Resumo
Este artigo tem a finalidade de explicitar os principais (e atuais) aspectos dos conflitos socioambientais resultantes da expansão de atividades neoextrativistas sobre os territórios comunitários na Amazônia. O objetivo da pesquisa é recortar e explicar um conflito socioambiental e analisar relações/interações entre agentes envolvidos direta e indiretamente na história do conflito, que está localizado na região central de Rondônia, Amazônia Ocidental. Em relação à metodologia adotada, explora-se a ecologia política como campo de estudo dos conflitos socioambientais e seguem-se os dispositivos teórico-metodológicos da “etnografia dos conflitos socioambientais” de Paul E. Little e a “contextualização progressiva” de fenômenos que impulsionam a instabilidade de ecossistemas, unidades e fragmentos florestais, de Andrew P. Vayda. Em seguida, o artigo recorta uma especificidade da exploração florestal na Amazônia, imposta como alternativa de resolução de conflitos socioambientais, mas que resultou em uma corrida acirrada por terra e madeira e rupturas com antigas práticas conservacionistas.
Palavras-chave:
Neoextrativismo; manejo florestal; conflitos socioambientais; ecologia política; Amazônia
Abstract
This article aims to explain the primary aspects of socio-environmental conflicts that arise from the increase in neo-extractive activities within community territories in the Amazon rainforest. This research aims to define and explain a socio-environmental conflict in the central region of Rondônia, in the Western Amazon, examining the relationships and interactions between the agents directly and indirectly involved in the conflict. Regarding the methodology, political ecology is explored as a field of study for socio-environmental conflicts, following the theoretical and methodological frameworks of Paul E. Little’s “ethnography of socio-environmental conflicts” and of Andrew P. Vayda’s “progressive contextualization” of phenomena that destabilize ecosystems, forest units, and forest fragments. The article then outlines a specific aspect of forest exploitation imposed as an alternative for resolving socio-environmental conflicts in the Amazon, which instead resulted in a fierce race for land and timber, consequently causing ruptures with old conservationist practices.
Keywords:
Neoextractivism; forest management; socio-environmental conflicts; political ecology; Amazon
Resumen
Este artículo tiene como objetivo explicar los principales (y actuales) aspectos de los conflictos socioambientales derivados de la expansión de las actividades neoextractivas en territorios comunitarios de la Amazonía. El objetivo de la investigación es delinear y explicar un conflicto socioambiental y analizar las relaciones/interacciones entre agentes involucrados directa e indirectamente en la historia del conflicto, que se ubica en la región central de Rondônia, Amazonía occidental. En relación a la metodología adoptada, se explora la ecología política como campo de estudio de los conflictos socioambientales, y los dispositivos teórico-metodológicos de la “etnografía de los conflictos socioambientales” de Paul E. Little y la “progresiva contextualización” de los fenómenos que impulsan la inestabilidad de los ecosistemas, unidades y fragmentos de bosque, por Andrew P. Vayda. A continuación, el artículo destaca un aspecto específico de la explotación forestal en la Amazonía, impuesta como alternativa para la resolución de conflictos socioambientales, pero que resultó en una feroz carrera por la tierra y la madera y rupturas con viejas prácticas conservacionistas.
Palabras-clave:
Neoextractivismo; manejo forestal; conflictos socioambientales; ecologia política; Amazonía
Introdução
O desenvolvimento sustentável demonstrou o mito da racionalidade econômica moderna. Em resposta a isso, a chamada crise ambiental é relacionada, não poucas vezes, às interações metabólicas do homem com a natureza. Com efeito, orientados por noções como Antropoceno - amplamente conhecido -, Econoceno (Norgaard, 2013), Misantropoceno (Patel, 2013), Antrobisceno (Parikka, 2014), Tecnoceno (Hornborg, 2015), Urbanoceno (Chwałczyk, 2020), um número crescente de estudos tem utilizado o metabolismo social para explicar fenômenos ambientais relacionados às relações homem-natureza e suas instabilidades correspondentes. Além disso, “o estudo comportamental de humanos seria muito reduzido, hoje, sem a influência da pesquisa do comportamento animal” (Snowdon, 1999, p. 367). Na verdade, o próprio trabalho de Charles Darwin, acerca da seleção natural das espécies, tem influência nas diversas áreas das ciências humanas que estudam as relações/interações comportamentais entre homem e natureza. Na ecologia humana - Morán (1990), por exemplo -, investigações sobre interações humanas com a natureza levam em consideração aspectos comportamentais de adaptabilidade diante das condições ambientais dos ecossistemas habitados por comunidades, e como desenvolvem processos de socialização de habitus frente às variações de localidade, clima, relevo, vegetação, fertilidade e problemas do solo, disponibilidade de frutos, caça, pesca etc.
No entanto, para além da simples relação das formas de adaptabilidade humana frente às condições ambientais, a degradação ambiental remete a hierarquias, relações de poder, classes sociais, conflitos, desigualdades, interagindo intimamente com os aparatos do capital, em um complexo global de causas, interações e efeitos ou, como sugere Jason Moore: uma ecologia-mundo, multiespécie, situada e capitalizada em natureza barata (Moore, 2013; 2022). A crise ambiental sugere um processo de alargamento da ruptura metabólica do capital sobre a natureza (Porto-Gonçalves, 2016; 2020; Matos, 2023). O neoextrativismo - aparato do capitalismo verde - opera nesse sentido. A ofensiva neoextrativista avança sobre/contra a América Latina e impulsiona conflitos sobre grupos comunitários, a destruição da natureza, dos territórios e dos modos de reprodução ampliada da vida (Svampa, 2019; Suárez; Ruggerio, 2018; Ruggerio; Suárez, 2019; Ruggerio et al., 2022; Navarro; Gaona; Montezuma, 2024). Sobre/contra a Amazônia brasileira, em uma dialética predatória em crise epistêmica (Porto-Gonçalves, 2015), essas atividades rapineiras explicitam os regimes espoliatórios típicos de uma acumulação primitiva persistente, que vão da expansão/invasão capitalista/colonialista (Malheiro; Porto-Gonçalves; Michelotti, 2021) aos cercamentos expropriatórios contra os grupos comunitários (Matos, 2024a; 2024b) e seus corpos-territórios. Isso, por sua vez, alia-se a um estado de exceção que coopera pela territorialização de uma governabilidade bio/necropolítica do território nessa região (Malheiro; Cruz, 2019; Malheiro, 2022).
É por isso que o enfrentamento da crise ambiental só pode ter fertilidade se levar em consideração o papel das hierarquias de classes, dos grupos hegemônicos e dos movimentos sociais, no agravamento, ou nas alternativas de superação, das questões que movem a crise ambiental. O preço da degradação ambiental não pode ser uma soma de valores distribuídos igualmente para todos, como se todos tivessem a mesma parcela de contribuição na devastação. É necessário explicitar o papel de cada agente desta complexa ecologia-mundo.
Como parte de uma discussão que visa adensar o debate da transformação da natureza em mercadoria barata do capital (Moore, 2013; 2022), este artigo tem a finalidade de explicitar os principais (e atuais) aspectos dos conflitos socioambientais resultantes da imposição da ofensiva neoextrativista sobre territórios comunitários na Amazônia. Como dimensão da realidade empírica, selecionamos o complexo conflito socioambiental no entorno dos recursos naturais da Reserva Legal em bloco1 do Projeto de Assentamento (PA)2 Margarida Alves, na região central de Rondônia.
Através de uma abordagem interdisciplinar amparada na ecologia política, se demonstra como o manejo florestal - aparato de ofensivas neoextrativistas - imposto a famílias camponesas como alternativa de resolução de conflitos socioambientais, foi, na verdade, uma força exógena que resultou no acirramento da rapinagem3 sobre os recursos naturais e nos conflitos sobre o assentamento. De modo mais específico, o objetivo da pesquisa é explicar o conflito socioambiental, analisando relações entre agentes envolvidos direta e indiretamente.
A complexidade dos conflitos socioambientais
A abordagem está ancorada no amplo debate da crise ambiental enquanto crise do capitalismo, cuja categoria de conflitos socioambientais é, entre outras questões e paradigmas emergentes, efeito das contradições do desenvolvimento sustentável como alternativa de colonização/exploração contemporânea sobre os recursos naturais estratégicos. Os conflitos socioambientais têm se configurado como contradição do desenvolvimento sustentável adotado nas últimas décadas e têm demonstrado a insustentabilidade de uma forma de desenvolvimento produtivista que é autoritário por estar baseado ampliação da desigualdade, da separação e da exploração sobre a natureza e os grupos sociais. Nos conflitos socioambientais, destacam-se a falta de mediação/arbitração, o mecanismo de resolução dos embates (Silva; Sato, 2012) e a impotência dos grupos sociais com cotas de poder em desvantagem (Litlle, 2006).
Os conflitos por terra, território e natureza têm sido algumas das modalidades de disputa mais evidentes no século XXI (Brito et al., 2011; Suárez; Ruggerio, 2018; Ruggerio; Suárez, 2019; Ruggerio et al., 2022) e devem representar o cerne da crise ambiental nos países ricos em recursos naturais. Esses conflitos são comuns, geralmente, entre sujeitos e movimentos sociais, agentes institucionais e grupos hegemônicos. Os dois últimos agentes dos conflitos procuram justificar os impactos ambientais pelo valor econômico. Há também sujeitos sociais desligados de grupos comunitários. Esses, em suas relações homem/natureza, são movidos pela racionalidade econômica.
Os conflitos socioambientais, por conseguinte, são produzidos pelas diferentes visões de mundo, racionalidades, representações e simbolizações dissonantes sobre sociedade e natureza (Viégas, 2009); um choque de valoração (Martínez-Alier, 2018). Os conflitos socioambientais são embates produzidos pela competição econômica, política e social. São fenômenos complexos, ambíguos e tensos, sobretudo quando envolvem latifundiários, agromilícias, grupos políticos e econômicos cooperando entre si. Dessa forma, os conflitos socioambientais são movidos por uma luta desigual de interesses hegemônicos, aliados, sobretudo, ao fortalecimento do capital agrário e neoextrativista, apoiado, não poucas vezes, pelo Estado capitalizado de coalizões de forças produtivistas/economicistas, impondo a destruição da natureza.
Neste sentido, por envolver interesses difusos, os conflitos socioambientais devem estar sob mediação/arbitração na esfera pública, simultaneamente, na arena de negociação entre grupos hegemônicos e sujeitos sociais envolvidos. Essa abordagem simultânea das dimensões sociais, culturais e políticas implica em uma sociologia dos conflitos socioambientais (Alonso; Costa, 2000), à medida que esses se estruturam no entorno de interesses, percepções, valores e modos de vida, cosmovisões, geralmente divergentes.
De acordo com Viégas (2009), essas relações de forças entre os envolvidos direta ou indiretamente nos embates por recursos naturais se estabelecem a partir de volumes diferenciados de forças na arena de embates que lhes facultam um feixe de alternativas a serem investidas. Os conflitos socioambientais possuem características e causas variadas, os embates entre as partes pressupõem, paliativamente, mediar/arbitrar os diferentes interesses.
Embora não se possa falar sobre a resolução de todos os embates, variadas tipologias de conflitos socioambientais são possíveis de serem pacificados (Vargas, 2007), não havendo uma só resposta para análise, interpretação e mediação, o que permite o estabelecimento de diferentes ordens de análises nas relações de resolução e nas múltiplas formas de enfoques teóricos metodológicos. Isso remonta à necessidade de estudos prontamente comunicáveis aos decisores de políticas públicas.
Este deve ser um papel da ecologia política. A ecologia política é o campo de estudo dos conflitos socioambientais (Litlle, 2006). Miranda (2012) lembra que as abordagens dos conflitos socioambientais se desdobram em dois principais campos disciplinares: a ecologia política popular, que defende a preservação do ambiente e a justiça ambiental; e a ecologia política analítica, que se orienta no esforço teórico-metodológico para analisar os conflitos como resultado da competição política, econômica e social por recursos naturais.
O campo popular está na matriz de pensamento e ação ambiental (Porto-Gonçalves, 2012), que reúne intelectuais, militância de causas sociais e ambientais, lideranças comunitárias, ecologistas, movimentos sociais, indígenas, quilombolas, ribeirinhos etc., cujas principais preocupações, alegações e formas de embates estão direcionadas, sobretudo, em torno dos modos de vida, das culturas e das identidades locais, dos usos locais dos recursos naturais etc. Isso está amparado, quase sempre, em racionalidades alternativas; saberes-fazeres, cosmopolíticas, vertentes agroecológicas etc., que, por sua vez, articulam diferentes formas de re-existências, que se mostram antagônicas às forças telúricas de acumulação primitiva dos grupos hegemônicos.
Embora a ecologia política popular tenha importância nas pautas dos movimentos sociais, há outra contribuição que vem da ecologia política analítica. Essa surge a partir de novas perspectivas teóricas de entendimento e de contribuição aos estudos da ecologia, especialmente aqueles que não levam em consideração os fenômenos produzidos pelas interações sociais e pelo meio biofísico, os quais Vayda (1983) chama de “estudos neofuncionais,” caracterizando-os como romanticismo, observado nas teorias dos sistemas autorreguladores e auto-organizáveis, seguidas das supostas instabilidade e manutenção de ecossistemas intocáveis, à medida que não há preocupação com o debate teórico dos eventos pautados em explicar as razões das mudanças sociais e ecológicas, e sim em uma prática que privilegia os eventos políticos econômicos, em vez de explicar sua importância no contexto das mudanças sociais, políticas, econômicas e ecológicas.
O que Vayda (1983) faz nada mais é que alertar para a elaboração de estudos em ecologia política que, na prática, além de explicar os fenômenos, dialoga em uma perspectiva prontamente comunicável aos formuladores de políticas públicas. Vayda e Walters (1999), em outra ocasião, sugerem ainda uma ecologia política como alternativa à ecologia sem política; esta última que é fundamentada com base nas pretensões dos estudos de controles ou competições políticas sobre o uso dos recursos naturais, de ecologistas políticos da década de 1960. Na proposta desses autores, há uma necessidade de explicar as causas e os efeitos, e como os recursos naturais são afetados com controle e competições políticas, ou seja, o foco da pesquisa passa a ser o que os autores chamam de ocorrência de eventos ambientais.
Nessa premissa básica, questões que envolvam a instabilidade de ecossistemas ou unidades, assim como os conflitos socioambientais devem ser tratados por meio de uma abordagem que não só explique, mas que privilegie essas ocorrências na perspectiva do fenômeno. As ocupações ou invasões em unidades de conservação, o fracionamento de áreas e os conflitos, por exemplo, são fenômenos que podem ser tratados a partir de uma abordagem que possibilite o reconhecimento de frações e variáveis (diferenças de classe, de modos de vida) sociais e culturais, ou pelo menos que seja o mais adequado para essas abordagens.
Bases teórico-metodológicas da ecologia política
Etnografia dos conflitos socioambientais
Na “etnografia dos conflitos socioambientais”, Litlle (2006) defende a importância dos múltiplos campos disciplinares e das abordagens, e identifica os principais ativos movedores de conflitos a serem observadas: recursos naturais, florestais, pesca, barragens hidrelétricas, valores e modo de vida (Litlle, 2006). A “etnografia dos conflitos socioambientais” permite a identificação e a diferenciação, incorporando múltiplos pontos de vista e interesses diversos entre os envolvidos, exigindo o mapeamento dos diferentes níveis e a documentação histórica do conflito (suas alianças, negociação, acomodação e rupturas). Em Little (2006), a “etnografia dos conflitos socioambientais” não sugere como foco o modo de vida dos envolvidos, ou de um determinado grupo social, mas sim, a análise e as múltiplas relações/interações sociais e naturais que caracterizam os conflitos socioambientais.
Nesta ocasião, o pesquisador assume o papel de entender a dinâmica interna dos conflitos e suas diferentes posições, estratégias, mapeando-as nas múltiplas relações/interações e coalizões, no sentido de “identificar também os distintos discursos em choque e suas respectivas bases de legitimidade cultural e política, sejam elas explícitas ou implícitas” (Little, 2006, p. 93). “Dessa forma, a etnografia dos conflitos sociais se insere plenamente no paradigma ecológico que tem foco nas relações; usa uma metodologia processual; e contextualiza o conhecimento produzido” (Little, 2006, p. 92), tornando-se um guia para o tratamento dos conflitos socioambientais distributivos, territoriais e espaciais.
A “etnografia dos conflitos socioambientais” tem como especificidades a etnografia multiator, que identifica e diferencia os agentes sociais/ecologistas e naturais, e o uso de múltiplos níveis espaciais e temporais de análise que são delineadas, permitindo realizar o mapa social do conflito. Little (2006) sugere que é interessante analisar as variadas táticas e estratégias utilizadas pelos grupos sociais e perfilar as distintas tentativas de resolução; as alianças e as coalizões, as mobilizações, os projetos de gestão e o uso sustentável de recursos ambientais. Essa etapa deve ser cumprida com base na documentação histórica do conflito. A etnografia multiator trata-se de uma rede multiconectada de agentes locais, regionais, nacionais e até mesmo de nível global, envolvidos, de forma direta ou não, no complexo de causas interativas que envolvem os conflitos socioambientais. A etnografia multiator permite o mapeamento da cota ou escala de poder dos envolvidos no conflito. Little (2006) orienta que é preciso incluir os poderes tanto formais quanto informais (tentativas de domínio, ameaças, assassinatos e torturas, vandalismos e tentativas de causar terror aos grupos sociais desfavorecidos).
O método de contextualização progressiva
O método de pesquisa escolhido segue as contribuições teóricas e metodológicas de Vayda (1983), com base na “contextualização progressiva”, dentro da perspectiva da ecologia política, privilegiando o aspecto da interação pessoa-ambiente/homem-natureza, identificando as principais forças exógenas que, por sua vez, contribuem para os eventos localmente impulsionados dentro de um complexo de causas e interações.
O método de “contextualização progressiva” é indicado em abordagens que envolvam relações/interações homem-natureza/pessoas-ambiente e assumam a função de estabelecer contextos progressivos mais amplos ou mais densos da pesquisa, caracterizando-se como um guia para analisar relações/interações a partir de racionalidades e conhecimentos de contextos no sentido de sistematizar elementos inusitados da pesquisa, à medida que o pesquisador, para entender as forças que contribuem para o fenômeno, partindo primeiramente da formulação de questões mais amplas, posiciona-se em atividades locais, pessoas e ocasiões específicas, optando pela combinação de métodos (técnicas) quantitativos seguidos de métodos (técnicas) qualitativos (Vayda, 1983).
Nesse sentido, ao analisar relações homem-natureza/pessoas-ambiente, tendo a estratégia de “contextualização progressiva” como método de investigação, o pesquisador assume a posição de identificar e analisar relações sociais e fatores ambientais, e como tais relações resultam em determinadas consequências (como os efeitos dos desvios de finalidades de uma unidade, de um ecossistema ou um fragmento de floresta). Dessa forma, o pesquisador deve estar comprometido com a premissa holística de que a compreensão adequada dos problemas observados só poderá ser obtida se for vista como parte de um complexo de causas interativas e efeitos (Vayda, 1983).
Schmink (1999), ancorado nas contribuições teóricas de Vayda (1983), analisa casos concretos de extensão, pesquisas aplicadas e atividades de gestão participativa envolvendo comunidades camponesas no entorno e dentro de áreas protegidas na América Latina; mostrando como o foco em gênero e a participação comunitária têm contribuído para o manejo dos recursos ambientais. Para a autora, o mérito dessa abordagem está na especificidade de um local ou de um determinado grupo social. Contudo, também é altamente sensível para a maneira com que forças exógenas, além de um local particular, influenciam os resultados locais.
Vayda (1983) ainda ressalta que, nessa premissa holística de que a compreensão adequada dos problemas só pode ser obtida como parte de um complexo de causas interativas e efeitos, ao usar a “contextualização progressiva”, é importante que o pesquisador se concentre diretamente em formular questões de interesse para os agentes de políticas públicas. Nesse sentido, a “contextualização progressiva” dos problemas deve se tornar resultados úteis e prontamente comunicáveis aos decisores políticos de diferentes esferas.
Tanto Vayda (1983) quanto Little (2006) propõem um diálogo intenso entre Ciências Sociais e Ciências Naturais, no sentido de produzir “uma ciência verdadeiramente ecológica” que focaliza o relacionamento biodinâmico entre o biofísico e o social, que, por sua vez, requer certas mudanças paradigmáticas na prática científica; no horizonte epistemológico e no plano teórico e metodológico. Etnografar/contextualizar os conflitos socioambientais permite a identificação e a diferenciação, mapeando os múltiplos pontos de vista e interesses diversos entre os envolvidos, exigindo o mapeamento dos diferentes níveis e a documentação histórica do conflito (suas alianças, negociação, acomodação, rupturas), além de identificar as principais forças exógenas que contribuem para a formação dos conflitos.
Ambas as abordagens estão ancoradas no campo conceitual dos ecologistas políticos e se ocupa, através dos diálogos inter-transdisciplinares, com estabelecer um diálogo de nexos entre Ciências Sociais e Ciências Naturais, no sentido de produzir o que se pode chamar de “uma ciência verdadeiramente ecológica”, que, por sua vez, focaliza o relacionamento dinâmico entre o biofísico e o social inseridos no paradigma da crise do capital, e que requer certas mudanças na prática científica.
Imersão e coleta de dados
A coleta de dados começou com uma abordagem a campo que, baseado em Vayda (1983), é feita da combinação ad hoc de métodos (procedimentos) quantitativos seguidos de métodos (procedimentos) qualitativos, que envolvem imersão em ocasiões oportunas no PA Margarida Alves e reserva em bloco; posicionamento em locais, momentos e ocasiões específicas, à procura dos “escolhidos” ligados direta e diretamente ao conflito, optando por esperar o inesperado. Essa foi a etapa quantitativa desta abordagem. A etapa qualitativa, por sua vez, não leva em consideração roteiros ou entrevistas determinadas, já que o nosso objetivo, ao adotar essa metodologia, é o de esperar o inesperado, captando questões inusitadas do estudo.
Nesta ocasião, aproveitando as abordagens processuais da “contextualização progressiva”, com o posicionamento em atividades, locais, e em ocasiões específicas as quais foram: imersão estratégica no PA Margarida Alves, acesso ao interior da reserva em bloco, identificando ocorrências; em reuniões e assembleias organizadas pelos assentados, e, na mesma ocasião, como orienta a “etnografia dos conflitos socioambientais”, acessamos a documentação histórica do conflito, com vista a mapear as diferentes posições, crenças, percepções, projeções, cotas de poder, alianças, coalizões, rupturas etc. Nesta ocasião, foram coletados documentos referentes aos processos judiciais, operações policiais, apreensões e notícias da mídia regional e nacional, do plano de manejo florestal e documentos da associação de cooperados do PA Margarida Alves.
Houve uma questão que dificultou o acesso ao desenvolvimento da pesquisa com os quais chamamos de “poderosos” (grupos mercenários, madeireiras, políticos, latifundiários, pistoleiros etc.). Essa dificuldade foi atribuída a motivos tais como o fato de não se permitirem serem estudados e o risco de se revelar e se expor devido às suas posturas no desenrolar dos conflitos. Embora tenha havido esse empecilho, foi feito, por meio do acesso documental, da observação participante, de entrevistas e diálogos informais, todo o esforço possível no sentido de catalogar as diferentes posições dos envolvidos no conflito para garantir a maior clareza possível.
Explicando um conflito socioambiental na Amazônia brasileira
PA Margarida Alves: um complexo de causas interativas e efeitos
A unidade lócus deste estudo está localizada na região central do estado de Rondônia. A reserva em bloco do PA Margarida Alves está aglutinada nas adjacências de cinco municípios do estado de Rondônia (Nova União, Ouro Preto do Oeste, Mirante da Serra, Urupá e Teixeirópolis). Existe também outra área de reserva em bloco localizada no assentamento PA Padre Ezequiel, aglutinada aos mesmos municípios. Juntas, as duas áreas possuem mais de 10 mil hectares que compõem a metade da área destinada a cada assentamento.
A formação socioespacial do PA Margarida Alves é composta por parcelas loteadas, inicialmente, para assentar famílias camponesas distribuídas em sete glebas, sendo que as glebas 1, 2 e 3 foram parceladas em formato tradicional, apelidadas de “quadrado burro”4 pelos assentados. As glebas 4, 5, 6 e 7 foram divididas em formato radical, também chamadas de “raio de bicicleta”5 e/ou “agrovilas” (Mapa 1). As glebas em formato radical são, por sua vez, mais dinâmicas, desde o ponto de vista da paisagem ambiental até as relações sociorreligiosas. Organizadas em forma de núcleos de moradia, em lotes que se iniciam no que se chama de “área social”, onde as moradias circundam ao redor desses locais formados por igrejas, campos de futebol, barracões de festas, reuniões e assembleias, botecos, sede das cooperativas, fragmentos florestais etc.
O PA Margarida Alves, nossa área de estudo, foi criado em 1997, após a desapropriação das fazendas Fisher (Firasa) e Aninga, cujo tamanho ultrapassava os 22 mil hectares. O assentamento é uma conquista resultante da luta pela terra, por territórios e pela natureza do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de Rondônia.
Originalmente, foram assentadas 258 famílias no PA Margarida Alves, em lotes de 24 hectares, em média. Na mesma época, também foram criados outros dois assentamentos próximos: o PA Padre Ezequiel, em Mirante da Serra, e o PA Palmares, em Nova União, Rondônia. Atualmente, juntos, os três projetos de assentamento possuem cerca de mil famílias assentadas distribuídas em 30 mil hectares de terra.
De todos os assentamentos localizados na região central do estado de Rondônia (Margarida; Padre Ezequiel; Palmares), apenas o PA Margarida Alves e o PA Padre Ezequiel possuem uma Reserva Legal (em bloco) equivalente a 50% da área do assentamento localizada na formação geográfica de cada assentamento. A reserva em bloco do PA Margarida Alves possui a maior parcela de área destinada à preservação, cerca de seis mil hectares. Ambas, junto a outras nove (09) reservas em bloco em Rondônia, encontram-se em situação de conflito.
O estado de Rondônia possui 11 reservas em bloco demarcadas pelo INCRA, distribuídas entre os municípios de Nova União, Mirante da Serra, Corumbiara, Theobroma, Machadinho do Oeste, Urupá e Ariquemes, onde, nos últimos anos, têm surgido intensos conflitos pelas riquezas naturais dessas áreas. Na Região central de Rondônia, encontram-se três importantes reservas em bloco: Margarida Alves (Nova União), Padre Ezequiel (Mirante da Serra) e Martin Pescador (Urupá).
As finalidades da criação dessas áreas estiveram pautadas na possibilidade de incentivar o ecoturismo nos assentamentos e o extrativismo sustentável entre famílias assentadas. No PA Margarida Alves, a Associação dos Produtores Alternativos de Ouro Preto - APA promoveu e incentivou, na época, o extrativismo vegetal durante o primeiro plano de manejo florestal comunitário da reserva em bloco, em 2002-2003, considerado um caso raro em territórios do MST. Embora não haja um reconhecimento por parte do Estado na formulação de uma legislação específica para garantir a devida proteção dessa modalidade de Área Protegida na Amazônia - o que flexibilizou os desvios de finalidades ecológicas -, as reservas em bloco demonstraram por longos anos efetividade sob o ponto de vista da conservação da natureza por parte das famílias assentadas, mas, em função da ação de forças externas e, sobretudo, da impotência das famílias assentadas diante da atuação rapineira das agromilicias e madeireiros,, houve rupturas com todas as práticas conservacionistas anteriormente estabelecidas (Matos, 2024). Anteriormente, havia, por parte de famílias assentadas, atividades como extrativismo e coleta de cipós para artesanato, coleta de frutos (castanha, tucumã, açaí etc.), caça camponesa de subsistência etc. A reserva em bloco era, também, um espaço de turismo e lazer das famílias assentadas, sobretudo jovens. Todas essas relações/interações da comunidade com a reserva legal, com o desenrolar dos conflitos, foram substituídas por campos extensos de pastagens para a criação de gado (Matos, 2024).
Com o fortalecimento das ações das agromilícias, as famílias assentadas ficaram impotentes diante dos métodos de cercamentos expropriatórios. Esse perfil de rapinagem está explicitado no acesso a documentos judiciais e em entrevista com uma liderança comunitária do PA Margarida Alves:
Essa OCRIM [Organização Criminosa] tinha por objetivo invadir área de propriedade da União e expulsar do local, por meios de atos de violência, as pessoas que estavam legalmente assentadas na localidade; e que, por meio da Cooperativa de Trabalhadores Rurais do Assentamento Margarida Alves, exploravam economicamente e legalmente a área de reserva legal do citado Assentamento Rural (MPF, 2017).
As investigações indicavam que o grupo de invasores do Assentamento Margarida Alves contratam milícia (grupo de militares) da cidade de Ariquemes/RO, com a finalidade de fornecimento de armamentos e equipe de pessoas para viabilizar a prática dos fatos; (MPF, 2017).
Com força total, desmatando, demarcando a terra por conta. Botamos uma equipe de assentados para vigiar a reserva, o “trator” [apelido de um assentado] foi pego e torturado, ficou mais de mês desorientado e depois com depressão. (Liderança comunitária do PA Margarida Alves, 04/02/2019).
Manejo florestal como alternativa de sustentabilidade?
Apesar da distribuição de 50% dos lucros totais entre famílias assentadas, o manejo florestal no PA Margarida Alves foi do tipo empresarial/capitalista. Isso porque as atividades foram articuladas por grupos econômicos (madeireiras e escritórios de engenharia). Mediante contrato com a cooperativa de assentados outros 50% dos lucros ficaram com uma empresa de engenharia florestal de Porto Velho, capital de Rondônia. Três grandes madeireiras atuantes na Amazônia estiveram à frente de todo o processo de extração. Algumas das principais características explícitas das experiências de extração são a cooptação de lideranças comunitárias do assentamento, os métodos de cercamentos expropriatórios típicos de uma acumulação primitiva, os conflitos intestinais entre as próprias famílias assentadas, e, fator de instabilidade maior, a cobiça de grupos externos de agromilícias nas disputas por terra e madeira.
Duas tentativas de manejo florestal foram experimentadas sobre a reserva em bloco. Na primeira ocasião, entre 2000-2003, com o objetivo de incentivar o extrativismo entre as famílias assentadas, e, no sentido de contribuir para a inabilidade das ações de invasores externos -, notadamente as agromilícias - (Matos, 2024a; 2024b), a Associação dos Produtores Alternativos de Ouro Preto APA - agente envolvido diretamente nos conflitos (figura 1) - conseguiu, por meio do Fundo Nacional do Meio Ambiente e do Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil - PPG7, a aprovação do primeiro plano de manejo florestal junto ao INCRA e MMA como um meio de garantir fiscalização na área, coibição de invasões e cessamento dos conflitos.
Essa primeira experiência do manejo florestal imposto como alternativa de resolução dos conflitos durou pouco tempo -, na verdade, foi um verdadeiro desastre. Havia falta de preparo (treinamento) e interesse das próprias famílias para adotar a modalidade de exploração madeireira. Houve a necessidade de a própria APA encontrar pessoas de fora do assentamento para trabalhar na extração de madeira devido às atividades não serem exercidas por parte significativa de assentados e assentadas, que não se engajaram.
O contato de pessoas externas causou estranheza entre assentados e os trabalhadores que exerciam atividades laborais do manejo florestal. Nesta mesma ocasião, houve assassinatos e perseguições de famílias assentadas que se colocaram contra a extração de madeira. Pouco tempo depois, especificamente entre 2002 e 2003, aproveitando a tempestade perfeita dos conflitos entre os próprios assentados, iniciou-se uma grande invasão da área por pessoas externas ligadas à grupos de agromilícias da região. Somando todas essas ocorrências, aliadas à falência definitiva da APA em 2005 (Kohler et al., 2011), foi tomada uma decisão entre as famílias assentadas que foi de abandonar as atividades.
A partir de 2010, uma segunda tentativa de manejo florestal foi pleiteada pela associação de assentados do PA Margarida Alves: a Cooperativa Mista de Extrativismo, Agricultura Familiar, Ecologismo e Prestação de Serviços - COOMEAFES - agente envolvido diretamente no conflito (Figura 1). Por incentivos do INCRA, junto a lideranças comunitárias, como alternativa de barrar novos movimentos externos de invasão, já que a maior parte da madeira já estaria sendo retirada de forma ilegal, foi aprovado o segundo plano de manejo florestal da área.
Com a mediação de um escritório de engenharia florestal de Porto Velho - RO, que capturou 50% dos lucros da extração, três grandes madeireiras atuantes na Amazônia extraíram madeira no PA Margarida Alves. Outros 50% restantes do lucro da extração foram repartidos em parcelas medíocres entre cerca de 157 famílias assentadas. Isso, por sua vez, instaurou novos conflitos entre as próprias famílias, que alegam uma distribuição desigual dos lucros. Outras acusações pesam sobre o fato de as madeireiras não cumprirem os pagamentos combinados, sendo que a associação de assentados tentou diálogos para receber parcelas de altos valores não pagos. Com medo de se exporem aos métodos de cercamentos - que é práxis das madeireiras na Amazônia - as famílias acabaram por abandonar as pautas de cobranças e desistiram de judicializar o caso.
Uma questão observada ao acessar o interior da reserva em bloco diz respeito à infraestrutura causada pela exploração da madeira. Podemos ver, no próprio caso de pesquisa, que a infraestrutura construída legalmente por madeireiras, nessas áreas, permite uma conexão com o mundo externo e amplia a ramificação de ocorrências locais a outras escalas. A construção de estradas para uso legal nos manejos florestais, tanto em áreas de reserva legal quanto em Unidades de Conservação exploradas, permite uma conexão com agentes externos e, portanto, possibilita um fluxo maior das atividades, sobretudo ilegais. A infraestrutura possibilita com que os movimentos de invasão e madeireiros ilegais avancem sobre estas áreas, obtendo acesso às localidades mais remotas que antes não havia acesso pela falta de infraestrutura, intensificando as atividades clandestinas, que antes ocorriam apenas na borda da floresta. Foi o que aconteceu com a reserva em bloco do PA Margarida Alves, na ocasião posterior ao manejo florestal. A infraestrutura inferida por madeireiras para a extração de madeira se tornou uma rota de circuitos e fluxos de ilegalidades que se instalaram através de estradas e rotas terrestres construídas, seguido de invasões deliberadas e conflitos. Esta situação pressupõe a existência de redes de conexão com distintas formas de organização, na rapinagem dos recursos naturais locais, o que configura o manejo florestal como atividade predatória na Amazônia.
A falta de mecanismos, metodologias ou até mesmo recursos destinados à fiscalização das atividades de extração é outro fator que influencia a retirada ilegal e deliberada de madeira, tanto por madeireiros comuns quanto por madeireiros dotados de grandes empreendimentos e aparatos tecnológicos, que sempre dão um jeito de driblar a fiscalização. A ineficiência dos agentes institucionais, que, em tese, deveriam inibir ações ilegais, é um fator que contribui para o fracionamento de florestas na Amazônia, sobretudo nas áreas já impactadas pelo manejo florestal. Com a certeza da impunidade, alguns latifundiários grileiros de terras públicas e Áreas Protegidas retiram toda madeira da área e, posteriormente, vendem e utilizam o dinheiro para fracionar essas áreas para fins de pastagens e infraestruturas para criação de gado.
Outra característica da extração de madeira na Amazônia diz respeito à persistência da exploração da floresta após ou durante as atividades do manejo florestal. É interessante notar que as atividades só terminam com a retirada total de todas as espécies de fins madeireiros, sobretudo as espécies de alto valor comercial no mercado ilegal. O comércio de lascas é uma atividade muito comum em florestas onde ocorre a extração de madeira na ocasião do manejo florestal. Essa atividade também recruta trabalhadores de diversas regiões da Amazônia para a prática da serragem com motosserras, na qualidade de meeiros ou diaristas, configurando outro regime expropriatório típico da acumulação primitiva do capital. A atividade geralmente é feita com as espécies de alto valor, como a itaúba (Mezilaurus itauba), o pequi (Caryocar brasiliense), o angelim-amargo (Vatairea sericea Ducke), o angelim-pedra (Hymenolobium pulcherrimum Ducke), ipê-amarelo (Tabebuia incana A.H.Gentry), o ipê-roxo (Tabebuia sp.), a cariquara (Minquartia guianensis Aubl., Olacaceae), a mirindiba (Buchenavia tetraphylla), o cumaru-ferro (Dipteryx odorata); utilizadas na forma de lascas, tocos e mourões para construção de curral e cercas. Também são retiradas, nesta fase de exploração, a castanheira (Bertholletia excelsa), o cedro rosa (Cedrela fissilis Meliaceae), o jequitibá (Cariniana) e a garapa (Apuleia leiocarpa); utilizadas na forma de régua, ripa, prancha, caibro e viga para construção e acabamento de casas, curral e fabricação de móveis. A venda é garantida, atendendo à demanda de fazendeiros, sitiantes, posseiros e até mesmo de moradores e comerciantes de pequenas cidades, distritos e vilarejos. A retirada da madeira explorada das Áreas Protegidas (e dos territórios comunitários) é sempre feita aos finais de semana e nas caladas da noite, nas regiões mais remotas, essa prática é deliberada. Todo esse dinamismo parece decorrer do manejo florestal, que impõe estruturas fixas sobre as florestas, que dão acesso às partes mais remotas, criam conexões com outros agentes e ampliam a ilegalidade e degradação total dessas áreas.
Conclusões
Conclui-se que o neoextrativismo, atividade rapineira dos recursos naturais, movido pelos regimes de cercamentos expropriatórios, é uma força exógena imposta sobre/contra a natureza e os territórios comunitários na Amazônia. Modos de vida, coerências territoriais endógenas, relações comunitárias e de saberes com as florestas, anteriormente prescritas por relações coletivas de reprodução ampliada da vida são totalmente destruídas com a imposição da ofensiva neoextrativista.
O caso do PA Margarida Alves demonstra, além de toda a devastação ambiental atribuída a essa atividade rapineira, que o manejo florestal empresarial/capitalista tem se expandido e afetado até mesmo as partes mais remotas da Amazônia, habitadas por grupos comunitários diversos (comunidades camponesas, indígenas, extrativistas etc.). Ecossistemas inteiros são destruídos por atividades de extração florestal executadas por grupos de madeireiras.
O manejo florestal, em seu modo neoextrativista de operação, tem se alastrado por toda a Amazônia nos últimos anos e, a partir de vários impactos, tem evidenciado esse efeito contraditório, explícito desde o arranjo da extração - que mais parece uma teia de aranha - ao fracionamento total das áreas manejadas. Para além das metodologias de extração, expõem os regimes de cercamentos expropriatórios sobre a natureza e os grupos comunitários que nela habitam.
Na Amazônia, o manejo florestal é uma das vertentes neoextrativistas que resulta na destruição de ecossistemas e territórios comunitários. No PA Margarida Alves, o manejo florestal foi uma força exógena imposta - por estratégias de cooptação, lobbys e sedução de lideranças comunitárias e outros membros da comunidade - que impactou o assentamento com a instabilidade da reserva em bloco, acirrando os conflitos - até mesmo entre as próprias famílias assentadas - e a degradação total da área. Essa modalidade de manejo florestal empresarial possui relação direta com a devastação ambiental na Amazônia.
Isso demonstra, primeiramente, que o Estado capitalizado de coalizões de forças economicistas procurou, ao longo das últimas décadas, uma densidade de prioridades com o capital neoextrativista, que deposita na exploração dos recursos naturais uma alternativa de garantia de economia que “justifique” a degradação ambiental como preço; que a natureza e os povos que nela vivem pagarão com um valor cada vez mais alto. Das esquerdas às direitas políticas, essa foi e tem sido a crença desnecessária no fortalecimento de forças produtivas sobre a Amazônia.
Com o acirramento das crises movidas por novos espaços de investimentos do capital, demonstradas na transformação da natureza em mercadoria barata (Moore, 2013; 2022), é duvidoso que o capitalismo verde e as burguesias agrárias mereçam os incentivos políticos que têm recebido na atual agenda neoliberal de governabilidade bio/necropolítica das riquezas naturais, assim como os casos da pecuária extensiva, da expansão do agronegócio sobre o cerrado e a Amazônia, e das grandes obras de infraestrutura (como é o caso das hidrelétricas), não mereceram tais incentivos, como já se sabe.
Dentro desse mesmo contexto de rapinagens, expropriação e cercamentos, observamos as formas de re-existências dos grupos comunitários na Amazônia se amparando nas estratégias de reapropriação social da terra, dos territórios e da natureza. Muitas dessas estratégias de re-existência, em função das novas formas de articulação do capital para transformar a natureza em mercadoria barata, tem sido, pelo que observamos neste e em outros casos na Amazônia, em um contexto de rupturas, em oposição às novas formas de dominação/exploração, ao discurso neoliberal ambiental do “desenvolvimento sustentável”, aos regimes de cercamentos expropriatórios sobre a natureza e os territórios comunitários. Os grupos comunitários têm cobrado por esta dívida econômica, ecológica e social gerada pela mercantilização da natureza como fronteira externa de investimento deste grande capital em crise epistêmica, e essa cobrança se mostra, também, nas rupturas com agentes institucionais, do capital e seu discurso ambientalista neoliberal, mesmo que essa ruptura seja com antigas práticas conservacionistas anteriormente desenvolvidas pelas comunidades, como vem ocorrendo também.
Agradecimentos
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) pela concessão da “Bolsa Doutorado Nota 10”.
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1
- Reserva Legal em bloco ou coletiva é um modelo de Reserva Legal criada pelo Instituto Nacional da Reforma Agrária (INCRA). Neste modelo, todas as parcelas individuais são aglutinadas em uma só área e geridas de forma coletiva pelo grupo de famílias assentadas.
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2
- No Brasil, os Projeto de Assentamentos resultam do pressionamento da luta pela terra dos movimentos sociais do campo e da lenta política agrária do Estado. O INCRA é o órgão responsável por implementar e gerir os Projetos de Assentamentos.
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3
- O termo rapinagem é, com frequência, adotado nas abordagens sobre a acumulação primitiva. Rapinagem é, também, possibilidade de metáfora, como nas relações da natureza em que indivíduos - como as aves de rapina - sobrevivem da morte de outros indivíduos.
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4
- Termo cunhado por movimentos sociais para questionar o modelo espacial convencional de criação de Projetos de Assentamento do INCRA em que os lotes são distribuídos levando em consideração apenas a quantidade de hectares em metros quadrado, dificultando as relações comunitárias típicas do modo de vida camponês (vizinhanças, festas, religiosidades etc.) devido a distância entre os lotes, as residências e os espaços de relações comunitárias.
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5
- Termo cunhado por movimentos sociais para questionar o modelo espacial convencional de criação de Projetos de Assentamento do INCRA em que os lotes são distribuídos levando em consideração apenas a quantidade de hectares em metros quadrado, dificultando as relações comunitárias típicas do modo de vida camponês (vizinhanças, festas, religiosidades etc.) devido a distância entre os lotes, as residências e os espaços de relações comunitárias.
Disponibilidade de dados
Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Nov 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
19 Out 2023 -
Aceito
20 Nov 2024



Fonte: INCRA e IBGE. Elaborado por Marcelo Pires Negrão, Angers, França, 2020.
Fonte: Imersão a campo. Autor (org.), 2021.