Resumo
Analisamos a constituição e os desafios da gestão integrada de áreas protegidas por meio do modelo “Mosaico”, partindo de uma das mais relevantes experiências do conservacionismo brasileiro: o Mosaico do Baixo Rio Negro (MBRN). Baseado em dados de trabalhos de campo realizados em 106 comunidades tradicionais do MBRN e na análise de 26 atas de reuniões do Conselho Consultivo do Mosaico, identificaram-se os êxitos e desafios da proposta de gestão integrada. Os resultados indicam um amadurecimento político-institucional do MBRN desde a sua criação em 2010, sobretudo diante da complexidade da composição de um Conselho orientado para a gestão participativa. No entanto, a desigualdade na distribuição de infraestruturas, serviços e projetos implementados por instituições governamentais e não-governamentais gera alguns desafios a serem enfrentados. Tal desigualdade socioespacial e de atributos da gestão ambiental afeta o (re)conhecimento do Mosaico por parte das lideranças comunitárias e dificulta o aprimoramento da gestão integrada e multinível.
Palavras-chave:
Mosaico de Áreas Protegidas; MBRN; Amazônia; Gestão multinível; Gestão da Conservação
Abstract
We analyzed the constitution and challenges of integrated management of protected areas through the “Mosaic” model, based on one of the most relevant experiences in Brazilian conservation: the Lower Rio Negro Mosaic (MBRN). Based on fieldwork data collected from 106 traditional communities within MBRN and an analysis of documentation from the 26 meetings held by the Mosaic Advisory Council, we identified the successes and challenges of the proposal. The results indicate a political and institutional maturation of MBRN since its establishment in 2010, especially given the complexity of forming a Council focused on participatory management. However, inequality in the distribution of infrastructure, services, and projects implemented by governmental and non-governmental institutions poses some challenges to be addressed. Such socio-spatial inequality and variations in environmental management attributes affect the recognition of the Mosaic by community leaders and hinder the enhancement of integrated, multilevel management.
Keywords:
Protected Areas Mosaic; MBRN; Amazon; Multilevel Management; Conservation Management
Resumen
Analizamos la constitución y los desafíos de la gestión integrada de áreas protegidas a través del modelo “Mosaico,” basándonos en una de las experiencias más relevantes de la conservación brasileña: el Mosaico del Bajo Río Negro. Basándonos en datos de trabajos de campo realizados en 106 comunidades tradicionales del MBRN y en un análisis de la documentación de las 26 reuniones celebradas por el Consejo Consultivo del Mosaico, identificamos los éxitos y desafíos. Los resultados indican una madurez político-institucional del MBRN desde su creación en 2010, especialmente dada la complejidad de la formación de un Consejo orientado a la gestión participativa. La desigualdad en la distribución de infraestructura, servicios y proyectos implementados por instituciones gubernamentales y no gubernamentales plantea algunos desafíos. Esta desigualdad y las variaciones en los atributos afectan el reconocimiento del Mosaico por parte de los líderes comunitarios y dificultan el mejoramiento de la gestión integrada y multinivel.
Palabras-clave:
Mosaico de Áreas Protegidas; MBRN; Amazonía; Gestión multinível; Gestión de la Conservación
Introdução
As propostas e ações de conservação da “natureza”, da “biodiversidade” ou, mais recentemente, da “sociobiodiversidade” possuem como instrumento de operacionalização privilegiado a implementação de áreas protegidas. Se considerarmos sua face contemporânea, entendida aqui a partir dos marcos ambientais, sociais e políticos estabelecidos pelas discussões que antecederam e culminaram nos compromissos estabelecidos na Conversão da Biodiversidade (1992), o estímulo e criação de áreas protegidas se apresenta como fenômeno global, com o estabelecimento orquestrado de metas, áreas prioritárias, acordos multilaterais e formas de financiamentos (DIEGUES, 2008).
Este orquestramento, bem se sabe, não foi feito de forma harmoniosa e sem conflitos, tanto no que se refere à preponderância de um conservacionismo “do Norte” sob os interesses e visões sobre áreas e povos “do Sul” global, quanto de tipologias e forma de conservação consideradas como excludentes de povos e modos de vida não ocidentais sob as áreas de interesse para a conservação (RODRÍGUEZ et al., 2007). Um dos centros gravitacionais deste debate girou em torno do genérico, mas significativo, termo “presença humana”: as ações, formas de ocupação, manejo e mobilidade de povos tradicionais, indígenas, quilombolas e ribeirinhos, tomadas por alguns como deletérias e por outros como benéficas para os objetivos de conservação (DIEGUES, 2008). Um dos resultados dessas disputas, foi o estabelecimento de um conjunto expressivo de categorias de unidades de conservação (DUDLEY, 2008), aglutinadas na legislação brasileira em dois modelos básicos: unidades de Proteção Integral (uso indireto dos recursos naturais) e unidades de Uso Sustentável (uso direto) (BRASIL, 2000).
Por diversos motivos, seja por uma perspectiva macro e global (na definição de áreas prioritárias de conservação) ou pela necessidade de equacionamento de tensões locais/regionais, produziu-se um certo consenso de que o estabelecimento de uma única área protegida, isolada em um território mais amplo sem outras restrições ambientais de uso, era contraproducente para os objetivos de conservação (ZHANG et al., 2020). É nesse contexto (de diversidade de objetivos, interesses, tipologias e disputa entre determinantes econômicos e não-econômicos) que se justifica a busca por instrumentos de gestão voltados para a conservação da natureza de forma mais integrada, como os assim chamados “Mosaicos de Áreas Protegidas”. Estes devem ser estabelecidos,
Quando existir um conjunto de unidades de conservação de categorias diferentes ou não, próximas, justapostas ou sobrepostas, e outras áreas protegidas públicas ou privadas, constituindo um mosaico, a gestão do conjunto deverá ser feita de forma integrada e participativa, considerando-se os seus distintos objetivos de conservação, de forma a compatibilizar a presença da biodiversidade, a valorização da sociodiversidade e o desenvolvimento sustentável no contexto regional (BRASIL, 2000).
A presente descrição de Mosaico, que confere à gestão integrada e participativa do conjunto de áreas protegidas seu fundamento principal, é, em si, bastante interessante porque estabelece um desafio, muito mais do que uma solução para a gestão eficiente da conservação. Este pode ser sintetizado na seguinte questão: como coadunar, em um mesmo esforço de gestão, áreas protegidas que, a despeito de sua proximidade, sobreposição ou justaposição, trazem complexidades próprias, derivadas de modelos específicos de regramento e zoneamento?
Trata-se, portanto, de se averiguar a implementação de formas de governança que deem conta de dinâmicas que atravessam distintas escalas e que envolvem interações entre o poder público e a sociedade civil, em suas várias formas, com implicações próprias ao que se define como “multi-level governance of forest resources” (MWANGI; WARDELL, 2012), dentre elas a percepção de que a tomada de decisões envolve a participação de atores não governamentais em “complex overlapping networks” e não em “discrete territorial levels” (MWANGI; WARDELL, 2012; BACHE; FLINDERS, 2004). A integração requer a composição das regras de ocupação que se aplicam a cada tipo de unidade, das várias esferas governamentais envolvidas, das especificidades das ONGs que por ali atuam e dos direitos das pessoas que residem em tais áreas. A dimensão participativa requer que esses distintos atores tenham voz, ou seja, possam defender seus interesses e posições.
O Mosaico de Áreas Protegidas do Baixo Rio Negro (MBRN) se apresenta como uma realidade bastante significativa para este desafio. Situado no coração da Amazônia, conta com 15 Unidades de Conservação (UCs) em uma área de aproximadamente 8 milhões de hectares onde habitam cerca de 170 mil pessoas (ALVES; PEREIRA, 2023). As UCs são de categorias de manejo distintas - de Uso Sustentável (RESEX, RDS e APA) e de Proteção Integral (Parques Nacional, Estadual e Municipal) - de competência federal, estadual ou municipal. O MBRN agrega florestas de terra firme, florestas de igapó, rios e igarapés, campinas, campinaranas, bancos de areia e praias que surgem nos períodos de vazantes do rio Negro (DIDIER et al., 2017). Pela conectividade entre os ecossistemas e as extensas áreas conservadas em um contexto de complexos arranjos urbanos-rural e de degradação florestal, o MBRN possui importância ambiental e social.
A gestão de suas unidades constitutivas está ligada tanto aos respectivos órgãos governamentais competentes (Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Amazonas - SEMA; Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Manaus - SEMMAS; Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio e Prefeitura de Novo Airão), quanto por um conjunto significativo e diverso de Organizações da Sociedade Civil, Organizações Não Governamentais e Associações, que tornam o termo “participativo” em uma pulsante dinâmica de atuações políticas com escopo e interesses diversos. Do mesmo modo que o escrutínio e atuação científica se perfaz por um sem-número de universidades, institutos de pesquisa, agências de fomento de âmbito nacional e internacional.
Isto demonstra, ainda de forma incipiente, que o desafio da gestão integrada e participativa do MBRN não é pequeno. Dessa forma, como articular a diversidade ecológica, o conjunto de atores, a diversidade institucional e jurídica e a miríade de configurações étnicas e socioculturais em um mesmo sentido de gestão de conservação?
Tendo esta problemática como pano de fundo, discutimos os desafios da gestão integrada do Mosaico de Áreas Protegidas do Baixo Rio Negro, abordando o seu processo de criação, a necessidade de articulação entre as escalas, atores e políticas e os dilemas de uma gestão multiescalar. Para tanto, apresentamos (1) um breve histórico da constituição do MBRN e das reuniões realizadas pelo Conselho Consultivo com a participação de moradores das comunidades tradicionais e representantes das instituições públicas e privadas; e a partir deste histórico, (2) um mapeamento de atores sociais e institucionais presentes nos esforços de gestão do Mosaico, dos projetos e iniciativas atuantes, assim como os principais temas trabalhados em tais projetos. Para isso, foram analisadas 26 atas das reuniões do Conselho Consultivo ocorridas entre 2011 e 2022, com vistas a identificar os temas, atores e projetos que compõem as reuniões.
Posteriormente, (3) identificamos avanços e desafios na gestão do Mosaico em discussão que justapõe os aspectos anteriormente mencionados com resultados do levantamento sociodemográfico realizado em 106 comunidades rurais do MBRN entre fevereiro e maio de 2022. Por fim, (4) tecemos as considerações finais, a partir da indicação dos caminhos possíveis para novas pesquisas interdisciplinares interessadas em analisar o papel dos Mosaicos em uma gestão do território mais participativa e integrada.
Com o trabalho desenvolvido neste artigo, esperamos contribuir, de forma geral, para a discussão sobre os desafios da gestão integrada do território, destacando a importância da criação de mosaicos de áreas protegidas para a conservação ambiental. Adicionalmente, buscamos abrir um leque de possibilidades para tratamento de temas específicos relacionados ao Mosaico do Baixo Rio Negro, os quais diretamente se relacionam aos desafios aqui destacados.
Materiais e métodos
Utilizamos dados primários e secundários provenientes de trabalhos de campo realizados na região e da análise das atas das reuniões do Conselho Consultivo do MBRN. Foram analisadas 26 atas das reuniões que ocorreram entre 2011 e 2022, disponibilizadas pela equipe de gestão do Conselho. As atas expressam as intencionalidades dos diferentes atores que compõem a estrutura organizacional do Conselho, possibilitando a identificação dos temas debatidos e das posições dos atores frente às questões do cotidiano. Pela análise do conteúdo das atas, emergiram temas recorrentes, os quais permitiram a classificação dos principais assuntos debatidos.
Os trabalhos de campo foram realizados no âmbito do projeto de pesquisa “Populações tradicionais em áreas protegidas: dinâmicas socioambientais e gestão de Unidades de Conservação no Mosaico Baixo Rio Negro, no Amazonas” (FAPESP / FAPEAM), registrado pelo Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) de número 52457621.5.0000.5404. Ocorreram entre os meses de fevereiro e outubro de 2022, período em que visitamos 106 das cerca de 220 comunidades tradicionais localizadas nas UCs do MBRN. De forma inovadora para as pesquisas nas áreas das Ciências Humanas e Sociais na Amazônia, os surveys se basearam na aplicação de instrumentos digitais geocodificados, instalados em tablets e smartphones (D’ANTONA; ALVES, 2023).
Foram aplicados três tipos de questionários, sendo um destinado às lideranças comunitárias e dois destinados aos responsáveis pelos domicílios. O questionário das lideranças, priorizado nas análises deste artigo, focava na captação das informações gerais das comunidades (localização, história, infraestrutura, saúde, educação, projetos, entre outros). Concentramo-nos aqui nas questões e quesitos que permitem avaliar desde a distribuição de infraestruturas até a percepção das lideranças comunitárias acerca da existência das áreas protegidas e do próprio Mosaico.
A constituição do Mosaico do Baixo Rio Negro
A região do Mosaico do Baixo Rio Negro, localizado entre os estados do Amazonas e Roraima, tem importância central para os esforços globais de conservação da biodiversidade. Na passagem dos anos 1970/1980, período de gestação dos moldes contemporâneos do conservacionismo, a região se configurou como uma das áreas prioritárias de conservação, dentro de uma lógica global de construção de áreas protegidas (WWF, 2018). Isso, tanto no olhar de instituições de características transnacionais, como a International Union for Conservation of Nature (IUCN) e o World Wide Fund for Nature (WWF), como em institucionalidades nacional, regional e local dedicadas ao tema.
Um indicativo da região como um espaço cosmopolita de ação (BECK, 2008) é o fato de ela estar, desde 2002, centralmente contemplada no Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA), “um programa do Governo Federal que visa o desenvolvimento sustentável da região amazônica e o fortalecimento do SNUC por meio de ações conservacionistas no bioma Amazônia” (Almeida, 2014, p. 54), congregando instituições como Ministério do Meio Ambiente, ICMBio, Banco de Desenvolvimento da Alemanha (KfW), o Global Environment Facility (GEF) por meio do Banco Mundial, a Fundação Gordon and Betty Moore, a AngloAmerican e o WWF.
Assim, esses esforços de ação para a conservação, no qual a premissa é a articulação de áreas protegidas em objetivos, estratégias e práticas comuns para além de suas destinações específicas, atribui-se atenção e ênfase especial à integração territorial das unidades de conservação como preconizado no Programa ARPA (Áreas Protegidas da Amazônia) com o objetivo de expandir o sistema de áreas protegidas na Amazônia, criando mosaicos de áreas protegidas de diversas categorias (FUNBIO, 2017).
Derivado deste pujante contexto histórico e político foi criado o MBRN. Em 2010, foi reconhecido por meio da Portaria MMA n.º 483 de 14 de dezembro, decorrente das atividades realizadas a partir do edital 01/2005 do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA), que objetivava incentivar a formação de mosaicos de áreas protegidas em todo o país (BRASIL, 2010). No nível federal, o edital reforçaria politicamente a necessidade de uma gestão do território de forma integrada, destinando investimentos para desenvolver as bases necessárias para a consolidação de mosaicos em diversos biomas brasileiros. Esse modelo integrado, além de conectar os espaços geográficos, também tinha como propósito integrar os seus entornos, já que estes exercem influência no interior das áreas protegidas, principalmente com atividades econômicas. A necessidade de atendimento dos diversos interesses dos grupos sociais, como a resolução dos conflitos fundiários, a proteção dos direitos dos povos residentes e o empoderamento no processo político de gestão territorial, também foram motivos considerados para a formação do MBRN (DIDIER et al., 2017).
Inserido no Corredor Central da Amazônia, na Reserva da Biosfera da Amazônia Central (RBAC), três de suas UCs são sítios do patrimônio mundial natural - Parque Nacional do Jaú, Parque Nacional de Anavilhanas e a Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Amanã. Trata-se de um território importante para a conservação da biodiversidade amazônica, atravessando os principais rios da região (Branco, Cuieiras, Japurá, Jutaí, Juruá, Solimões, Tefé e Negro) e concentrando diferentes ambientes aquáticos com centenas de lagos de várzea e terra firme (JUNK et al., 2020), destacando-se pela rica biodiversidade e pelas interações ecológicas nos e entre ecossistemas terrestres e aquáticos (DIDIER et al., 2017).
Em seu desenho original, o MBRN era constituído por 11 Unidades de Conservação, a maioria delas criadas em 1995 (Almeida, 2014). Com o tempo, novas UCs passaram a fazer parte do MBRN, totalizando 15 UCs em cerca de 8 milhões de hectares (Quadro 1).
Atualmente, o Mosaico abrange as áreas rurais dos municípios de Manaus, Novo Airão, Iranduba, Barcelos, Manacapuru, Coari, Maraã, Codajás, Rorainópolis e Presidente Figueiredo e parte das áreas urbanas dos municípios de Manaus, Iranduba e Manacapuru, somando uma população de 170 mil habitantes (IBGE, 2025) distribuída em cerca de 250 comunidades (ou localidades), incluindo aquelas distribuídas ao longo das UCs e distritos urbanos pertencentes à Manaus, Iranduba e Manacapuru (Figura 1).
O conselho consultivo e suas reuniões
Como previsto no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC) desde 2000, os conselhos gestores de UCs e, neste caso, de um mosaico de áreas protegidas, devem ser compostos por representantes da sociedade civil e do governo (federal, estadual ou municipal), com o objetivo de planejar, acompanhar e discutir sobre os diferentes assuntos que permeiam a área demarcada, bem como propor soluções para as questões socioambientais demandadas no âmbito do conselho.
A portaria N°483/2010 estabeleceu a criação do Conselho Consultivo do Mosaico tendo como função a gestão integrada das UCs que o compõem, envolvendo as instituições de gestão e a sociedade civil. Reforça-se que os Conselhos dos mosaicos possuem um caráter consultivo e não deliberativo, o que significa um poder mais restritivo de tomada de decisão e controle sobre o território. O Conselho é composto por 14 (catorze) conselheiros titulares e 14 suplentes, cujas cadeiras ocupadas devem garantir a pluralidade de atores que vivem e produzem nos territórios que conformam o mosaico. No total, são sete representantes do setor governamental e sete do setor não-governamental.
A diversidade na representação dos entes e atores no Conselho visa abarcar a pluralidade de perspectivas acerca das problemáticas encontradas no MBRN. Além dos representantes que ocupam uma cadeira como conselheiros (as), outros participam das reuniões sem poder de voto, porém com liberdade de manifestação e debate: membros da sociedade civil interessados nos temas que tangenciam o cotidiano da gestão da comunidade (pesquisadores, artesãos, extrativistas, representantes de ONGs e da iniciativa privada, entre outros convidados) e moradores das comunidades das UCs. Compete ao Conselho elaborar um regimento interno e um plano de trabalho ou de ação, a condução das atividades administrativas, bem como propor medidas e ações para compatibilizar e integrar as atividades desenvolvidas em cada uma das unidades de conservação (uso dos recursos, monitoramento dos planos de manejos, da biodiversidade, acesso e fiscalização das unidades e a execução de pesquisa científica) e a relação entre as populações tradicionais e o ambiente (BRASIL, 2010). Também cabe ao Conselho se manifestar acerca das discussões sobre as sobreposições entre as UCs e quando solicitado por outros órgãos ambientais.
Embora os conselhos sejam figuras centrais para a gestão integrada e participativa, o Decreto n.º9.759, de 11 de abril de 2019, extinguiu e estabeleceu diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal, tais como os conselhos dos mosaicos. O impacto do decreto, no entanto, foi minimizado, pois o Conselho Consultivo do MBRN se manteve ativo a despeito de sua extinção formal: as reuniões e deliberações aconteceram regularmente durante todo o período de vigência do decreto - o qual foi revogado através do Decreto 11.371 de 01 de janeiro de 2023. Nem mesmo a pandemia da Covid-19 impediu a atuação do Conselho. Durante o ápice da pandemia no estado do Amazonas, as reuniões passaram a ser realizadas de forma virtual. A partir do segundo semestre de 2021, as reuniões voltaram a acontecer de forma híbrida (virtual e presencial), tendo como sede a Fundação Vitória Amazônica (FVA), na cidade de Novo Airão (ALVES, 2025).
As reuniões ocorrem semestralmente e duram até três dias. Incluem oficinas, capacitações, apresentações sobre temas diversos referentes ao Mosaico, possibilitando a ampliação do conhecimento sobre a região e sobre seu contexto político-institucional. É importante destacar o esforço, por parte da gestão, em atrair o máximo de participantes das comunidades ribeirinhas e indígenas, moradores das UCs. No entanto, as distâncias das comunidades somente são vencidas com a captação de recursos para a realização de tais atividades, que envolvem: deslocamento, combustível, alimentação e pernoite. Ademais, há certos entraves políticos que afastam representantes das reuniões, seja pelo desinteresse em colaborar ou até pelo desconhecimento da sua existência.
A análise das atas das 26 reuniões do Conselho ocorridas entre 2011 e 2022 indica mudanças nas preocupações e temas discutidos nas reuniões ao longo do tempo, refletindo o amadurecimento e estruturação do MBRN enquanto uma instância de gestão territorial fortemente atrelada ao conceito de gestão participativa. As discussões, propostas, demandas, pesquisas e projetos que envolvem recursos para o fomento das atividades, têm como foco a conservação ambiental, a criação de infraestruturas e o estímulo à economia doméstica. A Figura 2 apresenta as principais categorias de temas discutidos durante as reuniões analisadas.
As discussões identificadas nas reuniões foram categorizadas em 12 temas. Destacam-se aqueles referentes à Gestão do Mosaico, sobretudo aos aspectos administrativos e burocráticos sobre o Conselho, tais como: composição do Conselho, planejamento das ações, estruturação e formação de câmaras técnicas de trabalho. Sob o tema do Ordenamento Territorial estão as questões de inclusão e recategorização de Unidades de Conservação e o ordenamento de ações no território. Em Governança estão as articulações políticas realizadas pelo MBRN para incorporar instituições presentes na região. Por exemplo, o esforço realizado para incluir um representante público da prefeitura de um município que faz parte do Mosaico e que desconhecia a sua existência.
Questões como desmatamento e mineração no rio Negro foram agregados em Problemas Ambientais. Já os projetos em andamento ou já realizados estão em Projetos. O Monitoramento se refere às ações de fiscalização no MBRN que foram discutidas nas reuniões de Uso Público em relação à visitação, turismo, lazer e pesca esportiva. O tema da Captação de Recursos é recorrente, sobretudo pela necessidade de financiamento para execução de projetos e implantação de ações. Outros temas também são discutidos, como Educação Ambiental (programa de formação continuada - cursos de capacitação), promoção de Infraestruturas (energia elétrica e estradas), conflitos socioambientais e, mais recentemente, problemas em decorrência da expansão da pandemia de Covid-19 no território do baixo rio Negro (ALVES; CÔRTES, D’ANTONA, 2022).
As primeiras reuniões do mosaico tinham como foco principal a estruturação do Conselho e do próprio MBRN. Nelas foram apresentadas experiências de outros mosaicos brasileiros, elaborados regimento interno, plano de ação, definição dos atores que ocuparam as cadeiras do conselho e a criação de câmaras técnicas de trabalho, como as de Gestão Integrada; Educação Ambiental; Políticas Públicas; Uso Público; Comunicação; Ordenamento Territorial; Uso dos Recursos e Captação de Recursos.
Outras discussões surgiram no decorrer da atuação do MBRN e dos desafios encontrados na gestão territorial, burocrática e administrativa. Ao longo dos anos emergiram temas como: proteção integrada do Mosaico, inserção em projetos com investimentos em diversas áreas, plano de comunicação, monitoramento da biodiversidade, criação de câmaras técnicas, panorama das ameaças, plano de ação, composição do conselho e outros.
As atas do Conselho demonstram que há dois grupos de instituições e atores que participam das reuniões: a) instituições e atores fixos e b) instituições e atores transitórios (ALVES, 2025). O primeiro grupo é constituído por um conjunto de instituições e atores que estão presentes na maioria das reuniões desde a constituição do MBRN, fazendo parte do Conselho, seja como conselheiro titular, suplente, ou membro participante. Observa-se nas atas que, apesar dos suplentes terem poder de voto somente na ausência dos titulares durante as reuniões, eles possuem voz ativa nas considerações sobre os temas que são debatidos nas reuniões, tendo em vista o histórico de atuação socioespacial dessas instituições e atores.
As principais instituições representadas no Conselho são: Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Fundação Vitória Amazônica (FVA), Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMMAS), Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SEMA), Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Fórum Permanente de Defesa das Comunidades Ribeirinhas de Manaus (FOPEC), World Wide Fund for Nature (WWF), Wildlife Conservation Society (WCS) e Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação do Amazonas (SEDECTI). Além de ocuparem o cargo de Conselheiros Titulares, os representantes das instituições governamentais atuam em Câmaras Técnicas com temas específicos da gestão territorial em parceria com os representantes suplentes e outros interessados nas discussões.
Já as instituições e atores transitórios são aqueles que frequentam as reuniões por um período específico, geralmente em decorrência de algum projeto em desenvolvimento ou a ser desenvolvido na área do Mosaico. O objetivo da participação é fortalecer os laços com o Conselho do Mosaico visando anuências, viabilização de projetos, conhecimento do território e devolutiva dos resultados após a finalização dos trabalhos. Instituições de pesquisa e ONGs, com exceção das listadas anteriormente, tendem a ter um papel temporalmente mais intermitente nas reuniões do Mosaico, pois seguem o cronograma de atuação previstos em projetos de pesquisa e editais de financiamento. Contudo, há uma tendência dessas instituições retornarem às reuniões do Conselho ou voltarem a atuar na área a partir de novos financiamentos. As instituições parceiras também têm presença constante nas reuniões e nos espaços para o debate, ainda que não tenham poder de voto.
Os recursos captados pelas ONGs articulam o MBRN às instituições em escala internacional. Os investimentos para as ações derivam de instituições como a Fundação Gordon e Betty Moore; o Banco Mundial, Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ), United States Agency for International Development (USAID) e Samsung interessadas na conservação socioambiental da Amazônia. Esta articulação coloca o Mosaico no centro da discussão internacional sobre conservação da biodiversidade e o interesse de instituições filantrópicas e empresas de diferentes segmentos na Amazônia. As ações e projetos científicos identificados nas atas analisadas remetem às dimensões relacionadas ao ordenamento territorial, uso público, educação ambiental, infraestrutura e conservação da biodiversidade. O território de abrangência desses projetos varia de acordo com o financiamento; o recorte temporal é definido em edital e nos cronogramas dos projetos, bem como no histórico de atuação das instituições e sua localização geográfica.
O Mosaico nas perspectivas de seus residentes
Tendo verificado como se dá a interlocução e a definição de estratégias a partir de instância central, que é o Conselho Consultivo, nos deslocamos para as repercussões das suas atuações no plano das comunidades tradicionais situadas nas Unidades de Conservação do Mosaico. Ou seja, em que medida as populações residentes reconhecem as ações desenvolvidas como pertencentes ao Mosaico? Dados coletados junto às lideranças de 106 comunidades fornecem elementos sobre três aspectos que nos permitem cotejar as impressões dos moradores com as informações apontadas sobre as atas das reuniões: 1) o (re)conhecimento das UCs e do Mosaico; 2) a distribuição de infraestruturas e serviços em relação a quem proporciona; e 3) atuação/presença dos atores institucionais através de seus projetos e áreas de atuação.
(Re)conhecimento das UCs e do Mosaico
O conhecimento sobre as UCs é disseminado entre os líderes comunitários entrevistados. Quando perguntados sobre “O que mudou com a criação da UC?”, apenas nove pessoas afirmaram não terem percebido mudanças. Entre os que perceberam mudanças, a maioria das declarações foram positivas - as declarações eram espontâneas e não estimulavam o apontamento de mudanças positivas e de mudanças negativas. As respostas revelam o entendimento dos significados e implicações de se viver em uma unidade de conservação.
Entre as respostas positivas (n=76) quanto à criação das UCs que pertencem ao MBRN, foi relatado que a institucionalização do território potencializou a preservação dos recursos naturais, trazendo uma maior organização política no interior das comunidades e apoio das entidades governamentais e não-governamentais. Adicionalmente, a criação das UCs foi associada ao aumento de infraestruturas e a um melhor manejo dos recursos naturais. Concomitantemente, para parte das lideranças entrevistadas (n=21), a criação das UCs intensificou o controle institucional sobre o território e os recursos, aumentando as regras de uso e ocupação e burocratizando atividades cotidianas, como a necessidade de criação de acordos de pesca. Interpretamos que as diferenças registradas se dão pela diversidade de categorias de UCs visitadas, o que implica em distintas restrições de uso dos recursos naturais e de ocupações humanas, refletindo em percepções ambivalentes e antagônicas quanto às regras colocadas para as diferentes UCs. Comunidades relativamente próximas coexistem em uma extensa rede socioespacial, mas estão sujeitas a distintas regras e a distintas formas de gestão, tanto na esfera municipal, estadual e federal.
Esses entendimentos parecem desarticulados e potencialmente restritos à UC a qual a comunidade da liderança entrevistada pertence, e/ou à abrangência de uma associação ou cooperativa a qual faz parte. Mais da metade das 106 lideranças comunitárias que responderam à questão “O Senhor (a) sabe o que é o Mosaico do Rio Negro?”, afirmaram não saber (n=53) ou não saber explicar o que é o Mosaico (n=29). Essa incompreensão, ou sentimento vago, estende-se a parte daqueles que responderam “Sim” laconicamente, sem explicação subsequente (n=29). Portanto, observa-se que há um reconhecimento do papel das unidades de conservação como um instrumento de gestão territorial importante para a conservação florestal. Ainda que, para alguns, seja um controle exacerbado do território, nota-se uma fragilidade quanto ao conhecimento da inserção da UC em um contexto ampliado de gestão do território
Em certa medida, essa constatação corresponde ao encontrado principalmente nas atas das reuniões do Conselho, nas quais são reforçadas a necessidade de uma maior divulgação das potencialidades, desafios e as ações que estão sendo realizadas ao longo do território, o que indica ser necessário avançar no processo de comunicação sobre o papel do Mosaico e seus potenciais impactos para a vida dos moradores. Cabe uma divulgação articulada e planejada entre as atividades realizadas por instituições parceiras e àquelas derivadas da atuação do MBRN, de forma que se explicite uma coordenação e relação entre as diferentes ações.
Distribuição espacial de Infraestruturas e Serviços
Durante os deslocamentos de nossa equipe pela região, observamos que há uma distribuição espacial desigual de infraestruturas no MBRN. Tal percepção foi corroborada pelas respostas registradas nos questionários, conforme as distribuições espaciais de postos de saúde, de escolas, do abastecimento de energia elétrica e do abastecimento de água (tanto água encanada quanto de poços artesianos) apresentadas na Figura 3.
Para além da existência de infraestruturas nas comunidades, as respostas revelam que as preocupações locais se estendem para a qualidade do serviço oferecido e a manutenção física desses recursos. Dentre as comunidades visitadas, cerca de 80% indicaram a existência de escolas na comunidade. Contudo, parte desse total não possui o sistema de ensino completo ou o ensino foi considerado insuficiente pela liderança comunitária. A falta de escola na comunidade ou a falta de algum período escolar faz com que seja necessário que jovens e adolescentes se desloquem para outras comunidades ou cidades para estudarem (PEREIRA et al., 2022).
Já a distribuição de postos de saúde é mais desigual se comparada com a de escolas, deixando expressivas porções do território sem cobertura - com destaque negativo para a RDS Amanã, onde a existência de postos de saúde em comunidades é bem mais escassa (GOMES et al., 2019; GOMES et al., 2022). Ambulanchas para o transporte de enfermos foram doadas para 16 comunidades, no entanto lideranças reportaram que nem sempre estão em condições de uso pela falta de manutenção ou combustível. Essa configuração implica no deslocamento dos enfermos para centros urbanos e no deslocamento de equipes multidisciplinares de saúde às comunidades em ações promovidas pelo poder público e por iniciativa de ONGs e Igrejas. O serviço baseado na mobilidade dos atores, no entanto, não parece ser suficiente: 26 lideranças de comunidades que receberam serviços móveis de saúde nos últimos anos relataram que questões de saúde são um dos principais problemas na comunidade.
Em entrevistas com os moradores, foi indicado que a disponibilidade de consultas nas expedições de saúde não atende todos os moradores, fazendo com que o deslocamento para as cidades seja necessário para receber o atendimento médico. Portanto, a alternativa criada se revela insuficiente para atender as demandas de parte da população no interior das UCs (D’ANTONA, 2023).
A maioria das comunidades possui algum tipo de fornecimento de energia elétrica. No entorno de Manaus, destaca-se o fornecimento por Extensão de Rede, impulsionado pelo programa do Governo Federal “Luz Para Todos”. Já na região do médio Solimões, onde está localizada a RDS Amanã, destaque para o fornecimento de energia por geradores movidos a diesel. Quando a energia é fornecida por geradores, geralmente, a disponibilidade é das 18h às 22h. Foram relatados problemas quanto à manutenção dos equipamentos e falta de combustível. A questão da energia elétrica é essencial no cotidiano das comunidades, pois a instabilidade no fornecimento de energia dificulta o armazenamento de alimentos que necessitam de refrigeração. A maioria das comunidades visitadas possui abastecimento de água, geralmente proveniente de poço artesiano com bomba submersa ou manual. Parte das residências possuem caixa d’água para armazenamento da água. Assim como o verificado no caso da energia elétrica, o abastecimento de água em algumas comunidades depende da disponibilidade de óleo diesel para os geradores.
É importante notar que serviços básicos como energia elétrica e água são conquistas fundamentais para a manutenção da presença das populações tradicionais nas comunidades, o que ajuda a entender os esforços dos atores institucionais (governamentais e não governamentais) no empreendimento de projetos nessas frentes. Parte das infraestruturas identificadas foram fornecidas por distintas instâncias do poder público, enquanto outras têm origem em projetos de organizações não governamentais ou, até mesmo, de empresas. A necessidade de captação de recursos para novos projetos de infraestrutura e capacitação é tema recorrente nas reuniões do Conselho, o que demonstra que as demandas das populações são levantadas nas diferentes esferas de gestão do MBRN mas que, na prática, isso não tem resultado em uma distribuição espacial satisfatória dos serviços essenciais.
Atuação/Presença dos atores institucionais (projetos e áreas de atuação das ONGs)
A análise das Atas das reuniões do Conselho Consultivo do MBRN indicou lacunas na participação e atuação de atores institucionais chaves para a gestão integrada do território. Foi observado entraves na participação de atores na conformação do MBRN, sobretudo do setor público e representantes das prefeituras locais. Há um foco maior em atores que atuam no baixo Rio Negro em detrimento de representantes do extremo oeste, na região da RDS Amanã. Em relação à atuação de instituições governamentais e não-governamentais, os resultados levantados em 106 comunidades demonstram que há uma pluralidade de projetos sendo realizados nas comunidades pertencentes ao MBRN. Com base nas questões “Quais projetos vigentes na comunidade?” e “Quais as instituições envolvidas em cada um deles?”, a Figura 4 apresenta os temas dos principais projetos mencionados pelas lideranças comunitárias que ocorreram nos últimos cinco anos.
Foram citados 51 projetos nos últimos cinco anos. Entre os temas, destaque para aqueles que auxiliam na economia doméstica, como cursos de capacitação de artesanato ou Programas de manejo de produtos da agricultura e pesca. Projetos de saneamento básico correspondem às infraestruturas como os poços de captação de água e coleta de resíduos. Turismo representa os projetos voltados para o incentivo e ordenamento da prática nas comunidades (trilhas, pesca esportiva, visitação). Já a educação representa as infraestruturas para escolas e bibliotecas, bem como cursos de educação ambiental.
Em relação às ONGs que executam e/ou coordenam ações comunitárias segundo os respondentes, observam-se clusters espaciais de predominância de atuação tendo cada um dos atores presentes em áreas definidas e, de certa forma, não sobrepostas ou integradas. No setor oeste do MBRN, duas ONGs predominam no território, já no setor leste cerca de cinco se destacam na atuação. Há tipologias de projetos e ações que são realizadas especificamente por um ator em uma determinada porção do território. Por um lado, essas ilhas de atuação estão presentes em todo o MBRN e a princípio indicam a ideia de uma sinergia regional, fazendo com que todas as UCs sejam cobertas por alguma ação ou atividade. Por outro, não há uma efetiva integração dessas atividades e instituições, o que reforça a percepção de que há uma primazia de atuação de um ator em um território.
Quanto à gestão integrada do território, mesmo que esse tipo de organização possa parecer razoável na distribuição de tarefas em uma região tão extensa, ficam os questionamentos: i. como uniformizar ou garantir serviços e programas equivalentes executados por atores distintos? ii. Em que medida esse zoneamento, geralmente informal, reproduz a visão simplificada de níveis territoriais discretos quando a complexidade de um Mosaico melhor se caracteriza pela sobreposição de redes?
Desafios para uma gestão integrada e participativa
Como é possível se depreender até aqui, o Mosaico detém um grau de maturidade institucional em que os mecanismos e instrumentos para sua gestão estão bem estabelecidos. Do mesmo modo, é possível detectar que os órgãos colegiados de gestão estão suscetíveis à participação dos atores políticos e institucionais representativos da sociedade civil e de governos implicados na abrangência do Mosaico. A atuação do Conselho Consultivo é virtuosa e necessária para a governança, como demonstram os apontamentos sobre o seu funcionamento - mesmo sob condições desfavoráveis nos últimos anos - e a sua composição plural.
No entanto, a complexidade de questões a serem trabalhadas para os objetivos de conservação da região do Mosaico impõe um conjunto significativo de realizações ainda a conquistar. Esses desafios do MBRN são inerentes a contextos caracterizados por uma perspectiva de “multi-level governance of forest resources” (MWANGI; WARDELL, 2012), e se definem a priori pelo propósito de gestão integrada e participativa em mosaicos de áreas protegidas. Nesse sentido, dois aspectos se revelam centrais ao caso estudado e, provavelmente, a outros Mosaicos: a) como integrar interesses e ações de vários atores; b) como operacionalizar ações em unidades de conservação com missões e restrições distintas.
Dessas questões mais amplas, desdobram-se desafios específicos em função de características socioambientais do MBRN: c) como planejar, executar e fiscalizar as ações em uma região tão extensa e com demandas sociais, políticas e ambientais tão diversificadas; d) como coadunar a presença de centros urbanos com influência micro e macrorregionais, como Manaus, ao ordenamento territorial derivado das diferentes diretrizes de conservação contempladas no Mosaico. Mais especificamente, tais desafios se manifestam e) nas dificuldades de realização das ações de monitoramento ambiental, f) no acompanhamento e controle das ações humanas; g) no delineamento e implementação de projetos para melhorar as condições de vida nas comunidades sem perder as dimensões da legislação ambiental; h) no compartilhamento e gestão de dados, incluindo aqueles necessários para a divulgação das lições aprendidas e para accountability; j) e, finalmente, no delineamento de ações ao nível do Mosaico - e não em algumas de suas Unidades - que sejam coerentes com o que se deve realizar em espaços territoriais especialmente protegidos e com seu entorno.
Considerações Finais
Neste artigo identificamos os principais desafios para a gestão integrada e compartilhada de um mosaico de áreas protegidas, utilizando o Mosaico do Baixo Rio Negro como um recorte socioespacial de análise. Os resultados indicaram um importante amadurecimento institucional da figura do MBRN, consolidando um sistema burocrático-administrativo relevante para o seu funcionamento, mesmo no período em que esteve na informalidade quando foi decretada, em 2019, a extinção dos conselhos federais.
Os resultados ressaltam que há uma integração biológica, histórica e cultural entre os territórios que compõem o Mosaico e que favorecem a gestão integrada, pois, é possível ter uma ampla rede de apoio institucional e comunitária frente às pressões e desafios enfrentados de forma isolada. Para além dos desafios e conflitos, algumas demandas são permanentes e aproximam todas as UCs, como: mais investimentos em educação, saúde, gestão, saneamento e fiscalização. A despeito dos esforços do Conselho e de seus membros, a atuação e a percepção da atuação parecem indicar mais um zoneamento/divisão de tarefas do que uma operação sistemática e generalizada através de redes em vários níveis. Esta distribuição pode facilitar a convivência interinstitucional, mas também limita sinergias e ações em larga escala, colocando em questão o grau de integração entre os atores envolvidos.
Os dados dos trabalhos de campo apontaram para uma distribuição desigual de infraestruturas no MBRN. Contudo, a questão central é a qualidade dos serviços que as infraestruturas oferecem, sendo um dos desafios melhorar a distribuição dos equipamentos e a qualidade do serviço prestado. Há um (re)conhecimento por parte das lideranças comunitárias sobre o papel desempenhado pelas Unidades de Conservação, embora o conhecimento sobre a existência do MBRN seja significativamente menor.
Por fim, avançamos no delineamento de um conjunto de desafios a partir do que se define como gestão integrada e participativa em Mosaicos de áreas protegidas - tendo em mente que o desafio central do Mosaico do Baixo Rio Negro é inerente a qualquer sistema de governança multinível de recursos florestais (MWANGI; WARDELL, 2012).
Em que pese positivamente a atuação do Conselho Consultivo do Mosaico enquanto uma instância de comunicação e de diálogo, concluímos que as ações (projetos e intervenções) realizadas por seus membros carecem de maior integração. Nossa recomendação é que, partindo dos diagnósticos da bibliografia sobre governança de recursos florestais, os atores locais procurem integrar suas áreas de atuação, funcionando de fato como uma rede multinível que rompa com certa tradição de divisão do território em áreas de atuação específicas.
Agradecimentos
Agradecemos a FAPESP e a FAPEAM pelo financiamento do projeto “Populações tradicionais em áreas protegidas: dinâmicas socioambientais e gestão de Unidades de Conservação no Mosaico Baixo Rio Negro, no Amazonas”. Processo N.º 2020/08242-7, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Processo N.º 01.02.016301.00266/2021, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).
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Disponibilidade de dados
Os autores afirmam que todos os dados utilizados na pesquisa foram disponibilizados publicamente, e podem ser acessados por meio das plataformas ArcGIS StoryMaps e FigShare:
https://storymaps.arcgis.com/collections/9a783fc997eb4891ba4940da60f4aa82
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Nov 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
25 Fev 2024 -
Aceito
26 Nov 2024





Fonte:
Fonte: Atas das reuniões do MBRN. Elaborado pelos autores, 2024.
Fonte:
Fonte: Dados de campo do projeto “Populações tradicionais em áreas protegidas: dinâmicas socioambientais e gestão de Unidades de Conservação no Mosaico Baixo Rio Negro, no Amazonas”, 2022.