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CANDEIAS E A BOCA: REGISTROS DOMÉSTICOS E FILMES-ÁLBUM - MATÉRIAS DA MEMÓRIA

CANDEIAS AND BOCA DO LIXO: DOMESTIC RECORDS AND FILM-ALBUMS - ARTICLES FROM MEMORY

CANDEIAS Y LA BOCA: REGISTROS DOMÉSTICOS Y FILM-ÁLBUMES - MATERIALES DE MEMÓRIA

RESUMO

O artigo investiga como Ozualdo Candeias, tendo como partida os documentários ...a rua chamada Triumpho 969/70 (1971), ...a rua chamada Triumpho 970/71 (1971) e Bocadolixocinema (1976), registra e trabalha a memória (e o dever da memória) sobre a Boca do lixo, a partir das ideias de filmes domésticos, filmes-álbum e filmes de compilação.

Palavras-Chave:
Ozualdo Candeias; Boca do lixo; Filmes domésticos; Álbum de família; Memória

ABSTRACT

The article investigates how Ozualdo Candeias, in works such as the documentaries ...a rua chamada Triumpho 969/70 (1971), ...a rua chamada Triumpho 970/71 (1971), and Bocadolixocinema (1976), records and organizes the memory (and the duty of memory) about Boca do Lixo, based on the ideas of domestic cinema, film-albums and compilation films.

Keywords:
Ozualdo Candeias; Boca do Lixo; Domestic Films; Family Album; Memory

RESUMEN

El artículo investiga cómo Ozualdo Candeias, partiendo de los documentários …a rua chamada Triumpho 969/70 (1971), …a rua chamada Triumpho 969/71 (1971) y Bocadolixocinema (1976), registra y trabaja la memoria (y el deber de la memoria) sobre la Boca do lixo, desde las ideas de películas domésticas, film-álbumes y películas de compilación.

Palabras Clave:
Ozualdo Candeias; Boca do lixo; Películas domésticas; Álbumes de família; Memória

Num mundo que, desde o começo do século XX, é dominado por imagens, parece sintomático que Ozualdo Candeias tenha afirmado: “Primeiro fiz cinema, aprendi tudo, depois fui fotografar” (apud AUTRAN; GARDNIER; HEFFNER, 20022. AUTRAN Arthur, GARDNIER Ruy, HEFFNER Hernani. Biografia - A margem da Boca. In PUPPO, Eugenio (org.). Ozualdo R. Candeias. São Paulo: Heco Produções, 2002, pp. 14-31., p. 20). Candeias nasceu nas primeiras décadas do século passado nos interiores do país1 1 . Registrado em 1922 em Cajobi (SP), o próprio Candeias dizia não saber quando ou onde nasceu: “[...] tenho a impressão, pelo que minha mãe me dizia, que nasci antes. Pode ter sido em 1918, logo depois da Primeira Guerra Mundial, em algum lugar do Estado de São Paulo ou de Mato Grosso, que na época era um Estado só. O certo é que não sei exatamente quando nem onde nasci nem por que fui registrado em Cajobi” REIS (2010, p. 139). ou seja, já dentro de uma realidade afeita aos registros imagéticos, tanto fotográficos quanto cinematográficos. No entanto, em geral por facilidade de acesso, custo e mesmo manuseamento, a primeira câmera costuma ser a fotográfica.

Para Candeias não, foi o contrário. Começou pelo cinema. E começou tardiamente, vale dizer. Foi militar, chofer de praça, caminhoneiro, entre várias outras profissões distantes das artes ou da comunicação. Seu interesse inicial é um tanto excêntrico: queria filmar discos voadores2 2 . Cf. PUPPO (2002), REIS (ibidem). Comprou uma câmera 16mm Keystone. Aprendeu a usá-la de maneira autodidata, lendo manuais, livros em espanhol, testando etc. Realizou seus primeiros filmes, alguns um tanto caseiros, como A pensão (1951), um filme-esquete silencioso inspirado no cinema burlesco, e outros mais bem acabados, como o documentário Tambaú, cidade dos milagres (1955). No mesmo ano deste, começou o curso de cinema no Seminário de Cinema do Museu de Arte de São Paulo (MASP), finalizado em 1957. Profissionalizou-se fazendo filmes de cunho institucional e atuando como cinegrafista em cinejornais. O primeiro longa-metragem como diretor, A margem, veio só em 1967. Por muitos, é considerado o filme deflagrador do chamado Cinema Marginal3 3 . Cf. PUPPO (2004), RAMOS (1987). Os longas posteriores também trabalharam com bastante experimentação de linguagem, em especial no som, em cenários rurais do interior do sudeste, caso de Meu nome é... Tonho (1969) e A herança (1971).

Apesar de seu primeiro contato manipulando uma câmera fotográfica ter sido no set de Mulheres modernas, filme inconcluso rodado em 1958, com fotografia de George Ballardie, ocasião em que Candeias integrou a equipe e fez fotos de cena, a primeira câmera fotográfica do cineasta, uma Exakta4 4 . Cf. MENDES (2002, p. 94). no entanto, foi adquirida apenas em meados dos anos 1960. A compra do equipamento, segundo transparece em entrevistas de Candeias, está vinculada ao desejo de captar imagens de seu interesse, sem pretensão mercadológica aparente, embora ele tenha atuado como fotógrafo still ao longo da carreira. Candeias era um cineasta pouco comercial; seus filmes eram feitos com parcos recursos e mal se pagavam. Em um cenário marcado pela produção voltada ao mercado, não é de se espantar que seus longas tenham rarefeito - após A herança, só fez mais um longa nos anos 1970, Caçada sangrenta (1974). Por isso, era “pau pra toda obra” como técnico; não costumava recusar trabalho. No entanto, o ser fotógrafo nasce de um interesse privado. Capta o que está ao seu alcance. Fotografa os bastidores de seus próprios filmes e o seu entorno. Também suas viagens5 5 . O pesquisador Fábio Uchôa (2019, p. 295) investigou esse início: “A informação de que Candeias inicia o trabalho com fotografias a partir de 1967, presente em depoimento do cineasta, contrasta com os dados de um currículo, escrito possivelmente por ele mesmo, em 1979. No referido documento, entre os anos de 1964-67, consta uma viagem por países da América do Sul, levantando dados para a realização de um longa-metragem sobre culturas incaicas e pré-incaicas. Neste contexto, Candeias toma imagens de populações andinas, organizadas no documentário América do Sul (1965). De acordo com o currículo consultado, haveria ainda cerca de 3.000 fotografias, realizadas durante a mesma viagem. Quanto à existência e ao destino de tais materiais, não conseguimos maiores informações”.

Assim nascem seus primeiros registros. Para além do trabalho com still, suas fotografias pouco saíram da coleção particular. Seu caso é diferente de um Ivan Cardoso, por exemplo, que fez seus primeiros filmes também dentro do que se convencionou chamar Cinema Marginal, mas que teve estimada carreira como fotógrafo - ligado ao cenário da música, das artes plásticas e do cinema, fez capas de discos e participou de exposições, entre outros. Do trabalho como fotógrafo e operador de câmera de cinema, Candeias aprendeu o essencial da arte da fotografia: enquadrar, iluminar etc. Era um profissional, nesse sentido. Porém, suas fotografias fazem parte do seu âmbito privado. O que fotografava não tinha, a priori, um fim; não ambicionava publicar em jornais e revistas, expor em museus ou galerias, nem mesmo fazer filmes com esse material. Por isso, parece sintomático que ele diga que primeiro veio o cinema e depois a fotografia. Não é só um dado cronológico ou uma particularidade de sua trajetória, é também um índice de sua produção. A fotografia preenche outro campo. Tem caráter doméstico, do prazer e do afeto, não necessariamente profissional, quase como se o cinema o tivesse libertado para então fotografar.

O principal interesse de registro de Candeias, por mais de três décadas, foi a Boca do lixo. A rua do Triumpho e suas imediações6 6 . Geograficamente, a Boca do lixo está situada no centro de São Paulo, próxima às estações da Luz e Júlio Prestes. Nos anos 1950, recebeu esse nome por ser pauta das crônicas policiais da cidade. A proximidade com as estações ferroviárias atraiu o cinema já nos anos 1920, pois isso facilitava o transporte e a distribuição das cópias dos filmes. A Boca não foi apenas o local de trabalho do cineasta - para onde migrou no final dos anos 1960 para lançar A margem e onde ficou até seu declínio, na virada dos anos 1980 para 1990. Candeias residiu na região da Luz e da Santa Ifigênia. Para além disso, a Boca era mais do que um ambiente profissional. "As pessoas de cinema" circulavam sempre lá, ocupavam a rua todos os dias. Era um espaço de convivência, de trocas, de amizades. Candeias registrou toda a movimentação do local, de quando se tornou o principal ponto de encontro do cinema paulista até se transformar na chamada Cracolândia. Quando integrei a equipe de pesquisa do longa-metragem documental Ozualdo Candeias e o cinema (2013), de Eugenio Puppo - Puppo e sua produtora, Heco Produções, são os responsáveis pelo bastante organizado Acervo Ozualdo Candeias -, deparei-me com uma obra vastíssima, de milhares de fotografias da região; um acervo muito maior do que o depositado na Cinemateca Brasileira, por exemplo7 7 . Segundo Uchôa (2019, p. 294): “Entre os documentos constituintes da Coleção Ozualdo Candeias, depositados na Cinemateca Brasileira, há: duas pastas de fotografias feitas na Boca do lixo, contendo cerca de 50 fotografias cada; um álbum de fotografias de cineastas brasileiros composto por 110 páginas […]; uma coleção de retratos de diretores de cinema emolduradas em pequenos quadrinhos, com 9 retratos; um conjunto de retratos também de cineastas, baseado em fotomontagens; além, das fotos de still feitas para os filmes O meu nome é Tonho (1969) e Aopção (1981)”.

Candeias justifica a feitura das fotos quase sem motivos: “Eu fiz um monte de fotos da rua do Triunfo porque eu tava por ali. Eu não sabia o que fazer com a porra daquelas fotos. Não custava nada, e eu fazia as fotos” (apud AUTRAN; GARDNIER; HEFFNER, 20022. AUTRAN Arthur, GARDNIER Ruy, HEFFNER Hernani. Biografia - A margem da Boca. In PUPPO, Eugenio (org.). Ozualdo R. Candeias. São Paulo: Heco Produções, 2002, pp. 14-31., p. 20). Pela fala de Candeias, transparece um desejo de simplesmente registrar o que estava à sua volta, sem muita elaboração. “Um dia uns caras disseram: ‘Vamos fazer documentários com essas fotos, o que você acha?’. Isso quando obrigaram a passar curta-metragem nos cinemas” (Ibidem). A partir das fotos tiradas, supostamente, entre 1969 e 19718, fez dois filmes: ...a rua chamada Triumpho 969/70 e ...a rua chamada Triumpho 970/71, ambos realizados em 1971. A Boca do lixo aparece em mais dois filmes de Candeias: o curta documental Bocadolixocinema (1976), também conhecido como Festa na Boca, em que ele filma a festa de final de ano dos seus pares do cinema que atuavam na mesma região, e o longa ficcional As bellas da Billings (1987). Este é o seu único longa ficcional em que figura a Boca do lixo, já em chave nostálgica, à época da decadência e da dominação da produção de sexo explícito. Os três curtas documentais - ...a rua chamada Triumpho 969/70, ...a rua chamada Triumpho 970/71 e Bocadolixocinema - formam, portanto, uma espécie de trilogia do cineasta sobre a região. Nos três, é possível denotar um sentido afetivo e memorialístico de caráter doméstico.

O registro afetivo doméstico na trilogia Boca do Lixo

As duas partes de ...a rua chamada Triumpho foram pensadas para a exibição em cinema, como complementos de sessão - quando um curta de cunho educativo/cultural ou cinejornal era exibido antes de um longa-metragem. Quem cuidava disso à época era o Instituto Nacional de Cinema (INC). O procedimento técnico e estético de ambos os filmes é similar, comum a muitos documentários da época. Candeias filmou as fotografias reveladas, num processo chamado table-top9 9 . Segundo Gamo, o diretor chamou seu processo de “parede-top”, pois colou as imagens na parede e as filmou movimentando a câmera pelo espaço. Cf. GAMO ( 2019, p. 123). Os curtas são encadeados pela narração em voz over, que explica, pontua e comenta as imagens, e pela música de violão de Vidal França. O cineasta conta, contudo, que os filmes não foram exibidos à sua época:

[...] não deu a verba e disseram que o filme era um negócio muito doméstico. Isso era safadeza deles, não tinha nada de doméstico, era um cinema que estava acontecendo com um grande volume. [...] O INC negou o certificado para exibição, porque aquilo era muito doméstico. Os documentários ficaram aí jogados; como não foram exibidos, não me pagaram e ficou tudo por isso mesmo. (CANDEIAS apud AUTRAN; GARDNIER; HEFFNER, 20022. AUTRAN Arthur, GARDNIER Ruy, HEFFNER Hernani. Biografia - A margem da Boca. In PUPPO, Eugenio (org.). Ozualdo R. Candeias. São Paulo: Heco Produções, 2002, pp. 14-31., p. 20)

Candeias fala duas vezes que os filmes tiveram certificado negado porque era muito “doméstico”. Ele justifica o “doméstico” pelo tema do filme: o cinema da Boca do lixo ali retratado, para ele, “não tinha nada de doméstico”, pois “era um cinema que estava acontecendo em grande volume”; subentende-se, portanto, que o cinema da Boca era muito doméstico para quem o avaliou. Pode ser que tenha sido de fato essa justificativa, mas gostaria de aventar outra possibilidade. Dentro de uma lógica que visava a um produto educativo e cultural nos certames de uma produção profissional, isenta e objetiva sobre a realidade, as imagens de Candeias eram repletas de afetividade e subjetividade da ordem do registro doméstico. Eram filmes em que Candeias mostrava, essencialmente, seus pares, seus amigos, em seu habitat, no dia a dia, em cenas triviais: conversando, bebendo, rindo, muitas vezes posando para a câmera.

Os estudos sobre o cinema doméstico em geral resvalam na ideia do cinema amador e/ou do filme de família e encampam, podemos definir de maneira resumida e superficial, os filmes feitos para a comunidade em que se inserem (a própria família, por exemplo.), de viés caseiro, com uma precariedade estética. Peter MacNamara, por exemplo, aponta que o amador que filma “é um membro da comunidade, trabalhando dentro da comunidade, registrando e expressando preocupações da existência pessoal, familiar e comunitária”. Ao fazer isso, ele “nos mostra a dinâmica relação entre pessoas, lugar e eventos, assim como faz o documentarista, mas também nos permite vislumbrar a mentalidade da comunidade a partir de dentro” (MACNAMARA apud FOSTER, 20106. FOSTER Lila. Filmes domésticos: uma abordagem a partir do acervo da Cinemateca Brasileira. 2010. Dissertação (Mestrado em Imagem e Som) - Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos., p. 26, tradução do autor).

Desse modo, ainda que Candeias não possa ser enquadrado como um cineasta amador, pois era profissional no sentido de viver da prática cinematográfica - talvez possamos pensar na condição de estar amador nesses casos -, os filmes que ele fez sobre a Boca do lixo podem ser entendidos dentro da perspectiva de MacNamara. Diferentemente do que Lila Foster argumenta, por sua vez, sobre a produção de Jonas Mekas e Stan Brakhage, por exemplo, não se pode dizer que Candeias “recria a estética do filme doméstico” (FOSTER, 20165. FOSTER Lila. Cinema amador brasileiro: história, discursos e práticas (1926-1959). 2016. Tese (Doutorado em Meios e Processos Audiovisuais) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 18). A começar, porque as fotografias que balizam seus dois primeiros curtas nunca tiveram a exibição pública como fim em si. As fotos não emulam uma estética ou a captação de determinadas situações; partem de registros espontâneos, quase surrupiados à guisa do momento. A qualidade das imagens, nos filmes, varia, em especial quando se faz um plano bastante fechado numa foto aberta, evidenciando seus poros, os grãos. Nem todas as fotos têm foco na pessoa ou uma iluminação que a valorize; às vezes trazem um rastro de movimento do fotografado. Ou alguém com olhos fechados. Por vezes, a impressão está riscada, com marcas de desgaste. De qualquer forma, seus filmes provocam o mesmo efeito das produções domésticas: intensificam “uma característica que está na raiz da palavra amador: uma prática realizada por amor ao seu ofício e por amor ao que se filma” (Ibidem, pp. 18-19).

No caso dos três filmes de Candeias, o que os diferencia do registro doméstico padrão é terem sido idealizados para a exibição comercial. Para além dos signos visuais que caracterizam um filme, como os créditos, por exemplo, existe uma tentativa de situar o espectador dentro daquele espaço, de informá-lo, porque o público não é a comunidade dos filmes domésticos usuais, e sim o variado público que frequenta as salas de cinema - ou seja, ainda que exista a familiaridade entre o cineasta e quem ele filma, não há entre quem está no filme e quem o assiste. Ambos ...a rua chamada Triumpho trazem na narração informações sobre onde fica a rua do Triumpho, qual sua particularidade, como funciona no dia a dia, qual é o lugar do cinema brasileiro naquele momento. O primeiro, 969/70, abre com a fala: “A rua chamada Triumpho. Não fosse seu caráter mutante de usuários, durante suas 24 horas de um dia, esta rua seria uma rua como outra qualquer.” No segundo, 970/71: “Estação Sorocabana. Estação da Luz. Rua do Triumpho. A rua do Triumpho se encontra no bairro da Luz. O bairro da Luz é um bairro de aparência pobre, casarões velhos. [...] A rua do Triumpho é uma rua como outra qualquer, não fosse algumas de suas particularidades”. Existe um caráter didático reincidente nos filmes. Por serem filmes distintos, repetem informações básicas sobre o local. Bocadolixocinema, por sua vez, explica nos pormenores o evento: o que era, quando se deu, como foi organizado etc.

Penso na trilogia de Candeias como filmes domésticos justamente porque eles registram uma comunidade um tanto particular, a da Boca do lixo ou a da Rua do Triumpho, em especial os pares do cineasta, os profissionais do cinema. Aqui, estes funcionam quase como uma família estendida12 12 . Prefiro utilizar o termo “doméstico” a “filme de família”, pois, justamente, me parece permitir expandir o conceito de família, e abarcar a ideia do registro de ordem privada e afetiva. No caso de “amador”, como aponta Foster (2016), a relação é muito menos temática e mais material - existem filmes amadores de ficção, experimentais etc. Como diz Foster, “o contato inicial com as imagens traz de imediato a sua relação emocional, de um fragmento de uma história familiar” (FOSTER, 20106. FOSTER Lila. Filmes domésticos: uma abordagem a partir do acervo da Cinemateca Brasileira. 2010. Dissertação (Mestrado em Imagem e Som) - Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos., p. 14).

Existe um princípio de familiaridade na maneira como Candeias conduz Bocadolixocinema, por exemplo. O filme relata um evento bastante específico, a festa de final de ano do pessoal de cinema da Boca, que ocorreu das 12h às 16h, no dia 31 de dezembro de 1976. O cineasta, como era comum em seus filmes, opera a câmera na mão, que funciona como extensão de seu olho: é como se nos colocássemos em seu lugar. Candeias não se detém longamente sobre ninguém. A câmera, sempre em movimento, passeia pela aglomeração da rua, centraliza em algumas pessoas, aproxima-se como se invadisse a conversa, atravessa-a ou desvia-se dela. Segundo Inácio Araújo (20021. ARAÚJO Inácio. O limbo das almas e as anomalías dos corpos. In PUPPO, Eugenio (org.). Ozualdo R. Candeias. São Paulo: Heco Produções, 2002, pp., p. 43), “o caráter familiar de Festa na Boca chama a atenção por reconstituir o tipo de convivência horizontal que existia ali”.

O filme é concatenado quase como se não houvesse uma montagem que reorganiza o material, como se a tomada fosse sempre encadeada com a seguinte, num fluxo contínuo - próximo ao que seria o vídeo doméstico anos depois. Os poucos inserts ocorrem no momento da premiação dos melhores da Boca. Vemos, em plano-detalhe, a medalha e, em close, os vencedores, alternados com o plano geral da premiação. Constantemente, as pessoas olham para a câmera. Quase todos sorriem e/ou gesticulam quando a veem, o que demonstra uma familiaridade do retratado para com o cineasta, esboçando um afeto, assim como ocorre nos registros domésticos de família.

Bocadolixocinema é um filme de corpo. A câmera se aproxima fisicamente dos perfilados - pela maneira como o movimento se dá, fica claro não se tratar de zoom, como seria possível supor -, interpela-os, faz-se presente. Assume, assim, o lugar do corpo; a câmera é a extensão de Candeias. A escolha por operar a câmera de maneira livre, na mão, de maneira ágil, baliza o resultado estético. As pessoas não reagem simplesmente por ser uma câmera, reagem por ser o que ela personifica, no caso, o próprio operador, Candeias, uma figura familiar. Ao percebermos, como espectadores, tratar-se de um plano subjetivo, mesmo sem termos acesso ao contracampo, extrapola-se o simples efeito da presença da câmera na cena documental, pois ela torna-se, assim, personagem.

Nas fotografias, Candeias alterna entre registros em que os captados estão conscientes do fato, em reações que se aproximam das de Bocadolixocinema, e registros à distância, em planos bastante abertos, como se ele apenas observasse a cena. Ao mesmo tempo que isso traz uma sobriedade aos ...a rua chamada Triumpho, aponta a familiaridade que a presença de Candeias naquele espaço provoca, uma vez que estar lá e mirar uma câmera àqueles ao seu redor não lhes causa constrangimento.

Em determinado momento de ...a rua chamada Triumpho 969/70, vemos uma foto de Roberto Santos conversando com Rubem Biáfora. O filme se alonga nessas imagens (figuras 1 a7). A identificação vem apenas nos planos fechados. Primeiro, “Roberto Santos, d’O grande momento”, depois “Rubem Biáfora, da crítica e da Ravina”. Segue uma imagem diferente, em plano conjunto, de ambos conversando, e mais uma rodada de apresentações em closes, “Roberto Santos, d’A hora e a vez do Matraga. Biáfora, d’O quarto e da Data Filmes”. Candeias enfatiza os personagens, e não à toa: mesmo notórios desafetos13 13 . Não há qualquer menção a essa relação no filme, mas no livro Uma rua chamada Triumpho, Candeias escreve: “Roberto e Biáfora tidos como tayhua/inimigos cinematográficos pela comunidade ‘bocacine’”. (CANDEIAS, 2001, p. 69). ambos coabitam o mesmo espaço e partilham juntos o tempo, tal qual em qualquer encontro familiar, o que demonstra sua força - a força dessa comunidade.

FIGURAS 1 A 7
Ozualdo Candeias, ...a rua chamada Triumpho 969/70, 1971. 35mm, p&b, 11 min, sonoro. Frames do filme.

O que aproxima mais ainda a trilogia da Boca do lixo do registro doméstico é a necessidade constante do narrador em identificar quem estamos observando. Não é apenas uma proposta didática de apresentar ao espectador quem são aquelas pessoas que vemos, é também uma forma de situar aquela história, de fixar aqueles nomes - tal qual o hábito de anotar, em fotos domésticas, em álbuns de família, o local, a data e os retratados. Para Foster, “o álbum e o filme de família serão os depositários mais potentes da memória familiar e da recordação de histórias de vida”. Diz ela:

Tratamos aqui de narrativas imagéticas - uma projeção da idéia e da vida em família expressa em imagens - o que infere numa escolha extremamente subjetiva do que se pretende guardar e relembrar sobre determinada pessoa ou grupo, mas isso em nada retira o fato de que tais coisas aconteceram, tais pessoas existiram e que o filme de família nos reapresenta fatos passados (o tempo transcorrido). (FOSTER, 20106. FOSTER Lila. Filmes domésticos: uma abordagem a partir do acervo da Cinemateca Brasileira. 2010. Dissertação (Mestrado em Imagem e Som) - Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos., p. 28)

Nesse sentido, se Bocadolixocinema se aproxima do filme de família, ambos ...a rua chamada Triumpho funcionam como álbuns, ou melhor, filmes-álbum, que transpõem para o registro audiovisual, através da compilação, a materialidade do álbum de família.

A compilação como ferramenta de composição do filme-álbum

Tanto Jay Leyda, em seu estudo pioneiro Films Beget Films (196412. LEYDA Jay. Films Beget Films. London: Allen & Unwin LTD, 1964.), quanto Patrik Sjöberg, no mais recente The World in Pieces (2001), resistem em criar uma definição para o que seria o filme de compilação15 15 . Assim como a querela entre “filme doméstico” e “filme de família” e “cinema amador”, há um dissenso quanto a como nomear e pensar filmes que se utilizam de imagens/sons previamente realizadas/os. Filmes de compilação, filme de arquivo, filme de montagem, found footage films, cinema de segunda mão etc. Não cabe aqui entrar nos pormenores das teorias por trás de cada conceito. Tanto Leyda quanto Sjöberg já trazem essa perspectiva em seus estudos. No início de seu texto, Sjöberg já aponta que “é difícil conceber uma definição de quando um filme se torna compilação ao invés de apenas um filme com excertos de arquivos” (2001, p. 11, tradução do autor)16 16 . Sjöberg conta que, no começo da pesquisa, havia uma ambição em apresentar uma tipologia do filme de compilação, respondendo a questões como “Quais tipos de filme de compilação pertencem à tradição documentária e quais não; qual proporção de um filme deve consistir de material de arquivo para ser referido como um filme de compilação; como definições podem variar entre televisão e cinema (e vídeo e digital), e outras questões relacionadas. [...] ficou claro que essa não era uma forma construtiva e relevante de abordar o material [...]. Arquivos de filmes e de televisão estão repletos de filmes de compilação sobre qualquer assunto, de filmes educacionais a institucionais, de documentários históricos a leves curtas-metragens de entretenimento, ou de filmes de propaganda a filmes produzidos dentro de um contexto de vanguarda”. Ambos, no entanto, assinalam algumas características comuns a ele. Podemos tomar como ponto de partida que “nenhum filme de compilação, por definição, poderia ser construído sem a disponibilidade de filmagens e imagens (fotografias, desenhos, pinturas e outras formas de reprodução visual) já existentes” (SJÖBERG, 2001, p. 39, tradução do autor). Para Leyda, “o trabalho começa na mesa de edição, com filmes que já existiam anteriormente. [...] [e] o filme usado [é] originado em algum lugar do passado” (1964, p. 9, tradução do autor, grifo no original).

Há, no filme de compilação, necessariamente, a ideia de que, para que seja pensado como tal, precise trazer recursos visuais, sonoros e audiovisuais produzidos para outros fins que não o filme em questão, num passado indefinido, e que esses materiais sejam articulados pela montagem. Com isso, existe uma tendência em que “sequências e imagens ganham novo significado em novos contextos” (SJÖBERG, 2001, p. 19, tradução do autor). Esse uso pode ser vasto. Ainda que Leyda trabalhe apenas com filmes não ficcionais (seu estudo é focado no reuso de cinejornais), Sjöberg e outros teóricos abrem a possibilidade da compilação para produções ficcionais - especialmente porque isso se tornou uma prática para filmes que buscam transmitir um efeito de realidade para o espectador. Por conta disso, pode ser improdutivo pensar no filme de compilação como um gênero ou subgênero. Prefiro pensar aqui na compilação como uma ferramenta, que rearticula imagens e sons produzidos para outros fins, possibilitando a criação de novos sentidos a partir da montagem - tomando a montagem não apenas como o trabalho na sala de edição, mas também como todo o processo de seleção do material.

Geralmente, compilar envolve materiais de diferentes procedências, nem sempre previamente identificados. Sjöberg levanta inclusive questões pragmáticas para a composição e a forma do filme de compilação que remetem ao material original. O filme varia de acordo com o acesso à imagem/som, com a qualidade da preservação, com o custo do direito de uso da imagem/som, com a variabilidade dos arquivos-fonte etc. As duas partes de ...a rua chamada Triumpho trabalham com a compilação. No entanto, tais questões não são o mote para Candeias. Ambos os filmes são formados praticamente por fotos feitas pelo cineasta e em menor quantidade, de imagens jornalísticas, presentes especialmente no início do primeiro filme - e, ao que tudo indica, devido aos créditos de colaboradores, publicadas no jornal Última hora. Candeias se auto compila. Ele mesmo (re)organiza, (re)articula, (re)significa suas imagens. Ele acessa seu imenso arquivo, seleciona imagens de forma a compor duas narrativas, escolhe como as disponibiliza na parede, que será posteriormente filmada, e determina o tempo a que teremos acesso às imagens e como elas se articulam com as demais. De tal forma, ele produz novos sentidos sobre sua própria obra, ao transformar as imagens paradas, still, em imagens em movimento, enfatizadas pelo som.

A compilação funciona, portanto, como uma forma de organização de enunciados, questão central para o princípio de arquivo para Foucault. O arquivo, para o teórico, não seria simplesmente o depósito de imagens guardadas em caixas, e sim “o que faz com que as coisas ditas [...] se agrupem em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas” (FOUCAULT, 20087. FOUCAULT Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., p. 147). Ao ordenar as fotografias, criar uma narrativa - por mais fragmentada e repetitiva que seja17 -, Candeias permite justamente que se crie uma relação entre elas, que se elaborem sentidos. Ou seja, ao construir ambos ...a rua chamada Triumpho, ele monta um arquivo. Diz Foucault:

[...] a descrição do arquivo desenvolve suas possibilidades (e o controle de suas possibilidades) a partir dos discursos que começam a deixar justamente de ser os nossos; seu limiar de existência é instaurado pelo corte que nos separa do que não podemos mais dizer e do que fica fora de nossa prática discursiva; começa com o exterior da nossa própria linguagem; seu lugar é o afastamento de nossas próprias práticas discursivas. (Ibidem, p. 148)

Os filmes, assim, se assemelham aos álbuns de família, “uma maneira de arquivar essas imagens [as fotografias]”. Armando Silva continua: “O arquivo é uma maneira de classificar, e será próprio de sua técnica produzir uma ordem aos olhos, posterior ao tempo em que as fotos foram colecionadas” (2008, pp. 23-24).

Num primeiro momento, talvez, ambos os filmes podem parecer usar a imagem secundariamente, apenas para ilustrar a narração expositiva, no entanto, há mais do que aparenta a superfície. Como aponta Sjöberg, “todo filme de compilação pode muito bem carregar um imperativo autorreflexivo em sua própria constituição, independentemente de qualquer intenção do cineasta” (2001, p. 18, tradução do autor). Ao que consta, os curtas são a primeira tentativa de se pensar tais imagens em conjunto18 18 . Posteriormente, as fotos compuseram as exposições "A boca", organizada por José Maria Prado, em 1984, e "Uma rua chamada Triunfo", em 1989, entre outras, e originaram o livro Uma rua chamada Triumpho (2001), realizado pelo próprio cineasta. Como dito, ambos os filmes abrem, pós-créditos, e fecham como uma narração que nos introduz àquele universo e nos informa sobre o que estamos assistindo. ...a rua chamada Triumpho 969/70 começa com uma montagem acelerada, com movimentos bruscos, denotando um aspecto frenético da boemia e do crime. Para situar a vida noturna, o cineasta prioriza os rostos femininos, provavelmente as prostitutas. Pouco depois, amanhece. “Nas primeiras horas do dia, gente de profissão marginal tenta ganhar o seu pão”, diz a narração. A montagem é desacelerada. O tempo de duração de cada fotografia é maior. Candeias aborda a marginalidade com bastante aproximação e pertencimento, pois parece se sentir à vontade frente àquelas pessoas. As imagens são fechadas, closes. Aquelas pessoas que vemos, mesmo não trabalhando em cinema, posam para a câmera, sorriem. Uma senhora de lenço na cabeça, roupas puídas e rosto que traz marcas da idade e do cansaço chama a atenção. Ela aparece em cinco planos distintos; em um deles, Candeias centraliza e foca nela, sendo que nas bordas vemos colegas de cinema.

Nesse trecho, em especial, Candeias cria efeitos de relação e de reação direta entre os planos, ao fragmentar a fotografia e decupá-la, como no cinema clássico, compondo um campo/contracampo (figuras 8 a12). Vemos um plano fechado no rosto da senhora. Em seguida, um close em um garoto que olha para o lado, construindo um raccord de olhar para a direção onde ela estava anteriormente. Só então nos é mostrado o plano aberto da foto, em que vemos a ação transcorrendo. Esse procedimento não só reforça a necessidade de olhar com atenção para aquela pessoa - não porque fez algo extraordinário, mas porque é um ser humano -, como nos conecta com o espaço por meio de seus transeuntes. Pouco depois, vemos a mesma senhora com um cigarro na boca. O rosto está contorcido, como se tentasse puxar a fumaça para dentro. Uma mão acende o cigarro. No plano seguinte, um homem olha para baixo, na direção onde estava a mulher. Ele sorri. Candeias não nos dá a imagem aberta, mas, pelo raccord e pela montagem, assumimos que é aquele homem que acende o cigarro da mulher. Seu olhar é terno e de certa forma emula o nosso olhar - o olhar-câmera - para com aquela senhora. Não há narração durante esse trecho, apenas uma trilha sonora de comentário que enfatiza o olhar afetuoso.

FIGURAS 8 A 12
Ozualdo Candeias, ...a rua chamada Triumpho 969/70, 1971. 35mm, p&b, 11 min, sonoro. Frames do filme.

Se, num álbum, dentro de um eixo principal, há imagens aleatórias, não nomeadas, que apresentam o local, o cerne é registrar os seus. No curta em questão, isso acontece de maneira inesperada. Não há uma construção prévia que prepare o espectador para as pessoas de cinema. A narração vem junto à foto: “Eduardo Llorente, de Lá no meu sertão e Coração de luto, como a maioria do pessoal de cinema, procura a rua, e às vezes nela passa o dia, tratando de seus negócios, sempre cinematográficos”. Após mostrar fotos com a presença de Llorente, segue um respiro: imagens randômicas da rua, a música de fundo. Em movimento vertical, a câmera sai do plano detalhe da torre da Estação Júlio Prestes e chega num plano aberto de profissionais de cinema andando. Eles não são nomeados. O que se segue, no entanto, é a apresentação de diversos personagens, sem interrupção. Agora sim, já preparados, podemos nos atentar àquelas pessoas. Arnaldo Zonari, Hermantino Coelho, Jorge Karam, David Cardoso, Toni Cardi. Os nomes costumam vir acompanhados de um aposto, que os identifica: Zonari, “exibidor, distribuidor e produtor brasileiro dos mais antigos aqui instalados”; Karam, “de Meu nome é... Tonho” etc. Em geral, vemos primeiro um close, quando o nome do retratado é enunciado na narração, e depois a foto se abre, seja a partir de um movimento de afastamento, seja por corte seco. Por vezes, a câmera se desloca vertical ou horizontalmente. Ocorre também o oposto: a câmera se fecha sobre um plano aberto. Às vezes, a mesma foto reaparece nos filmes, para identificar outro personagem ( como nos casos de Anselmo Duarte e Sérgio Hingst; John Herbert e Luiz Gustavo).

Parece não haver lógica na articulação das pessoas, e isso se dá por não haver categorização. Não vemos blocos de diretores, atores, técnicos, produtores, distribuidores, gestores culturais, críticos etc. Estão todos misturados, em convívio, sem hierarquia. O diretor conversa com o ator da mesma forma que com o eletricista. No entanto, se há trechos dos filmes especialmente dedicados àqueles que não são de cinema, estes também permeiam todos os demais momentos - e aqui o grau de hierarquia se dá pelo filme (não pelas fotos), ao não os nomear.

Pela forma como está articulado pela montagem, parece que um álbum de fotos está sendo folheado, e uma presença mais antiga está a contar aquela história. Destaca algumas presenças, reforça o nome, foca.

Tal sensação é acentuada em ...a rua chamada Triumpho 970/71. Neste curta, assume-se um caráter de continuação, mesmo que algumas informações sejam repetidas - com outro texto. O primeiro personagem aparece muito mais rapidamente, no meio da exposição: “Jaime, o cubano, o de chapéu”. Os personagens se avolumam. Uma suposta exatidão do primeiro filme se desfaz no segundo. Há incorreções: por exemplo, o narrador diz “Augusto Pereira, de O gato da madame”, quando o correto é Agostinho; “diretor, produtor d’As armas, Benedito Araújo Astolfo”, quando a ordem é Benedito Astolfo Araújo. Há informações incompletas: ao vermos uma imagem de Júlio Calasso, ouvimos “diretor, produtor de Longo caminho da morte”, mas não seu nome. Às vezes, os retratos não são acompanhados da narração. Há também imprecisões que denotam a familiaridade com os sujeitos em questão (por exemplo, “Jean, Renato, Dedé e Batista”). Araújo aponta que “o que importa são, antes de tudo, os rostos, as expressões, a maneira como os corpos se dispõem diante da câmera” (2002, p. 43). Todas essas características reforçam o caráter doméstico, de um relato sobre seus pares, sobre seu lugar. Perde-se a pretensão do documentário expositivo.

Há ironias no primeiro filme. Em determinado momento, ao falar sobre as diferentes correntes do cinema feito na Boca, capaz de amealhar tanto prêmios quanto público, o narrador crava: “Afinal, nessa rua, todos são donos de verdades cinematográficas”. Há uma leve ironia na fala, que também aponta o caráter plural da produção. O segundo filme acentua essa característica. A locução de Fábio Perez se inscreve dentro de uma tradição documental bastante afirmada, a da voz de autoridade. Diz Bill Nichols (201214. NICHOLS Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2012., p. 142): “A tradição da voz de Deus fomentou a cultura do comentário com voz masculina profissionalmente treinada, cheia e suave em tom e timbre, que mostrou ser a marca de autenticidade do modo expositivo”. Ela, por exemplo, preserva a seriedade da frase do primeiro filme. Há, em ...a rua chamada Triumpho 970/71, no entanto, um dissenso entre a voz empostada e o que se diz. Por exemplo: “Diariamente, nestas carroças, obras-primas e bagulhos da cinematografia internacional dão os primeiros passos rumo aos cinemas de todo o Brasil”. Existe uma institucionalidade na voz de autoridade que parece se desfazer com a palavra “bagulhos”, no sentido mais mundano e provocativo que ela pode adquirir.

Esse viés bem-humorado aparece, no primeiro filme, ao final. Ao fechar-se o ciclo do dia, voltar para a noite, vemos vários retratos feitos com lente olho de peixe (grande angular), que curvam e distorcem completamente a imagem. “Esses caras, ou melhor, alguns desses caras falam de cinema sério”, diz a narração. Ao término da fala, vemos uma imagem de Candeias completamente deformada, sua cabeça parecendo um balão, cada olho apontando para um ponto diferente de referência (figura 13). “O que seria ser sério em cinema? Quem é ou quem tem sido sério no nosso cinema?”, completa a voz. As fotos, jocosas, são todas frontais, com o retratado olhando diretamente para a câmera, rindo. Eles sabem da blague, anteveem o resultado da imagem, divertem-se com isso. A narração reforça que a seriedade não é um valor a ser considerado. Existe uma experimentação nas fotografias, mas, mais que isso, existe a pilhéria muito afeita aos que são próximos. As fotos, a narração, seu encadeamento, não teriam graça se não percebêssemos a intimidade entre o fotógrafo, o cineasta e seus retratados.

FIGURA 13
Ozualdo Candeias, ...a rua chamada Triumpho 969/70, 1971. 35mm, p&b, 11 min, sonoro. Frame do filme.

Além dessa parte, há outros momentos, nos dois filmes, em que vemos fotos de Candeias. No primeiro deles, o cineasta aparece como mais uma imagem. Apenas no segundo filme é identificado: “Ozualdo Candeias, d’A margem, É Tonho e A herança”. As pessoas mais próximas, que com ele trabalharam naquela época, permeiam todo o primeiro filme, mas é no segundo que têm mais espaço: Walter Portella, o “Gaúcho” (Virgílio Roveda), Bibi Vogel, Valéria Vidal, Luiz Elias, Eliseu Fernandes, Bentinho etc. ...a rua chamada Triumpho 970/71 torna-se mais íntimo e mais afetivo não só pela forma, afastando-se da seriedade tradicional do modelo expositivo do documentário, mas também pelas pessoas que destaca, importantes dentro da história do cineasta. Conforme Araújo (20021. ARAÚJO Inácio. O limbo das almas e as anomalías dos corpos. In PUPPO, Eugenio (org.). Ozualdo R. Candeias. São Paulo: Heco Produções, 2002, pp., p. 43), “o sabor de rascunho desses registros vem menos da precariedade da realização do que da forma de encarar o lugar, a atividade cinematográfica e os frequentadores”.

Uma questão que se levanta é: se Candeias aparece nas fotos, quem as tirou? De certa forma, isso importa menos. Existe uma subjetividade no ato de fotografar, mas dentro da perspectiva doméstica, a foto não tem autoria, pertence ao dono da máquina e, em última instância, ao grupo. Como diz Susan Sontag (200422. SONTAG Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 18), a fotografia é “sobretudo um rito social”. Em uma situação social, a câmera circula entre diferentes pessoas, registram-se várias perspectivas, que denotam, acima de tudo, o coletivo, o evento, o conjunto. O princípio de autoria, tão caro à arte, é deixado de lado, pois não faz muita diferença quem registrou aquele momento, importa que ele foi registrado e que, posteriormente, ele poderá ser lembrado. O que vale aqui, portanto, é que o cineasta se apropria dessas imagens aparentemente sem autoria para, 1) apresentar-se enquanto personagem daquela comunidade, e, também, 2) para, dentro do espírito mais bem-humorado do segundo filme, jogar com a própria condição de sujeito-personagem.

Nos filmes de compilação, a montagem costuma ter um papel central. Se, no cinema em geral, a junção de uma imagem à outra pode modificar completamente o sentido do que está sendo construído, na compilação, isso é acentuado. As imagens pregressas não são, necessariamente, destituídas de seu sentido original. O fato de fazerem parte da memória coletiva permite a um largo público ressignificar as imagens. Pequenos trechos, às vezes, trazem um manancial de referências, de provocações, enorme. Não é o caso de ambos ...a rua chamada Triumpho. A compilação aqui cria sentidos pelo acúmulo, pela profusão de imagens, pelos fragmentos que se aglomeram, nos quais cada nova imagem implica uma nova informação/sensação. E pelo extrafílmico: são filmes quase inteiramente realizados por Ozualdo Candeias (fotos, roteiro, câmera, direção), que refletem sua história naquele ambiente. Como em um álbum, ainda que haja o prazer de olhar as imagens isoladas, o que vale é o todo, o conjunto. “O álbum conta histórias”, diz Silva.

Essa vocação narrativa nos leva a encarar esse tesouro visual também como fato literário, pois há diferença entre guardar e classificar fotos para reconhecer alguém quanto a um traço distintivo e fazê-lo para destacar esse alguém como membro de um grupo, juntando as imagens para recriá-las aos olhos, como um relato caprichoso, que se atualiza com o passar dos anos. (SILVA, 200820. SILVA Armando. Álbum de família: a imagem de nós mesmos. São Paulo: Senac, Sesc, 2008., p. 23)

Por isso a ideia do filme-álbum. Tal premissa já aparece, de certa forma, nos créditos iniciais. Eles se desenrolam sobre uma colagem sem foco. O filme é 1.33:119, a colagem é mais horizontal. Ao redor dela, forma-se uma moldura, que tem diferente cor (cinza escura) e textura da colagem, quase como se aquela imagem estivesse colada num papel cartonado de álbum (figura 14).

FIGURA 14
Ozualdo Candeias, ...a rua chamada Triumpho 969/70, 1971 35mm, p&b, 11 min, sonoro. Frame do filme.

Cinema como memória: a reencenação nos filmes

Fábio Uchôa já aponta que, embora Candeias atribuísse à sua produção “um caráter esporádico, ingênuo e sem propósito aparente, as fotografias consultadas remetem-nos a um empenho ou um projeto. Há um esforço, quase compulsivo, de fixar os corpos dos frequentadores da Boca naquele espaço” (2019, p. 296). O texto de Uchôa se restringe à consulta ao material presente na Cinemateca, mas pode ser pensado para toda a trajetória documental de Candeias para com a Boca do lixo. Ambos ...a rua chamada Triumpho partem de um primeiro esforço organizacional, arquivístico. São realizados quase no calor do momento, com fotos recentes.

Foi o primeiro esforço organizacional, mas não o último. No material depositado na Cinemateca, há um livro-álbum sobre diretores brasileiros20 em que ele utiliza diversas das fotos que vimos nos dois curtas-metragens. Por fim, o livro Uma rua chamada Triumpho (CANDEIAS, 20014. CANDEIAS Ozualdo. Uma rua chamada Triumpho. São Paulo: Ed. do autor, 2001.), que Candeias só conseguiu viabilizar em 20014. CANDEIAS Ozualdo. Uma rua chamada Triumpho. São Paulo: Ed. do autor, 2001., por conta própria. No começo do livro, ele diz:

Os presentes retratos devem ser mirados somente como documentais e fazê-los como foram feitos foi melhor do que não fazê-los, penso... A ideia era fazer um livro fotográfico dos diretores de cinema de ‘ontem e hoje’ de nosso cinema mas... não deu e deu no que deu. (Ibidem, p. 9)

O livro, lançado muito tempo depois de aquelas fotos terem sido tiradas, incorpora bastante do que havia sido pensado no livro-álbum e também repete o que foi visto nos filmes. Eleacaba sendo a perpetuação de um longo trajeto no cinema da Boca e do seu ser fotógrafo, especialmente se pensarmos que seus trabalhos anteriores não tinham realmente acontecido, pois não chegaram ao público - o livro-álbum de diretores nunca foi publicado e os dois curtas não circularam à sua época21 -, sem deixar de lado sua inventividade, ao trabalhar com colagens, operação em que Candeias mescla diferentes fotos em uma só composição.

No livro, há de fato um desejo de comunicar para um público maior: “Nas páginas finais há indicação de livros que podem explicar, parcial ou totalmente, a vida dos profissionais retratados no presente ‘álbum’ e, consequentemente, a existência do Cineboca” (Ibidem, p. 9). Ele mesmo usa o termo “álbum”. Pode não aferir ao álbum de família, mas pensa como um álbum de fotos, não um livro, um produto essencialmente comercial. Ainda estamos no domínio do registro doméstico. Para além do registro fotográfico, Candeias pontua todo o livro com informações, relatos, tabelas e imagens de jornais que corroboram sua visão sobre o lugar. Todo o material está montado de forma harmônica, funcionando não só como legenda, mas como parte das colagens. Tal característica não está muito distante dos álbuns de família. Segundo Silva,

Aquilo que culturalmente chamamos de álbum familiar costuma ser ainda outra coisa, e não apenas um arquivo de fotos. Nele incluem-se outros objetos, também visuais, mas nem sempre de natureza fotográfica. Ou seja, o álbum é, de forma literal, um livro aberto, não só porque está disposto a receber o que vier no futuro, mas porque nele entram diferentes objetos, da mais variada natureza, que se mesclam às fotos, dando abertura a um sentido de interação entre seus usuários [...]. ( SILVA, 200820. SILVA Armando. Álbum de família: a imagem de nós mesmos. São Paulo: Senac, Sesc, 2008., p. 64)

Tampouco se deve desprezar a idade de Candeias quando lançou o livro - oficialmente, tinha 79. Encontrava dificuldades para viabilizar novos filmes desde o começo dos anos 1990. Lançar o livro concretizava um projeto de vida, mesmo que tenha sido um projeto realizado às margens, doméstico, feito de forma dispersa: “As informações sobre os retratados foram garimpadas, vivenciadas, terceirizadas etc. etc. etc.” (CANDEIAS, 20014. CANDEIAS Ozualdo. Uma rua chamada Triumpho. São Paulo: Ed. do autor, 2001., p. 9).

O que os três curtas ensaiam e o livro efetiva é a construção da memória da Boca do lixo. Ensaiam, pois são contemporâneos, não olham necessariamente para o passado, como faz o livro, e são fragmentados, circunscritos a momentos específicos. Segundo Herta Franco, há no livro um fim maior, mais ligado à comunicação com o outro:

Aquilo que culturalmente chamamos de álbum familiar costuma ser ainda outra coisa, e não apenas um arquivo de fotos. Nele incluem-se outros objetos, também visuais, mas nem sempre de natureza fotográfica. Ou seja, o álbum é, de forma literal, um livro aberto, não só porque está disposto a receber o que vier no futuro, mas porque nele entram diferentes objetos, da mais variada natureza, que se mesclam às fotos, dando abertura a um sentido de interação entre seus usuários [...]. ( SILVA, 200820. SILVA Armando. Álbum de família: a imagem de nós mesmos. São Paulo: Senac, Sesc, 2008., p. 64)

Não há como, no entanto, desconsiderar o caráter nostálgico do livro, que é inerente a todo álbum de família22 22 . O livro termina como o começo dos contos de fadas: “Era uma vez a boca do lixo / da pornochanchadas. / Também era uma vez / uma rua chamada Triumpho, / Carcaça, Toni e Garret / Thomé e Ody / e outros mais. / Já eram... uma vez” (CANDEIAS, 2001, p. 132). Colocada no final, dá o peso do desfecho, do que já mais não está - que o conto de fadas de fato terminou. O livro retorna aos filmes. Ele olha para o passado à luz do presente pensando no que construirá para o futuro. Há uma necessária revisão dessa história. Nos filmes, ele busca se comunicar com o presente desse cinema; não à toa, chama Bocadolixocinema, nos letreiros, de reportagem. A intenção ali é distinta.

Não se deixa de pensar na posteridade, evidentemente, mas a forma de olhar é outra. Candeias, quando faz ...a rua chamada Triumpho 969/70, ...a rua chamada Triumpho 970/71 e Bocadolixocinema, não sabe o que irá acontecer com a Boca do lixo. Registra e organiza os filmes no auge daquela produção. A memória que constrói, portanto, é diversa, talvez até mais interessante. Segundo Jacques Le Goff (2013, p. 435), “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”. O que vemos na trilogia é justamente uma forma de criar uma identidade do que era a Boca do lixo, de refletir uma comunidade, de explorar um pertencimento.

Quando Candeias faz os filmes, perpetua-se uma visão sobre aquele espaço e aquelas pessoas, conserva-se a Boca do lixo em outro suporte, tal qual nos álbuns de família.

A função do álbum não seria mostrar nada novo, a não ser em casos excepcionais, mas conservar o que já foi visto, anunciado muitas vezes, até se tornar o rito de um ato reiterado. O álbum de fotos de família não tem por função anunciar, mas conservar várias vezes o anunciado pela foto ou por outros meios. (SILVA, 200820. SILVA Armando. Álbum de família: a imagem de nós mesmos. São Paulo: Senac, Sesc, 2008., p. 37)

Há uma dimensão quase performática que os curtas, em especial os dois filmes de compilação, operam na construção da memória. Tanto ...a rua chamada Triumpho 969/70 quanto ...a rua chamada Triumpho 970/71 (re)organizam um arquivo. Não bastou fazer o registro, materializá-lo nas impressões. Aquelas imagens foram recapturadas, colocadas em novo suporte, como se, ao refixá-las, fosse possível recriar aqueles momentos, re-encenar tais acontecimentos e transformar a memória em documento23 23 . Em entrevista a Gamo, Candeias disse: “[...] eu gosto muito de documentar. É que eu acho que um filme é um negócio tão complicado, tão caro, e tão difícil de fazer, e é também uma das coisas que duram um pouco, não é, que seria um crime fazer besteira como se faz. Então alguém deveria se preocupar com a coisa documental”. (GAMO, 2000, p. 86). É assertivo: aquelas imagens devem ser preservadas, perpetuadas. Nisso, há um dever de memória inerente, mesmo que involuntário. Conforme aponta Ricoeur,

Não é somente o caráter penoso do esforço da memória que dá à relação sua coloração inquieta, mas o temor de ter esquecido, de esquecer de novo, de esquecer amanhã de cumprir esta ou aquela tarefa; porque amanhã será preciso não esquecer... de se lembrar. Aquilo que [...] chamaremos de dever da memória consiste essencialmente em dever de não esquecer. (RICOEUR, 200719. RICOEUR Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007., p. 48)

Fotografar, filmar, organizar, compilar, montar, imprimir, revelar. Ao registrar seus pares, seu entorno, ao retrabalhar, ao longo dos anos, o mesmo material de forma quase compulsiva, Candeias está permanentemente a olhar para a Boca do lixo e a sedimentar essas memórias - e também a expor todo esse processo de construção, com suas diferenças e nuances através dos tempos. E esse desejo que pareceu mais consciente ao final da vida, com o livro, é iminente em ...a rua chamada Triumpho. Os curtas moldam tudo o que virá. Eles permitem - mesmo que sua função de circulação tenha sido interrompida - que as imagens perdurem, que se reviva a Boca através delas. “Dizer ‘você se lembrará’, também significa ‘você não esquecerá’. Pode até ser que o dever de memória constitua ao mesmo tempo o cúmulo do bom uso e do abuso no exercício da memória”24 24 . Vale dizer, não sem uma série de questionamentos: “Como é possível dizer ‘você se lembrará’, ou seja, contará no futuro essa memória que se apresenta como guardiã do passado? [...] De que maneira esse movimento prospectivo do espírito voltado para a lembrança como uma tarefa a cumprir se articula com as duas disposições deixadas como que em suspenso, a do trabalho da memória e a do trabalho do luto, consideradas alternadamente de modo separado e em dupla? De certa forma, ele prolonga seu caráter prospectivo. Mas o que lhe acrescenta?” (RICOEUR, 2007, p. 100).

As imagens dos três filmes clamam por serem lembradas, por não serem esquecidas. Os rostos, os nomes. Os três filmes constantemente dizem: essas pessoas estiveram ali; beberam, cantaram, riram, conversaram, fizeram filmes. Ricouer pontua que “o dever de memória é o dever de fazer justiça, pela lembrança, a um outro que não o si” (RICOEUR, 200719. RICOEUR Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007., p. 101). A cada vez que são vistos os filmes, aquelas situações são reencenadas; ecoam.

Isso é mais premente quando visto com a devida distância do passado. Olhar hoje, em 2022 (ou em 2007, em 2030 etc.), é olhar de outra forma, olhar diferente de como Candeias olhou em 1967, 1969, 1971, 1976 ou mesmo em 2001. Talvez já não seja mais, necessariamente, as particularidades da rua, tão destacadas nas narrações - a convivência entre a prostituição, o crime e o cinema - ou a insólita participação das carrocinhas que carregavam os rolos de filmes na construção do cinema nacional ou mesmo o convívio harmônico na festa de final de ano o que chama tanto a atenção. O que Susan Sontag diz sobre a fotografia pode ser, de certa forma, estendida a essas produções de Candeias:

[...] aquilo que a fotografia fornece não é apenas um registro do passado mas um modo novo de lidar com o presente [...]. Enquanto fotos velhas preenchem nossa imagem mental do passado, as fotos tiradas hoje transformam o que é presente numa imagem mental, como o passado. As câmeras estabelecem uma relação inferencial com o presente (a realidade é conhecida por seus vestígios), proporcionam uma visão imediatamente retroativa da experiência. (SONTAG, 200422. SONTAG Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 183)

Ou seja, talvez importe menos o que Candeias relata, e sim que o dever da memória, a necessidade dessa perpetuação, é devir; que essas memórias se transformam e se ressignificam - e por isso perduram. A maioria das pessoas fotografadas e filmadas por Candeias nesses filmes já faleceu, assim como o próprio cineasta. A questão afetiva não está, portanto, no fato de termos conhecido ou não aquelas pessoas - ainda que isso possa acentuar a experiência -, e sim em como ele organiza, compila e firma aquelas imagens domésticas, de ordem privada. É isso que faz transparecer o afeto e faz com que nos identifiquemos com elas. Apreendemos o esforço, o trabalho e o carinho em fixar tais lembranças - tal como nos álbuns de família. Juntos, nós e as imagens, reencenamos essas memórias, preservamos essas reminiscências.

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NOTAS

  • 1
    . Registrado em 1922 em Cajobi (SP), o próprio Candeias dizia não saber quando ou onde nasceu: “[...] tenho a impressão, pelo que minha mãe me dizia, que nasci antes. Pode ter sido em 1918, logo depois da Primeira Guerra Mundial, em algum lugar do Estado de São Paulo ou de Mato Grosso, que na época era um Estado só. O certo é que não sei exatamente quando nem onde nasci nem por que fui registrado em Cajobi” REIS (2010, p. 139).
  • 2
    . Cf. PUPPO (2002), REIS (ibidem).
  • 3
    . Cf. PUPPO (2004), RAMOS (1987).
  • 4
    . Cf. MENDES (2002, p. 94).
  • 5
    . O pesquisador Fábio Uchôa (2019, p. 295) investigou esse início: “A informação de que Candeias inicia o trabalho com fotografias a partir de 1967, presente em depoimento do cineasta, contrasta com os dados de um currículo, escrito possivelmente por ele mesmo, em 1979. No referido documento, entre os anos de 1964-67, consta uma viagem por países da América do Sul, levantando dados para a realização de um longa-metragem sobre culturas incaicas e pré-incaicas. Neste contexto, Candeias toma imagens de populações andinas, organizadas no documentário América do Sul (1965). De acordo com o currículo consultado, haveria ainda cerca de 3.000 fotografias, realizadas durante a mesma viagem. Quanto à existência e ao destino de tais materiais, não conseguimos maiores informações”.
  • 6
    . Geograficamente, a Boca do lixo está situada no centro de São Paulo, próxima às estações da Luz e Júlio Prestes. Nos anos 1950, recebeu esse nome por ser pauta das crônicas policiais da cidade. A proximidade com as estações ferroviárias atraiu o cinema já nos anos 1920, pois isso facilitava o transporte e a distribuição das cópias dos filmes.
  • 7
    . Segundo Uchôa (2019, p. 294): “Entre os documentos constituintes da Coleção Ozualdo Candeias, depositados na Cinemateca Brasileira, há: duas pastas de fotografias feitas na Boca do lixo, contendo cerca de 50 fotografias cada; um álbum de fotografias de cineastas brasileiros composto por 110 páginas […]; uma coleção de retratos de diretores de cinema emolduradas em pequenos quadrinhos, com 9 retratos; um conjunto de retratos também de cineastas, baseado em fotomontagens; além, das fotos de still feitas para os filmes O meu nome é Tonho (1969) e Aopção (1981)”.
  • 8
    . Como Candeias começou a frequentar a região em 1967 e já possuía câmera, pode-se supor que os registros começaram antes.
  • 9
    . Segundo Gamo, o diretor chamou seu processo de “parede-top”, pois colou as imagens na parede e as filmou movimentando a câmera pelo espaço. Cf. GAMO ( 2019, p. 123).
  • 10
    . Certificado de Produto Brasileiro, exigido para se enquadrar na lei e ser comercializado.
  • 11
    . Cf. BLANK (2015), FOSTER (2010).
  • 12
    . Prefiro utilizar o termo “doméstico” a “filme de família”, pois, justamente, me parece permitir expandir o conceito de família, e abarcar a ideia do registro de ordem privada e afetiva. No caso de “amador”, como aponta Foster (2016), a relação é muito menos temática e mais material - existem filmes amadores de ficção, experimentais etc.
  • 13
    . Não há qualquer menção a essa relação no filme, mas no livro Uma rua chamada Triumpho, Candeias escreve: “Roberto e Biáfora tidos como tayhua/inimigos cinematográficos pela comunidade ‘bocacine’”. (CANDEIAS, 2001, p. 69).
  • 14
    . Uchôa (2019, p. 301) já aponta a similaridade entre o conjunto de fotos depositadas na Cinemateca e um álbum de família: “Nas fotografias de Candeias, Boca não é um mero espaço da cidade. Trata-se de um reduto, relacionado a um imaginário de crimes e prostituição, cuja marginalidade é compartilhada com as pessoas fotografadas. Estas últimas, em sua grande maioria provenientes de classes populares, são retratadas pelo cineasta/fotógrafo de maneira próxima, honrosa e nostálgica. Por outro lado, em termos das poses e dos usos, parte do material examinado poderia ser pensado como um grande álbum de família, tomando a Boca do Lixo como uma grande comunidade de pertencimento”.
  • 15
    . Assim como a querela entre “filme doméstico” e “filme de família” e “cinema amador”, há um dissenso quanto a como nomear e pensar filmes que se utilizam de imagens/sons previamente realizadas/os. Filmes de compilação, filme de arquivo, filme de montagem, found footage films, cinema de segunda mão etc. Não cabe aqui entrar nos pormenores das teorias por trás de cada conceito. Tanto Leyda quanto Sjöberg já trazem essa perspectiva em seus estudos.
  • 16
    . Sjöberg conta que, no começo da pesquisa, havia uma ambição em apresentar uma tipologia do filme de compilação, respondendo a questões como “Quais tipos de filme de compilação pertencem à tradição documentária e quais não; qual proporção de um filme deve consistir de material de arquivo para ser referido como um filme de compilação; como definições podem variar entre televisão e cinema (e vídeo e digital), e outras questões relacionadas. [...] ficou claro que essa não era uma forma construtiva e relevante de abordar o material [...]. Arquivos de filmes e de televisão estão repletos de filmes de compilação sobre qualquer assunto, de filmes educacionais a institucionais, de documentários históricos a leves curtas-metragens de entretenimento, ou de filmes de propaganda a filmes produzidos dentro de um contexto de vanguarda”.
  • 17
    . Vale apontar que Sjöberg (2001) elenca quatro questões centrais ao filme de compilação: o fragmento, a montagem, a repetição e a audiovisualidade.
  • 18
    . Posteriormente, as fotos compuseram as exposições "A boca", organizada por José Maria Prado, em 1984, e "Uma rua chamada Triunfo", em 1989, entre outras, e originaram o livro Uma rua chamada Triumpho (2001), realizado pelo próprio cineasta.
  • 19
    . Janela de exibição cinematográfica que traz como proporção do quadro para cada 1.33 de extensão horizontal, 1 de vertical.
  • 20
    . “Cada uma das 110 páginas possui entre um e três retratos. No início do álbum, encontram-se cineastas estranhos à Boca do Lixo. Entre eles: José Medina, os irmãos Del Picchia, Vittorio Capellaro, Trigueirinho Neto e Abílio Pereira de Almeida. Já a partir da segunda dezena de fotografias, passa-se ao espaço da Boca do Lixo e seus frequentadores”. (UCHÔA, 2019, p. 301)
  • 21
    . Os filmes chegaram a ser exibidos em mostras muito tempo depois, como nas da Heco, e o primeiro hoje encontra-se pirateado na internet.
  • 22
    . O livro termina como o começo dos contos de fadas: “Era uma vez a boca do lixo / da pornochanchadas. / Também era uma vez / uma rua chamada Triumpho, / Carcaça, Toni e Garret / Thomé e Ody / e outros mais. / Já eram... uma vez” (CANDEIAS, 2001, p. 132). Colocada no final, dá o peso do desfecho, do que já mais não está - que o conto de fadas de fato terminou.
  • 23
    . Em entrevista a Gamo, Candeias disse: “[...] eu gosto muito de documentar. É que eu acho que um filme é um negócio tão complicado, tão caro, e tão difícil de fazer, e é também uma das coisas que duram um pouco, não é, que seria um crime fazer besteira como se faz. Então alguém deveria se preocupar com a coisa documental”. (GAMO, 2000, p. 86).
  • 24
    . Vale dizer, não sem uma série de questionamentos: “Como é possível dizer ‘você se lembrará’, ou seja, contará no futuro essa memória que se apresenta como guardiã do passado? [...] De que maneira esse movimento prospectivo do espírito voltado para a lembrança como uma tarefa a cumprir se articula com as duas disposições deixadas como que em suspenso, a do trabalho da memória e a do trabalho do luto, consideradas alternadamente de modo separado e em dupla? De certa forma, ele prolonga seu caráter prospectivo. Mas o que lhe acrescenta?” (RICOEUR, 2007, p. 100).
  • SOBRE O AUTOR: Gabriel Henrique de Paula Carneiro é jornalista, diretor de filmes, crítico e pesquisador de cinema, Doutorando e Mestre em Multimeios pelo Instituto de Artes, da Universidade Estadual de Campinas. Sócio fundador da Abraccine - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Escreveu, entre outros, para a Revista de cinema e para os sites Revista Zingu! e Cinequanon. Colaborou com a Enciclopédia de inema Brasileiro do Itaú Cultural e com diversos catálogos e livros, entre eles a Trajetória da crítica de cinema no Brasil (Letramento, 2019). Organizou, com Paulo Henrique Silva, os livros Animação brasileira: 100 filmes essenciais (Letramento, 2018) e Curta brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2019).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Abr 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2020
  • Aceito
    24 Mar 2022
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