Resumo
A relação entre pessoas e florestas contém paradoxos para além de problemas. Assim, necessita de uma abordagem complexa tanto para o manejo quanto para a governança florestal. A partir da investigação das noções sobre diálogo chegou-se à conceitualização deste como sendo um acontecimento advindo do encontro entre seres diversos que por estarem dispostos e abertos permitiram a mistura de suas vivências, admiraram seus funcionamentos, adaptaram responsavelmente a partir do inesperado, e elaboraram um novo estado. Em decorrência de sua afinidade com o funcionamento de sistemas complexos adaptativos, os quais caracterizam as florestas, é proposta uma abordagem para a gestão florestal dialógica.
Palavras-chave:
Floresta; gestão florestal; diálogo; dialógica; sistemas complexos adaptativos; complexidade
Abstract
The relation between people and forests contains paradoxes as well as problems. Thus, it requires a complex approach to both forest management and governance. From the investigation of notions about dialogue, we came to the conceptualization of this as an event arising from the encounter between different beings who, by being willing and open, allowed the mixing of their experiences, admired their functioning, adapted responsibly based on the unexpected, and elaborated a new state. Due to its affinity with the functioning of complex adaptive systems, which characterize forests, an approach to dialogical forest management is proposed.
Keywords:
Forest; forest governance; forest management; dialogue; dialogic; complex adaptive systems; complexity
Resumen
La relación entre las personas y los bosques contiene paradojas y problemas. Por lo tanto, requiere un enfoque complejo tanto para el manejo como para la gobernanza forestal. A partir de la investigación de nociones sobre el diálogo, llegamos a la conceptualización de este como un evento surgido del encuentro entre diferentes seres que, al estar dispuestos y abiertos, permitieron mezclar sus experiencias, admiraron su funcionamiento, se adaptaron responsablemente a partir de lo inesperado, y se elaboró un nuevo estado. Debido a su afinidad con el funcionamiento de sistemas adaptativos complejos, que caracterizan a los bosques, se propone un enfoque de manejo forestal dialógico.
Palabras-clave:
Bosque; gestión de bosques; diálogo; dialógica; sistemas adaptativos complejos; complejidad
Introdução
A relação entre pessoas e florestas vem sendo tratada como um problema a ser resolvido. Nesta dinâmica, o ecossistema florestal é apenas o objeto a ser analisado. Entretanto, quando refletimos sobre essa relação milenar e vital, que tem sofrido profundas alterações nos últimos séculos, estamos diante de um paradoxo. Portanto, é preciso uma outra abordagem para lidar com ele.
Para os conhecidos problemas florestais, como incêndios ou diversas patologias, existem procedimentos para resolvê-los. Porém, quando se lida com a contradição entre preservação das florestas e disputa pela terra para exploração, solo urbano, industrialização ou grandes plantações, não há solução. Assim, paradoxos só podem ser dissolvidos, e isso acontece quando sua nulidade e absurdo são vistos, sentidos e compreendidos (BOHM, 2005).
A dissolução é vista como uma possível permeabilidade das contradições, ao invés de se tornarem muros intransponíveis que impedem o entendimento comum. Quando sujeitos estão presentes em um diálogo é possível perceber as necessidades e as diferenças em questão, e assim construir um entendimento em conjunto para a tomada de decisões.
Contradições e conflitos são inerentes ao diálogo. Conflitos surgem da falta de acordo sobre os objetivos comuns relativos às necessidades sociais e políticas, à organização econômica e às relações entre si e outros seres (CLARK, 2022). A contradição entre o conflito de opostos constitui o motor da evolução de pensamentos e fatos, permitindo que algo que ainda não seja possa surgir (BRANCO, 1999).
Assim, para se gerir uma floresta é preciso considerar as contradições inerentes ao processo. A floresta é um ser composto, um ecossistema complexo, constituída em comunidade. Não se reduz a partes e se adapta e incorpora o diferente por meio de relações que permitem múltiplos equilíbrios e desequilíbrios dinâmicos, sendo, portanto, um ser dialógico. Entendendo dialogia como a comunicação por meio da linguagem, as árvores em uma floresta se comunicam por meios olfativos, visuais, elétricos e sonoros (WOHLLEBEN, 2017).
Os ecossistemas florestais compõem cerca de 31% da superfície terrestre. A perda destes ecossistemas tem crescido alarmantemente desde a década de 1990, sendo a degradação e o desmatamento as principais causas de perda de biodiversidade. O Brasil possui cerca de 497 milhões de hectares de florestas (o tamanho total do país é 850 milhões de hectares), que correspondem a 12% do percentual global. Tratando-se do segundo país com maior área florestada no mundo. Porém, 1,853 milhão de hectares foram desmatados somente em 2020, com um aumento de 14% na área desmatada em relação ao ano anterior (AZEVEDO et al., 2021).
Portanto, podemos perceber, tanto a relevância das florestas para a constituição do nosso planeta, quanto a importância do Brasil para sua permanência. Entretanto, isso vem sendo negligenciado nas tomadas de decisões em âmbito nacional e internacional. As consequências do desmatamento acelerado, e em grande escala, estão comprometendo nossa existência como espécie, além da continuidade de outras espécies companheiras.
Vivemos em uma época da história da humanidade em que a ciência avançou ao longo dos anos, coletou, trabalhou e contribuiu com uma grande quantidade de informações e com a solução de muitos problemas. No entanto, percebe-se uma desconexão entre muitos dos conhecimentos disponíveis e as ações políticas da sociedade. Além disso, prevalecem em muitos espaços o pensamento fragmentado, os processos acríticos, as negações da realidade planetária e as visões distorcidas sobre o funcionamento da vida. Por isso, em meio a tantas crises, como a ecológica e climática, faz-se necessário um novo paradigma de ciência que contemple a sustentabilidade da vida.
O fato de a etimologia da palavra ‘floresta’ partir do latim forense (NASCENTES, 1955) - que significa ‘do lado de fora’ - já pressupõe uma relação de alteridade muito pertinente ao estudo dialógico. Não estamos presenciando somente falta de informação, mas dificuldades comunicacionais e diferentes projetos de sociedade em confronto.
A proposta do diálogo, e de sua construção, é fundamental para a possibilidade de criatividade e inovação nas diferentes áreas do conhecimento e da ação política. Aplicada ao contexto florestal, em fóruns florestais ou outros espaços, pode trazer novidades e reflexões capazes de promover transformações e incluir outros saberes.
Diálogo
A constatação de que as florestas estão ameaçadas e degradadas traz a urgência pela comunicação e pela ação resultante de uma abordagem dialógica em relação às florestas. Deste modo, espaços democráticos e cooperativos são necessários, e carecem de ‘fazer alguma coisa juntos(as)’ - que é um dos significados de ‘comunicar’ (BOHM, 2005).
A tentativa de uma elucidação da noção de diálogo parte do intuito de evitar uma possível destruição causada por desentendimentos sobre o uso da palavra e, ao mesmo tempo, diferenciar a essência de mudança, novidade e encontro, ignorada em outros usos. Todavia, também parte de uma disputa simbólica pelo significado da palavra ‘diálogo’, que contém as ideias de ‘entre’ e ‘comunicação’.
Pode-se perceber que uma mesma palavra possui distintas concepções. Buber classifica os usos da palavra diálogo em três categorias: o diálogo técnico, movido pela necessidade de um entendimento objetivo; o monólogo disfarçado de diálogo, onde cada ser fala consigo mesmo; e o diálogo autêntico, ou genuíno, que falado ou silencioso contempla a presença do outro e seu modo de ser (BUBER, 2014).
Testemunhamos os dois primeiros abundantemente, inclusive nos espaços que se propõem discutir a sustentabilidade e as temáticas ambientais. Quem sabe caberia justamente ao ‘genuíno’ conduzir por caminhos nos quais haja uma reciprocidade viva entre a diversidade de seres?
Esses três tipos de diálogo também podem ser vistos como, respectivamente: um ato de depósito de ideias de um sujeito no outro, ou troca de ideias consumíveis; uma discussão polêmica sem comprometimento com a busca da verdade, mas com a imposição de verdades; e uma exigência existencial, um caminho de ganho de significações, um encontro solidário entre o refletir e o agir em prol da transformação do mundo (FREIRE, 1987).
Cada maneira de interação e comunicação tem seu propósito e sua possibilidade. O diálogo genuíno, a partir de agora somente denominado diálogo, é necessário e possível quando há disposição e disponibilidade para ele e quando se faz necessário construir significados. Ele é visto como uma capacidade natural do ser humano (GADAMER, 2002) e exprime aceitação e valorização da alteridade. De tal modo que a diferença essencial e a independência de cada subjetividade permaneçam e sejam preservadas (BUBER, 2014; BUBER; FRIEDMAN, 1965).
A vivência do encontro dialógico e sua integração na vida de quem participa dele, pode ser vista com pelo menos duas finalidades: a compreensão da consciência em si própria e a investigação da problemática dos relacionamentos e das comunicações (BOHM, 2005). A suspensão de pressupostos é parte primordial para alcançar tais propósitos.
A partir da suspensão de pressupostos - suposições prévias - é possível observá-los ao invés de identificar-se com eles. Assim, você nem os reprime e nem os alimenta, dando-lhes toda a atenção e possibilitando a percepção de coisas que não seriam percebidas caso fossem colocados em prática (BOHM, 2005).
Essas suposições precisam de uma pausa para que haja espaço para a reciprocidade entre os diferentemente iguais, e aceitação das subjetividades - o que se é na atualidade (BUBER; FRIEDMAN, 1965); e posterior confirmação das subjetividades - toda a sua potencialidade, o seu ‘vir-a-ser’ (FREIRE, 1987).
As tentativas de promover o diálogo podem ser muito frustrantes (BOHM, 2005), pois lidar com muitas opiniões gera frustração e ansiedade. Além disso, em uma dupla ou em um grupo estão presentes atitudes de autoafirmação, dominação, contenção e medo que não podem ser ignoradas.
Mesmo sendo importante se atentar para o que favorece a ocorrência do diálogo, e suas próprias características de ocorrência, também é preciso prestar atenção nos obstáculos ao diálogo. Pois, entre o ‘Tu’ que doa e o ‘Eu’ que aceita, não deve existir obstrução (BUBER; ZUBEN, 2017).
Alguns dos obstáculos seriam: postura defensiva, aparência escravizadora, insuficiência e inadequação da percepção, agenda, distrações, falta de fé no poder de fazer e transformar, contato indireto, falas sem franqueza, imposição e indiferença (BOHM, 2005; BUBER, 2014; BUBER; FRIEDMAN, 1965; FREIRE, 1987).
Portanto, é de grande valia desmistificar a ideia de que o diálogo é uma panaceia. Muitas pessoas recorrem a ele por idealizar uma situação capaz de resolver todos os problemas do mundo. Primeiro: como mencionado anteriormente, o diálogo é uma atitude para além da solução de problemas, possibilitando também o desvelamento de paradoxos, e mais que isso, sendo um acontecimento único na relação intersubjetiva. Segundo: ele não se impõe, é um convite a se adentrar em uma situação que se aproxima. Sendo limitado e uma busca e construção constantes.
Para se estabelecer uma união dialógica quatro competências são essenciais: intenções comunicativas (ou abertura), atenção compartilhada (ou auto-organização), experiência continuada de perspectivas (ou heterogeneidade) e capacidade de construir e compartilhar tensão (ou incerteza) (MARKOVÁ, 2017).
Além do diálogo não ser a solução para tudo, ele também necessita de uma abertura para sua ocorrência. Alguns acontecimentos identificados que podem levar à essa abertura são: problema, surpresa, contradição e não funcionamento de algo (BOHM, 2005).
Se partimos da condição básica de existência relacional, caberia questionar: o que a nega e a obstaculiza? Se somos seres dialógicos, nos relacionamos conosco, com os outros seres e com o mundo todo, o que impede o diálogo de acontecer? Seriam estruturas sociais construídas para o antidiálogo? Seria a própria maneira hegemônica de pensar uma estrutura antidialógica?
O diálogo é um acontecimento advindo do encontro entre seres diversos que por estarem dispostos e abertos permitiram a mistura de suas vivências, admiraram seus funcionamentos, adaptaram responsavelmente a partir do inesperado, e elaboraram um novo estado. Sendo a dialógica a abordagem que permite a ocorrência do diálogo, uma maneira de revelação do entre.
Complexidade
A esfera de manifestação do diálogo está inserida na complexidade. Novas descobertas científicas, advindas da termodinâmica e da mecânica quântica, já inseriram as noções de desordem, acaso, imprevisibilidade e incerteza no universo - micro e macro (MORIN, 2015a).
Além disso, as teorias do caos ensinam que “não se pode conhecer com perfeita precisão todas as interações de um sistema, sobretudo quando esse sistema é muito complexo” (MORIN, 2015a, p. 41). Assim, se a floresta é um ser complexo e os seres humanos também, não caberia ao pensamento complexo o caminho para o retorno à dialogicidade?
Precisamente pela necessidade de compreensão das interrelações, em contraposição, e em complementariedade à ciência reducionista, existe a complexidade. Ela visa atuar nos limites de outro tipo de pensamento, considerando as partes dentro de um contexto maior, em múltiplas escalas de organização, além de incluir variabilidade, diversidade, mudança contínua, adaptação, imprevisibilidade e respostas às mudanças das condições externas (MESSIER; PUETTMANN; COATES, 2013).
Como mencionado, existe a concepção do diálogo como um significado que atravessa por meio da linguagem. Esta, como outros sistemas complexos naturais, segue os princípios de sistemas complexos adaptativos, nos quais padrões são dinâmicos e derivam de interações, interferências causam mudanças e existe a busca por coerência sem linearidade, proporcionando emergências imprevisíveis. Podendo se considerar a linguagem como um sistema complexo adaptativo que surge através de interações locais entre os(as) agentes participantes (LEE, 2003).
O movimento de um processo dialógico é recursivo, com desvios dinâmicos inesperados (BOHM, 2005). Condizente com os processos florestais e sociais. É a partir do inesperado que surge a surpresa (MORIN, 2002), e é ela que permite a abertura necessária para o potencial criativo e a chegada do novo. O processo dialógico é um livre fluxo de significados entre participantes, passível de desenvolver significados comuns e em constante transformação. A potência dialógica nos diz, então, que não somente as relações podem se transformar, mas a própria consciência que as origina (BOHM, 2005).
Relacionando estas noções com a gestão florestal, é preciso incluir o inesperado em suas considerações e decisões. Considerando verdadeiramente a precaução no planejamento florestal. Pois, o que se consegue ordenar a partir das observações advindas de uma ciência fragmentada representa apenas uma parte objetificada da floresta.
O que nos restaria então para administrar uma floresta? Observá-la, contemplá-la e tomar conhecimento íntimo dela. Escutá-la, interpretá-la e compreendê-la. Ela é um sistema complexo (FILOTAS., 2014), e, portanto, imprevisível. Assim como os processos culturais (MOURA; GALAN; MACHADO, 2019).
Floresta objeto
Uma floresta objetificada faz parte do mundo do ‘Isso’, que é integrante da existência humana, pois somente se pode ordenar o ‘Isso’. Assim, se estabelece um relacionamento. Esta atitude para com ela é objetificante e fundada na experiência e no uso. O contato estabelecido é com um objeto manipulável (BUBER; ZUBEN, 2017). Por essa razão, para se usufruir dos bens proporcionados pelas florestas, se recorre ao relacionamento que permite uma otimização de processos para sua utilização.
Consequentemente, a ordenação científica moderna da natureza necessita da repressão, observação e do servir-se da floresta para alimentar seu reino de causalidade (BUBER; ZUBEN, 2017). Por exemplo, as denominações atuais de recursos naturais e florestais, e serviços ecossistêmicos contêm em si o domínio do ‘Isso’, pois carregam a conotação de algo a ser usufruído.
O relacionamento exclusivo ‘Eu-Isso’, que possibilita a mensuração de custos ambientais e a valorização dos recursos naturais de maneira objetiva e quantitativa, não basta e não se sustenta. É preciso incluir uma relação capaz de abarcar os valores intrínsecos, os ecológicos, as percepções culturais, os direitos comunais e outros interesses sociais em relação às florestas (LEFF, 2009).
A distância, predominante na ciência positivista, é o pressuposto para a relação, precedendo as posturas perante o mundo. A intenção ‘Eu-Isso’ alarga e engrossa a distância, e, portanto, a objetificação do outro, podendo paradoxalmente, às vezes, se tornar um caminho de volta para a relação entre sujeitos ou obstruir o retorno. Este aumento da distância nos leva a considerar os outros seres somente como objetos observáveis e exploráveis (BUBER; FRIEDMAN, 1965).
Pensar o histórico florestal não seria possível sem um elemento de estabilidade que instituísse uma organização. Por outro lado, se ficarmos apenas na ordem não há inovação, criação e evolução (MORIN, 2015b). Dentro do pensamento ocidental, a partir do Romantismo, a natureza também foi vista para além da ordem de um elemento decorativo e reconheceu-se sua desordem nas propriedades como substância, bem como sua influência benéfica sobre os seres humanos (BRANCO, 1999).
Uma ética ambiental que nos ajude a lidar com a complementariedade da relação objeto e sujeito com a floresta pretende mostrar que metas exclusivamente centradas em humanos não são capazes de justificar políticas ambientais. Assim, o valor intrínseco das entidades naturais pode ser usado para limitar ou mapear a abrangência apropriada de valores instrumentais. Uma pluralidade de valores práticos, como diversidade e beleza, contribui para o bom funcionamento de um ecossistema (KATZ, 1997).
É preciso se confrontar com uma subjetividade, no fluxo da ação recíproca, para que ocorram conflitos decorrentes do encontro e suas sínteses criativas a partir das diferenças. O ser humano não pode viver sem o ‘Isso’, a distância proporciona essa situação, mas quem vive apenas nesta postura não é humano (BUBER; FRIEDMAN, 1965; BUBER; ZUBEN, 2017).
A possibilidade da floresta como sujeito passa pela ideia de que “o inacabamento sem a consciência dele engendra o adestramento e o cultivo” (FREIRE, 1995, p. 75). Assim, a falta de uma consciência do inacabamento de um ecossistema florestal não estaria na mente humana moldada pelo paradigma ocidental moderno?
Floresta sujeito
Quando um outro é chamado de floresta, terra-floresta, mãe-terra, pode-se reconhecer sua alteridade essencial, na medida em que há uma irredutibilidade deste outro a um objeto passível de determinações e experimentações. No mundo do ‘Tu’ há presença, reciprocidade, totalidade, imediatez, fugacidade, subjetivação e incoerência no espaço e no tempo (BUBER; ZUBEN, 2017).
Uma ‘Floresta Tu’ é uma totalidade para além de suas partes, “assim como a melodia não se compõe de sons, nem os versos de vocábulos ou a estátua de linhas - a sua unidade só poderia ser reduzida a uma multiplicidade por um retalhamento ou um dilaceramento” (BUBER; ZUBEN, 2017, p. 55).
Estudos recentes discordam do que por muito tempo se acreditou na sociedade ocidental, que as plantas não podem reagir à nossa ação sobre elas, não podendo assim retribuir (BUBER; ZUBEN, 2017). Sendo as plantas capazes de compreenderem a si mesmas e o ambiente, comunicando entre si e traduzindo informações em movimentos, além de reconhecerem outros organismos como bactérias, fungos e animais, incluindo humanos (MANCUSO; VOLKMANN, 2006).
Toda vida existente se dá no encontro e, consequentemente, no confronto com um outro ser vivo e atuante. É esbarrando neste ser independente e oposto que existe um mundo (BUBER; FRIEDMAN, 1965; BUBER; ZUBEN, 2017). Portanto, quanto mais diversidade em contato mais universos podem surgir, bem como limites e conflitos.
Já se pode afirmar que a floresta é um sistema complexo adaptativo. Sendo um sistema dinâmico e não linear, com propriedades complexas, dinâmica transitória e incerteza sobre seu comportamento futuro (MESSIER; PUETTMANN; COATES, 2013). O que nos leva a caracterizá-la não somente como um objeto a ser analisado, mas também como um sujeito a ser compreendido.
Como uma floresta poderia ser sujeito, um ‘Tu’? Sua subjetividade emerge quando auto-organização, individualidade, autonomia, complexidade, incerteza e ambiguidade se tornam características próprias (MORIN, 2015b).
Um sujeito apresenta um comportamento, uma maneira de agir, a floresta se comporta como um sistema complexo adaptativo. A teoria dos sistemas traz fundamentos como a interação, que implica reciprocidade e modificação; a totalidade, na qual o todo não se reduz às partes e permite a emergência de qualidades; a organização, que arranja as relações e gera uma nova unidade; e a complexidade, que tem variedade de relações e componentes (BRANCO, 1999).
O reconhecimento das florestas como complexas permite aceitar que elas se adaptem e se auto-organizem a partir das novas condições criadas por meio das ações humanas, conforme características do Quadro 1. Entretanto, é preciso alertar que a adaptabilidade de uma floresta para se manter como tal é condicionada a condições ambientais necessárias à sua resiliência. Ultrapassar o chamado “ponto de não retorno” compromete tais características e pode levar a uma mudança de ecossistema.
O entendimento atual das florestas tem sido fortemente influenciado por pesquisas anteriores com abordagens reducionistas usadas para descrevê-las, e muito pode se ganhar se as florestas forem vistas como sistemas complexos adaptativos (MESSIER; PUETTMANN; COATES, 2013).
A transição e a intercalação de relacionamentos objetificados ‘Eu-Isso’ com a floresta para relações subjetivas ‘Eu-Tu’ é fundamental para a manutenção de florestas saudáveis. Principalmente para a permanência da espécie humana interdependente dos ecossistemas florestais.
Algumas culturas não consideradas ocidentais por seus modos de vida podem ser interpretadas como precursoras da relação ‘Eu-Tu’ com as florestas. Um exemplo pode ser dado pela cosmologia do povo Yanomami. Se olharmos para suas descrições sobre a floresta, podemos traduzi-las para o vocabulário dos sistemas complexos adaptativos. “A floresta está viva, e é daí que vem sua beleza” (KOPENAWA, DAVI; ALBERT, 2019, p. 468).
Quando mencionado que a floresta é um ser que lamenta, sente dor, geme, chora e respira, podemos interpretar como a característica complexa de abertura. Quando vista como possuidora de espírito e de pele, podemos identificar sua heterogeneidade. Bem como ao se mencionar que a floresta é cuidada, reconhece-se sua alteridade, e assim sua diversidade. A umidade fecunda e o respeito aos animais indicam a estrutura presente nas interrelações. Ao se mencionar que a terra desmatada perde o perfume de floresta, reconhece-se a memória do lugar. O medo que os seres habitantes da floresta têm de serem eliminados pela imensidão e instabilidade do céu caracteriza a incerteza. O trabalho dos espíritos da floresta para impedir que esta retorne ao caos retrata sua auto-organização. O valor de fertilidade atuante revela a possibilidade de novas emergências. Bem como quando dito que a floresta sempre se renova, reconhece-se a adaptação (KOPENAWA, DAVI; ALBERT, 2019).
Os povos originários são reconhecidamente guardiões e gestores das florestas. A interpretação de sua relação com esse ecossistema como complexa pode ser um indício para cientistas de como pesquisá-lo, e incorporar em suas recomendações técnicas maneiras mais condizentes de manejá-lo.
Assim como a relação ‘Eu-Tu’ é interdependente do relacionamento ‘Eu-Isso’, podemos considerar a ciência complexa interdependente da ciência reducionista. Consequentemente, devemos expandir a compreensão da relação entre pessoas e florestas de maneira alternante para que consigamos uma gestão florestal dialógica capaz de responder aos desafios presentes e futuros.
Considerar a floresta também como um ‘Tu’ na gestão florestal é uma maneira aplicada advinda da ética. Quando falamos de uma gestão florestal ética e científica, que intercala uma visão objetiva e subjetiva da floresta, precisamos nos basear no dever de preservação ambiental pelo simples fato de ser a condição sine qua non da vida humana na terra, sua garantia de base física e emocional, ao mesmo tempo que por meio de conhecimentos dos processos ecológicos evitamos danos às ligações físicas e biológicas do mundo natural (KATZ, 1997).
Perante estes argumentos nos deparamos com um conflito entre o suporte sistêmico a longo prazo e o uso de bens naturais no curto prazo. O diálogo é uma maneira de permitir a emergência desse conflito e a expansão de interpretação para além de um racional antropocêntrico e instrumental.
Assim, para mudarmos a visão de gestão, de uma maneira regulatória para emancipatória, precisamos incluir o valor intrínseco dos seres mais que humanos, e os valores atribuídos por outros humanos. Acarretando deveres morais para com o meio natural, como a preservação de ecossistemas por si só. Nossas obrigações serão direcionadas para todos os ambientes e seus habitantes e não somente para custos, benefícios e equidade para humanos e suas instituições. Isso cria uma situação mais complexa para deliberações e resoluções, mas só agimos moralmente quando evitamos nossas inclinações habituais (KATZ, 1997).
O dilema relativo a produzir e preservar, ao mesmo tempo, se relaciona à justiça em termos de benefícios humanos. Por um lado, busca-se os benefícios como da biodiversidade e de menos emissão de dióxido de carbono; por outro, o aumento de riqueza. Neste caso estamos tentando decidir qual valor instrumental é maior ou mais justo. Quando incluímos o valor intrínseco da floresta e seu devido respeito nessa equação, tal dilema pode começar a se dissolver (KATZ, 1997).
A urgência de espaços dialógicos como estratégia para lidar com a crise ambiental em que nos encontramos, se dá por permitir a clarificação de significados e implicações de nossos ideais básicos relativos ao mundo natural. Pois, anteriormente a ela, se trata de uma crise de valores morais em relação à natureza (KATZ, 1997).
A possibilidade de examinar pressupostos, permite a observação de crenças fundamentais sobre a relação entre pessoas e florestas. Esse é o primeiro passo para construirmos melhores soluções e dissoluções, para problemas e paradoxos vigentes.
A relação entre Diálogo e Sistema complexo adaptativo
Uma abordagem complexa que pode ser capaz de intermediar a relação entre pessoas e florestas como articuladora econômico-política na gestão florestal tende a ser dialógica. As características dos sistemas complexos adaptativos são vistas como espelhos de características dialógicas, e que permitem a subjetivização da floresta na dinâmica gestora.
Considerando as características expostas de sistemas complexos adaptativos, as quais as florestas compartilham, o diálogo é a manifestação conjunta dessas características (Quadro 2) e a dialógica é a maneira de o possibilitar. O acontecimento inteiro e recorrente que articula as características de um sistema complexo adaptativo pode ser chamado de diálogo.
As possibilidades da vida são infinitas, bem como as contidas nas sementes. Porém, o mundo possui seus limites, desenhados pelas forças que o regem, e por isso, de tantas possibilidades e sementes, somente algumas germinam quando se encontram na realidade. A partir da relação dialógica entre pessoas e florestas podemos encontrar a realidade. Realidade múltipla e momentânea que se molda a cada encontro, na dança do desequilíbrio dinâmico.
Este encontro com a realidade pode se dar pela gestão. Conceito aqui entendido com o duplo significado de manejo e governança. Pelo lado do manejo, lembramos a origem da gestão florestal com a implicação de direcionamento, controle e planejamento do uso das florestas para determinado propósito. Com a base ética utilitarista e antropocêntrica de que seja de tal maneira a gerar benefícios para a humanidade presente e futura (KATZ, 1997).
Por outro lado, “governança é o processo pelo qual o repertório de regras, normas e estratégias que orientam o comportamento dentro de um determinado domínio de interações políticas é formado, aplicado, interpretado e reformado” (MCGINNIS, 2011, p. 171 tradução nossa).
O desafio para uma gestão dialógica é saber que um dos propósitos continuará sendo um relacionamento ‘Eu-Isso’, mas conseguir intercalá-lo com uma relação ‘Eu-Tu’, na qual a floresta seja considerada como sujeito complexo e de intrínseco valor.
Gestão florestal dialógica
Uma gestão florestal dialógica tem a visão das interconexões, tanto no manejo quanto na governança. É uma maneira integrativa que considera as condições locais, subjetivas e linguísticas, bem como as limitações sociais, pessoais e históricas (CARBAUGH, 2013; 2014). Por isso, as quatro vertentes interpretativas - humanização do fato, raízes históricas, contexto, prognósticos e diagnósticos (MEDINA, 2003) - podem ser uma boa maneira de compreensão de um encontro dialógico.
A gestão dialógica precisa comunicar com e para além da fala e incluir a escuta da natureza, estando atenta à diversidade de vozes e de agentes comunicativos, como os seres mais que humanos. É mais baseada na escuta, de maneira contextualizada e inclui maneiras não verbais, e esse processo guia as devidas ações subsequentes. Também na integridade de cada sujeito, em uma compreensão empática do outro, pode acontecer um engajamento para benefício mútuo e um compromisso duradouro para futuras ações (CARBAUGH, 2013; 2014).
As vivências trazidas por cada participante de um encontro dialógico carregam pressupostos que precisam ser escutados com atenção para que sejam observados. É essa memória que liga o passado, com o presente em comum e os futuros possíveis.
Uma gestão efetiva precisa partir de vários pontos de vista. O propósito comum em uma gestão dialógica permite que cada participante desenvolva uma perspectiva profunda por meio do compartilhamento de objetivos, valores e experiências de vida. Um pensamento representativo da realidade pode ser desvelado quando uma questão é vista por uma variedade de perspectivas e experiências (YANKELOVICH, 1999).
A auto-organização, tanto no manejo quanto na governança, pode se dar por uma habilidade de monitorar as condições ambientais e iniciar mudanças necessárias para manter algum estado desejado, ou garantir que níveis de uma variável crítica se mantenham em patamares aceitáveis. Mecanismos de retorno, ou feedbacks, e ajustes temporais são precisos para lidar com pressões internas e externas (YOUNG, 2017).
A característica dialógica da espontaneidade propicia a capacidade de auto-organização em um encontro à medida que é circundada pela ausência de pautas, ao mesmo tempo que guiada por um propósito compartilhado.
Um espaço dialógico que lida com questões florestais por meio de partes interessadas busca a coexistência. Ao enfrentar questões complexas relativas à conservação, as pessoas tendem a focar nas conexões ‘naturais’, evitando as sociais por seu caráter político, e ignorando as conexões culturais por serem ideológicas e difíceis de lidar (GAO; CLARK, 2023). Entretanto, para lograr o objetivo de florestas preservadas e produtivas, todos esses âmbitos precisam ser considerados.
A suspensão de pressupostos pode permitir a contemplação dos mesmos, para que sejam considerados também os aspectos políticos e culturais. “A solução para o problema da imprevisibilidade, da caótica incerteza do futuro, está contida na faculdade de prometer e cumprir promessas” (ARENDT, 2008, p. 248). É a partir da presença de outros que se forma o código moral da faculdade de prometer. A promessa se torna um compromisso responsável entre as partes presentes.
Para uma gestão florestal complexa se faz necessário ampliar o foco de avaliação, considerando como as práticas afetam todas as propriedades de sistemas complexos adaptativos. Por exemplo, olhando para múltiplas escalas, para as interações, para respostas não lineares, e se planejar para a incerteza. É preciso também incluir questões sociais e políticas. Saindo de prescrições e guias genéricos para a inclusão de práticas que reflitam as condições locais (MESSIER; PUETTMANN; COATES, 2013).
A compreensão de que predições precisas de estados futuros das florestas é impossível permite o desenvolvimento de abordagens de manejo para melhorar a resiliência e a capacidade adaptativa das florestas em tempos incertos. Reconhecendo que a variabilidade e a incerteza são a norma nas condições e dinâmicas ecossistêmicas florestais (FILOTAS et al., 2014).
A floresta vista como sistema complexo adaptativo permite que seja conceitualizada como um sistema aberto, com funções dirigidas por fatores sociais e ecológicos, e transforma em dualidade a dicotomia entre perspectivas econômicas e ecológicas (FILOTAS et al., 2014).
O ponto de partida para que haja o ‘entrenós’ na gestão florestal é a transformação da mente que opera majoritariamente na postura sujeito-objeto para a inclusão sujeito-sujeito. Possibilitando uma adaptação momentânea de acordo com a realidade coletiva vivenciada.
Para tal, os seguintes indicadores podem ser utilizados para observação da ‘corporificação da palavra dialógica’ (BUBER, 2014) na gestão florestal. Em cada indicador é possível identificar o que foi vivenciado em termos dialógicos durante o encontro.
Considerando um espaço de gestão, se os indicadores forem visitados ao final de cada encontro, provavelmente aos poucos serão incorporados nas percepções de cada participante ao longo dos próximos encontros. Isso por si só pode gerar um processo transformacional, que poderá tanto permitir a ocorrência mais frequente do diálogo quanto ser fruto dele, em constante retroalimentação.
Os indicadores se baseiam em quatro dimensões. Por se tratar de uma gestão realizada por humanos, a primeira dimensão considera a palavra dita, sendo composta por três categorias a partir dos modos de ser da linguagem. O modo de possessão potencial se refere ao que já foi dito, a linguagem capaz de ser incluída, e é ligado à facticidade dinâmica da linguagem. O modo de ocorrência real se refere à palavra que é falada, se relaciona com a vontade de comunicar e é ligada ao ‘voltar-se um para o outro’. O modo de continuação presente se refere a tudo que pode ser falado, em um lugar de ‘ser-com-o-outro’ que é ligado ao contexto compartilhado (BUBER; FRIEDMAN, 1965).
Pode-se perceber a ligação entre passado, presente e futuro. O contínuo que forma as possibilidades da linguagem se dá pelos significados recebidos, que geram a comunicação momentânea, e que ancoram o ‘vir-a-ser’ comum.
A segunda dimensão dos indicadores é relativa ao evento dialógico e aos fenômenos que acontecem: psíquicos (em nós), físicos (conosco), e singulares (entre nós) (BUBER; FRIEDMAN, 1965). Cada presença precisa se tornar presente para si, para que se possa perceber, ser tratada, e tratar o outro como sujeito (BUBER, 2014). Nesta dimensão, podemos extrapolar para o reflexo da relação socioambiental articulada dialogicamente pela economia e pela política.
A terceira dimensão é relativa à percepção: observar, contemplar e tomar conhecimento íntimo (BUBER, 2014). Aqui estão as decisões posturais de cada ser que permitem distância e relação, objetificação e subjetificação. São um pré-requisito para a próxima dimensão.
A quarta dimensão diz respeito ao movimento duplo do princípio da vida humana, no qual o primeiro é um pressuposto para o segundo. Gerando espaço para que ele aconteça - sem sucessão temporal. Aí existem as atitudes de distanciamento, para perceber a alteridade, e a própria relação. Os movimentos então compartilham de: reação, interação mútua, e cooperação (BUBER; FRIEDMAN, 1965). Permitindo a duplicidade de perceber a floresta como uma unidade, da qual faço gestão, e uma totalidade, da qual os seres humanos fazem parte.
A partir das dimensões elucidadas, pode-se perceber a interconexão entre linguagem, articulação, postura e movimento necessária a um processo de gestão florestal dialógica (Quadro 3). É possível imaginar um espectro dialógico para auxiliar a interpretação dos encontros em espaços de gestão, e aprimorar as características necessárias para que o diálogo possa acontecer.
Os parâmetros para observação da corporificação da palavra dialógica podem ser abordados ao final de um encontro. Por meio de perguntas, pode-se investigar a presença de cada participante e da floresta escolhida de acordo com o propósito comum.
Outros questionamentos que podem ser feitos aos (às) participantes ao final de um encontro, relativos às características complexas, e dialógicas, são:
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Abertura - Como foi a sua disposição para estar presente e sua abertura para se afetar?
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Diversidade - Quão diverso era o grupo e como cada alteridade foi considerada?
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Estrutura - Houve interação no encontro entre os diferentes papeis sociais e consideração das responsabilidades individuais envolvidas?
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Memória - Houve espaço para a escuta de vivências, valores e demais pressupostos?
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Auto-organização - Como se deu o processamento do propósito acordado? Foi de maneira espontânea?
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Incerteza - Como os pressupostos foram suspensos e contemplados?
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Emergência - Quais foram os significados criados em conjunto?
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Adaptação - A partir dos conflitos, o que se transformou?
Considerações finais
Na gestão florestal, os limites planetários e a relação para com os outros seres precisa estar em pauta. Ao invés da visão de crescimento sem fim e acumulação de capital, seja ele natural ou monetário. A incorporação das condições ecológicas aos processos produtivos é o que possibilita a dissolução de externalidades socioambientais, a partir do estabelecimento de limites e potencialidades reais (LEFF, 2009).
A nova racionalidade produtiva necessária à sustentabilidade precisa basear-se no potencial ecológico e em outros sentidos civilizatórios. Um compasso de sustentabilidade no qual a economia-política seja circunscrita aos limites de expansão que asseguram a reprodução de condições ecológicas. Para que haja uma produção florestal sustentável dependente da regeneração ecossistêmica, é preciso flexibilidade e maleabilidade para lidar com as incertezas e adaptações necessárias (LEFF, 2009).
A sustentabilidade tem como desafio considerar as singularidades locais e integrar as diferenças com sua incomensurabilidade, relatividade e incerteza. Necessitando de uma política da diferença, que passa pelo fundamento ontológico do ser e da alteridade. O processo de transição para a sustentabilidade implica a confrontação com valores e interesses distintos, e até opostos (LEFF, 2009). Não é possível excluir valores das decisões políticas, para não nos iludirmos (YANKELOVICH, 1999).
A dialógica como abordagem complexa para a gestão florestal é uma possibilidade de mobilizar a participação social na tomada de decisões que afetam as condições de existência. Além de desencadear energia e criatividade para uma nova cultura econômico-política com múltiplas organizações produtivas (LEFF, 2009).
Para uma nova cultura surgir, é preciso compreender a que existe. Esta pode ser vista como composta por uma parte superficial (convenções presentes nos acontecimentos do dia a dia), e uma parte profunda, funcional (que contém estilos de comunicação, noções, conceitos, atitudes, abordagens e questões fundantes) (CLARK, 2021). A investigação das dimensões culturais é inerente ao processo dialógico.
A potência de ação, que surge quando se é afetado(a), é algo esperado após um encontro dialógico. Pois, a criação de significados em comum gera força e capacidade de adaptação para se trabalhar em conjunto. O espaço de gestão precisa comportar a investigação dos pressupostos, inclusive de identificação de potencialidades, talentos e capacidades individuais, e de informações a partir do afloramento de conflitos, para gerar ação política transformadora (ALVES et al., 2010).
Muito se discute no debate ambiental sobre a sobrevivência da espécie humana. Porém, pouco se fala que sua existência se dá no coletivo, como ‘Nós’ (BUBER; FRIEDMAN, 1965). A real existência como um ‘Nós’ não é possível em um cosmos independente, mas somente em relação sempre renovada com o que está contra nós. O acontecimento do diálogo permite uma construção conjunta de significação comum - um mundo comum a partir da linguagem (BUBER; FRIEDMAN, 1965). Contendo neste a potência de outros futuros.
O mundo comum se constrói pelo discurso comum com significado. Portanto, percebe-se a importância do diálogo para a gestão do bem comum, para o bem viver. Cabe a cada um(a) se tornar consciente do outro, de tal forma que assuma para com ele um comportamento. O considere como parceiro num acontecimento da vida. Os espaços de gestão são propícios para permitir a construção de uma existência comum, para se compreender e construir o mundo, pois a estrutura básica da alteridade é a coisa pública (res publica) (BUBER, 2014).
O papel da dialógica como articuladora econômica-política na gestão florestal é justamente o de auxiliar na dissolução de paradoxos e na construção de paradigmas. O diálogo sobre e com as florestas é uma postura ético- política para permitir a coexistência planetária. Considerando a política como relativa à permanência (ARENDT, 2008), e, portanto, à sustentabilidade.
Talvez o motivo das posturas antagonistas, ao invés de agonistas, no debate conservacionista seja a falta de explicitação das premissas teóricas de cada pessoa ao entrar nessa esfera (BÜSCHER; FLETCHER, 2020), e isso impede o diálogo de acontecer. Um espaço dialógico deve ser capaz de permitir que adversários exponham, suspendam e observem os seus julgamentos e de outros, para que decisões conjuntas possam ser tomadas em prol da biodiversidade, sem evitar as questões fundamentais.
Pressupostos quando não observados em conjunto geram desentendimentos e erros de julgamentos coletivos. A abordagem dialógica é uma maneira de comunicação que permite que sujeitos os apresentem para que sejam admirados e confrontados de forma efetiva (YANKELOVICH, 1999).
Os desafios estão embebidos de traços históricos, políticos, sociais e psicológicos (CLARK, 2021). Ao compartilhar palavras, gestos, indicativos e visões de mundo pode-se criar esperança e procedimentos práticos para avançar juntos(as). Sendo as muitas dimensões do diálogo uma maneira de caminhar em diversas direções (CARBAUGH, 2017) em busca de integração, coexistência e ética (CLARK, 2021).
Por mais urgentes que sejam as demandas por soluções e por mais que se acredite na importância do conhecimento, a sabedoria vai além das informações trazidas pelos dados que nutrem o conhecimento, ela adiciona valores. Condutas vão além dos fatos, é preciso combiná-los com perspectivas sobre os valores (YANKELOVICH, 1999). Somente assim conseguiremos conjuntamente lidar com os desafios que a vida apresenta. A dialógica pode ser uma maneira de gerir sabiamente.
Agradecimentos
À CAPES que concedeu bolsa de doutorado para a pesquisa da qual deriva este artigo.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
20 Dez 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
13 Mar 2024 -
Aceito
16 Jun 2024
