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O evento e a pintura

O evento e a pintura

Paulo Pasta

Artista plástico

Não seria temerário afirmar que hoje, muitas vezes, a pintura é textual, é quase palavra na sua vocação de tecer comentários, o que a situa longe daquela extinta nobreza e lhe faz correr o risco de tornar-se ilustração ou retórica das questões que envolvem, não o seu sentido ou o de sua realização, mas, na maioria dos casos, somente as mazelas que repercutem seu modo de inserção nos meios de exibição.

Talvez a percepção desse desapontamento que a pintura atual carrega consigo seja um bom começo para iniciar uma discussão sobre alguns aspectos percebidos em muitos dos trabalhos apresentados na XXVI Bienal de São Paulo.

Esse desapontamento, misto de pragmatismo e decepção que boa parte dos pintores pratica (alguns inclusive com a sobretaxa do cinismo), encontra no evento Bienal, de que também eu já participei, uma espécie de espelho invertido. Sim, porque basta uma única visita para perceber o quão espetacular ele quer ser. Parece uma equação irritante essa: vários dos trabalhos que lá estão tornam-se ventríloquos do evento, da urgência deste. E assim eles só fazem reverberar um vazio alheio, ao mesmo tempo em que potencializam o vazio próprio. Para disfarçar, às vezes precisam fazer bastante barulho. E como essas bienais são barulhentas...

Talvez isso faça mesmo parte do cenário da arte hoje em dia, no qual as pinturas, em princípio, prestam-se menos à espetacularização que outras obras mais envolventes. Para um pintor, seria difícil ceder à dinâmica do evento sem comprometer seu trabalho. Um "gancho" para a pintura também ficar eloqüente entre tantos temas, para também poder "falar", poderia significar a sua obsolescência. De que maneira suportar uma carga de mensagens e simbolismos sem sacrificar a si mesma, à sua natureza?

Parte da boa produção pictórica recente ainda luta para não se tornar apenas suporte artístico de questões diversas. Procura, assim, levar em conta os conteúdos surgidos no fazer, transformados por essa própria experiência. Claro que isso não quer dizer que ela não pode também ser o contrário. A arte admite mal tanto o não quanto as decisões taxativas. Caberia ao artista a tarefa, justamente, de encontrar a melhor e mais adequada expressão para as novas formas. Mas confesso que vi muito poucos pintores lograrem algum êxito nesse campo.

A pintura do belga Luc Tuymans, um dos melhores pintores da mostra e dos mais festejados da atualidade, chama para si muitas das questões mais pertinentes do debate de nossa época. Esse desapontamento indicado acima encontraria nele, a meu ver, um de seus artífices mais preparados. Pondoà parte as considerações sobre seu trabalho - para mencionar somente a exposição - sua sala na Bienal provoca também no visitante uma indisfarçável sensação de antiespetáculo. São cinco pinturas de pequenos e médios formatos, poucas e apagadas cores, feitas, se não me engano, para este evento. O tema seria justamente o de uma festa espetacular: o carnaval de uma cidade belga. O elo torna-se óbvio, já que o Brasil é o país do carnaval.

Ouvi de várias pessoas opiniões diversas sobre o trabalho de Tuymans, e a maioria delas falava da decepção quanto à sua modesta participação e modesta sala. Claro que ele poderia ter colocado mais pinturas, seria mais produtivo, teríamos uma chance de conhecê-lo melhor. Mas esse desapontamento, na maioria dos comentários, devia-se, eu imagino, principalmente à frustração do espetáculo, justamente aquela demanda que uma exposição como a Bienal suscita. Claro que também entendo esse ponto de vista, mas passei a gostar -como se fosse uma desforra da pintura - também desse aspecto.

Esse meu gosto se explica e é provocado. Desde o momento em que chegamos ao prédio da mostra, somos acossados pelo ruidoso cartaz da entrada. É uma peça publicitária digna de nota. Não tinha visto algo assim em bienais passadas. O outdoor traz a foto de uma moça, toda respingada de tinta (do dripping pollockiano?), e o texto diz algo como "a gente quer chocar você logo na entrada", a que se acrescenta "este ano a entrada é grátis". A propaganda usa como motivo para o choque a citação de um estilo de pintura já histórico - o expressionismo abstrato dos anos 50 - causador, na sua época, de muita polêmica em vista da novidade e da invenção. Mas hoje essa maneira de pintar já está associada a um estereótipo da transgressão. Já virou clichê, que, posto ali, na entrada de uma mostra de arte contemporânea, começa por esvaziá-la, minando-lhe a resistência. De que maneira resistir à intromissão violenta da publicidade, à diluição que ela produz, ao fazer, da invenção, convenção? Ou será que, ardilosamente, se quer dizer que o choque está em não se cobrar nada?

Enquanto a arte luta por uma possibilidade de traduzir e refletir o real, essas estratégias paródicas da propaganda estão à vontade nessa situação, talvez por conseguirem entendê-la de fato. E esta Bienal, assim como outras grandes mostras de arte internacionais, não foge do seu tempo. Existem também obras que trazem para dentro de si essa dinâmica. Para ficarmos só em uma, gostaria de comentar a instalação de Paulo Bruscky, montada no terceiro piso da mostra, bem próxima à sala de Tuymans.

Segundo me pareceu, o próprio apartamento do artista é que foi transposto para o espaço expositivo. A curadoria entendeu que o lugar onde vive o artista ganharia o estatuto de obra.

Por que não expor a produção do artista? Por que optar por aquilo? Não dá para evitar essas perguntas e, também, comparações menos favoráveis, como com o advento dos reality shows; porque, colocados numa situação de voyeurs, ficamos nos perguntando por onde andaria o habitante da casa, por exemplo. Talvez o grau zero de toda essa fetichização fosse, então, o mundo posto como readymade? Mas penso que talvez isso se explicaria mais banalmente pela atual e já citada vontade de espetacularização da arte.

Essa instalação, à revelia de seu valor, é um exemplo dessa substituição: a da obra pelo seu entorno e pela sua publicidade. Basta pensarmos nessa simetria de espaços: um, que é para exibir arte, e o outro, agora esvaziado da obra, tornado plágio de si. Um espaço procurando ser ocupado por outro espaço, ou um ecoando o outro. Uma possível interpretação do seu significado mais recôndito (com o perdão do lugar comum): o que importa é o lugar, não a obra. O evento sim é importante, apenas ele, de fato, existe.

Dessa maneira, aquilo que foi prometido no texto do cartaz procura se cumprir também pela exibição desta "casa do artista". Não precisamos mais da presença forte das obras. Basta mostrar - e não vamos duvidar do aspecto propagandístico aí implicado - os lugares esquisitos onde vivem e produzem esses... artistas.

Mas nem tudo nessa exibição se resume a comentários visuais. Existem nela muitos trabalhos que buscam outras direções. Já falei de como as pinturas de Luc Tuymans estabelecem uma relação de conflito com a estratégia espetacular do evento. Desconfio que procuram até usar isso como tema, e, uma vez procedendo assim, potencializam ainda mais o sentimento de terra devastada, esse lugar que sua pintura não tem por vocação povoar.

Depois de ver melhor, em livros e fotos, seu trabalho, a minha atenção foi atraída para a carga de tristeza que seus temas comportam, temas esses de apelo emocional muito forte, como os campos de concentração ou a exploração belga no Congo. Essa tristeza, portanto, não estaria só no uso que o artista faz das cores, uma vez que o assunto escolhido para a pintura seria tão importante quanto. Li, em uma entrevista sua, que ele foi uma criança cheia de medo, coisa dita no contexto de uma conversa sobre o fato de muitas de suas obras terem a infância como tema. No seu livro da coleção Contemporary Artists, da editora Phaidon, Tuymans escolheu, como principal foto sua, uma quando criança. A outra, já da idade adulta, é ambígua e escura: ele está de cabeça baixa, não o vemos tão bem quanto vemos o rosto inteiro e alegre do menino. Parece que só no passado aquela alegria pôde existir. Ou que só lá a vida foi mais verdadeira. Isso diz muito do fato de o adulto estar agora ocupado com o esvaecimento do mundo. Ou em empalhá-lo. Sim, porque é de uma aparência semelhante a isso que suas figuras tiram partido.

O tema da infância, então, é muito presente e está, pelo que li, acrescido da doença. Suas crianças são, também, crianças doentes, e a isso se somam os temas dos campos de confinamento e extermínio, onde aparecem alguns retratos de pessoas executadas, ou cenas de interior, alguns dos quais são quartos de hospital. Outros dos assuntos são cenas domésticas, objetos, naturezas mortas, aproximações e detalhes de figuras, como se fossem imagens retiradas de uma espécie de álbum de família desbotado e esquecido, álbum este que acolhesse não apenas os souvenirs do cotidiano, mas que revelasse, também, justamente os temas banidos de lá. Na sua maioria, procedem da fotografia, ou fazem referência a ela.

O artista diz que durante um bom tempo, no início da carreira, se ocupou em fazer filmes. Mais como uma tentativa de aproximação das artesplásticas do que propriamente como cinema. De fato, grande parte de suas imagens tem uma dinâmica mais próxima do filme do que do instantâneo fotográfico. Cenas que se desenvolvem em seqüências, enquadramentos inesperados, close-ups são recursos presentes em vários trabalhos.

Ao mesmo tempo, Tuymans é um pintor dotado de erudição em pintura, mas que a coloca no lugar certo, isto é, não a utiliza para tecer citações ou exibir repertório, mas para melhor compreender seu tempo e lugar; ele que, sendo belga, fala com muita intimidade de El Greco e da pintura espanhola, assim como de Manet e da ligação profunda dos belgas com a tinta a óleo e com o melhor material existente para pintura.

Sua paleta é quase monocromática e bastante reduzida. Suas cores, assim, servem bem a essa imagem de um mundo desidratado que ele quer representar. Usa quase sempre tonalidades de cinza, onde o branco tem um papel principal. Sabemos que o branco é uma cor enigmática, paradoxal, e Tuymans faz um uso muito particular dela. Se o compararmos a um outro pintor do branco, o venezuelano Reverón, poderemos notar melhor essa particularidade. Em Reverón, o branco parece ser o rescaldo, o que sobrou da luta com a luz. O branco é o testemunho disso, dessa luz que desfaz o mundo enquanto parece querer torná-lo mais visível. É matéria viva e afetiva, inscrita materialmente na superfície da tela quase sempre crua, sem nenhuma imprimação. É uma pintura quase tátil, quase cega. O branco de Tuymans é bastante diferente. Ele parece vir antes, vem para velar a luta, para apagar os sentidos do mundo, para cobrir o sol, como querendo dizer que nenhuma ação presente tem a força do tempo que se encarrega de desvanecer e desbotar tudo.

Outro pintor que teve com a cor branca uma relação bastante peculiar foi James Ensor. Também ele era belga, considerado um dos maiores pintores do seu país, e foi uma das primeiras referências de Tuymans, além de ter sido dele, segundo a mesma entrevista, o primeiro livro de pintura comprado por Tuymans. Ensor também gostava muito do tema das festas populares. Particularmente das máscaras e dos mascarados. Essas festas, para ele também, eram carregadas de ambivalências, a que o branco servia muito para dar expressão. Se na pintura de Luc Tuymans essa cor também é usada para trazer um estranhamento ao mundo, na de Ensor é o contrário: serve para deixar mais real o absurdo, como se trouxesse o mistério para a luz do dia.

Assim, não é difícil, na pintura de Tuymans, sentir que quase sempre olhamos para uma imagem do mundo e não para uma tentativa de apreendê-lo no original; não é a pintura de alguém que olhou o real, mas um de seus simulacros, uma vez que praticamente todas as suas imagens provêm da fotografia. Para voltar à comparação com J. Ensor, este usava as máscaras em seus personagens para unir a bizarrice ao real. Penso, salvo engano, que Tuymans faz da fotografia uma espécie de máscara. E seu mundo também possui, para além do estado parado das coisas, alguma bizarrice.

Quando não é mais o real que está em jogo, mas a representação da representação deste, as coisas mudam de figura. Tuymans fala bastante emmemória. A foto por si só presta-se muito a isso: é sempre um evento passado. Muito da aparência deste seu mundo mais lembrado que possuído, por exemplo, vem daí. E não dá para evitar uma sensação de tédio olhando suas imagens. Isso acontece talvez por ele abdicar de uma pintura ligada à verdade (e verdade poderia ser até o registro, no trabalho, da luta decorrente da impossibilidade de representar), mas penso também que vem disso mesmo, desse jogo com a linguagem, muito da sua notoriedade no cenário atual.

Faz já algum tempo que teóricos abordam o fato de a fotografia ter se transformado num readymade da pintura, única lente capaz de tratar de forma atual as figuras e de nos colocar em dia com as premissas de nossa época. O alemão Gerhard Richter, outro pintor que é referência para Luc Tuymans, é praticamente o introdutor desse assunto nos dias de hoje, e faz dela, a fotografia, o seu instrumento. A sua pintura procura colocar-se num ponto possível entre o olho e a máquina. Ele fotografa e pinta, e assim, numa seqüência, procura construir um lugar eqüidistante desses dois pólos, e que seja, também, intencionalmente crítico. Só assim, parece ele dizer, seria possível inquirir o real. A sua abstração (que ele transforma em gênero, mantendo-a paralelamente à figuração, como para nos alertar que a diferença não estaria mais aí, mas que o "diferencial" seria a própria prática da pintura) parece também, na maioria de seus trabalhos, ser a ação de uma máquina de impressão que perdeu o registro e, descontrolada, passou a desfazer e borrar a imagem. A visão dessa pintura mostra, de saída, que a principal preocupação do pintor é com a relação possível entre o fazer pictórico, sua prática secular, e o advento das imagens eletrônicas. Apenas a forma que ela emprega para expressar isso me parece, às vezes, ficar muito próxima de um comentário, muito confiante na direção de suas idéias.

Algo diferente se passa com os trabalhos de Tuymans. Mesmo empregando "ganchos", assuntos fortes para fazer pintura, ele, enquanto pinta, parece enfraquecê-los com sua técnica, deixando-nos em dúvida quanto a sua eficácia. A pintura parece ser mais desconfiada de si e, portanto, mais pronta a nos fazer participantes. Sua pegada mais melancólica não fica reverberando apenas a fotografia e seu estatuto conceitual. Parece querer - ultrapassando a si mesma a tradição, inclusive transformando a referência fotográfica numa prática já também tradicional. Algo como procurar alcançar de novo a possibilidade de pintar as coisas pelo viés da fotografia. Sua fatura, seu fazer pictórico contam isso pelo emprego de práticas antigas de veladuras e empastes, traindo uma refinada e informada técnica de pintor. Quando olho para seus quadros parece que fico me lembrando da pintura. Da maneira como os pintores olham e olharam o mundo. Uma sentença que poderia acompanhá-los seria : "Ah, isso me lembra pintura". O mais impressionante é que talvez seja disso mesmo que seus trabalhos retiram sua força contemporânea, o que, aliás, pode dizer muito da nossa contemporaneidade. De minha parte, sei que consigo gostar disso em seu trabalho, sabendo também que é um gostar de algo que não está lá, de algo que também está além dele, ultrapassando-o.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2011
  • Data do Fascículo
    2004
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