Resumo
Este artigo tem o objetivo de analisar, em uma perspectiva da Oceanografia Socioambiental, a produção do pescador artesanal por um grupo de profissionais que mobilizaram conhecimentos e verdades para a criação de uma legislação de pesca no estuário da Lagoa dos Patos (RS). Como resultado, observa-se uma formação discursiva estruturada por eixos paradigmáticos clássicos da oceanografia que operam no sentido de estereotipificar os pescadores artesanais e influenciam a criação de políticas públicas.
Palavras-chave:
Oceanografia de saberes; etnooceanografia; território do discurso
Abstract
The aim of the present article is to analyze, from a Socio-Environmental Oceanography perspective, the production of artisanal fishermen by a group of professionals who mobilized knowledge and truths to create the fishery legislation for Lagoa dos Patos estuary (Rio Grande do Sul - Brazil). Results have shown a discursive formation structured by CO’s paradigmatic axes, which operate in the sense of stereotyping artisanal fishermen and of influencing the creation of public policies.
Keywords:
Oceanography of knowledges; ethno-oceanography; territory of discourse
Resumen
Este artículo tiene como objetivo analizar, desde una perspectiva de la Oceanografía Socioambiental, la producción de pescadores artesanales por parte de un grupo de profesionales que movilizó conocimientos y verdades para la creación de legislación pesquera en el estero Laguna de Patos (Rio Grande do Sul - Brasil). Como resultado, es posible observar una formación discursiva estructurada por ejes paradigmáticos clásicos de la oceanografía que operan en el sentido de estereotipar a los pescadores artesanales e incidir en la creación de políticas públicas.
Palabras-clave:
Ecologia de conocimientos; etnooceanografía; território de discurso
Introdução
Nos últimos vinte anos, a Oceanografia Clássica Hegemônica (OC) tem passado por uma transformação crítica ancorada na Oceanografia de saberes e por meio de um “giro decolonial”1 1 - Giro decolonial é o movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico à lógica da modernidade/colonialidade (NARCHI et al., 2018). no engajamento com o mundo marinho-costeiro, reforçando a luta por justiça socioambiental. Essas rupturas paradigmáticas têm ocorrido a partir de experiências no ensino superior, na pesquisa, na extensão em diversos países das Américas, sobretudo na América Latina (MOURA, 2019________. Construção da crítica à oceanografia clássica: contribuições a partir da oceanografia socioambiental. Revista Ambiente e Educação, Rio Grande, v. 24, n. 2, p. 13-41, 2019.; NARCHI et al., 2018NARCHI, N. E. et al. El CoLaboratorio de Oceanografía Social: espacio plural para la conservación integral de los mares y las sociedades costeras. Ambiente y Sociedad, n. 18, v. 7, 2018, pp. 285-301.).
Essa perspectiva crítica emergente, chamada no Brasil de Oceanografia Socioambiental (OS), têm identificado quatro pilares que estruturam a OC. Um deles seria a criação de uma modalidade de biocentrismo aplicada aos mares, o Oceanocentrismo. Um outro seria a consolidação do paradigma da tragédia dos comuns nos mares, a Tragédia dos Oceanos. O totalitarismo epistêmico, que seria a crença da OC enquanto um espaço privilegiado, ou até mesmo único, de produção de conhecimentos sobre os mares entre todos os modos de saber e até mesmo entre as ciências modernas. Como resultado, há uma ação programática da OC de se consolidar enquanto único modo de saber válido sobre os mares, invisibilizando e/ou destruindo os demais saberes, produzindo uma Monocultura dos Mares (MOURA, 2019________. Construção da crítica à oceanografia clássica: contribuições a partir da oceanografia socioambiental. Revista Ambiente e Educação, Rio Grande, v. 24, n. 2, p. 13-41, 2019.). E o que temos chamado de machismo estrutural-oceanográfico a partir das evidências trazidas por Revelle (1980REVELLE, R. The Oceanographic and how it grew. In SEARS, M.; MERRIMAN, D. (Eds.) Oceanography: The Past. New York: Springer-Verlag, 1980, p. 10-24.), Rozwadowski (2005ROZWADOWSKI, H. M. Fathoming the ocean: the discovery and wxploration of the deep sea. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2005.) e Kroll (2008KROLL, G. America’s ocean wilderness: a cultural history of twentieth-century exploration. Lawrence: University Press of Kansas, 2008.) que mostram a instituição de relações de poder assimétricas de gênero que resultam em uma produção de não-existência do feminino sob uma lógica singular que remonta a viagem do Challenger, uma das narrativas míticas de fundação da oceanografia clássica.
A ruptura com as estruturas da OC ocorre a partir do alinhamento à vertente socioambientalista de proteção da natureza (MOURA, 2019________. Construção da crítica à oceanografia clássica: contribuições a partir da oceanografia socioambiental. Revista Ambiente e Educação, Rio Grande, v. 24, n. 2, p. 13-41, 2019.), um giro decolonial genuinamente brasileiro, oriundo dos movimentos dos seringueiros amazônicos do Acre, que se espalhou pelo país na segunda metade da década de 1980 (FOPPA et al., 2020). Essa nova oceanografia tem definido o seu objeto de estudo, os espaços (etno)oceanográficos, uma modalidade de espaços epistêmicos. Em uma perspectiva de território como conhecimento, os espaços (etno)oceanográficos podem ser definidos como um conjunto de práticas socialmente organizadas de produção de conhecimentos no processo de engajamento de grupos sociais (hegemônicos ou subalternizados) com os mundos marinhos-costeiros (MOURA, 2019).
Quando múltiplos mundos são classificados, ordenados e nomeados ocorre uma intervenção sobre o mundo, uma operação epistêmica. Esta operação epistêmica atua sobre o mundo de acordo com modalidades históricas, culturais e sociais, ou seja, de acordo com uma lógica (THOMAS, 1994THOMAS, N. Colonialism’s culture: anthropology, travel and government. Cambridge: Polity Press, 1994.). Cada um dos modos de operação produz diferentes espaços (CERTEAU, 1996CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: arte de fazer. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1996.), ambos ligados a diferentes modos de conhecer. Portanto, a produção de um espaço epistêmico ocorre via operação epistêmica (MOURA, 2017MOURA, G. G. M. Guerras nos mares do sul: o papel da oceanografia na destruição de territórios tradicionais de pesca. São Paulo: Annablume, 2017.).
Há vários campos de pesquisa em OS, entre elas a etnooceanografia. Ela tem desenvolvido uma abordagem de conflitos socioambientais a partir da análise de duas dimensões do espaço (etno)oceanográfico: uma ligada às atividades profissionais (MOURA, 2017MOURA, G. G. M. Guerras nos mares do sul: o papel da oceanografia na destruição de territórios tradicionais de pesca. São Paulo: Annablume, 2017.) e outra ao espaço mítico (BITTENCOURT et al., 2017BITTENCOURT, C. A; ROSA, R. R. G.; MOURA, G. G. M. ‘Se ela tá vendo, eu também posso ver’: a etnografia na colônia de pescadores Z3, Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. Tessituras, Pelotas, v. 5, n. 1, 2017. p. 56-86.). Nesse artigo, pretendemos explorar uma terceira dimensão deste espaço: o espaço (epistêmico) do discurso, especificamente interessados nas formas de dominação que produzem desigualdades e injustiça sociais, ou seja, no que Van Dijk (2017) chama de abuso de poder.
O espaço (etno)oceanográfico do discurso
O universo do discurso é heterogêneo e estruturado por regimes de fala, onde se interroga sobre a relação entre os tipos de discurso e o espaço, o conjunto de práticas discursivas da sociedade e o espaço social. Em qualquer sociedade, pede-se a certos locutores, ligados a uma fonte legitimadora (religião, ciência etc.), que versem sobre determinado problema (MAINGUENEAU, 2015MAINGUENEAU, D. Discurso e análise do discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.).
Com o surgimento do Estado Moderno, uma dessas fontes legitimadoras seria o pensamento governamental que se torna imprescindível para a arte de governar. As racionalidades provenientes de diferentes ciências definem os objetos do pensamento, objetivos de governo, experts, autoridades e local institucional autorizados a produzir verdades sobre os referidos objetos, e, consequentemente, a prática governamental (INDA, 2005INDA, J. X. Analytics of the modern: an introduction. In INDA, J. X. (ed.). Anthropologies of modernity: Foucault, governmentality, and life politics. Oxford: Blackwell, 2005, p. 01-20.). Foucault (2008____________. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.) postula que “verdade” seria um arcabouço de procedimentos regulamentados pela produção, pela lei, pela distribuição e pela circulação através do qual se discrimina o verdadeiro do falso e se estabelece proposições verdadeiras.
Proposições consideradas verdadeiras por um grupo social que advém de raciocínio falso que simula a veracidade são chamadas de “falácias” (HOUAISS; VILLAR, 2009HOUAISS, A; VILLAR, M. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva e Instituto Houaiss, 2009.). Estas falácias estruturam um determinado estereótipo, ou seja, uma imagem ou representação de coisas, pessoas e ideias a partir de uma composição semântica pré-existente (BARDIN, 1977BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.).
Quando determinado grupo de profissionais (experts) em nível local, nacional ou internacional, com reconhecida competência em um particular domínio do conhecimento de relevância política compartilham de crenças, valores, convicções, critérios de validade, engajamento político, resultados desejados e práticas comuns ligadas a problemas pertinentes a sua competência profissional, tem-se uma comunidade epistêmica (HAAS, 1992). No entanto, para que seja autorizada a produzir e mobilizar conhecimentos e verdades sobre determinado objeto, de modo a torná-lo inteligível à prática governamental, a comunidade epistêmica precisa ser alçada a centros de cálculo. Para Latour (1986LATOUR, B. Visualisation and Cognition: Drawing Things Together. In KUKLICK, H. (ed.). Knowledge and Society: Studies in the Sociology of Culture Past and Present. v. 6. Greenwich/London: Jai Press, 1986. p. 1-40.), os centros de cálculo são os espaços onde o poder se inscreve a partir de subsídios oriundos de um conjunto de profissionais de diversas expertises.
Os cientistas também se inscrevem em uma ordem do discurso (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2006.) que se constitui por operações que articulam a textualidade e as instituições que ela pressupõe e valida (MAINGUENEAU, 2015MAINGUENEAU, D. Discurso e análise do discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.). Na modernidade de caráter colonial, o que está subjacente à partição dos seres humanos em raças, espécies e culturas é uma operação epistêmica Na modernidade de caráter colonial, o que está subjacente à partição dos seres humanos em raças, espécies e culturas é uma operação epistêmica, que torna visível determinadas populações enquanto objetos de ação de governo (THOMAS, 1994THOMAS, N. Colonialism’s culture: anthropology, travel and government. Cambridge: Polity Press, 1994.). Esta seria a lógica operatória, por exemplo, do discurso ideológico, inclusive o racista, que enfatiza as supostas características negativas nos outros e as que seriam positivas nos membros de seu próprio grupo (VAN DIJK, 2017). A esta modalidade de operação epistêmica que produz um espaço (epistêmico) do discurso constituinte e torna visível os sujeitos às práticas governamentais chamamos de operação estratégica.
No caso específico do setor pesqueiro, diversos experts (biólogos, oceanógrafos, economistas etc.) foram alçados a centros de cálculo para a formulação de políticas na produção de espaços (etno)oceanográficos em várias partes do mundo. Ao fazê-la, na dimensão do espaço (epistêmico) do discurso científico governamentalizado, uma modalidade de discurso constituinte, produz-se uma (estéreo)tipificação do pescador artesanal. Diversas falácias têm sido utilizadas para (des)qualificar comunidades tradicionais de pesca no Brasil (DIEGUES, 1995____________. Povos e mares: leituras em sócio-antropologia marítima. São Paulo: Nupaub/USP, 1995.) e no mundo (SCHREIBER et al, 2022). Neste sentido, este artigo tem o objetivo de analisar, em uma perspectiva da OS, a produção do pescador artesanal por um grupo de profissionais que mobilizaram conhecimentos e verdades para a criação de uma legislação de pesca, a Instrução Normativa Conjunta de 2004 (INC 2004)2 2 - A INC 2004 foi publicada no dia 9 de fevereiro de 2004 pelo Ministério do Meio Ambiente e pela Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca da Presidência da República Federativa do Brasil. , no estuário da Lagoa dos Patos, localizado no estado do Rio Grande do Sul (RS).
Metodologia
Espaço (etno)oceanográfico historicizado, comunidade epistêmica e pesca no estuário da Lagoa dos Patos (RS)
Em 1953 foi fundada a Sociedade de Estudos Oceanográficos do Rio Grande (SEORG) por pesquisadores da área oceanográfica ligados à indústria da pesca e que receberam apoio material e financeiro da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) e governos estadual e federal. A SEORG lançou os fundamentos para a governamentalização da pesca no RS com as primeiras pesquisas para melhorar quali-quantitativamente a captura de espécies marinhas e delimitar os objetos da prática governamental, os experts e os locais institucionais autorizados a versar sobre a pesca (MOURA, 2017MOURA, G. G. M. Guerras nos mares do sul: o papel da oceanografia na destruição de territórios tradicionais de pesca. São Paulo: Annablume, 2017.). A partir da SEORG nasce uma comunidade epistêmica.
Em 1969, a SEORG foi incorporada pela Fundação da Cidade do Rio Grande para dar condições institucionais de obter os financiamentos do poder público para infraestrutura e pesquisa e viabilizar a criação de cursos de graduação, inclusive o primeiro de oceanologia do país. Criou-se assim a Universidade do Rio Grande (URG), calcada na relação Universidade/Indústria e na tradição positivista de formação de profissionais técnicos (Op. Cit.).
A SEORG e outra instituição dela derivada, o Centro de Pesquisa e Gestão de Recursos Pesqueiros Lagunares e Estuarinos (CEPERG), subsidiaram regulamentações que incidem prioritariamente sobre a pesca artesanal. Com o colapso da pesca no estuário da Lagoa dos Patos, vários profissionais se mobilizam para a criação de um espaço de co-manejo, o Fórum da Lagoa dos Patos (FLP). Foi no contexto do FLP que a INC 2004 foi construída e esta tem o objetivo de regulamentar a pesca artesanal no estuário da Lagoa dos Patos, impondo regras de uso dos recursos pesqueiros (calendário de pesca, técnicas de pesca, regras de acesso etc.). Embora seja um espaço de co-manejo, o FLP significou o aprofundamento do processo de modernização capitalista da pesca, de caráter colonial, implementado na região desde a criação da SEORG com participação decisiva de membros da referida comunidade epistêmica (MOURA, 2017MOURA, G. G. M. Guerras nos mares do sul: o papel da oceanografia na destruição de territórios tradicionais de pesca. São Paulo: Annablume, 2017.).
A comunidade epistêmica e análise documental
Foram identificados oito profissionais (pescadores, movimentos sociais, pesquisadores e gestores) que tiveram papel de destaque na formulação da INC 2004 por meio da técnica da bola de neve, tendo como ponto de partida duas pessoas conhecidas pelos autores deste artigo. Foram realizadas entrevistas parcialmente estruturadas (BAILEY, 1982BAILEY, K. D. Methods of social research. New York: The Free Press, 1982.) com seis deles (um se recusou a dar entrevistas e um não foi localizado) para identificar quem fez e que conhecimentos foram mobilizados na formulação da INC 2004. As duas principais perguntas foram: “Como foi o processo de construção da INC 2004?” e “Que conhecimentos foram mobilizados para a formulação da INC 2004?”. Para os pesquisadores e gestores acrescentou-se “Quais publicações científicas foram utilizadas na formulação da INC 2004?”.
Nas entrevistas constatou-se que a produção, seleção e mobilização de publicações científicas foram feitas por apenas três dos oito indicados: dois pesquisadores da FURG e um gestor da CEPERG, este último foi o que se recusou a dar entrevistas. Após essa etapa, fez-se o levantamento dos documentos secundários de domínio científico, orientado por Oliveira (2007OLIVEIRA, M. M. Como fazer pesquisa qualitativa. Petrópolis: Vozes, 2007.): i) levantamento da bibliografia de indicação facultativa dos dois entrevistados, ii) bibliografia produzida pelos entrevistados sobre pesca e/ou pescadores artesanais, seja na condição de autor, co-autor ou (co-)orientador, iii) busca por bibliografias mobilizadas pelos entrevistados que contém caracterizações sobre os pescadores artesanais em linha com o seu próprio discurso nas entrevistas.
Com base nestes critérios e no ano da INC 2004 como limite temporal das publicações, obteve-se as obras da Tabela 1. Os documentos foram analisados a partir da associação de palavras que permitisse emergir relações entre pescadores artesanais e estereotipificações (BARDIN, 1977BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.) em três níveis: i) definição de fragmentos discursivos considerados representantes ideais (MOURA, 2017MOURA, G. G. M. Guerras nos mares do sul: o papel da oceanografia na destruição de territórios tradicionais de pesca. São Paulo: Annablume, 2017.), que continham itens lexicais que melhor caracterizam os pescadores artesanais de modo a qualificá-los, correlacionados às falácias identificadas por Diegues (1995____________. Povos e mares: leituras em sócio-antropologia marítima. São Paulo: Nupaub/USP, 1995.)3 3 - As falácias identificadas por Diegues (1995) são onze e oito delas aparecem na análise e discussão dos dados. Para conhecimento das demais falácias, ver capítulo “Realidades e falácias sobre pescadores artesanais” (p. 93-100). ; ii) cada uma das falácias identificadas neste artigo foram classificadas em tipos discursivos (1, 2, 3...) e analisadas segundo os modos de produção de não existência de Santos (2010SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010.)4 4 - Os modos de produção de não existência de Santos (2010) são cinco e quatro deles aparecem na análise e discussão dos dados, com exceção da “lógica da escala dominante”. ; iii) os dois níveis pretéritos foram relacionados à formação discursiva típica da OC (MOURA, 2019) que opera a produção do espaço (etno)oceanográfico do discurso.
A produção do outro pescador artesanal sob a lógica da Oceanografia Clássica no contexto da INC 2004
Ao todo, foram mobilizados 22 trabalhos considerados chaves de profissionais de diversas áreas do conhecimento (Tabela 1). Estes profissionais fazem parte da comunidade epistêmica historicamente constituída na região, a partir da fundação da SEORG, por um grupo de profissionais de diversas disciplinas e experiências que atuam em nível local, nacional e/ou internacional sobre um tema de relevância política, a pesca gaúcha. Todos compartilham e/ou contribuem para a construção de uma ideia de pescador artesanal gaúcho5 5 - O termo “pescador” usado sempre no masculino constrói a ideia desta categoria profissional a partir de um recorte de gênero pela referida comunidade epistêmica. Esta construção produz ativamente a não-existência de mulheres na pesca sob a lógica do machismo estrutural-oceanográfico, assunto de artigos futuros. . No entanto, somente três dos membros da comunidade epistêmica foram alçados a centros de cálculo e, consequentemente, mobilizaram essa ideia compartilhada de pescadores artesanais na produção da INC 2004. Com o alçamento desses três dos membros, constitui-se uma célula da comunidade epistêmica. Rainho (2022RAINHO, A. P. Campo, poder e práticas na gestão pesqueira. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - UFSC, Florianópolis, 2022.), em uma análise da formulação de políticas públicas para o setor pesqueiro no Brasil, mostra que essa ideia de pescador circula em outros locais de poder em escala local e nacional.
Na Tabela 2, há nove tipos discursivos associados aos itens lexicais identificados nos fragmentos discursivos ideais que caracterizam os pescadores artesanais. Esses tipos discursivos, correlacionados às falácias de Diegues (1995____________. Povos e mares: leituras em sócio-antropologia marítima. São Paulo: Nupaub/USP, 1995.), estruturam um estereótipo de pescador artesanal gaúcho conforme discutimos a seguir.
Reis (1992____________. An assessment of the exploitation of the White croaker Micropogonias furnieri (Pisces, Sciaenidae) by the artisanal and industrial fisheries in coastal waters of Southern Brazil. Tese (Doutorado em Filosofia) - University of East Anglia, Norwich, 1992.; 1993) classifica a pesca da costa do RS em três categorias: pesca de subsistência e artesanal (ou de pequena escala), praticadas no estuário da Lagoa dos Patos; semi-industrial (ou média-escala) e industrial (ou grande escala), ambas praticadas na zona costeira do RS. Segundo a autora, esta classificação seria baseada em Diegues (1983DIEGUES, A. C. Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo: Ática, 1983.), mas a categoria pesca semi-industrial não há neste autor. A pesca semi-industrial estaria contemplada na categoria produção de armadores de pesca e embarcados e na produção dos pescadores artesanais de Diegues (1983), pois o primeiro atua na área costeira6 6 - A “área costeira” a que se refere Diegues (1983) pode ser considerada sinônimo de “zona costeira”, definida posteriormente pelo Decreto 5300/2004. e o segundo na plataforma continental. Ademais, Diegues (1983) não estabelece exclusividade de áreas de atuação entre as diferentes formas de produção pesqueira, mas “áreas de maior incidência”. Adomilli (2007ADOMILLI, G. Terra e mar, do viver e do trabalhar na pesca marítima. Tempo, espaço e ambiente junto a pescadores de São José do Norte - RS. 2007. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, p. 318-337.) registra atividades de pesca artesanal na costa do RS7 7 - A zona costeira do Rio Grande do Sul externa a Lagoa dos Patos é referida pela bibliografia científica local como “costa”. .
Entre os critérios elencados para distinguir pesca artesanal e semi-industrial, observa-se que Reis menciona que na pesca artesanal gaúcha não há divisão de trabalho e na pesca semi-industrial há. Outras pesquisas contradizem esta informação registrando divisão de trabalho na pesca artesanal do RS (PASQUOTTO, 2005PASQUOTTO, V. F. Pesca artesanal no Rio Grande do Sul: os pescadores de São Lourenço do Sul e suas estratégias de reprodução social. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Rural) - Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.; ADOMILLI, 2007ADOMILLI, G. Terra e mar, do viver e do trabalhar na pesca marítima. Tempo, espaço e ambiente junto a pescadores de São José do Norte - RS. 2007. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, p. 318-337.; MOURA, 2017MOURA, G. G. M. Guerras nos mares do sul: o papel da oceanografia na destruição de territórios tradicionais de pesca. São Paulo: Annablume, 2017.). A suposta necessidade de produzir essa nova tipologia de pesca é dada no seguinte trecho:
É importante não designar a pesca costeira como sendo artesanal. Os benefícios de uma classificação apropriada para as estatísticas básicas e sua consequência direta para o aumento da confiabilidade dos dados são evidentes. Por outro lado, o presente estado de sobre-explotação ou explotação intensa da maioria dos estoques da região requer que não seja permitido o aumento desregulado do número de barcos ou de redes que atuam na pesca costeira, o que ocasiona um aumento do esforço de pesca. Financiamentos para a atividade pesqueira são mais facilmente obtidos para a pesca artesanal do que para a industrial, o que significa que o aumento do esforço de pesca pode ser estimulado por esse meio. A classificação apropriada da pesca costeira limitaria a obtenção de ajuda financeira, o que colaboraria para a manutenção do esforço de pesca nos níveis atuais. (REIS, 1993____________. Classificação das atividades pesqueiras na costa do Rio Grande do Sul e qualidade das estatísticas de desembarque. Atlântica, Rio Grande, v. 15, n. 1, p. 107-114, 1993., p. 113-114).
Como pode ser visto, ela teria a função de governamentalizar as políticas públicas de administração do setor pesqueiro gaúcho (estatísticas, financiamento, regulamentação etc.). No entanto, os três fundamentos desta nova tipologia são frágeis devido: 1) a bibliografia especializada demonstra com dados que a pesca industrial no Brasil e no RS receberam ao longo da história mais financiamentos públicos do que a pesca artesanal (ver DIEGUES, 1983DIEGUES, A. C. Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo: Ática, 1983.; SOUZA, 2001SOUZA, M. A. A. Política e evolução da atividade pesqueira no Rio Grande do Sul: 1960 a 1997. Dissertação (Mestrado em Economia Rural) - Faculdade de Ciências Econômicas. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2001.; AZEVEDO; PIERRI, 2014AZEVEDO, N. T.; PIERRI, N. A política pesqueira no Brasil (2003-2011): a escolha pelo crescimento produtivo e o lugar da pesca artesanal. Revista Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 32, p. 61-80, 2014.) e, portanto, a intenção de controlar um aumento de esforço de pesca na costa por meio da contenção de financiamento para a pesca artesanal não atinge seu objetivo; 2) o setor industrial não é afetado pela nova tipologia; 3) não faz sentido controlar o esforço de pesca na costa do RS por meio da contenção do financiamento para um setor que não atua na costa. Assim, o discurso “científico” opera estrategicamente na produção da não-existência de pescadores artesanais que atuam na costa com a função de subsidiar as políticas supracitadas sob uma lógica linear-excludente. Este primeiro tipo discursivo, “o pescador artesanal de atuação exclusiva” no estuário da Lagoa dos Patos, seria então a primeira falácia e não está prevista em Diegues (1995____________. Povos e mares: leituras em sócio-antropologia marítima. São Paulo: Nupaub/USP, 1995.).
No segundo tipo discursivo, o pescador artesanal é caracterizado como de dedicação integral. Abandona-se deliberadamente a característica pesca é atividade principal, mas não exclusiva do pescador artesanal de Diegues (1983DIEGUES, A. C. Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo: Ática, 1983.: 151) e se apoia em autores da biologia pesqueira, como Smith (1979SMITH, I. R. A Research framework for traditional fisheries. Manila: ICLARM Studies and Review, 1979.) por exemplo. Desta forma, recai-se em uma das falácias denunciadas por Diegues (1995): o pescador artesanal é um profissional de tempo integral. Ao mesmo tempo, produz-se a não existência da categoria pequena produção familiar dos pescadores-lavradores da pequena produção mercantil simples, que existe no estuário da Lagoa dos Patos (MOURA, 2017MOURA, G. G. M. Guerras nos mares do sul: o papel da oceanografia na destruição de territórios tradicionais de pesca. São Paulo: Annablume, 2017.). Ambos os exclusivismos (de atuação e de atividade) operam sob a lógica que Santos (2010SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010.) denomina de classificação social, uma forma linear-excludente de criar e naturalizar diferenças.
Opera-se estrategicamente na criação de um (estéreo)tipo de pescador artesanal “verdadeiro”, que atua exclusivamente no estuário e de dedicação exclusiva. Outras categorias de pescadores distintas dela são consideradas não-pescadores. Viabiliza-se, desta forma, o controle pelo Estado do esforço de pesca e do financiamento da pesca artesanal dentro de uma lógica linear-excludente com base no binômio pescador artesanal “verdadeiro”/não-pescador. Este (estéreo)tipo de pescador artesanal será governamentalizado para a alocação de seguro-defeso que resulta da implementação da INC 2004.
O tipo discursivo no 3 está consoante com a falácia identificada por Diegues (1995____________. Povos e mares: leituras em sócio-antropologia marítima. São Paulo: Nupaub/USP, 1995., p. 98): “os pescadores artesanais são isolados”. Este “tipo discursivo” é mais um dos critérios utilizados por Reis (1993____________. Classificação das atividades pesqueiras na costa do Rio Grande do Sul e qualidade das estatísticas de desembarque. Atlântica, Rio Grande, v. 15, n. 1, p. 107-114, 1993.) para caracterizar a pesca artesanal e diferenciá-la da pesca semi-industrial: a primeira seriam “comunidades isoladas’’ e a segunda “separadas”. Estar afastada dos centros urbanos não torna estas comunidades isoladas, já que se mantêm relações com outras comunidades de pesca, os centros urbanos e a pesca empresarial, sendo força de trabalho embarcada (DIEGUES, 1995____________. Povos e mares: leituras em sócio-antropologia marítima. São Paulo: Nupaub/USP, 1995.). Esse tipo discursivo é utilizado para inferiorizar as comunidades de pesca, inclusive seu modo de conhecer, pois elas teriam menos acesso ao modo de vida urbano-industrial (MOURA, 2017MOURA, G. G. M. Guerras nos mares do sul: o papel da oceanografia na destruição de territórios tradicionais de pesca. São Paulo: Annablume, 2017.).
Já o tipo discursivo no 4 corresponde a falácia identificada por Diegues (1995____________. Povos e mares: leituras em sócio-antropologia marítima. São Paulo: Nupaub/USP, 1995., p. 95): “a pesca artesanal é ineficiente”. Essa lógica produtivista é uma não existência produzida na forma de improdutivo e da desqualificação profissional (SANTOS, 2010SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010.) e propõe a necessidade de formação profissional do pescador artesanal para aumentar a produtividade do setor sugerida pelo tipo e o fragmento discursivo. Sob a mesma lógica, tem-se que a pesca artesanal requer cerca de 20% do combustível e 25% dos investimentos do que o setor empresarial capitalista necessita e é responsável por 60% dos recursos pesqueiros estuarinos e marinhos desembarcados no país (DIEGUES, 1995____________. Povos e mares: leituras em sócio-antropologia marítima. São Paulo: Nupaub/USP, 1995.; VASCONCELOS et al., 2007VASCONCELOS, M.; DIEGUES, A. C.; SALES, R. R. Limites e possibilidades na gestão da pesca artesanal costeira. In: COSTA, A. L. (Org.). Nas redes da pesca artesanal. Brasília: IBAMA/MMA, 2007, p. 15-83.). Dados em nível internacional mostra que a pesca de pequena escala captura quatro vezes mais recursos pesqueiros por litro de combustível que a pesca industrial e esta consome 89% do combustível utilizado na captura de recursos pesqueiros (JACQUET; PAULY, 2008JACQUET, J.; PAULY, D. Funding Priorities: Big Barriers to Small-Scale Fisheries. Conservation and Policy, v. 22, n. 4, p. 832-835, 2008.). Esse fragmento discursivo também opera segundo a lógica da monocultura do tempo linear de sentido e direção únicos ao afirmar a necessidade de formação profissional para se atingir “um desenvolvimento tecnológico”, produzindo a ideia de obsoleto. É a não existência sob a forma de residualização (SANTOS, 2010).
O tipo discursivo no 5 inverte a falácia identificada por Diegues (1995____________. Povos e mares: leituras em sócio-antropologia marítima. São Paulo: Nupaub/USP, 1995., p. 98): “o pescador artesanal é passivo e não sabe defender seus direitos”, ao atribuir-lhes uma “mentalidade de guerra”. Porém, está consoante ao “The Economist” (1994, p. 13 e 24) quando o pescador é qualificado como “belicoso”.
O sexto tipo discursivo, que o caracteriza como “competitivo” e “orientado pelo mercado”, ajusta-se à falácia de Diegues (1995____________. Povos e mares: leituras em sócio-antropologia marítima. São Paulo: Nupaub/USP, 1995., p. 99) de que ele é “individualista e não se organiza”. Observa-se esse tipo de discurso em cientistas e gestores, embora pesquisas especializadas mostrem que ele se organiza coletivamente e opera sob a lógica de seus sistemas tradicionais de manejo de recursos pesqueiros (MCGOODWIN, 1990MCGOODWIN J. R. Crisis in the world’s fisheries: people, problems and policies. Stanford: Stanford University Press, 1990.; PÁLSSON, 1991), inclusive no RS (MOURA, 2017MOURA, G. G. M. Guerras nos mares do sul: o papel da oceanografia na destruição de territórios tradicionais de pesca. São Paulo: Annablume, 2017.).
O tipo de no 7 corresponde a falácia identificada por Diegues (1995____________. Povos e mares: leituras em sócio-antropologia marítima. São Paulo: Nupaub/USP, 1995., p. 99): “os pescadores artesanais são predadores”. Eles capturariam o máximo de recursos pesqueiros para seu benefício próprio, ainda que futuramente isso gere capturas inferiores, a destruição da natureza e a sua autodestruição. Esta “lógica de caçador”, atribuída por pesquisadores e gestores, sem dados que a sustente, ocorre também em outros países (MCGOODWIN, 1990MCGOODWIN J. R. Crisis in the world’s fisheries: people, problems and policies. Stanford: Stanford University Press, 1990.; PÁLSSON, 1991). Pesquisas especializadas em comunidades tradicionais de pesca apontam relações entre os seres humanos e destes com os não-humanos mediadas pela ética do segredo, do sagrado, do respeito, do igualitarismo (MALDONADO, 1993MALDONADO, S. Mestres e Mares: espaço e indivisão na pesca marítima. São Paulo, AnnaBlume, 1993.) e do cuidado (RAINHO, 2022RAINHO, A. P. Campo, poder e práticas na gestão pesqueira. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - UFSC, Florianópolis, 2022.).
Há, ainda, o uso de alguns itens lexicais alarmistas como “autodestruição”, “câmara de extermínio”, “métodos ilegais” e “destrutivos ao meio ambiente”. Segundo alguns autores, este repertório linguístico alarmista (esgotamento dos recursos naturais, tecnologias opressivas etc.) é utilizado para criar um mito, o apocalipse por exemplo, a partir de um campo de interpretação (KRØVEL, 2014KRØVEL, R. Where Did Nature Go? Is The Ecological Crisis Perceptible Within The Current Theoretical Frameworks Of Journalism Research? In: MAXWELL, R.; RAUNDALEN, J.; VESTBERG, N. L. (Eds.). Media and the Ecological Crisis. Routledge, 2014, p. 121-138.), no caso o preservacionismo biocentrista (DIEGUES, 2004DIEGUES, A. C. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: HUCITEC/NUPAUB, 2004.). Como manifestação do Oceanocentrismo, há o emprego de itens lexicais alarmistas próprios das ciências da pesca alocadas na oceanografia biológica na produção estereotipada do outro, o pescador artesanal. Um dos seres constituintes do espaço (etno)oceanográfico, o pescador artesanal é responsabilizado por um (eco)apocalipse, o colapso de recursos pesqueiros no RS.
A caracterização do pescador como “predador” com base no (pre)suposto diagnóstico de que eles querem “pescar o máximo possível“ (ver CABRAL, 1997CABRAL, C. A. R. A educação ambiental na pesca artesanal do camarão-rosa (Penaeus paulensis) em Rio Grande: análise de uma tentativa. Dissertação (Mestrado em Educação Ambiental) - Programa de Pós-graduação de Educação ambiental, Fundação Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, 1997.: 65) para obter “maiores rendimentos” (BENEDET, 2004BENEDET, R. A. Pesca artesanal do camarão-rosa (Farfantepenaeus paulensis) no estuário da Lagoa dos Patos, RS. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Oceanologia) - Departamento de Oceanografia, Fundação Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, 2004., p. 12) levando ao “colapso da pescaria”, a “diminuição dos estoques”, a “autodestruição”, a “destruição do ambiente de pesca” e a formação de “câmara de extermínio de camarão-rosa” enquadra-os na teoria econômica formal de Scott Gordon (1953GORDON, H. S. An economic approach to the optimum utilization of fishery resources. Journal of the Fisheries Research Board of Canada, vol. 10, n. 7, p. 442-457, jul. 1953.;1954), base do paradigma da Tragédia dos Comuns de Hardin (1968HARDIN, G. The tragedy of the commons. Science, v. 162, [s. n.], p. 1243-1248, dez. 1968.) e de sua extensão para o mar, a Tragédia dos Oceanos. Na teoria de Scott Gordon, os pescadores buscariam altas capturas e lucros individuais em áreas de livre acesso levando a ruína de todos com o colapso pesqueiro. Para McGoodwin (1990), a aplicação do modelo bioeconômico Gordon-Schaefer e o paradigma de Hardin (1968) produz uma representação cínica da mentalidade do outro porque reduz de modo positivo-reducionista a racionalidade dos pescadores a uma lógica economicista e de predadores naturais desumanizando-os e tornando-os irracionais no uso dos recursos pesqueiros e invisibiliza as regras tradicionais de uso de recursos naturais. Estas regras tradicionais, invisibilizadas pelo discurso constituinte da comunidade epistêmica mobilizado pela referida célula, foram descritas em diversos trabalhos a partir do final da década de 1990 no RS (MOURA, 2017MOURA, G. G. M. Guerras nos mares do sul: o papel da oceanografia na destruição de territórios tradicionais de pesca. São Paulo: Annablume, 2017.).
A falácia supracitada opera estrategicamente na geração de três consequências. Uma delas é a produção do pescador artesanal projetando nele características da própria comunidade epistêmica e/ou da pesca empresarial capitalista. A racionalidade econômica do livre mercado sustenta o modelo bioeconômico Gordon-Schaefer e o paradigma hardiniano e, consequentemente, as ciências da pesca alocadas na oceanografia biológica, que nascem compartilhando valores e ideais com as indústrias de pesca (MOURA, 2017MOURA, G. G. M. Guerras nos mares do sul: o papel da oceanografia na destruição de territórios tradicionais de pesca. São Paulo: Annablume, 2017.). Para Schreiber et al (2022), esse discurso do pescador ganancioso recai em um discurso alarmista resultante da lógica do pensamento econômico neoclássico.
A segunda está associada a lógica produtivista supracitada. Fazer uso de recursos naturais e os levar ao colapso não é considerado eficiente sob o ponto de vista ambiental após a consolidação da ideia de desenvolvimento sustentável na década de 1970/80 (BJØRN; HAUSCHILD, 2013BJØRN, A.; HAUSCHILD, M. Z. Absolute versus Relative Environmental Sustainability. Journal of Industrial Ecology, [s/l], v. 17, n. 2, 2013, p. 321-332.). O pescador seria, então, detentor de um produtivismo competitivo e ineficiente, ou seja, residualizado segundo a lógica da monocultura do tempo linear.
A terceira leva ao diagnóstico de que a pesca no estuário da Lagoa dos Patos é um “sistema de livre acesso” (MARQUES, 1997MARQUES, W. M. Estimativa da rejeição da pesca do camarão-rosa Penaeus paulensis com ‘aviãozinho’ no estuário da Lagoa dos Patos (RS), Brasil. Dissertação (Mestrado em Oceanografia Biológica) - Departamento de Oceanografia Biológica, Fundação Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, 1997., p. 53), habitado por pescadores artesanais personificados em Tragédia (dos Oceanos). A produção do outro associada a este diagnóstico corrobora a discussão feita por Moura (2017MOURA, G. G. M. Guerras nos mares do sul: o papel da oceanografia na destruição de territórios tradicionais de pesca. São Paulo: Annablume, 2017.): os modelos de manejo de recursos naturais modernos são (bi)focados nos sistemas sociais e ecológicos. Portanto, esta falácia materializa a Tragédia dos Oceanos no âmbito do discurso modelando bioeconomicamente o espaço do discurso (etno)oceanográfico.
O pescador artesanal é produzido como “predador” porque não “percebe” e não teria “consciência”, compromisso e “visão abrangente” sobre sua relação com o meio ambiente. Assim, o tipo discursivo de no 7 está intimamente associado ao de no 8, que inferioriza e/ou produz uma ignorância do outro, e que corresponde à falácia identificada por Diegues (1995____________. Povos e mares: leituras em sócio-antropologia marítima. São Paulo: Nupaub/USP, 1995., p. 97): “O pescador artesanal é ignorante”. Todos os tipos discursivos têm referência cognitiva e a maior frequência deste nas bibliografias levantadas mostra a produção de uma forte hierarquia entre conhecimento científico e tradicional. Sugere-se atividades educativas (cursos, palestras, projetos de educação ambiental etc.) em ambientes escolares e não escolares (Fórum da Lagoa dos Patos, por ex.) para supostamente ajudar no aprendizado, a diminuir a mentalidade de guerra e a ineficiência (tipo discursivo no 4) dos pescadores artesanais. Ao produzir esta hierarquização ou invisibilizar outros modos de saber, estes tipos discursivos são uma manifestação do supracitado totalitarismo epistemológico da OC (MOURA, 2019________. Construção da crítica à oceanografia clássica: contribuições a partir da oceanografia socioambiental. Revista Ambiente e Educação, Rio Grande, v. 24, n. 2, p. 13-41, 2019.). Na bibliografia especializada sobre a pesca gaúcha, com dados bibliográficos e de campo etnográfico, mostram que os pescadores artesanais possuem amplo conhecimento tradicional sobre seu território (ADOMILLI, 2007ADOMILLI, G. Terra e mar, do viver e do trabalhar na pesca marítima. Tempo, espaço e ambiente junto a pescadores de São José do Norte - RS. 2007. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, p. 318-337.; MOURA, 2017).
Segundo Hobart (2002HOBART, M. Introduction: the growth of ignorance?. In HOBART, M. An anthropological critique of development: the growth of ignorance. Nova York: Taylor & Francis, 2002. p. 01-30.), a ignorância não é uma simples antítese do conhecimento, mas um atributo moral concedido a “outros” carregado de preconceito. No RS, atributos morais estão contidos em todos os tipos discursivos da comunidade epistêmica, desvelados em nove falácias, mobilizados pela célula alçada a centro de cálculo na formulação da INC 2004. Para Diegues (1995____________. Povos e mares: leituras em sócio-antropologia marítima. São Paulo: Nupaub/USP, 1995.), a produção de falácias sobre pescadores artesanais tem como fundo a ignorância de tecnocratas, o que parece ser o caso da comunidade epistêmica (ver Tabela 1) ao produzir os nove tipos discursivos elencados na Tabela 2. Moura (2017MOURA, G. G. M. Guerras nos mares do sul: o papel da oceanografia na destruição de territórios tradicionais de pesca. São Paulo: Annablume, 2017.) afirma que os pesquisadores e gestores do RS ignoram a situação das comunidades de pesca e desconhecem a sua estrutura e dinâmica. Para a Pastoral da Pesca esse desconhecimento da pesca da região foi predominante até o início da década de 1990 (MARTINS, 1997MARTINS, C. A. A. Nas águas da Lagoa há reprodução de vida: pesca artesanal no estuário da Lagoa dos Patos - Rio Grande (RS). 1997. 168 f. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana), Programa de Pós-graduação em Geografia Humana, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997.). Kalikoski (2002KALIKOSKI, D. C. The forum of Patos Lagoon: an analisys of co-management arrangement for conservation of coastal resources in the southern of Brazil. Tese (Doutorado em Filosofia) - Program of Resource Management and Environmental Studies, University of British Columbia, Columbia, 2002.) parte deste mesmo diagnóstico e observa um aumento significativo de pesquisas sobre pesca a partir de 1990 que, porém, possuem uma abordagem positivo-reducionista inapropriada que dissocia os sistemas sociais e ecológicos (uni)focando em apenas um deles. Como supramencionado, os sistemas modernos de manejo de recursos naturais, inclusive o pesqueiro, são bifocais. O problema não é o foco, mas a abordagem teórico-metodológica de viés colonial que contribui para a produção de uma representação do outro estereotipada (MOURA, 2017MOURA, G. G. M. Guerras nos mares do sul: o papel da oceanografia na destruição de territórios tradicionais de pesca. São Paulo: Annablume, 2017.). O caso estudado é exemplar da advertência de Hobart (2002): o crescimento de um conhecimento sistemático se reverte em aumento de ignorância. As falácias são a expressão da crescente ignorância sobre os pescadores, mas não dos pescadores.
A ignorância do outro expressa, como na lógica produtivista, uma projeção de si no outro que encena uma ação programática da OC: produz-se a não existência de outros saberes invisibilizando/destruindo-os ao passo que se produz enquanto uma Monocultura dos Mares (MOURA, 2019________. Construção da crítica à oceanografia clássica: contribuições a partir da oceanografia socioambiental. Revista Ambiente e Educação, Rio Grande, v. 24, n. 2, p. 13-41, 2019.).
No último tipo discursivo (no 9), afirma-se que “o pescador é quase totalmente constituído de elemento branco”. O pescador artesanal será assim conceituado no RS até a primeira metade do séc. XXI, quando se registram diversas comunidades de pesca artesanal do estuário da Lagoa dos Patos resultantes de miscigenação de portugueses, indígenas, negros e alemães. Quilombolas pescam em Pelotas, Capivari do Sul, Viamão e Mostardas e grupos indígenas Mbya-Guarani em Porto Alegre (PASQUOTTO, 2005PASQUOTTO, V. F. Pesca artesanal no Rio Grande do Sul: os pescadores de São Lourenço do Sul e suas estratégias de reprodução social. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Rural) - Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.; ADOMILLI, 2007ADOMILLI, G. Terra e mar, do viver e do trabalhar na pesca marítima. Tempo, espaço e ambiente junto a pescadores de São José do Norte - RS. 2007. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, p. 318-337.; MOURA, 2017MOURA, G. G. M. Guerras nos mares do sul: o papel da oceanografia na destruição de territórios tradicionais de pesca. São Paulo: Annablume, 2017.).
Ao se produzir um pescador artesanal branco, descendente somente de portugueses, as comunidades de pesca constituídas pela miscigenação entre europeus, negros e indígenas e os quilombolas e povos indígenas que praticam a atividade pesqueira são invisibilizadas. O apagamento da população negra e indígena faz parte da construção do regionalismo gaúcho, influenciado por um positivismo à la gaúcha. Esse positivismo reinterpreta as concepções de Augusto Comte de família e hierarquia social evocando as “origens europeias” e reiterando o racismo científico que influencia a vida intelectual da região e as concepções da figura do gaúcho (MACIEL, 2004MACIEL, M. E. Memória, tradição e tradicionalismo no Rio Grande do Sul. In: BRESCIANI, S.; NAXARA, M. (Org.). Memória e ressentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da Unicamp, 2004, p. 239-268.; LANDGRAF, 2020LANDGRAF, J. A construção da branquitude; identidade racial branca em famílias com passado escravocrata no Rio Grande do Sul, Brasil. In: 44o Encontro Anual da ANPOCS. São Paulo: Síntese Eventos, 2020, p. 1-18.), inclusive a do pescador gaúcho. Este tipo discursivo que apaga grupos sociais e seus conhecimentos opera sob as lógicas da classificação social e da monocultura do saber associadas, segundo Santos (2010SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010.), e funda mais uma das estruturas da OC: o monocromatismo cultural nos mares.
A produção do monocromatismo cultural nos mares gaúchos ligado ao apagamento dos grupos sociais supracitados é contemporâneo às discussões sobre direitos quilombolas e indígenas, inclusive o direito ao território. Mobilizando boa parte da sociedade brasileira, essas pautas foram levadas ao Congresso Nacional no final da década de 1970 e incorporadas na Constituição de 1988 (ver CARNEIRO DA CUNHA, 2009CARNEIRO DA CUNHA, M. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009.). Consonante às políticas de branqueamento implementadas ao longo da história da construção identitária e do regionalismo gaúcho (LANDGRAF, 2020LANDGRAF, J. A construção da branquitude; identidade racial branca em famílias com passado escravocrata no Rio Grande do Sul, Brasil. In: 44o Encontro Anual da ANPOCS. São Paulo: Síntese Eventos, 2020, p. 1-18.), a produção do pescador artesanal branco por Marques (1980MARQUES, L. A. B. 1980. O pescador artesanal do sul. MEC: SEAC: FUNARTE: Instituto Nacional do Folclore, Rio de Janeiro (RJ), 75p.) impossibilita a implementação de terras de quilombo e/ou indígenas para pescadores no RS e nega-lhes direitos de autonomia no uso de seus recursos naturais pesqueiros.
O pescador artesanal gaúcho produzido pela referida célula é (estéreo)tipado como branco, de dedicação e atuação exclusiva, isolado, ineficiente, com mentalidade de guerra, competitivo, orientado pelo mercado, predador e, associado a todas as anteriores, ignorante. Adotou-se um conjunto de regras “científicas” que permitiu produzir “verdades científicas” e “proposições verdadeiras” (tipos discursivos) mantidas por um sistema de poder, conforme Foucault (2008____________. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.). Todavia, essas regras aparentemente científicas (levantamento bibliográfico, uso de linguagem científica própria ao campo do saber, adoção de critérios científicos de classificação etc.) produziu o que Moura (2017MOURA, G. G. M. Guerras nos mares do sul: o papel da oceanografia na destruição de territórios tradicionais de pesca. São Paulo: Annablume, 2017.) chama de artefatos, ou seja, dados, resultados e discussões inconsistentes. Em alguns tipos discursivos nem dados foram apresentados como se já houvesse estabelecido um “senso comum científico”. Essas “proposições verdadeiras” são sinônimos das falácias de Diegues (1995____________. Povos e mares: leituras em sócio-antropologia marítima. São Paulo: Nupaub/USP, 1995.).
Estas falácias estão em consonância com a produção de modernas representações dos outros do colonialismo cultural apontada por Thomas (1994THOMAS, N. Colonialism’s culture: anthropology, travel and government. Cambridge: Polity Press, 1994.). Esta dimensão discursiva de viés moderno-colonial, produzida por profissionais de diversos campos do conhecimento científico, seria mais uma dimensão que reafirmaria o esforço multidisciplinar da OC para a conquista dos mares definida por Moura (2019________. Construção da crítica à oceanografia clássica: contribuições a partir da oceanografia socioambiental. Revista Ambiente e Educação, Rio Grande, v. 24, n. 2, p. 13-41, 2019.). Por mais que profissionais de diferentes campos do conhecimento científico estivessem envolvidos na produção de tais falácias, a formação discursiva deve obedecer, segundo Foucault (2006FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2006.), um sistema de relações capaz de caracterizar uma prática discursiva, formar seus tipos discursivos (ou enunciados) e efetuar a unidade do discurso acerca de um determinado objeto. No caso da OC, a formação discursiva opera sob as seguintes linhas paradigmáticas: Oceanocentrismo, Tragédia dos Oceanos, Totalitarismo Epistêmico, Machismo Estrutural-Oceanográfico e Monocromatismo Cultural nos Mares. Estas linhas paradigmáticas constituem um sistema de relações que estruturam e unificam práticas discursivas específicas de produção de não existência operadas estrategicamente pelas lógicas da classificação social, da monocultura do tempo linear, produtivista e da monocultura do saber.
Esta formação discursiva da OC estrutura o espaço (etno)oceanográfico do discurso e, portanto, se insere na ordem de discurso científica, mas permite práticas discursivas pseudocientíficas. O alçamento a centros de cálculo da célula em questão faz com que esta ordem de discurso articule a textualidade e as instituições, conforme postula Maingueneau (2015MAINGUENEAU, D. Discurso e análise do discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.), e neste espaço de ordem e de poder o saber se constitui (ARAÚJO, 2020ARAÚJO, I. L. Formação discursiva como conceito chave para a arqueologia do saber. In BARONAS, R. L. (Org.). Análise do discurso: apontamentos para uma história da noção-conceito de formação discursiva. Araraquara: Letraria, 2020, p. 318-336.). Para Foucault (2008____________. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.), no processo de governamentalização do Estado, o saber que se constitui é o pensamento governamental, caso do na formulação da INC 2004.
Nesse processo, tal como postula Foucault (2008____________. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.), um arcabouço variado de conhecimentos e especialidades foram mobilizados para delimitar entendimentos específicos do objeto da prática governamental e, assim, embasá-la. A INC 2004 visa regular a pesca artesanal e, portanto, tem como público-alvo (objeto) de suas vias de pensamento e ação os pescadores artesanais. Com o alçamento de uma célula da comunidade epistêmica para a formulação da INC 2004, emana-se um quadro de referências (itens lexicais, tipos discursivos, regras, propósitos, lógicas operatórias etc.) associados a formação discursiva da OC que estrutura o espaço (etno)oceanográfico.
A formação discursiva constituinte, alçada a centro de cálculo, opera na estereotipação dos pescadores artesanais. Ele é visibilizado ao pensamento governamental enquanto uma categoria social responsável pelo colapso da pesca no RS e incapaz de agir sem regulamentação estatal e de superar a crise de recursos pesqueiros que ele mesmo (pre)supostamente criou.
Embasada por tal formação discursiva, a INC 2004 é a implementação de uma política pública que habilita ações de governo que segrega “zonas selvagens” (área altamente regulamentada restringida à pesca artesanal) e “zonas civilizadas” (área de baixa regulamentação restrita a pesca industrial e da pesca artesanal invisibilizada). Segundo Santos (2010SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010.), esta modalidade de ação diferencial é um tipo de fascismo, o de apartheid social. Ações de fiscalização desta natureza foram observadas por Moura (2017MOURA, G. G. M. Guerras nos mares do sul: o papel da oceanografia na destruição de territórios tradicionais de pesca. São Paulo: Annablume, 2017.) na implementação da INC 2004. Tem-se um caso evidente de política moderno-colonial da representação do outro, conforme discute Taussig (1987TAUSSIG, M. T. Shamanism, colonialism and wild man: a study in terror and healing. Chicago: University of Chicago Press, 1987.).
Considerações finais
O estudo do discurso constituinte da INC 2004, permite-nos propor avanços nas discussões científicas sobre manejo de recursos pesqueiros na crítica à OC. A produção de um estereótipo de pescador artesanal pela OC evidencia que as ciências da pesca, alocadas na oceanografia biológica, é um modelo bifocal de gestão de recursos naturais, e não unifocal. Com a estereotipificação, torna-o visível ao pensamento governamental para regular o seu comportamento em relação ao meio ambiente e não o ambiente per se. Rompe-se o senso comum de que a OC não aborda e/ou não produz uma representação do ser humano. Isto soma-se a conclusões de outros trabalhos em OS que mostram um esforço multidisciplinar que inclui as ciências humanas e sociais aplicadas na produção de um espaço (etno)oceanográfico. O problema não é de foco (uni ou bifocal), mas de lógica operatória moderno-colonial que gera uma modalidade de ação diferencial característica de um tipo de fascismo, o de apartheid social.
Com a célula, um quadro de referência ligado às linhas paradigmáticas é alçado a centro de cálculo para a composição de um pensamento governamental ligado à INC 2004. Estas linhas paradigmáticas estruturam o espaço (etno)oceanográfico do discurso (constituinte), uma das dimensões do espaço epistêmico (etno)oceanográfico. Nesta dimensão do espaço possui uma “zona cinzenta”, onde se permite práticas pseudocientíficas na produção de uma representação moderno-colonial de pescador artesanal.
Agradecimentos
Parte dessa pesquisa foi financiada pela FAPESP (Processo 2009/10562-0).
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1
- Giro decolonial é o movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico à lógica da modernidade/colonialidade (NARCHI et al., 2018).
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2
- A INC 2004 foi publicada no dia 9 de fevereiro de 2004 pelo Ministério do Meio Ambiente e pela Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca da Presidência da República Federativa do Brasil.
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3
- As falácias identificadas por Diegues (1995) são onze e oito delas aparecem na análise e discussão dos dados. Para conhecimento das demais falácias, ver capítulo “Realidades e falácias sobre pescadores artesanais” (p. 93-100).
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4
- Os modos de produção de não existência de Santos (2010) são cinco e quatro deles aparecem na análise e discussão dos dados, com exceção da “lógica da escala dominante”.
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5
- O termo “pescador” usado sempre no masculino constrói a ideia desta categoria profissional a partir de um recorte de gênero pela referida comunidade epistêmica. Esta construção produz ativamente a não-existência de mulheres na pesca sob a lógica do machismo estrutural-oceanográfico, assunto de artigos futuros.
-
6
- A “área costeira” a que se refere Diegues (1983) pode ser considerada sinônimo de “zona costeira”, definida posteriormente pelo Decreto 5300/2004.
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7
- A zona costeira do Rio Grande do Sul externa a Lagoa dos Patos é referida pela bibliografia científica local como “costa”.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Fev 2024 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
22 Out 2021 -
Aceito
15 Maio 2023