo sua realidade corpórea, era uma escrava tártara, mas segundo sua verdadeira essência, um espírito elementar, uma deusa pagã no exílio8 8 . Cf. Ibidem. . A ninfa permeou o trabalho de Warburg. De seu primeiro ao último e inacabado trabalho - o Atlas Mnemosyne - Warburg perseguiu ou foi perseguido por ninfas.

Georges Didi-Huberman escreveu que Aby Warburg era um homem que falava com as borboletas9 9 . DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente. História da arte e tempos dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013. . Bem, Aby Warburg era um homem que procurava borboletas, pois sabia que elas eram inapreensíveis como imagens. O que Georges Didi-Huberman não escreveu é que ele mesmo vive a procurar borboletas, vagalumes, ninfas. E é neste procurar que se corre o risco de ser perseguido.

As ninfas perseguiram Warburg, perseguiram Didi-Huberman. As ninfas parecem jamais cessarem. Sempre são capazes de nos mostrar uma outra apresentação, uma outra forma, uma outra vida. As páginas que seguem estão perseguindo ninfas. Ninfas brincalhonas e travessas que parecem embaralhar o tempo, como garotas.

O anacrônico e a imagem

O anacronismo da imagem. A imagem vê-se diante de um embaralhar de tempos10 10 . DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010. . O historiador vê seu organizado tempo desordenado. Os questionamentos do escrever sobre imagens apresentam-se múltiplos, inquietos. Uma imagem transborda uma simples e única temporalidade. Para Georges Didi-Huberman as imagens não falam de forma isolada, precisamos colocá-las em relação. Tais quais palavras que precisam de frases e parágrafos são as imagens. O conhecimento por montagem, tal qual reinvindicado por Georges Didi-Huberman pauta-se principalmente nas obras de Aby Warburg11 11 . WARBURG, Aby. Atlas Mnemosyne. Madrid: Impresos Cofás S.A., 2010. , Walter Benjamin12 12 . BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Editora Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. e Serguei Eisenstein13 13 . EISENSTEIN, Serguei. Notes pour une histoire générale du cinéma. Paris: afrhc, 2013. . Três nomes essenciais ao presente trabalho.

Pensar a montagem didi-hubermaniana pressupõe pensar a desmontagem, uma vez que, para o intelectual, se precisamos montar imagens é porque as imagens desmontam. Tal concepção de desmontagem pauta-se, sobretudo, nos escritos de Walter Benjamin, para quem a imagem tem, resumidamente, a função de desmontar a história, “já que ela sobrevive, e sobrevivendo ela monta e desmonta o tempo. A imagem será então a malícia visual do tempo na história”14 14 . DIDI-HUBERMAN, Georges. Venus rajada. Buenos Aires: Editorial Losada, 2005, p. 1. . As imagens dialéticas de Walter Benjamin configuram-se como imagens autênticas nos escritos de Didi-Huberman. Imagem crítica, imagem em crise15 15 . Cf. Idem. Ante la imagen. Pregunta formulada a los fines de una historia del arte. Madrid: Ediciones Cedeac, 2010. . Uma crise instaurada pela própria imagem. Ela alcança colocação como objeto ativo, de objeto do olhado para, um também, objeto que olha.

A imagem na concepção benjaminiana apresenta-se como encontro do Outrora com o Agora, do que sobrevive com a novidade. A aflição da imagem dialética na qual o presente pode interpretar, interrogar criticamente o passado - ou os passados. A tentativa de uma história a contrapelo, tão instigada por Walter Benjamin (Benjamin, 1996) - o desmontar, o desorientar. A imagem que diante da vida humana, marca-se pela sobrevivência.

A sobrevivência, ou melhor o Nachleben, também desponta como problema central nas montagens propostas por Aby Warburg em seu Atlas Mnemosyne. O chamado Bilderatlas ganhara forma na sala oval da Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg. O atlas consistia na organização visual do pensamento de Warburg, o projeto fora empreendido entres os anos de 1924 e 1929, mas é resultado de atividade que o erudito desenvolveu durante boa parte de sua vida. Warburg costumeiramente falava que aquele era o intento de contar uma história da arte sem palavras.

As mais de mil imagens montadas no Atlas Mnemosyne foram dispostas por Aby Warburg em 79 pranchas. A eleição e a disposição dessas imagens foram efetuadas por escolhas que perpassaram alguns elementos de arbitrariedade e acaso. No texto Les condition des images16 16 . Idem. Atlas: ¿como llevar el mundo a cuestas? Texto de apresentação escrito por Georges Didi-Huberman no folder da exposição homônima realizada no Museu Reina Sofía. Madrid, mar. de 2011. , Didi-Huberman aponta a montagem como atividade constituída com base na aleatoriedade, na vitalidade e no ritmo - o trabalho combinado desses três aspectos que poderia ser denominado de um “conhecimento por montagem”. De tal feita, esse colocar as imagens em relação é repetitivamente relacionada ao aleatório, ao vital e ao ritmo - o amálgama destes três aspectos que constituem tal conhecimento. “Quando batemos as cartas, estamos, em efeito, numa operação de acasos. Mas seu coração não bate por acaso, nem suas pálpebras, nem as asas de uma borboleta. E se vamos bater um tambor, é melhor estarmos no ritmo”17 17 . Ibidem, p. 92. .

O conceito de montagem, fora, no entanto, elaborado por um cineasta: Serguei Eisenstein, entre os anos de 1923 e 1948. De modo que não podemos escrever sobre a existência de uma única teoria da montagem eisenteniana, mas de várias teorias elaboradas ao longo de 25 anos de imensa dedicação teórica. Antonio Somaini18 18 . SOMAINI, Antonio. Généalogie, morphologie, anthropologie des images, archéologie des médias. In: EISENSTEIN, Serguei. Op. cit., 2013. sublinha que a montagem em Eisenstein não se reduz ao cinema, ela constitui uma maneira de operar. Em sua História geral do cinema, Serguei Eisentein exemplifica montagens que antecedem as cinematográficas. Na passagem “Herança”, o cinema é apresentado como capaz de produzir uma síntese que se insere em linha genealógica que se inicia com os antigos gregos.

Serguei Eisenstein elabora a referida montagem atrelada da montagem da cena de um filme, uma montagem cinematográfica. Contudo, ele sublinha que a montagem pode ser visualizada não apenas no cinema, ele a compreende como “um fenômeno encontrado sempre que lidamos com a justaposição de dois fatos, dois fenômenos, dois objetos19 19 . Idem. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p. 14. . Todo o pensamento de Serguei Eiseintein se constrói com base no anacronismo - ele não se dá através do tempo organizado e linear. As imagens apresentam uma história descontínua e não linear, anacrônica, na qual sobrevivências são sempre colocadas.

A inquietação diante do anacronismo de algumas colunas Garotas do Alceu é notável. As bonecas desenhadas por Alceu Penna configuram-se como uma destas tantas imagens para as quais o anacronismo demonstra-se fecundo para analisá-las, senão para entendê-las, para questioná-las. Alceu Penna manipulou, em suas imagens, tempos que não foram exclusivamente os seus. Imagens de outras temporalidades foram por ele visualizadas, manipuladas. As suas bonecas marcam seu período de produção. São declaradamente bonecas do gênero ilustrativo de pin-ups. Gênero ilustrativo marcadamente do século XX. Os traços, o gênero, daquelas bonecas não colocam em cheque seu período de produção. Boa parte dos leigos, ao visualizarem uma pin-up, a apontam como uma imagem produzida, ou referente, a um pré, durante, entre ou pós as Grandes Guerras Mundiais. Entretanto, aquelas imagens manipulam muito mais tempos. Seria uma fácil solução afirmar que nelas só existem caracteres, formas, traços, elementos, questões de seu próprio tempo de produção.

Aquelas Garotas apresentam imagens de mulheres. Imagens envoltas em beleza, juventude, erotismo, sedução. Logo, são imagens que não marcam, tão somente, um caráter de novidade naquele século. Elas têm um caráter de latência, um caráter de anacrônico. O Agora e o Outrora encontram-se naquelas bonecas. Seu encontrar não busca dar simples respostas a nada, ele não apazigua nosso problema. A latência é a percepção dos ecos de variados tempos contidos naquela imagem. Entre mais de mil colunas, que circularam entre 1938 e 1964 na revista O Cruzeiro, algumas destacam-se pelo próprio lapso temporal. Colunas com imagens de mulheres, com imagens de personagens de um tempo que não era o mesmo de sua produção. Imagens de personagens tão recorridas por outras tantas imagens escultóricas, pictóricas, fotográficas, cinematográficas. Mulheres que se consolidam em uma tradição imagética Ocidental. Imagem do belo, do sedutor, do erótico.

A ninfa e os tempos

Memória. Desejo. Tempo. A imagem que marcou a história da arte warburguiniana, as belas aparições drapeadas que enfeitiçaram o olhar de Georges Didi-Huberman, as divindades menores sem poder instituído20 20 . DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna. Essai sur le drapé tombé. Paris: Gallimard, 2008. . Belas, inquietas, eróticas. O poder do movimento, da dança, da fascinação, do desejo, da memória, do tempo. O perigo inquietantemente erótico.

O perigo do belo e do traumático. O próprio olhar didi-hubermaniano, por alguns instantes, por alguns parágrafos, paralisou-se sobre uma certa parte dessa questão. Sobre as aparições da ninfa em mulheres fortes, belas, perigosas. Arria Marcella, Théophile Gautier, Aurélia de Nerval, Hérodiade de Mallarmé. Memória e desejo reunidos na mesma aparição21 21 . Ibidem. .

A nossa “moderna ciência das imagens”, aquela história da arte remexida e remontada por Aby Warburg, nasce interpenetrada pela própria figura, pela própria potência da ninfa, a ninfa sob uma de suas mais belas aparições, a ninfa renascentista de Botticelli, diante de um enigmático movimento exterior à tela. Madeixas e tecidos, os objetos inorgânicos, têm o movimento fixado nas têmperas. As ondas no cabelo, os drapeados nas vestimentas expressam o vento que jamais cessou de soprar diante das estonteantes ninfas warburguinianas. A heroína de um tempo distante, que se movimenta, se move e nos olha. Move-se constantemente entre ar e pedra, fluída como o vento, pálida e dura como o fóssil22 22 . Idem. Op. cit., 2005. . Aparição que mescla tempos e perpassa encarnações, como em um sonho.

Quando e onde a ninfa cessará suas aparições, suas encarnações23 23 . Idem. Op. cit., 2008. ? Ela se remodela, se redefine, se transforma, se esconde. Desde a Antiguidade, vem ensaiando uma diversidade de posições, posturas, cenas. Nas pinceladas precisas de Botticelli, a ninfa ensaia um Nachleben no Renascimento24 24 . Idem, Op. cit., 2013. . Mas a bela ninfa de Didi-Huberman é uma criatura amoral. É a estrangeira que leva água pura no nascimento do santo (no fresco O nascimento de São João Batista, de Domenico Ghirlandaio). É a mesma encarnação da jovem que pede a cabeça de São João Batista, a Salomé. Para Didi-Huberman elas são irmãs gêmeas, os dois lados da mesma moeda. Todas essas personagens constituem encarnações possíveis dessa perigosa ninfa que reúne memória, desejo e tempo25 25 . Idem. Op. cit., 2002, p. 10. .

Como belas e drapeadas ninfas, as Garotas do Alceu serão aqui problematizadas. A pin-up foi pensada como heroína do Narcheleben warburguiniano. As mocinhas daquela coluna semanal podem ser analisadas como algumas dessas tantas deusas pagãs no exílio. Mas afinal, quem são as ninfas e de onde elas vieram? Nossas ninfas são jovens mulheres de corpos curvilíneos, de rostos expressivos. Seus olhos são ágeis, grandes e delineados, suas bochechas são marcadas, suas bocas são vermelhas como suas arredondadas unhas. Eram jovens mocinhas cariocas que frequentavam cafés e cinemas naquele Rio de Janeiro de outrora. Elas vieram das páginas em formato tabloide da revista O Cruzeiro. Eram traçadas e coloridas por Alceu Penna. Eram impressas semanalmente pelas rotogravuras daquela indústria gráfica brasileira. Mas, verdadeiramente, sabemos que elas eram muito mais do que isso. Devemos saber fechar os olhos.

De olhos abertos, ou como escreveu Warburg, segundo sua realidade corpórea, eram pin-ups. Marca da imprensa daquele século XX. Eram Garotas de seu tempo. Divertidas, ligeiras, atrapalhadas e maliciosas. Disseminavam aqueles novos hábitos “modernos”. Elas eram tudo isso, jamais tentaria negar o inegável.

De olhos fechados e segundo sua verdadeira essência. A resposta de Aby Warburg ainda cabe em nossa pergunta. Um século depois de ter sido formulada e respondida, a questão parece encaixar nesse desencaixe de imagens. As Garotas do Alceu também são um desses espíritos elementares, são deusas pagãs no exílio. Tal qual a ninfa pintada por Domenico Ghirlandaio no afresco de Santa Maria Novella, as Garotas do Alceu parecem saltar daquelas páginas, ou melhor, aquelas duas páginas parecem saltar da revista. Aquelas páginas, aquelas imagens de jovens mulheres tinham um movimento próprio, estavam em uma espécie de compasso descompassado naquele periódico. Elas não pertenciam a ele, pelo menos não exclusivamente, elas tinham vida própria. Aquelas bonecas não estavam presas àquele papel imprensa. Ali, elas se reproduziram por contato. Era preciso mais do que dois grampos para prendê-las àquela revista, àqueles dois grampos - de encadernação - não as impediam de nos saltar aos olhos. Elas tinham movimento, cores, traços, arranjos. Uma personalidade e uma ousadia que se tornaram visíveis naqueles traços. Elas eram ninfas. Eram belas e sedutoras ninfas.

Foram ninfas. Foram Salomés. Estas imagens de mulheres, estas personagens femininas, são uma forma de contar esta história. Foram colunas que sempre me saltaram aos olhos. Cada uma destas imagens em forma de mulher tem um grau indescritível de beleza mesclada ao trauma, de paixão emaranhada à dor, de desejo obcecado pela morte. As personagens criadas por Alceu Penna para figurarem aquela coluna da revista O Cruzeiro eram esta feminilidade em movimento, eram essa verdadeira figura plástica sobre as quais tanto escrevera Warburg. Essas Salomés atravessaram algumas colunas das Garotas do Alceu para nos lembrar de que elas se tratavam da mesma coisa, se tratavam do mesmo espírito elementar. Vestidas de Salomés as pin-ups eram movidas pelo mesmo desejo que moviam as ninfas. Ambas eram objetos da sedução amorosa. As Garotas do Alceu, as próprias pin-ups, eram uma das muitas encarnações possíveis dessa heroína impessoal do Nachleben que é a ninfa.

As caçadoras e as cabeças

No ano de 2013, o Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa recebeu como obra convidada26 26 . O ciclo Obras Convidadas foi aberto no Museu de Nacional Arte Antiga de Lisboa (MNAA) com as obras Judite com cabeça de Holofernes do pintor Lucas Cranach, o Velho, do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque, e Salomé com a cabeça de São João Batista, pertencente ao próprio MNAA. Tal ciclo ocorreu de 24 de janeiro a 28 de abril de 2013. um tela de Judite expressa pelos pincéis habilidosos de Lucas Cranach. Na ocasião, o museu promoveu o primeiro encontro de dois quadros: Salomé com a cabeça de São João Batista (1510) e Judite com a cabeça de Holofernes (1530). Na exposição, a tela de Judite fora colocada ao lado da de Salomé, também de autoria do artista alemão. Era como se Salomé recebesse Judite. Temos, então, o encontrar de duas caçadoras de cabeça.

As duas mulheres exibindo as cabeças de homens decepadas foram pintadas em momentos distintos da carreira de Cranach. Judite com a cabeça de Holofernes traz uma heroína bíblica. Apesar de atualmente não constar na Bíblia, muito provavelmente sua história remonta ao século II a.C. Judite oferecera-se ao marechal do exército assírio - Holofernes - que, à época, ameaçava seu povo invadindo o território bertuliano. A bela viúva seduzira Holofernes, embebedara-o e após o ato sexual, quando o marechal dormia, cortou-lhe a cabeça com uma espada. Em seguida, Judite voltou para sua cidade com um saco contendo a cabeça do inimigo. De maneira oposta a Salomé, Judite fora uma heroína que salvara sua cidade, Betúlia, da ocupação dos assírios. Uma sedutora justiceira num ato de virtude heroica. Na tela de Cranach uma bela jovem ricamente adornada exibe uma espada no punho e a cabeça decapitada do tirano.

Verso e reverso da mesma moeda. Nossa outra caçadora de cabeça é uma sedutora perversa. A filha de Herodíades e Herodes Filipe, Salomé, protagoniza a história bíblica do século I d.C. Salomé fizera chantagem com Herodes Antipas, seu tio e padrasto. Após executar sensual dança, pela qual Herodes clamava, Salomé pede como prêmio a cabeça de São João Batista. O santo, primo de Jesus Cristo, foi executado e sua cabeça entregue à moça numa bandeja.

Duas caçadoras de cabeças. Belas mulheres que, a partir da sedução conquistam as cabeças decapitadas que desejam. Não são raras as associações entre essas personagens, como também não são raras as interpenetrações pictóricas entre elas. Erwin Panofsky, no ensaio "Iconografia e iconologia"27 27 . In PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001. , buscou desvendar um enigma pictórico entre Judite e Salomé. Em uma tela de Francisco Maffei - atualmente intitulada Judite -, fora apresentada uma jovem mulher cuja mão direita segurava uma bandeja de prata com uma cabeça decapitada e a esquerda, uma espada. A questão desenrola-se pelo fato de, inicialmente, a tela ter sido publicada como o título de Retrato de Salomé com a cabeça de São João Batista. “De fato, a Bíblia afirma que a cabeça de São João Batista foi apresentada a Salomé numa bandeja ou prato. Mas, e a espada? A Salomé não decapitou o santo com suas próprias mãos”28 28 . Ibidem, p. 59. .

Panofsky, com sua iconografia e iconologia, disseca a Bíblia, mas julga não encontrar a resposta para sua pergunta nas fontes literárias. Então recorreu a fontes imagéticas para chegar a uma conclusão, que ao menos a ele foi cara: “Embora não possamos aduzir nenhuma Salomé com uma espada, vamos encontrar, tanto na Alemanha quanto na Itália do Norte, várias pinturas do século XVI representando Judite com uma travessa”29 29 . Ibidem, p. 61. . Existiria assim um “tipo” de Judite com uma travessa, mas não existiria um “tipo” de Salomé com uma espada. Bem, se aquela era uma ou outra talvez não seja aqui nossa primordial questão. Porque aqui não tratamos de uma ou de outra, tratamos de caçadoras de cabeças.

Uma mulher segura em sua mão a cabeça decapitada de sua vítima de forma a exibir a carne aberta como grande conquista. No entanto, esta imagem extremamente violenta é marcada pelo erotismo. A cabeça decapitada marca a grande conquista de seu poder de sedução, exulta seu poder de trauma. E, neste ponto, talvez possamos sublinhar a observação feita por Georges Didi-Huberman acerca da colocação já citada, de Panofsky, e de seus olhos incrivelmente abertos. “Cada rota bifurca e mesmo desaparece no subsolo para ressurgir em outro lugar. Warburg compreende que não é mais necessário falar em termos iconográficos - Judite de um lado, Salomé de outro como Panofsky quer dizer mais tarde, uma vez por todas.”30 30 . DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit., 2002. p. 132. E, mais uma vez, não cabe aqui descrever os traços, os objetos, as gestualidades que fazem pictoricamente uma Salomé ou uma Judite. Quiçá nem devamos procurar bifurcações, mas o ressurgir, o transformar-se em outra rota. Buscamos abordar esta mulher como um fantástico nebuloso, pouco importa se ela porta uma espada ou uma bandeja de prata. O que procuramos não são enquetes históricas. Procuramos a carne aberta, o corpo repartido, procuramos a caçadora de cabeças.

O corpo e o erótico

Judites e Salomés. Personagens marcadas pela sedução e pelo erotismo. Georges Bataille31 31 . BATAILLE, Georges. Las lágrimas de Eros. Iconografía en colaboración con J. M. Lo Duca. Barcelona: Tusquets Editores, 2007. assinala a clara função condenatória desempenhada pela religião cristã na história do erotismo. Para Bataille o Cristianismo atribuiu ao erotismo características diabólicas. Não esqueçamos que nossas duas eróticas caçadoras de cabeças são personagens bíblicas, ainda que a primeira tenha sido retirada da atual edição do livro. A mais perversa e mais erótica destas caçadoras de cabeças exibe a carne aberta de São João Batista, precursor e primo de Jesus Cristo. Salomé exibe de forma perversa a cabeça morta daquele que não conseguira seduzir. Numa explicação freudiana, ela manda matar seu amor oculto, o homem cujo amor não poderia ter.

O chamado Renascimento Alemão exprime elementos eróticos antes mesmo de abandonar significativamente as formas medievais do traço. Nomes como Albert Dürer e Lucas Cranach começaram, ainda no século XV, a produzir imagens dotadas de erotismo. Contudo, tais imagens ficaram inicialmente restritas a uma gama bastante reduzida da população, homens abastados que poderiam pagar por elas, uma vez que tais imagens não eram produzidas para adornarem igrejas ou templos.

Cranach empenha seus pincéis e seus buris em personagens altamente eróticas. Fez incontáveis Evas, bem como outras imagens igualmente sedutoras: Lucrécia, Judite e Salomé. Imagens marcadas pelo erotismo repleto de violência e paixão. As mais célebres apresentações femininas produzidas por Cranach, assim como por Dürer, apontam uma sensualidade envolta em pecado, crueldade, brutalidade. Se as imagens deste Renascimento Alemão modificaram-se em relação àquelas do Medievo para abordar a sensualidade, elas o fazem em atos poucos virtuosos. Estas obras abordam as incertezas de uma época. Bataille fala que os componentes eróticos são, de certa maneira, angustiosos. Não se trata de imagens totalmente abertas ao prazer.

Na compreensão batailliana, anterior à imagem do corpo morto é a imagem do erótico. As primeiras pinturas em cavernas nos apresentam a imagem do homem com o sexo ereto. Aqueles homens que se pintavam eretos nas paredes das cavernas sabiam de algo que os animais muito provavelmente desconheciam. “Não se diferenciavam dos animais unicamente pelo desejo que dessa maneira estava associado - no princípio - à essência de seu ser”32 32 . Ibidem, p. 41. . Diferenciavam-se também por saber algo ignorado pelos animais, eles sabiam da morte - sabiam que morreriam. A consciência dos dois grandes corpos - o morto e o erótico - diferenciaram homem e animal. A consciência do diabólico.

O diabólico fora sublinhado essencialmente por este pensador do impensável como a consciência da morte e do erotismo. O diabo é a própria loucura e a própria consciência humana. É pelo que mais choramos e pelo que mais rimos. O nascimento do erotismo atrela-se à quase obsessão pela morte, pelo trágico. São ambos que nos fazem humanos. A caçadora e as cabeças decapitadas.

A caçadora de cabeças e os decapitados

Salomé - personagem que parece não cessar suas apresentações imagéticas e literárias. Bela, erótica e trágica mulher. As narrativas e as imagens acerca de Salomé não foram poucas. Como imagem, pode ser notada já no final da Idade Média, como no notável bronze de Donatello em Siena, de 1427, que apresenta a dançarina pedindo ao rei a cabeça de São João Batista, ou como no mosaico dourado da basílica de São Marcos em Veneza cuja imagem - ainda marcada por essências quase bizantinas - acolhem um rito pictural da decapitação de São João Batista33 33 . KRISTEVA, Julia. Visions capitales. Arts et rituels de la décapitation. Paris: Éditions Fayard, 2013. . Contudo, sua apresentação solo é concebida notadamente a partir do século XVI, quando a imagem de Salomé assume os contornos pelos quais hoje a reconhecemos: uma bela dançarina, sensual, fria e perversa. Foram muitos os renascentistas que traçaram e coloriram Salomés assim: Bernardino Luini, Filippi Lippi, Benozzo Gozzoli, Ticiano, Cranach.

Entre as belas Garotas do Alceu, as belas aparições drapeadas, as mulheres do erótico e do trágico, estavam as belas e más mulheres. As jovens mulheres sempre rememoradas. Dentre elas, aquela que pode ser considerada a grande decapitadora bíblica de cabeças. A bela, estonteante e dançante Salomé. Uma bela, sensual e fria mulher a segurar a cabeça decapitada de um homem. Assim Salomé também fora apresentada por Alceu Penna nas páginas de sua coluna Garotas. Ao longo dos anos de circulação da coluna, foram visualizadas cinco distintas apresentações da dançarina bíblica, publicadas respectivamente nos anos de 1941, 1943, 1944 e 1945 - todas portanto durante a II Guerra Mundial. As colunas que apresentaram a personagem abordavam sobremaneira do que poderia se chamar de “garotas da história”, mais especificamente “garotas perigosas” de um passado rememorado através de texto e imagem.

A coluna “Garotas perigosas” da edição de 29 de setembro de 1945 traz, em destaque, a ilustração de uma Salomé acompanhada por mais cinco dançarinas. A coluna “Garotas perigosas”, tal qual as demais que abordaram Salomé, tratou da personagem histórica específica. São personagens femininas marcadas pela sensualidade, eroticidade e poder. A coluna mencionada apresenta imagens de mais cinco figuras femininas, contudo todas evocam a mesma personagem. São dançarinas quase nuas, portando apenas véus - tratam-se de seis belas Salomés.

A destacada morena Salomé, de Penna, teve a parte inferior de seu corpo censurada por um drapeado véu, a draperia tomou forma no tecido amarelo estampado por abstratos elementos alaranjados. Seus seios estão encobertos por duas serpentes amarelo-douradas que se movimentam de forma a contornar também seu pescoço. A bela mulher está adornada de dourados braceletes e de tiara azul, que arranja o movimentado e ondulante cabelo negro. Sua mão direita segura uma das duas pontas do véu, a mão esquerda apoia a outra ponta e segura a cabeça decapitada de São João Batista.

As demais dançarinas apresentadas conjuntamente, de forma a construir uma linha quase horizontal de mulheres, também portam seus véus drapeados e coloridos. Os tecidos, que rodeiam e censuram seus belos e curvilíneos corpos, são verdes, azuis, rosados. Os cabelos negros e loiros mesclam-se na imagem. Os corpos quase despidos dançam naquelas páginas em formato tabloide - as Salomés de Penna são dançarinas por excelência.

Salomé segura aquela cabeça pelos também negros e longos cabelos de São João Batista. Os olhos e a boca fechados, bem como a sobrancelha do santo marcam expressão dicotômica de tristeza e de relativa paz, atrelada ao descanso. Abaixo da cabeça, uma grande e longa gota de sangue. Salomé não ostenta a cabeça conquistada numa bandeja de prata, mas a segura firme com sua mão. Exibe a cabeça e dança.

Alceu Penna apresentou suas Salomés como dançarinas, do mesmo modo que Gustave de Moureau. O pintor francês pode ser considerado um poeta de Salomés, as traçou como poucos: sempre belas, sempre nuas, sempre dançantes. Moureau nos lembra que Salomé conquistou a cabeça de São João Batista não pela espada, mas pelo leve e sensual movimentar de seu corpo. A Salomé da tela A aparição (1875) também dança sensualmente por entre véus e adornos. Fora o poder da sedução que fizera aparecer diante de seu corpo a cabeça de São João Batista. Na tela, a pintura é sobreposta por várias outras camadas de tinta. As camadas de pinturas fazem menção a uma espécie de tatuagem sobre paredes e colunas. Abaixo da cabeça decapitada do santo escoa sangue. Diante do corpo erótico de Salomé surge a cabeça morta daquele que desejara - vivo ou morto.

A aparição exibe história do evangelho de Mateus. Em Mateus, a historieta fora narrada em poucas linhas nas quais se explica que o tetrarca Herodes mandara prender e acorrentar João Batista porque o santo disse que o tetrarca não poderia casar-se com Herodíades, ex-esposa de seu próprio irmão, Felipe. Herodíades deseja mandar matar o profeta por seus dizeres, mas não o faz pelo medo da multidão. Até que, por ocasião do aniversário de Herodes - em nenhum momento se encontra a palavra Salomé no Evangelho -, a filha de Herodíades dança para o padrasto e tio. Para que ela dançasse, o aniversariante teria prometido à jovem moça dar-lhe o que quisesse em troca. Então, instruída por sua mãe, Salomé pede a cabeça de São João Batista. O rei, em virtude do juramento diante dos convivas presentes, ordenara decapitar João Batista no cárcere. A cabeça fora trazida numa bandeja pelo carrasco e dada à moça. O corpo do morto fora levado e sepultado pelos discípulos de Cristo. Mas sua cabeça pertenceu para sempre à jovem e sedutora que a exibe incessantemente. O corpo erótico que exibe como triunfo, o corpo morto, desfeito.

A aparição de Moureau é uma das muitas apresentações de Salomé. Entre outras tantas apresentações imagéticas e literárias de Salomé, situamos os desenhos de Alceu Penna. A história bíblica transformou-se numa espécie de fábula. As imagens fazem da narração mítica uma espécie de sonho de sedução e de crueldade. A beleza cruel de Salomé desenhada por Moreau fora também narrada por Huysmans em À rebours. Salomé nesta imagem e neste texto apresenta-se como um sonho daquele chamado Simbolismo decadentista na França do final do século XIX, que retoma a imagem da dançarina bíblica sob a alegoria a mulher perversa, da mãe natureza cruel. Os artistas simbolistas reativam e revivem o mito judaico-cristão da queda.

Obsessões relacionadas à prostituição invasiva e flagelos de doenças venéreas da metrópole moderna alimentaram a imaginação da Eva pecadora. Os artistas se apoiam também no discurso científico contemporâneo, assombrado pelo determinismo, por meio do qual a natureza persegue o objetivo de manter a espécie, sacrificando voluntariamente o bem-estar dos indivíduos, enganados pelo prazer carnal e derrotados pela morte.34 34 . Dizeres de um dos quadros explicativos da exposição Anjos Bizarros. Museu d’Orsay, Paris, 2013.

Salomé fora mais que revisitada, fora reinventada; fora o sonho mau daquela modernidade que se instaurava e modificava, senão o mundo, as metrópoles do século XIX. Paris viu-se frente a mais uma destruição e uma nova construção. Aquela capital do século XIX embebida de vida boêmia estava repleta de prostíbulos. Repleta de dança, sensualidade, bebidas, drogas, erotismo e nudez. Mas aquela também era uma época de uma modernidade, de insaciáveis esforços científicos, de insaciáveis esforços sanitários. Os prostíbulos e suas belas mulheres eram também responsáveis pelas doenças venéreas do corpo. As mulheres apresentadas magistralmente belas por aqueles artistas do século XIX eram mulheres embebidas da perversidade de Eva. Eram Medusas, Helenas, Evas, Salomés. Eram belas e cruéis como um pesadelo desejável a ser sonhado a cada noite.

O corpo de um lado, a cabeça de outro. Se na arte, principalmente na francesa, a história da Salomé parece quase obsessiva, no final do século XIX, a decapitação vinha sendo ensaiada há muito tempo. No século vizinho, ela fora quase histérica. A decapitação marcara aquele século da guilhotina - o século XVIII. Tanto que muitos gravuristas franceses da época passaram a dedicar seu traço especialmente a retratos de guilhotinados35 35 . MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível. São Paulo: Editora Iluminuras, 2002. . Uma moderna imagem antiga: Perseus com a cabeça de Medusa, Davi com a cabeça de Golias, o carrasco com a cabeça da vítima, Salomé com a cabeça de São João Batista. A obsessão por fixar a imagem da cabeça sem seu corpo - o prazer da carne aberta. “A partir de então, o mito do eterno feminino se uniu irremediavelmente à maldade: as últimas décadas do século se renderam aos apelos imaginários da mulher fatal, deixando-se fascinar pelas histórias das grandes cortesãs, das rainhas cruéis e das pecadoras famosas”36 36 . Ibidem, p. 30. .

No findar do século XIX, Salomé fora incrivelmente revisitada. Imagem de mulher fatal e sedutora, o eterno feminino veste os sete véus da dançarina e segura a cabeça do profeta. A literatura também teceu suas tramas narrativas acerca da personagem jamais nomeada pela Bíblia e cuja história foi contada nos evangelhos de Marcos e Mateus. Ela foi a triunfante protagonista em Oscar Wilde, Huysmans, Flaubert.

Alceu Penna traça suas Salomés em outro tempo e em outro espaço. Contudo, suas Garotas estão extremamente relacionadas a esse poder maléfico do feminino. A mulher que mente, que engana, que trapaceia.

Uma taça de vinho, um pouco do descanso dos deuses, algo como as folhas do lírio caindo numa manhã de orvalho e o teu corpo, eis a vida. Eis a vida e o perigo da vida, com as cabeças decapitadas de que fala a história, os homens apunhalados pelas costas, os amantes surpreendidos, e todo esse cortejo de perigo que oferecem certas senhoras especialmente formosas. Aqui está o perigo em toda forma hedionda de carne e osso encobertas pelos vestidos de Jean Patou ou pelas tangas quase inexistentes dos costureiros da Grécia. Alguns homens, felizes, conseguem escapar à tentação. Outros, menos felizes são apunhalados em noites escuras também e também históricas. Pior são os outros homens, mais infelizes de todos - os que se casam.

Salomé, garota histórica. Quero que ninguém esqueça Por te vestires assim João perdeu a cabeça (...)37 37 . PENNA, Alceu. Garotas perigosas. O Cruzeiro, 29 set. de 1945, ano XVII, n. 49, p. 22 e 23.

O texto da coluna “Garotas perigosas” aborda justamente os perigos envoltos na beleza feminina. Os perigos que correm os homens envolvidos por essas formosas mulheres que os apunhalam pelas costas. É como se erotismo e morte fossem indissociáveis. A Salomé fora a Garota histórica que por razão de suas vestes - ou melhor, pela ausência delas - fizera João Batista perder a cabeça.

A cabeça decapitada marcou a coluna Garotas e a tela de Moreau. O corpo aberto e o sangue marcam a perversidade da carne aberta. A nudez do belo corpo de Salomé e a carne aberta e sangrenta da cabeça de João Batista. Contudo, Alceu Penna não apresentou o rosto do profeta de maneira a chocar com a perversidade de que fora vítima. É quase uma cabeça abandonada por seu corpo. Os olhos sempre belos e maus de Salomé também não são perceptíveis em tais imagens. A dançarina, ao contrário das clássicas apresentações de Cranach, não nos olha.

A Salomé da coluna “Garotas que felizmente não conhecemos pessoalmente” (figura 5), de 22 de julho de 1944, apresenta a mesma gestualidade da apresentada na coluna “Garotas perigosas” (figura 3). As duas portam a cabeça de São João Batista segurando-a pelos cabelos, e não em uma bandeja. Esse mesmo gesto pode ser visualizado em outras tantas imagens, não de Salomés, mas de Judites. Tal diferenciação e nomenclatura que aqui não nos é cara, como já dissemos uma vez que não buscamos fazer a história da arte de olhos abertos, quase arregalados de Panofsky.

Fig. 1
Lucas Cranach, o Velho, Judite com a cabeça de Holofernes, 1530. Óleo sobre madeira Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.

Fig. 2
Lucas Cranach, o Velho, Salomé com a cabeça de São João Batista, 1530. Óleo sobre madeira. Museu de Arte Antiga, Lisboa.

Fig. 3
Garotas perigosas. O Cruzeiro, 29 set. de 1945, ano XVII, n. 49. p. 22 e 23. Acervo: Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo-SP.

Fig. 4
Gustave Moreau, A aparição. Óleo sobre tela, 1875. Museu Gustave Moreau, Paris.

Fig. 5
Detalhe da coluna “Garotas que felizmente não conhecemos pessoalmente”. O Cruzeiro, 22 jul. de 1944. Acervo: Biblioteca Mário de Andrade.

Fig. 6
Cristofano Allori, Judite com a cabeça de Holofernes, 1610-1615. Óleo sobre tela, Gemaldedaifrie, Berlim.

Fig. 7
Jules Ziégler, Judite nas portas de Betulia, 1847. Óleo sobre tela, Museu do Louvre, Paris.

Fig. 8
Detalhe da coluna “Mais Garotas da História”. Revista O Cruzeiro, 14 jun. de 1941, ano XIII, n. 33, p. 20 e 21. Acervo: Biblioteca Mário de Andrade

Fig. 9
Detalhe da coluna de Alceu Penna “Na terra em que mandavam as Garotas”. O Cruzeiro, 22 jul. de 1944. Acervo: Biblioteca Mário de Andrade.

Fig. 10
Domenico Ghirlandaio, A virgem e o menino com São João Batista e os três anjos (c. 1490). Têmpera sobre madeira. Museu do Louvre, Paris.

As caçadoras de cabeças de Cristofano Alloori e de Jules Ziégler seguram bravamente a carne de sua conquista. As imagens apresentam cabeças mortas, mas ausentes de uma apresentação monstruosa e sangrenta. A gestualidade de ambas as caçadoras de cabeça, nesse caso, não apresenta uma inversão, pelo contrário marcam a mesma ação atrelada à mesma emoção - o exibir a conquista da cabeça.

Na coluna intitulada de “Mais Garotas da História”, de 14 de junho de 1941, Penna nos apresenta mais uma Salomé que não nos olha - uma outra Salomé dançante. Com menos teor de nudez e sensualidade, esta boneca porta uma longa capa vermelha estampada com a estrela judaica de Davi. A seus pés um homem que aplaude o movimentar de seu corpo e de seu véu que começa a desvendar suas pernas. Uma Salomé que, se não fosse o nome escrito em uma faixa azul celeste, provavelmente não seria reconhecida pelo espectador. Na imagem não temos a sua grande conquista: a cabeça decapitada.

Os olhos maléficos e a cabeça decapitada não constam na imagem desta Salomé dançante. Porém o texto, se não menciona a cabeça, deixa muito clara sua presença. “‘Seu’ Herodes mandou isto de presente e pede para a senhora não se esquecer de devolver a bandeja, como da outra vez, porque esta ‘custou os tubos...’!”38 38 . COSTA, Ruy. Mais Garotas da História. O Cruzeiro, 14 jun. de 1941, p. 20 e 21. . Na bandeja de prata, as Salomés costumeiramente carregam a cabeça de São João, apesar de muitas optarem por mostrar a conquista como o gesto frio e forte de sua própria mão, como as “Garotas perigosas” e as “Garotas que felizmente não conhecemos pessoalmente”.

A mulher e o trauma

Na coluna “Na terra em que mandavam as Garotas”, de 22 de julho de 1944, a gestualidade da mão de Salomé parece ensaiar o ato executado da espada. A boneca faz com a mão direita um movimento sensual, calmo e suave. O mesmo movimento que custara a vida do santo que nem mesmo ousara olhar para aquela estonteante mulher. O hipnotizante olhar da mulher fatal não atingira os olhos daquele homem. Na peça escrita por Oscar Wilde, o texto nos transmite o repúdio da dançarina que não consegue seduzir o homem branco como uma estátua de marfim e casto como a lua39 39 . WILDE, Oscar. Salomé. São Paulo: Martins Claret, 2003. . A princesa deseja ver a carne - fria como marfim e com uma impenetrabilidade digna de uma Vênus de Botticelli - mais de perto. Todavia, João Batista ciente da dor causada pela beleza dos olhos perversos de Salomé, recusa ver a princesa. Com a voz que soa aos ouvidos da princesa da Judeia como estranha música, o Iokanaan (São João Batista) de Wilde fala: “Quem é essa mulher, que tanto olha para mim? Não quero os seus olhos sobre os meus. Com que fim me olha ela, com seus olhos de ouro sob pálpebras douradas? Não sei quem é, nem quero saber. Ordena-lhe que saia. Não é a ela que desejo falar”40 40 . Ibidem, p. 37. .

A fala do personagem de Oscar Wilde, assim com a gestualidade da Garota Salomé e de Maria em A virgem e o menino com São João Batista e os três anjos (1490) de Domenico Ghrirlandaio, anunciam o porvir. A fala era quase uma fala futura, o gesto era quase um gesto futuro. Uma fala de quem sabia que perderia a cabeça pelos olhos desejosos e pecaminosos da mulher que dizia desejar e amar o corpo branco do primo de Jesus Cristo, que suplicava e falava ter ouvidos rumores dos anjos da morte. Rumores de um anjo em forma de princesa, em forma de jovem mulher, em forma de ninfa. “Para trás, filha da Babilônia. Pela mulher veio o mal ao mundo. Não me fales, porque não te escutarei. Eu só ouço a voz do Senhor”41 41 . Ibidem, p. 39. . O Iokanaan não quer nem olhar a imagem, nem ouvir a voz da jovem mulher. A recusa afirma que, diante daqueles olhos, diante daquela voz, seu corpo se transformaria num corpo desejoso. Assim, ele abdica da imagem e da presença de Salomé, que desejava beijá-lo. Mas o João Batista daquela peça teatral sabe que o mal está no feminino, sabe que a imagem da mulher é o próprio trauma.

Se os olhos e a voz de Salomé não alcançaram Iokanaan - que fora preso pelo sacrifício religioso, acerca do qual tanto escrevera Bataille -, eles alcançaram outro homem. E foi pelos olhos desejosos de um outro homem que Salomé - com seu erótico e dançante corpo - conquistou a cabeça de João Batista.

A perversidade daquela que teve o objeto de desejo recusado. Daquele que teve seus sentimentos amorosos não correspondidos. Como a Vênus que permanece insensível e dura nas quatro têmperas História de Nastagio degli Onesti (1482-1483) de Sandro Botticelli - analisadas por Georges Didi-Huberman em Ouvrir Vénus42 42 . DIDI-HUBERMAN, Georges. Ouvrir Vénus. Nudité, rêve, cruauté. Paris: Éditions Gallimard, 1999. . Os painéis remontam à quinta jornada da oitava novela Decameron de Boccaccio e, grosso modo, contam a historieta do jovem que se apaixonou por uma mulher e não fora correspondido, como resposta ele a mata e suicida-se em seguida. A caça infernal - do primeiro painel da série - apresenta o “castigo” dado a Nastagio e a jovem moça. Ambos, no purgatório, participavam toda semana - em mesmo horário e local - de uma espécie de pesadelo interminável, uma caça infernal na qual Nastagio perseguia e matava sua amada. O personagem mata eternamente a mulher que deseja. Talvez a dor de Nastagio seja a mesma dor psíquica destas duas Salomés. A dor da imagem das Vênus de Botticelli. Sua Vênus do Uffizi (Vênus d’O nascimento de Vênus), eternamente nascente e sua Vênus do Prado (Vênus dos quatro painéis de História de Nastagio degli Onesti), que é perpetuamente assassinada. A Vênus que morre para renascer. A Vênus que, como uma ninfa, parece desaparecer, mas busca sempre uma nova aparição. Uma ninfa da sobrevivência. Uma ninfa do nascimento e da morte. Uma ninfa da beleza e a dor. Uma ninfa do amor que jamais cessa de causar traumas, como uma caçadora de cabeças.


  • 1
    . DIDI-HUBERMAN, Georges. L’image survivante. Histoire de l’art et temps des fantômes selon Aby Warburg. Paris: Minuit, 2002. p. 220.
  • 2
    . Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999.
  • 3
    . Cf. HOMERO. Ilíada. São Paulo: ebooksbrasil, 2009.
  • 4
    . WARBURG, Aby. A renovação da Antiguidade pagã. Contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013.
  • 5
    . Idem. Domenico Ghirlandaio. Lisboa: Projecto Ymago, KKYM, 2015.
  • 6
    . AGAMBEN, Giorgio. Ninfas. São Paulo: Hedra, 2012. p.45.
  • 7
    . Cf. JOLLES, André. Correspondência sobre as ninfas. In: WARBURG, Aby. Op. cit., 2015.
  • 8
    . Cf. Ibidem.
  • 9
    . DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente. História da arte e tempos dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013.
  • 10
    . DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.
  • 11
    . WARBURG, Aby. Atlas Mnemosyne. Madrid: Impresos Cofás S.A., 2010.
  • 12
    . BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Editora Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
  • 13
    . EISENSTEIN, Serguei. Notes pour une histoire générale du cinéma. Paris: afrhc, 2013.
  • 14
    . DIDI-HUBERMAN, Georges. Venus rajada. Buenos Aires: Editorial Losada, 2005, p. 1.
  • 15
    . Cf. Idem. Ante la imagen. Pregunta formulada a los fines de una historia del arte. Madrid: Ediciones Cedeac, 2010.
  • 16
    . Idem. Atlas: ¿como llevar el mundo a cuestas? Texto de apresentação escrito por Georges Didi-Huberman no folder da exposição homônima realizada no Museu Reina Sofía. Madrid, mar. de 2011.
  • 17
    . Ibidem, p. 92.
  • 18
    . SOMAINI, Antonio. Généalogie, morphologie, anthropologie des images, archéologie des médias. In: EISENSTEIN, Serguei. Op. cit., 2013.
  • 19
    . Idem. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p. 14.
  • 20
    . DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna. Essai sur le drapé tombé. Paris: Gallimard, 2008.
  • 21
    . Ibidem.
  • 22
    . Idem. Op. cit., 2005.
  • 23
    . Idem. Op. cit., 2008.
  • 24
    . Idem, Op. cit., 2013.
  • 25
    . Idem. Op. cit., 2002, p. 10.
  • 26
    . O ciclo Obras Convidadas foi aberto no Museu de Nacional Arte Antiga de Lisboa (MNAA) com as obras Judite com cabeça de Holofernes do pintor Lucas Cranach, o Velho, do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque, e Salomé com a cabeça de São João Batista, pertencente ao próprio MNAA. Tal ciclo ocorreu de 24 de janeiro a 28 de abril de 2013.
  • 27
    . In PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
  • 28
    . Ibidem, p. 59.
  • 29
    . Ibidem, p. 61.
  • 30
    . DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit., 2002. p. 132.
  • 31
    . BATAILLE, Georges. Las lágrimas de Eros. Iconografía en colaboración con J. M. Lo Duca. Barcelona: Tusquets Editores, 2007.
  • 32
    . Ibidem, p. 41.
  • 33
    . KRISTEVA, Julia. Visions capitales. Arts et rituels de la décapitation. Paris: Éditions Fayard, 2013.
  • 34
    . Dizeres de um dos quadros explicativos da exposição Anjos Bizarros. Museu d’Orsay, Paris, 2013.
  • 35
    . MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível. São Paulo: Editora Iluminuras, 2002.
  • 36
    . Ibidem, p. 30.
  • 37
    . PENNA, Alceu. Garotas perigosas. O Cruzeiro, 29 set. de 1945, ano XVII, n. 49, p. 22 e 23.
  • 38
    . COSTA, Ruy. Mais Garotas da História. O Cruzeiro, 14 jun. de 1941, p. 20 e 21.
  • 39
    . WILDE, Oscar. Salomé. São Paulo: Martins Claret, 2003.
  • 40
    . Ibidem, p. 37.
  • 41
    . Ibidem, p. 39.
  • 42
    . DIDI-HUBERMAN, Georges. Ouvrir Vénus. Nudité, rêve, cruauté. Paris: Éditions Gallimard, 1999.
  • 44
    A grevista Rosa Zehner fotografada por Willy Ronis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2016
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