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Lugar com arco: decifra-me ou devoro-te

Lugar com arco. Decifra-me ou devoro-te

Norma T. Grinberg

Artista plástica e professora do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. e-mail: grinberg@usp.br

"Lugar com Arco", obra monumental instalada nos jardins da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, no campus da Cidade Universitária, é o arremate de um percurso iniciado com a instalação "Humanóides - Transmutações da Forma e da Matéria" (Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1994), na qual eu procurava focalizar a relação que se estabelece entre o ser humano, seu hábitat e os objetos que cria para viver. Dentre as formas que povoavam essa mostra estava o arco, mas não havia como adivinhar a importância que esse elemento arquitetônico-escultórico assumiria em meu trabalho.

Quando se inicia um percurso artístico, sabe-se o que o precede, mas é impossível saber o que virá depois. É uma incógnita à qual o artista poderia se furtar, não fosse a arte uma presa natural de incógnitas, e indagações, como se o salto no escuro fizesse parte do processo de criação. "Lugar com Arco" obra monumental instalada nos jardins da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, no campus da Cidade Universitária, é o arremate de um percurso iniciado com a instalação "Humanóides - Transmutações da Forma e da Matéria" (Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1994), na qual eu procurava focalizar a relação que se estabelece entre o ser humano, seu hábitat e os objetos que cria para viver. Dentre as formas que povoavam essa mostra estava o arco, mas não havia como adivinhar a importância que esse elemento arquitetônico-escultórico assumiria em meu trabalho. Em arte, velhos paradigmas resultam em novos paradigmas e o que parece ser um fim nem sempre o é. Pode ser um início.

Desde os romanos, que lhe deram a dimensão universal que tem hoje, o arco é um símbolo das civilizações clássicas, signo da cultura ocidental, da glória, do poder, da união. É um dos mais remotos e constantes elementos da história da arquitetura, permitindo, como elemento estrutural, a construção de anfiteatros, aquedutos e pontes que, desde a Antigüidade, surpreendem pela ousadia, consistindo em, praticamente, pedra sobre pedra. Porém, o arco me interessava menos por suas funções concretas e mais por suas funções simbólicas. Um arco do triunfo, por exemplo, perpetua instantes da memória coletiva e é, portanto, mais do que simples arquitetura ou escultura. Mas eu via no arco uma amplitude conceitual ainda maior, vinculada aos questionamentos das poéticas visuais contemporâneas ao abordar as noções de intervalo e passagem; discutir questões como o cheio e o vazio, o lado de dentro e o lado de fora; apresentar-se como uma moldura que circunscreve uma realidade ou um ponto de referência no espaço. Mais que representar, os arcos significam.

Desde "Humanóides", parte da tese de mestrado em Poéticas Visuais junto ao Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP, o arco ocupou um lugar central em meu processo de criação, também foi tema de minha tese de doutorado e, por fim, em escala, concretizou-se no arco monumental. Antes, para chegar à forma singular, fiz arcos fechados, com os contornos cheios, ou arcos abertos, com os contornos vazios; arcos inteiriços e arcos fragmentados; arcos de superfície polida ou bruta; arcos que emulavam os padrões clássicos ou, a exemplo do arco monumental, os negavam. Arcos em cerâmica, modelados em diversas técnicas - modelagem de bloco, de cordas, de placas ou de torno - e queimadas de várias formas; arcos em metal, como linhas que se organizavam no espaço. Experimentei formas, experimentei materiais. E assim, interferindo, justapondo, aglomerando, cortando, juntando, construindo, penso que ousei tudo o que se podia ousar para esgotar a questão do arco em meu trabalho.

Quando expus a instalação "Humanóides", na qual o arco surgiu como um elemento desafiador, sabia o que a precedia, mas não sabia o que viria depois. No ano anterior, a instalação "Intervallum", presente numa coletiva de ceramistas realizada no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, já incluía conceitos que seriam desenvolvidos no arco monumental, como a noção da passagem, tema vastíssimo, que tanto pode sugerir a passagem espacial, o ato de se deslocar daqui para ali; ou a passagem temporal, como os ritos de passagem; ou a passagem iniciática ou... De "Humanóides" a "Lugar com Arco", o arco monumental, houve o descarte de possibilidades e a eleição de um modelo que, ao mesmo tempo em que se referia ao arco ancestral, distanciava-se dele, já que não acusava qualquer preocupação ornamental e apresentava formas depuradas. Era mais uma releitura do arco tradicional. Ainda que releitura, estrutura que permite a passagem e favorece o caminho, estabelecendo, portanto, uma relação participativa com o público e interagindo com o meio circundante, o arco pedia a construção em escala monumental no espaço público.

Escolhido o módulo definitivo, o desafio seguinte era erguer o arco monumental - 9 metros de comprimento, 6,20 metros de altura, 2,16 metros de largura. Nessa etapa, a artista deveria procurar auxílio técnico, já que o arco em escala é, tanto quanto uma obra de arte, uma obra de engenharia. Após estudos referentes a materiais - a argamassa armada ou microconcreto de alto desempenho, pigmentada, depois de curada, quando o aço, a areia e o cimento formam uma única liga, tem a resistência da pedra e respondia a problemas específicos, como conservação e durabilidade, o próximo passo foi a sua construção -, a concepção em escala, os cálculos matemáticos e a realização física ficaram a cargo do arquiteto Aldênio Barreto. Em outubro de 2000, como parte da agenda oficial da Comissão das Comemorações dos 500 Anos, da Universidade de São Paulo, o arco foi inaugurado e, hoje, integra o acervo de obras de arte da universidade. Mas o arco é mais, pois os arcos instigam.

"Lugar com Arco" é, sobretudo, indagando publicamente questões que levaram à sua concepção - a passagem, o intervalo, o espaço de dentro e o espaço de fora -, uma espécie de esfinge postada diante do caminhante. Como que desafiando-o a que, para não ser devorado, o decifre - afinal, com tudo o que simboliza ou tudo o que sugere, o arco não passa de uma estrutura curva com a qual se vence um vão, dele derivando a abóbada, a cúpula, o arcobotante. Por que uma estrutura curva pode motivar tanto?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2011
  • Data do Fascículo
    2003
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