Resumo
Por muitos anos, o pensamento ambientalista concebeu a tese de que a conservação da natureza só seria possível se protegida da ação humana, subjugando o uso e o manejo do território feito por comunidades tradicionais e indígenas. A Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI tem o potencial de alterar essa visão na medida em que prevê a conciliação de interesses de conservação salvaguardados os direitos indígenas. O objetivo é discutir os desafios da implementação de instrumentos de gestão territorial indígena no caso de sobreposição entre a Terra Indígena Apiaká do Pontal e Isolados e o Parque Nacional do Juruena. O método utilizado é de análise de documentos que identificam o conflito jurídico da sobreposição e medidas que facilitaram o entendimento mútuo na direção de uma gestão compartilhada. A principal conclusão aponta que a regularização fundiária é importante requisito para a solução dos conflitos.
Palavras-chave:
Terra Indígena; Área Protegida; Gestão Territorial; Juruena; Apiaká
Abstract
For many years, environmentalist thought held that nature conservation would only be possible if areas were protected from human action, thereby restricting traditional and indigenous communities’ use and management of territories. The National Policy for Environmental and Territorial Management on Indigenous Lands (PNGATI) has the potential to change this view, as it provides for the reconciliation of conservation interests while safeguarding Indigenous rights. This article discusses the challenges of implementing Indigenous territorial management instruments in the context of overlapping territories of the Apiaká do Pontal and Isolados Indigenous Lands and the Juruena National Park. The study uses document analysis to identify the legal conflict arising from the overlap and examines measures that have facilitated mutual understanding toward shared management. The main conclusion is that land regularization is essential for resolving conflicts.
Keywords:
Indigenous Lands; Protected Area; Territorial Management; Juruena; Apiaká
Resumen
Durante muchos años, el pensamiento ecologista concibió la tesis de que la conservación de la naturaleza sólo sería posible si se protegía de la acción humana, avasallando el uso y la gestión del territorio por parte de las comunidades tradicionales e indígenas. La Política Nacional de Gestión Ambiental y Territorial en Tierras Indígenas (PNGATI) tiene el potencial de cambiar esta visión en la medida en que prevé la conciliación de los intereses de conservación al tiempo que salvaguarda los derechos indígenas. El objetivo es discutir los desafíos de la implementación de los instrumentos de gestión territorial indígena en el caso de la superposición entre la Tierra Indígena Apiaká do Pontal e Isolados y el Parque Nacional Juruena. El método utilizado es el análisis de documentos que identifican el conflicto legal de superposición y las medidas que han facilitado el entendimiento mutuo en la dirección de la gestión compartida. La principal conclusión es que la regularización de las tierras es un requisito importante para resolver los conflictos.
Palabras-clave:
Tierra Indígena; Área Protegida; Gestión Territorial; Juruena; Apiaká
Introdução
A harmonização dos direitos constitucionais dos povos indígenas, associados à proteção do patrimônio histórico e cultural do país, com a conservação da diversidade biológica é um desafio posto às áreas protegidas. No mundo, as áreas protegidas ocupadas e manejadas por populações indígenas correspondem a cerca de 85% dos casos (COLCHESTER, 2000). Segundo Madeira et al., (2015) 69% das unidades de conservação de proteção integral no Brasil têm interfaces territoriais. A maioria (61,36%) envolve parques nacionais. Por muitos anos, o pensamento ambientalista concebeu a tese de que a conservação da natureza só seria possível se protegida da ação humana (MCNEELY & MILLER, 1983). Em razão disso, são inúmeros os casos de injustiças sociais em processos de criação de áreas protegidas em termos de perdas de direitos, territórios ou acesso a recursos (DUDLEY, 2008). Frequentemente, a discussão acerca da sobreposição entre terras indígenas e unidades de conservação desce ao nível da acusação, como se houvesse uma intenção deliberada da área ambiental em suprimir direitos indígenas ou dos índios e organizações que os apoiam para inviabilizar a conservação da biodiversidade. Essa polêmica omite o fato concreto de que são as frentes de grilagem de terras e ligadas à extração predatória de recursos naturais que esbulham tanto as unidades de conservação quanto as terras indígenas. (SANTILLI, 2004).
Nas últimas décadas, tal fato tem estimulado esforços político-jurídicos cada vez maiores para a compatibilização da presença humana com objetivos conservacionistas, prevalecendo-se o direito desses grupos de permanecerem em suas áreas (AGU, 2021). Pouco a pouco, o poder público começou a rever posicionamentos e a reinterpretar dispositivos legislativos e jurídicos à luz dos direitos constitucionais de forma mais abrangente, apontando para a tardia e tão desejada correção de injustiças sociais praticadas em nome da conservação da natureza brasileira.
O cardápio de instrumentos da Administração Pública para o enfrentamento do desafio das sobreposições inclui a própria Lei 9985/2000 (BRASIL, 2020), que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) e a Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI), instituída pelo Decreto 7747 de 5 de junho de 2012 (BRASIL, 2012). Ao mesmo tempo em que o SNUC proíbe a permanência e o uso dos recursos naturais por comunidades no interior das unidades de conservação de proteção integral, ele prevê o instituto dos Termos de Compromisso (TC) enquanto instrumentos de caráter transitório que visam o reassentamento das populações tradicionais que residem no interior de unidades de conservação de proteção integral, previsto no Decreto nº 4.340/02, que regulamenta a Lei do SNUC (TALBOT, 2016). No que diz respeito aos povos indígenas, a transitoriedade e a previsão de reassentamento colidem com o que determina o art. 231 da Constituição Federal de 1988, segundo o qual é reconhecido aos índios o direito originário às terras que tradicionalmente ocupam (FUNAI, 2020).
A PNGATI, por sua vez, tem entre seus objetivos específicos, o de “elaborar e implementar, com a participação dos povos indígenas e da Funai, planos conjuntos de administração das áreas de sobreposição das terras indígenas com unidades de conservação, garantida a gestão pelo órgão ambiental e respeitados os usos, costumes e tradições dos povos indígenas” (art. 4º, III, b).
Deste modo, desde 2012 o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) passou a estabelecer acordos de convivência por meio da celebração dos termos de compromisso, o que inclui indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e agricultores familiares que tiveram todo ou parte de seus territórios de vida transformados em unidades de conservação da natureza (ICMBIO, 2012). Segundo o órgão, os processos de construção e celebração dos termos de compromisso propiciaram melhorias nas condições de gestão das unidades de conservação com o distensionamento das relações e a construção de parcerias para a proteção das unidades de conservação, como no caso do manejo comunitário do pirarucu na Reserva Biológica do Lago Piratuba (PINHA et al., 2014) e o uso do fogo por comunidades quilombolas na Estação Ecológica da Serra Geral do Tocantins (BARRADAS et al., 2020).
Outro caso notável é o do Termo de Compromisso firmado em 2018 entre o povo Pataxó da TI Comexatibá e o ICMBio, prorrogado por tempo indeterminado em 2023. O objetivo do termo é conciliar e assegurar direitos territoriais e socioambientais do povo Pataxó e de conservação da biodiversidade inerente ao Parque Nacional do Descobrimento (PND), que se encontram em situação de sobreposição territorial. As ações interinstitucionais e intersetoriais para reverter um conflito aparentemente insolucionável foram celebradas pelo ICMBio, pela Funai e pelos indígenas, que passaram a ser reconhecidos como, também, agentes da preservação da natureza (FUNAI, 2023). Outros processos semelhantes em curso são entre famílias Nawa e o ICMBio no caso da sobreposição no Parque Nacional da Serra do Divisor (AC) e entre os Guarani do Tekoa Kuaray Haxa e o ICMBio na área da Reserva Biológica do Bom Jesus (PR).
Tais experiências ilustram que os conflitos territoriais relacionados à sobreposição entre unidades de conservação e territórios de povos e comunidades tradicionais demandam análises transversais e interdisciplinares, observação sistêmica do ordenamento jurídico, arranjos institucionais específicos e medidas de gestão inovadoras para sua compreensão e superação, conforme reconhece o ICMBio.
No que tange ao efeito jurídico de tal mudança, ressalta-se o atendimento aos dispositivos da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), trazendo a essencialidade da consulta prévia, livre e informada dos povos interessados para a solução dos conflitos de sobreposições existentes (art. 6) e a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), em seu artigo 8º, em que trata de aspectos da conservação in situ, admitindo a importância de populações tradicionais na conservação da biodiversidade (MMA, 2000).
Por meio do Parecer 175/2021, a Administração Pública passa a reconhecer como equivocada qualquer assertiva no sentido de que a sobreposição espacial entre terras indígenas áreas ambientalmente protegidas represente, por si só, fator de risco ao meio ambiente, motivo pelo qual o estabelecimento de uma hierarquia entre a tutela do meio ambiente e os direitos dos povos indígenas sobre suas terras de ocupação tradicional, com prevalência do primeiro, fere a ordem constitucional vigente (AGU, 2021; BARRADAS et al., 2020).
Materiais e Métodos
Este trabalho estrutura-se na revisão de dados e documentos sobre o surgimento do conflito territorial entre o povo indígena Apiaká e a Administração Pública envolvendo duas de suas autarquias federais (ICMBio e Funai) e o percurso social, político e jurídico que levaram a um entendimento mútuo na direção de uma gestão compartilhada. Teve como fio condutor o olhar indigenista oportunizado pela atuação da equipe da Operação Amazônia Nativa (OPAN) na região da sobreposição do Parque Nacional do Juruena sobre a Terra Indígena Apiaká do Pontal e Isolados desde 2017.
Nesse esforço de pesquisa, foram analisados documentos bibliográficos e técnicos gerados pela Administração Pública, os quais destacam-se: Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Apiaká do Pontal e Isolados e outros ofícios nele referenciados, como o Ofício s/ n.º de 6/5/07 do Processo FUNAI/BSB/08620.0073/2010 e o Ofício n.º 88/SEMAM/GAB/AER/CGB do Processo FUNAI/BSB/08620.0073/2010; Plano de Manejo do Parque Nacional do Juruena; Instruções normativas como a IN3/2015 e a IN09/2020 da Funai; a IN26/2012 do ICMBio; a Portarias 91/2020 do ICMBio e a Moção s/n do Conselho Consultivo do Parque Nacional do Juruena, a Informação Técnica IT3/2021 (ICMBIO, 2021), o Parecer 175/2021 da AGU, entre outros. Depois, as informações foram contextualizadas e sistematizadas pelos autores.
A sobreposição da Terra Indígena Apiaká do Pontal e Isolados pelo Parque Nacional do Juruena
O Parque Nacional do Juruena é uma unidade de conservação federal de proteção integral, sob administração do ICMBio, criada no dia 5 de junho de 2006 com uma extensão de 1,9 milhão de hectares em cinco municípios dos estados de Mato Grosso e Amazonas. Conforme o Plano de Manejo da unidade, o parque ocupa uma posição estratégica no Arco do Desmatamento, garantindo a conectividade ambiental das demais áreas protegidas com as quais faz limite. O bloco de conservação do Juruena-Apuí forma uma região com cerca de nove milhões de hectares e faz parte de um conjunto maior de áreas protegidas, que se estende de leste para oeste, denominado Corredor de Conservação da Amazônia Meridional (ICMBIO, 2011).
Sobreposição entre a Terra Indígena Apiaká do Pontal e Isolados e o Parque Nacional do Juruena
De acordo com o Plano de Manejo do Parque Nacional do Juruena, nove representantes indígenas, entre Apiaká e Munduruku, foram entrevistados durante a etapa de caracterização socioeconômica dos moradores do entorno da unidade de conservação (ICMBio, 2011). No documento, as referências aos Apiaká restringem-se à citação de que estão, juntamente com os povos Munduruku, Kayabi, Rikbaktsa e ribeirinhos, no entorno do parque. O Plano de Manejo cita mais diretamente os Apiaká minimizando sua importância na área da unidade de conservação:
Os indígenas estão localizados na Terra Indígena Munduruku, com seis aldeias, na Terra Indígena Kayabi e na Terra Indígena Escondido, havendo também um pequeno grupo, autodenominado Apiaká, no Pontal dos Apiaká, nas margens do Rio Juruena. (ICMBIO, 2011, p.100, grifos nossos)
Em outro trecho, limita-se a localizar a existência de aldeias Apiaká no interior da Terra Indígena Kayabi, contígua ao Parque Nacional do Juruena, ressaltando que a demarcação dessa terra indígena está sendo contestada judicialmente por proprietários rurais (ICMBIO, 2011). Este é apenas um exemplo do tratamento discriminatório e duvidoso sobre a ancestralidade e a legitimidade territorial dispensada aos Apiaká no Plano de Manejo do Parque Nacional do Juruena, à época. Em praticamente todas as menções aos Apiaká no documento, aparecem elementos indutores de suposta contradição, ressalvas ou informações que enfraquecem a noção de que os indígenas de fato existem e detém direitos territoriais ali.
Os Apiaká são índios pertencentes linguisticamente ao tronco tupi, da família tupi-guarani, mas atualmente são poucos os que ainda falam sua língua original. Os seus ancestrais, que trabalharam e permaneceram nos antigos seringais da região, casaram-se com nordestinos e índios de outras etnias (Munduruku, Kayabi, Sateré-mawé e Kokama), com os quais conviviam no extrativismo da seringa (Tempesta, 2008). Atualmente, uma parte de sua população encontra-se dispersa em Cidades como Juara, Porto dos Gaúchos, Cuiabá e Belém, mas a maioria vive na TI Apiaká-Kayabi, nas margens do Rio dos Peixes, no Estado de Mato Grosso e na aldeia Mairowy, dentro da TI Kayabi. Fala-se ainda de uma possível tribo isolada, ainda não contatada pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que estaria em terras do município de Apiacás. A aldeia Mairowy está localizada nas margens do Rio Teles Pires. Nela vivem 16 famílias (146 pessoas), com uma escola estadual de ensino médio, uma farmácia com remédios para emergências e uma enfermeira mantida pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). Nenhum integrante da aldeia fala a língua de origem. Um grupo de aproximadamente três famílias (24 pessoas) se desmembrou da aldeia Mairowy e ocupou o Pontal de Apiacás, na margem do Rio Juruena (Foto 2.20). O chefe do grupo, Sr. Roberto Deceí, se autodenomina Apiaká, mas seus parentes de sangue afirmam que ele não pertence a etnia Apiaká e sim a etnia Munduruku: “Sou irmã dele e o Roberto não é Apiaká e o nome dele é Roberto Munduruku”. Há também relatos que desmentem que o grupo que está lá veio da aldeia Mairowy, que afirmam que eles foram levados de avião pela própria FUNAI e que parte do grupo teria sido trazido de Juína. (ICMBIO, 2011, p.102, grifos nossos)
Chama atenção, ainda, que a reivindicação territorial tenha sido tratada como se eivada de violência, insinuando-se de modo raso e descontextualizado que ocupantes não indígenas seriam vítimas dos Apiaká. Além disso, atribuem-se aos indígenas interesses minerários sobre a área.
A área do Pontal, atualmente no interior do PNJu, pertencia anteriormente ao senhor conhecido como Ari e era dono da Pousada Jurumé, que ficava na margem oposta, da área atualmente ocupada, onde se localiza a pista de pouso, construída para atender esta pousada. Pelos relatos, os índios da tribo Mairowy expulsaram o pessoal da pousada e vieram se instalar na área. Há relatos de episódios de extorsão do dono da Pousada Jurumé por parte dos índios e de agressões físicas para concretizar a expulsão do pessoal da pousada. O cacique da tribo Mairowy, Raimundo, comandou esta ocupação e juntamente com Roberto Decei, reivindica a área como terra indígena Apiaká. O argumento utilizado baseia-se em que a área em questão pertenceu aos antepassados da etnia. O objetivo desse grupo seria, após o reconhecimento das terras como pertencentes à etnia, trazer o grupo de Apiaká que hoje se encontra na TI Apaiká-Kayabi, junto ao Rio dos Peixes (aproximadamente 300 pessoas). Informam que já existe processo de reconhecimento dessas terras como sendo da etnia protocolado na FUNAI, no departamento de demarcação de terras, e que este protocolo é anterior a decretação do PNJu. Porém, na época dos estudos para a criação do PNJu, segundo transcrição de ata de reunião realizada no IBAMA, com a presença da doutora Débora Duprat, do Ministério Público Federal - 6ª Câmara, e de representante da FUNAI, foi dito que não havia qualquer reivindicação territorial sobre a área proposta para o parque: “Ao final da reunião, Sérgio Brant, da DIREC, falou do processo de criação do PARNA Juruena. Foi feita uma consulta pública em Alta Floresta. Mais duas estão programadas. Falou de conflito referente à reivindicação dos indígenas por área na Foz do Rio São Tomé - Apiacás, que estaria dentro da região do PARNA. Henrique, da FUNAI, respondeu que a Fundação não reconhece tal área como Terra Indígena.”. Durante os estudos de criação do PNJu a área estava sob uso de não índios já por longo tempo, e a ocupação pelo grupo autodenominado Apiaká ocorreu com uso de violência física. É fácil comprovar através de imagens de satélite que a ocupação é recente, e ocorreu após a criação do PNJu. Durante os estudos de campo para o presente diagnóstico socioeconômico, foram colhidos depoimentos dos ribeirinhos vizinhos desta área, que afirmam que este grupo não está no Pontal desde 2004 (antes da criação do parque), como alegam, mas que viram estes índios chegar em 2006 (quando da criação do parque) e, para comprovar, utilizam o tempo de roça e colheita: “Veja bem, em dezembro de 2007 foi a primeira roça que eles colheram e ela foi plantada no final de 2006”. E não se pode deixar de citar que esta ocupação se atrela a interesses de mineração no rio Juruena, e uma das principais fontes de renda era a cobrança de taxas (“pedágios”) para as balsas de mineração, atividade suspensa desde a intervenção da equipe do PNJu (ICMBIO, 2011, p. 103, grifos nossos).
Ignorar a territorialidade Apiaká no processo de criação do Parque Nacional foi um erro crasso, uma vez que a presença dos Apiaká no Baixo Juruena é incontestável. Conforme Almeida (2019), há vasta documentação histórica atestando que a região era tratada como “Reino dos Apiaká” ou “Baixio dos Apiaká” e, ainda hoje, tal presença marcante dá nome a inúmeros acidentes geográficos e localidades da região: Serra dos Apiacás; Pontal dos Apiacás; Município de Apiacás (MT); além dos rios Apiacás e Apiakazinho. Certamente a referência mais conhecida se trata dos relatos deixados pelo artista Hercules Florence, que nos anos 1820 acompanhou a “Expedição Langsdorff”, do interior de São Paulo rumo à Santarém, navegando pelos rios Arinos, Juruena e Tapajós. Décadas mais tarde, a consolidação da rota Cuiabá-Santarém e a expansão dos seringais pela região fez aumentar a hostilidade dos colonizadores em relação aos indígenas e os Apiaká foram sistematicamente perseguidos, afastando-se da região (ALMEIDA, 2019).
Para Almeida, diante de um cenário de perseguição e extermínio, uma das estratégias adotadas pelos Apiaká para sobreviver foi a mimetização em comunidades não indígenas residentes na região. Hoje há Apiaká residindo em três distintas Terras Indígenas (Apiaká-Kayabi, Kayabi, e Apiaká do Pontal e Isolados) e em municípios localizados no noroeste de Mato Grosso e sudoeste do Pará. A partir dos anos 1960, os Apiaká pouco a pouco iniciaram um processo de reafirmação de sua identidade étnica e, consequentemente, a retomada dos seus territórios (ALMEIDA, 2019).
Conforme discorre a antropóloga Giovana Acácia Tempestá, coordenadora do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da Terra Indígena Apiaká do Pontal e Isolados, desde 1990 os Apiaká prestam à Funai informações sobre a existência de índios isolados, que acreditam serem seus parentes, no Pontal (FUNAI, 2011 p.9). A reivindicação pela demarcação de uma terra indígena começou a tomar forma entre 1993 e 1994, por ocasião dos trabalhos de identificação e delimitação das Terras Indígenas Munduruku (PA) e Kayabi (PA e MT). Naquele momento, os Apiaká do Rio dos Peixes (TI Apiaká-Kayabi/MT) retomavam e consolidavam os vínculos políticos com seus parentes do Pontal, após algumas décadas de desarticulação.
Somente durante o processo de regularização das TIs Kayabi e Munduruku os Apiaká descobriram que, como sujeitos de direito, poderiam reivindicar a regularização de sua própria terra tradicional. Quando compreenderam que, diferente do que presumiam até então, à identificação daquelas duas terras indígenas não se seguiria automaticamente a identificação de uma TI Apiaká, organizaram-se politicamente em torno desta reivindicação e começaram a buscar informações sobre os direitos assegurados pela Constituição Federal de 1988.
A reivindicação dos Apiaká foi formalizada em 1999, por meio de uma carta que informa sobre um grupo de “parentes” isolados vivendo na região entre os rios Juruena, Teles Pires e Matrinchã (São João da Barra), a mesma área reivindicada até hoje. A partir de então, diversas cartas foram enviadas à sede da Funai em Brasília por lideranças Apiaká e pela Coordenação Regional da Funai de Colíder (MT), nas quais a reivindicação territorial dos Apiaká se combinava ao desejo de proteger o grupo isolado. A necessidade de regularização de uma terra indígena no Pontal tornou-se premente quando os Apiaká começaram a sofrer pressões e ameaças de restrição de uso de recursos naturais tanto por parte dos Kayabi, antigos inimigos, como por parte de não indígenas.
Assim, o Ministério Público Federal (MPF) em Mato Grosso foi acionado pelos Apiaká em 2001 para denunciar a presença de garimpeiros no rio São Tomé (FUNAI, 2011). Segundo o RCID (2011), àquela altura o movimento Apiaká pela regularização do território tradicional articulava-se de modo complexo no sentido da reconstituição de laços sociais supra-locais enfraquecidos historicamente entre os povos Apiaká, Kayabi e Munduruku, que desde o século XIX relacionam-se por meio de guerras, trocas e casamentos, compartilhando o mesmo território.
Após tentativa dos Apiaká de paralisar, em 2004, a demarcação da TI Kayabi , a reivindicação dos Apiaká ganhou novo fôlego em agosto de 2005, com o caso de agressão entre o dono da pousada no Juruena e os Apiaká. Segundo o RCID, lideranças Apiaká relataram que, naquele momento, os Kayabi começaram a exigir que os Apiaká se retirassem da TI Kayabi e passaram a ameaçá-los de expulsão sumária, caso se recusassem a sair pacificamente, sendo o único interesse dos Apiaká em colocar obstáculo à demarcação da TI Kayabi (que foi suspensa por determinação judicial) o de chamar a atenção da Funai para a necessidade da regularização de uma terra indígena exclusivamente sua. Entretanto, essas informações são bem diferentes das que constam no Plano de Manejo do Parque Nacional do Juruena.
O conflito eclodiu na ocasião em que um funcionário da AER de Colíder tentou pousar na pista da Fazenda Pontal, levando consigo alimentos e objetos que seriam utilizados numa expedição em busca de índios isolados nas cabeceiras do rio São Tomé, da qual participariam vários homens Apiaká provenientes de diversas aldeias. O senhor Ari teria impedido o pouso da aeronave, alegando tratar-se de uma propriedade particular, o que, entretanto, jamais pôde comprovar. Naquele momento, as relações entre os Apiaká e o senhor Ari já estavam tensas devido às restrições por ele impostas às atividades de caça e pesca, tradicionalmente realizadas pelos indígenas na área, as quais poderiam, segundo ele, perturbar a paz dos turistas. (Memo n.º 185/GAB/AER/CLD, Processo FUNAI/BSB/08620.0073/2010, fl. 90 apud FUNAI, 2011, p. 13)
Após o confronto, os Apiaká estabeleceram uma aldeia, também chamada Pontal, ao lado da pista de pouso, como forma de obter sua regularização administrativa e consolidar sua ocupação na área pleiteada, que nunca deixou de existir. O episódio do conflito com Ari, que teve repercussão em nível estadual e foi intermediado pela Polícia Federal, representa um marco na história da luta dos Apiaká pela regularização de suas terras, uma vez que homens de todas as aldeias se uniram para defender a área de uso e ocupação tradicional do povo contra a ameaça de apropriação representada por um não indígena (FUNAI, 2011).
Sucedendo tais episódios, no ano de 2006 foi criado o Parque Nacional do Juruena. Conforme registra o RCID, com base em informações desencontradas sobre as consequências da criação de uma unidade de conservação de proteção integral sobre a área que reivindicavam há tempos, novamente os Apiaká sentiram a ameaça de restrição ou controle externo sobre sua área de uso tradicional. Em 2007, os moradores das aldeias Mairowy e Pontal, inseguros em relação aos impactos decorrentes da implantação do parque sobre os indígenas isolados, enviaram ao MPF e à então Coordenação Geral de Índios Isolados (CGII) uma carta na qual criticavam as expedições da Frente de Contato Madeirinha ocorridas nos anos 1990 e solicitavam a realização de uma nova expedição.
Em 2008 foi finalmente constituído um GT para proceder aos estudos de identificação e delimitação da TI Pontal dos Apiaká (Portaria n.º 1023, de 02/9/08), com o duplo objetivo de atender o pleito dos Apiaká e de garantir a segurança e os direitos territoriais de um povo indígena isolado que ocupa a região de cabeceiras do rio São Tomé, afluente do rio Juruena. No ano de 2011 a Coordenação Geral de Identificação e Delimitação (CGID) da Funai aprovou o RCID da TI Apiaká do Pontal e Isolados com uma área de 982 mil hectares. A Portaria Declaratória MJ nº 771-2024, que reconheceu a posse permanente dos indígenas, abrindo caminho para a demarcação física do território, só saiu no dia 5 de setembro de 2024 (MJSP 2024)1. Hoje, sobreposição entre o parque e a terra indígena é de 972.901 hectares, correspondentes a 49,69% da unidade de conservação e a 99,04% da terra indígena (Processo nº 08620.002659/2015-08, doc. 0434472 apud FUNAI, 2020).
Do conflito assumido à construção do diálogo
Entre os anos de 2012 e 2014 a relação entre as comunidades Apiaká e a gestão do Parque Nacional do Juruena foi marcada por conflitos, havendo reclamações dos indígenas de que os gestores do ICMBio proibiam atividades de subsistência das comunidades, como pesca, caça e coleta de castanha. Entre 2008 e 2011, ocorreram de modo concomitante, porém desconexo, a elaboração do estudo de identificação e delimitação da terra indígena e o plano de manejo da unidade de conservação. Novos conflitos não tardaram a surgir.
Em 2011, foram protocoladas seis contestações ao procedimento administrativo de reconhecimento da terra indígena, sendo uma do ICMBio (Processo 08620.002293/2011-35), uma de um particular, três de empresas do ramo agroflorestal e uma da Associação Agroextrativista e Turística da Barra do Tapajós. Para a Funai, nenhum dos argumentos apresentados por terceiros foi capaz de descaracterizar a tradicionalidade da ocupação indígena na área delimitada, nos termos do artigo 231 da Constituição de 1988. A contestação do ICMBio foi a que atrasou e impediu que a Terra Indígena Apiaká do Pontal e Isolados fosse declarada, ainda em 2013.
Em dezembro de 2013, a Funai encaminhou o processo ao Ministério da Justiça (MJ) com a proposta de expedição da Portaria Declaratória da terra indígena Apiaká do Pontal e Isolados. Lá, ele foi enviado à Advocacia Geral da União (AGU), que, acolhendo manifestação do ICMBio, solicitou manifestação do Ibama sobre a questão envolvendo a incidência da terra indígena e o parque nacional (CARVALHO, 2021). Naquele ano, o MPF ingressou com Ação Civil Pública (ACP) visando a celeridade do processo demarcatório.
Conforme narra Carvalho (2021), comprovada ausência de obrigação legal de manifestação do Ibama, a Procuradoria Federal Especializada da Funai recomendou em 2014 que os autos retornassem ao MJ. O ministério, contudo, posicionou-se no sentido de que existia conflito entre o ICMBio e a Funai, que deveria ser dirimido na Câmara de Conciliação da AGU. Sendo assim, o processo foi restituído à presidência da Funai e por três vezes foram pedidos esclarecimentos, prontamente atendidos. No dia 26 de outubro de 2015, considerou-se não haver mais necessidade da abertura de procedimento conciliatório naquela instância. Quanto à demarcação, ainda ocorreram diversas idas e vindas desse processo em virtude de que, por vários momentos, a consultoria jurídica do MJ sugeriu diligências para sanar assuntos já resolvidos no momento do contraditório, logo após a publicação do RCID no Diário Oficial.
Enquanto tramitava de modo lento e conturbado o processo formal de reconhecimento da terra indígena, em 2011 foi criado o Conselho Consultivo do Parque Nacional do Juruena (CONPARNAJu), garantido assento para a Funai, mas não para os Apiaká.
Em dezembro de 2012 ocorreu uma reunião em Brasília envolvendo Funai, os Apiaká e o ICMBio, dando início a discussão das primeiras propostas para uma gestão compartilhada entre a TI Apiaká do Pontal e Isolados e o parque nacional. Os temas de interesse comum listados à época foram: autorização para ingresso de terceiros na TI Apiaká do Pontal e Isolados/Parque Nacional do Juruena, exploração da castanha, acesso aos recursos naturais para subsistência (caça, pesca, coleta, atividade agrícola, construção de casas), vigilância e fiscalização.
Em 2016, a composição do conselho consultivo do parque foi alterada, ofertando-se vagas específicas para os Apiaká. Mas foi a partir de 2017, com a abertura da aldeia Matrinxã, às margens do rio São João da Barra ou Matrinxã, no sul da área sobreposta, que os Apiaká passaram a exercer maior influência sobre a gestão da unidade de conservação e novas possibilidades de diálogo e atuação compartilhada foram construídas. Segundo Almeida (2019), a localização estratégica próxima ao Salto Augusto, sagrado para os indígenas, foi um marco para o impulsionamento do processo de reocupação de parte do seu território ancestral e de fortalecimento da identidade étnica do grupo.
Em julho de 2017, o presidente do ICMBio enviou o Ofício 0305876 para a Funai manifestando preocupação com o acirramento de conflito entre os Apiaká e a gestão do parque em função da mudança de um grupo Apiaká da região de Juara “para o interior do Parque Nacional do Juruena” e solicitando o estabelecimento de um canal de interlocução interinstitucional relacionado à sobreposição. A Funai respondeu em dezembro do mesmo ano requisitando agendamento de uma reunião. De acordo com o órgão indigenista, a partir de 2018 uma série de iniciativas de construção de uma agenda de gestão integrada envolvendo os Apiaká e os gestores da unidade de conservação deslanchou.
Em junho de 2018, durante a 14ª reunião extraordinária do CONPARNAJu, aconteceram três ações estratégicas: a criação da Câmara Técnica de Sobreposição composta por representantes indígenas; do ICMBio, Ibama, Operação Amazônia Nativa (OPAN) e Prefeitura de Apiacás; a participação ativa dos Apiaká no conselho; e, por fim, a elaboração e aprovação pelo conselho uma moção em apoio à conclusão do processo de regularização fundiária da TI Apiaká do Pontal e Isolados.
A moção do CONPARNAJu é inovadora ao expressar que os conselheiros do parque nacional concordam que a gestão compartilhada da área sobreposta é o melhor caminho para a conservação e a gestão territorial indígena e que, para isso, é necessário efetivar o pleno direito dos Apiaká ao seu território por meio da declaração e homologação da terra indígena.
Desde o início da participação de representantes do povo Apiaká nas reuniões do CONPARNAJu e, consequentemente, a manutenção do diálogo com a gestão do parque, é possível observar o envolvimento cada vez maior dos indígenas nas ações relacionadas à gestão da unidade de conservação, conforme se percebe no gráfico abaixo.
Segundo Carvalho (2021), a maioria das ações está relacionada ao monitoramento da biodiversidade do parque, a vigilância da área sobreposta, a mutirões de limpeza dos rios, a capacitações em turismo de base comunitária (ICMBIO, 2018) e a mapeamento de sítios arqueológicos.
Depois que a gente conseguiu ocupar a cadeira no Conselho do Parque eles (conselheiros) já mudaram a visão deles, né? ... A gente também teve voz pra falar dentro do Conselho, explicar pra quem não conhecia a realidade, né? A gente hoje tem a liberdade da gente explanar o que a gente pensa, falando na reunião pra eles, né? Conseguimos já... no Ministério Público, né? O que a gente não podia fazer, conseguimos o aval do Ministério Público, pra gente conseguir tirar a castanha, uma palha, tirar os materiais pra fazer as nossas casas, né? Tem também a nossa pesca [projeto de turismo de pesca esportiva], que a gente está aí na batalha, né? Que a gente sabe que isso é uma fonte de renda pra nós aqui. A gente acredita que estamos bem focados nisso, né? Pra que as coisas venham acontecer de uma forma que não prejudique, nem o lado deles, nem o nosso lado. (Depoimento de Robertinho Morimã, em 04 de junho de 2020 apudCARVALHO, 2021, p. 60).
Outro desafio superado foi a proibição do extrativismo da castanha e de outros produtos florestais não madeireiros pelos indígenas no território em sobreposição. Discussões da Câmara Técnica levaram à ideia de que o MPF recomendasse ao ICMBio que se abstivesse de multar os indígenas pelo manejo que fazem da floresta. Deste modo, o MPF encaminhou formalmente uma recomendação em outubro de 2018 para que não ocorressem autuações aos indígenas quando constatadas atividades de extrativismo, desde que de acordo com o uso tradicional de recursos, inclusive para fins de obtenção de renda. Ela foi prontamente respondida e acatada, pacificando-se a questão da realização de atividades de extrativismo pelos indígenas até que fosse encontrada solução definitiva quanto à sobreposição. (CARVALHO, 2021).
Nos encontros seguintes da Câmara Técnica (CT), foram discutidas e encaminhadas também questões relacionadas à realização do etnomapeamento e etnozoneamento da TI Apiaká do Pontal e Isolados. Os trabalhos da CT têm apontado, também, para que seja cada vez maior a participação indígena na proteção territorial da área sobreposta. Deste modo, têm sido realizadas regularmente expedições de monitoramento pelos indígenas, graças à parceria com a sociedade civil, com o Ibama e com o ICMBio.
A CT vem enfatizando também a importância da articulação com instituições como a equipe da 6ª Câmara de Conciliação e Revisão do MPF, a Funai e atualmente também o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), na tentativa de garantir maior celeridade ao processo de regularização fundiária da terra indígena, em especial depois das dificuldades impostas pela pandemia de Covid-19, que prejudicou a realização de reuniões com a presença indígena, e também após as eleições presidenciais de 2022, que sinalizaram com condições mais favoráveis de respeito aos direitos indígenas. Toda essa sequência de acontecimentos está resumida no Quadro 1, abaixo.
O turismo de pesca esportiva
Em que pesem os avanços no diálogo e na colaboração entre os Apiaká e a gestão do Parque Nacional do Juruena, os desafios ainda são numerosos, em especial quanto a realização de atividades de geração de renda na área sobreposta. Uma das principais e mais antigas é o turismo de pesca esportiva.
Contemplados pela PNGATI, o etnoturismo e o ecoturismo em territórios indígenas implicam na necessidade de capacitação das organizações indígenas para que tenham condições de gerir tais atividades. Em junho de 2015, a Funai, por meio da Instrução Normativa 3/2015 (FUNAI, 2015), deu um importante passo para a regulamentação do assunto e estabeleceu normas e diretrizes para as atividades de visitação para fins turísticos em terras indígenas, reconhecendo seu potencial para geração de cadeias de valor dentro desses territórios (CARVALHO, 2021). A norma diz que a atividade turística deve ser de base comunitária, o que converge com as orientações do ICMBio para unidades de conservação federais.
De acordo com a Funai, a demanda dos Apiaká pela regulamentação do turismo de pesca esportiva remonta a 2016. Entretanto, a situação de sobreposição territorial com uma unidade de conservação de proteção integral aliada ao status fundiário da terra indígena (delimitada2), impossibilitou que a demanda dos Apiaká para regularizar a atividade de pesca esportiva pudesse avançar (FUNAI, 2020). O ICMBio publicou a Portaria n° 91 determinando princípios e diretrizes para execução da pesca esportiva em unidades de conservação federais (ICMBIO, 2020). Pouco tempo depois, os gestores do Parque Nacional do Juruena convocaram uma reunião para tratar do ordenamento pesqueiro da atividade.
Diante disso, a Funai indicou que, em função da situação de dupla afetação e as normativas vigentes, a regulamentação do turismo na Terra Indígena Apiaká do Pontal e Isolados demandava a imprescindível construção de um termo de compromisso nos moldes do que estabelece a Instrução Normativa 26/2012 do ICMBio e um Plano de Visitação.
A pandemia de Covid-19 e as restrições dela decorrentes, além das dificuldades operacionais impostas pela orientação anti-indígena do governo federal entre 2019 e 2022, praticamente paralisaram os processos. Apesar disso, o Plano de Visitação da aldeia Matrinxã e os Termos de Compromisso foram construídos no âmbito dos trabalhos da CT de Sobreposição do CONPARNAJu. Após o término das restrições sanitárias, as informações foram validadas presencialmente nas aldeias e os documentos foram protocolados na Funai e no ICMBio.
Conclusão
A área que corresponde à sobreposição da Terra Indígena Apiaká do Pontal e Isolados pelo Parque Nacional do Juruena é considerada de extrema importância para a conservação da Amazônia brasileira (MMA/SFB, 2002) e tem histórica ocupação tradicional indígena (ALMEIDA, 2019), com referência sobre presença de povos isolados conhecida pela Administração Pública desde pelo menos 1980 (BIGIO, 2021). Também se localiza em região de crescente ameaça de desmatamento, uma das principais razões para a urgência do estabelecimento da unidade de conservação no começo dos anos 2000.
A Administração não foi capaz de atuar no sentido de evitar o iminente conflito territorial antes ou durante os atos de constituição das áreas, apesar de todas as informações disponíveis. Ao contrário, os questionamentos do ICMBio sobre a legitimidade do pleito Apiaká atrasaram e atrapalharam naquele momento a efetivação do direito indígena ao seu território ancestral.
Este caso ensina uma série de lições, desde os efeitos negativos da morosidade e do não atendimento a uma demanda de reconhecimento territorial histórica e legítima, como sobre as soluções (ainda que paliativas) de minimização desses conflitos, à busca pelo diálogo respeitoso graças ao protagonismo indígena, a sensibilidade de servidores públicos, a mudanças de paradigma quanto à gestão das áreas protegidas no Brasil e ao envolvimento da sociedade civil nesse processo.
Nos quase 30 anos desde as primeiras manifestações do povo Apiaká pelo direito ao seu território ancestral, os movimentos que resultaram em algum avanço nesse processo foram protagonizados pelos indígenas, pressionando diretamente a Administração. Uma das principais ações nessa direção, além das várias cartas, presença física e abertura de aldeias no Pontal, foi a própria construção da PNGATI, uma política que respalda e aponta para caminhos maduros e conciliadores.
A mudança no entendimento da gestão de áreas protegidas quanto à importância e o papel dos indígenas e de outras comunidades tradicionais estimulou a edição de normas que avançaram na solução dos conflitos, como a IN26/2012 (ICMBIO, 2012), que previu os termos de compromisso, e, mais recentemente, o Parecer 175 da AGU, alterando a interpretação sobre a suposta inadequabilidade jurídica quanto à presença de populações tradicionais nas áreas protegidas.
Ressalta-se a inovadora atitude do Conselho Consultivo do Parque Nacional do Juruena, em 2018, de se manifestar pela celeridade da finalização do processo fundiário que precisava reconhecer a Terra Indígena Apiaká do Pontal e Isolados a fim de que fosse possível avançar na gestão compartilhada da área sobreposta pela unidade de conservação.
Passaram-se 13 anos desde que os estudos de delimitação da área foram aprovados pela Funai. Nesse período, as ameaças e pressões, em especial decorrentes de desmatamento, grilagem, garimpo só agravaram a situação de fragilidade dos Apiaká em seu próprio território. O recente reconhecimento formal e definitivo da Terra Indígena Apiaká do Pontal e Isolados, por meio da publicação de portaria declaratória, e a futura homologação com registro são, como vimos, não apenas um direito do povo Apiaká, como uma obrigação do Estado e requisito sem o qual todos os esforços de gestão socioambiental serão em vão, por melhores e mais avançados que sejam os instrumentos ora concebidos.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Maio 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
10 Out 2023 -
Aceito
09 Ago 2024



Fonte: ANA (2018), Funai (2022), Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (2021), MMA (2021), IBGE (2015). Elaborado por Ricardo da Costa Carvalho (2023).
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