Open-access Mulher Jiboia e Mulher de Barro: Arte, Consumo e Agenciamentos na Comunidade Huni Kuin

Resumo

Este artigo indaga sobre as transformações psicossociais, culturais e ambientais, que ocorrem na comunidade Huni Kuin do Acre, com o incurso das ofertas de consumo e de dispositivos comunicativos da noopolítica dirigida ao consumo, especialmente sob a perspectiva do corpo-paisagem feminino e suas transições relacionais. O objetivo é expor o cenário de fricção entre a resistência dos intensos processos de retomada das tradições dessa população e as (re) existências decorrentes dos conflitos e interações com o mundo dominante dos nawás, os não indígenas. A pesquisa traça uma cartografia de afetos, durante o campo no bairro Kaxinawá do Jordão e na aldeia Chico Curumim, associada também a entrevistas com a artista Rita Huni Kuin e às inferências sobre suas pinturas. Esse conjunto de impressões revela tanto vulnerabilidades às formas de colonização do mundo dominante quanto forças reativas e criativas da floresta, das mulheres e da arte Huni Kuin.

Palavras-chave:
Consumo; Corpo-paisagem; Fricção; Arte; Huni Kuin

Abstract

This article investigates the psychosocial, cultural, and environmental transformations occurring in the Huni Kuin community of Acre due to the incursion of consumer offerings and the communicative devices of noopolitics directed at consumption. It emphasizes the perspective of the female body-landscape and its relational transitions. The aim is to reveal the friction between the intense processes of reclaiming traditions by this population and the (re)existences arising from conflicts and interactions with the dominant nawá world, referring to non-Indigenous peoples. This research maps emotions during fieldwork conducted in the Kaxinawá neighborhood of Jordão and the Chico Curumim village, alongside interviews with artist Rita Huni Kuin and interpretations of her paintings. These impressions uncover vulnerabilities to colonization by the dominant world as well as the reactive and creative strengths of the forest, women, and Huni Kuin art.

Keywords:
Consumption; Body-landscape; Friction; Art; Huni Kuin

Resumen

Este artículo investiga las transformaciones psicosociales, culturales y ambientales que ocurren en la comunidad Huni Kuin de Acre, con la introducción de ofertas de consumo y dispositivos comunicativos de noopolítica dirigidos al consumo, especialmente desde la perspectiva del cuerpo-paisaje femenino y sus transiciones relacionales. El objetivo es exponer el escenario de fricción entre las resistencias de los intensos procesos de retoma de las tradiciones de esta población y las (re) existencias resultantes de conflictos e interacciones con el mundo dominante de los nawá, los no indígenas. La investigación traza una cartografía de los afectos, durante el campo en el barrio Kaxinawá do Jordão y en la aldea Chico Curumim, asociada también a entrevistas con la artista Rita Huni Kuin e inferencias sobre sus pinturas. Este conjunto de impresiones revela tanto las vulnerabilidades a las formas de colonización mundial dominantes como las fuerzas reactivas y creativas del bosque, las mujeres y el arte Huni Kuin.

Palabras-clave:
Consumo; paisaje-cuerpo; Fricción; Arte; Huni Kuin

Introdução em Cinco Tempos

Os Huni Kuin, povo verdadeiro na tradução para o português, também chamados Kaxinawá, habitam territórios tanto no Peru quanto no Brasil, no estado do Acre, onde povoam as margens dos rios Tarauacá, Jordão, Breu, Muru, Envira, Humaitá e Purus. Seu idioma é o Hatxa Kuin, do tronco Pano, e sua história se divide em cinco períodos, como explica o pajé Dua Busé:

Tempo das Malocas, em que viviam nus, antes do contato com os brancos. Tempo da Correria, quando foram sobrepujados pelas armas de fogo, tiveram o território tomado e foram reduzidos a pouco mais de 300 pessoas. Tempo do Cativeiro, em que se tornaram reféns dos seringalistas que implementaram o sistema escravista dos barracões, sob o qual nasceram todos os Huni Kuý hoje mais velhos. Tempo dos Direitos, que, a partir da década de 1970, contou com as formulações dos antropólogos Terri de Aquino e Marcelo Piedrafita na constituição das cooperativas e na delimitação dos territórios. Novo Tempo, ou Xinã Bena, que alia a transmissão das tradições entre velhos e jovens a intercâmbios com o mundo do século XXI (Dua Busé, 2017, p. 20).

A violenta colonização dos territórios Huni Kuin e o contato com não indígenas, os nawás, ocorre em anos pós-coloniais, já no final do século XIX, durante o ciclo da borracha. A atrocidade da ocupação provoca imensas transformações no seu corpo-paisagem, que se traduz pela relação inextricável de afetos singulares (Guattari; Rolnik, 1996) entre o corpo e o meio ambiente (Ayres et al., 2023), o mundo e mesmo o cosmos em fluxos que transbordam as limitações territoriais, porque estão em associação espaço-temporal com os imprevisíveis e desconhecidos “contágios espirituais que repentinamente podem dar nova feição ao mundo” (Burckhardt, 1961, p. 21). Desde o Tempo das Correrias até o Novo Tempo, os contágios provenientes do mundo nawá se transformam, mas seguem fluentes e em fricção (Tsing, 2005) com as tradições Huni Kuin e com a memória de corpos-paisagens interconectados, marcados com suas histórias e devires com o mundo, o cosmos e com a percepção de que a existência importa pelas relações solidárias e globalmente comunitárias que mantêm com todos os seres e entidades da natureza e mesmo da “sobrenatureza” (Viveiros de Castro, 2004, p. 234).

A artista Rita Huni Kuin1 nasce no limiar do Novo Tempo na aldeia Chico Curumim, alcunha de seu bisavô, e, muito cedo, aos nove anos, vai para a cidade do Jordão para estudar. Sua família representa um microcosmo muito importante para o processo de retomada cultural, autoestima da população e resistência das tradições Huni Kuin, quase perdidas durante o tempo do cativeiro, incluindo o próprio idioma Hatxa Kuin, pouco falado até a década de 1980. O avô de Rita Huni Kuin, Tuin (Romão Sales Kaxinawá) passa a vida pesquisando e aprendendo cantos, como os Huni Meka, que acompanham a cerimônia de Nixi Pae (ayahuasca), além dos cantos do Pakarin, um ritual de passagem, similar ao batismo, e outras tradições e costumes, com os Huni Kuin mais velhos e “brabos”, que chegam “de todas as partes para escapar das correrias, abrigando-se no rio Jordão” (Sales Kaxinawá, 2015 apudMattos, 2015, p. 62).

Esses ensinamentos são passados para as gerações seguintes e, em 2006, Ibã (Isaías Sales Kaxinawá), pai de Rita, escreve o livro Nixi Pae: o Espírito da Floresta, fundamentado no material reunido por Tuin, que hoje é uma grande fonte de referência sobre a cultura Huni Kuin e, principalmente, para o próprio povo Huni Kuin e seu processo de recuperação das tradições. Em 2012, Ibã cria o primeiro movimento de artistas contemporâneos Huni Kuin com o grupo Mahku, começando a produzir pinturas em telas, que expressam a vida e a espiritualidade do seu povo, especialmente relacionadas aos cantos e às mirações dos rituais de Nixi Pae. O Mahku abre o caminho de Rita Huni Kuin como artista, expositora e divulgadora da sua cultura em apresentações e mostras como a Moquém_Surarî: Arte Indígena Contemporânea, em 2021, uma correalização do MAM (Museu de Arte Moderna) com a 34ª Bienal de São Paulo e nos próprios rituais que conduz, como performance relacional (Borriaud, 2009), com seus cantos sagrados, durante as cerimônias do Nixi Pae.

A arte e a espiritualidade Huni Kuin estão bastante implicadas no movimento de resgate e afirmação da sua cultura e tradição, depois de todo o período de expropriação, durante o ciclo da borracha. Todavia, neste Novo Tempo, Xinã Bena, a colonização prossegue de modo diferente e em muitos aspectos mais insidioso. E isso inclui a expansão de uma cultura hegemônica e globalizada do consumo, que se propaga no capitalismo contemporâneo de modo rizomático e ramificado (Deleuze, 1992), sendo capaz de penetrar em todas as camadas da vida pessoal e social e assim contagiar e controlar os corpos, desde a própria concepção do pensamento, aquela imagem seminal, que se torna centrada na falta e no desejo de aquisição em lugar da imaginação ou da criação das mais diversas dimensões que a vida pode e deve ter.

Esse domínio sobre o pensamento, principalmente, através da regulação da memória, resulta da noopolítica, que, segundo Maurizio Lazzarato (2006), opera a partir de dispositivos de controle sobre as subjetividades. E, como uma ideia decorrente, Frederico Tavares (2020) propõe refletir sobre a noopolítica do consumo, em razão da centralidade do consumo no capitalismo contemporâneo. A noopolítica do consumo, portanto, se engendra nos espaços das moldagens deformantes e autodeformantes dos desejos e da memória, fabricados, regulados ou mesmo colonizados para o consumo. Tavares explica a noopolítica do consumo com a imagem das “ideias vírus”, capazes de influenciar e produzir imaginários, enunciados, principalmente, “hoje, através dos dispositivos de controle social que são as plataformas, os gadgets, enfim, os dispositivos de acesso e conexão” (Tavares, 2020, 2’ 26”).

Com isso, este artigo, recorte da tese de doutorado em psicossociologia: Noopolítica do Consumo como Dispositivo de Colonização: Resistências e (Re) Existências na Arte Indígena Contemporânea, apresentada ao programa Eicos - UFRJ - em 2023, desenvolve a indagação sobre quais transformações psicossociais, culturais e ambientais ocorrem na comunidade Huni Kuin com o contato e mesmo com a invasão das ofertas de consumo e desses dispositivos de enunciação da noopolítica do consumo, enfatizando as mudanças no corpo-paisagem feminino e suas transições relacionais. O objetivo, portanto, é apresentar algumas impressões reunidas em pesquisa de campo no Jordão e na aldeia Chico Curumim, que revelam mudanças e (re) existências em muitos aspectos da vida desta população e do papel da mulher Huni Kuin. (Re) existências resultantes da fricção (Tsing, 2005) entre o mundo Huni Kuin e o hegemônico, ou, em outras palavras, de uma complexa e intermitente oscilação do equilíbrio relacional em constante recomposição política, cultural, psicossocial e ambiental, que ocorre com a partilha do mundo sensível (Ranciére, 2009), tanto no sentido de demarcações, lutas, divergências e resistências, quanto de um conjunto comum e compartilhado.

A perspectiva da partilha do sensível, em suas opostas e complementares semânticas, orienta o desenho de uma cartografia de afetos sobre os rastros de histórias e transformações provocadas pelo consumo nessa comunidade. Um cenário, portanto, de “desmanchamento de certos mundos -sua perda de sentido - e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos” (Rolnik, 2011, p. 23). Afetos expressos tanto na arte de Rita Huni Kuin, quanto em entrevistas realizadas com a artista e ainda em conversas e observações, durante o campo no bairro kaxinawá da cidade do Jordão e na aldeia Chico Curumim.

Com uma abordagem centrada na agência e na mediação exercida pela arte e pela artista Rita Huni Kuin, este estudo utiliza a ideia de abdução de agência da teoria antropológica da arte de Alfred Gell (2020), uma “zona cinzenta na qual a inferência semiótica (dos significados a partir dos signos) se funde às inferências hipotéticas de um tipo não semiótico (ou não convencionalmente semiótico)” (Gell, 2020, p. 42) para encontrar a liberdade de postular inferências sobre as obras, seus agenciamentos, e assim refletir sobre de que maneira essas partilhas e fricções com a cultura dominante, de colisões destrutivas e de entrelaçamentos construtivos (Tsing, 2005), podem inspirar novas ideias e conformações para o mundo e para a mulher Huni Kuin.

A Mulher Jiboia, o Nixi Pae e a Comunidade Huni Kuin

A obra de Rita sobre A Mulher Jiboia (Figura 1), por exemplo, apresenta uma mulher (jiboia) ornada com colares e brincos, um cocar de penas amarelas e luminosas, como um halo, e o corpo todo desenhado, se unindo na parte inferior aos movimentos de linhas sinuosas que a circundam. Na pintura, chama a atenção a variedade de cores, tons e seus movimentos, muito associados às mirações, proporcionadas pela ingestão da ayahuasca, a medicina do Nixi Pae. Levando-se em consideração que as cores não têm existência material e são percebidas apenas pela ação de dois elementos: a luz e os olhos, que decifram o fluxo luminoso (Pedrosa, 1982), compõem uma alegoria sobre iluminação, criação, conhecimento ou uma capacidade expandida de pensar, exacerbando as limitações da materialidade perceptível e conectando-se a um pensamento singular, o pensamento do corpo (Deleuze, 2002) incorpóreo, que descobre o acesso a outros mundos, como o mundo de Yube, da mulher jiboia.

O ritual de Nixi Pae, da ayahuasca, fundamenta as práticas espirituais e artísticas dos Huni Kuin, configura-se como o principal meio de divulgação e retomada da sua cultura e ainda se estabelece como fonte de renda e oportunidade de acesso a outros locais, modos de vida e de consumo, inclusive.

A tela da Mulher Jiboia e os trabalhos de arte Huni Kuin como um todo apresentam uma relação com o que Deleuze e Guattari (1997) denominam materiais-forças, que captam e conectam impulsos moleculares, os quais transbordam o mundo e desafiam sua percepção cartesiana de conhecimento e pensamento. “As matérias de expressão dão lugar a um material de captura” (Deleuze; Guattari, 1997, p. 137), de forças relacionadas ao cosmos ou outros mundos. Como artesanias cósmicas (Deleuze; Guattari, 1997), as artes Huni Kuin apreendem, captam, expressam e disseminam essas forças cósmicas, pela abertura da visão espiritual, que, nas pinturas, se manifestam especialmente pelos Kenes, a geometria sagrada, também ensinada pela mulher jiboia, durante os estados de visões e mirações, proporcionadas pelo Nixi Pae. Rita descreve o mito de origem do cipó e da mulher Jiboia da seguinte forma:

O Índio caçador, Duá Buse, que vivia em uma grande maloca com sua família, mulher e filhos foi à tarde caçar na mata. Viu que tinha muita caça comendo jenipapo e fez uma armadilha de palha de charino para ninguém perceber sua presença. Quando ele estava esperando, chegou a anta e, antes que pudesse caçá-la, notou que ela pegou três sementes de jenipapo, jogou na lagoa e chamou alguém. De lá, saiu uma mulher de cabelos longos, trazendo para a anta uma cerâmica desenhada e cheia de mingau de banana. Então, enquanto o caçador observava, os dois (a anta e a mulher) namoravam, fizeram amor. Ao fim, a anta foi embora e a mulher jiboia voltou para dentro d’água.

O caçador foi pra sua casa e à noite não conseguiu dormir. No dia seguinte, sem avisar à família, ele voltou ao local de manhã e repetiu tudo aquilo que a anta tinha feito, só que depois de atirar as sementes de jenipapo, se escondeu. Quando a mulher apareceu, perguntou quem tinha chamado e ele se apresentou. Depois, também fizeram amor e, sob o encanto dessa mulher, foi levado para debaixo d’água, onde também havia aldeia, roçados e malocas e onde, com o consentimento da família dela, casaram-se e tiveram três filhos.

Um dia Huã Karu, sogro de Dua Busë, que estava dentro do lago, começou a preparar ayahuasca. Ele tirou cipó, rainha e foi preparar o chá. Duá Buse perguntou: O que é isso? É um chá de cura, respondeu o sogro. Huã Karu preparou o chá à tarde e, à noite, enquanto preparava o ritual, pediu para a filha avisar ao genro para ele não beber. A filha foi avisar ao marido que não era para beber o chá, porque poderiam acontecer coisas que ele não aguentaria. Mas ele bebeu mesmo assim e em uma grande dose. Uma visão espiritual total se abriu e ele descobriu que aquela família não era de humanos de verdade, era família da cobra e, sua esposa, uma mulher jiboia. Viu também seu próprio futuro, sendo morto pela esposa e pelos filhos, porque a família da jiboia não queria que ele passasse seu conhecimento para o povo verdadeiro dele. A ayahuasca era segredo para o índio caçador. No dia seguinte, Duá Buse tentou fugir, aí veio um encantado, um peixe bodó, que o ajudou a sair daquela lagoa, levando-o para o outro lado, para onde estava sua família humana, que protegeu ele das cobras que estavam a sua procura. Mas teve um dia que Duá Buse saiu para caçar algum animal e a família de réptil o encontrou. Tentaram engoli-lo, justamente como na visão que ele teve ao tomar a ayahuasaca, mas não conseguiram engolir ele todo. Ele pediu socorro e a família humana foi salvá-lo. Passando alguns dias, a parte dele que ficou na boca da cobra estava apodrecendo, e ele decidiu contar para o povo como era feita a ayahuasca e dizer que, quando ele morresse, que fossem visitar o lugar onde estava depois de uma semana, porque as partes dos membros dele iam se transformar na ayahuascca, de um lado na chacrona, a rainha, e de outro no cipó. Ensinou algumas canções, e disse que todas as outras canções seriam aprendidas na força da ayahuasca e que seria ele a própria força da ayahuasca. E hoje estamos aí temos a ayahuasca com esse ensinamento. (Rita Huni Kuin, 2022)

Figura 1
Obra A Mulher jiboia de Rita Huni Kuin.

Vale destacar, com essa narrativa, que a família de répteis teme e evita passar seu conhecimento sagrado para o “povo verdadeiro” de Duá Buse, mesmo enquanto o índio caçador ainda se comunica e está vivendo um devir cobra com sua nova família em toda a potência de alteridade do pensamento, indicada pela ideia do perspectivismo: ele está pensando como o outro, e, naquele momento, se transforma e é o outro (Viveiros de Castro, 2007 apudSztutman, 2007). A mulher jiboia e seus parentes eram gente, mas não a gente verdadeira de Duá Buse, os Huni Kuin.

Rita vivencia pela primeira vez o ritual de Nixi pae em 2013, durante um festival de povos indígenas na aldeia Lago Lindo, junto com a irmã Yaka, que tem uma visão transformadora para suas vidas e que resulta na criação do grupo Kayatibu:

Convocamos todos os parentes indígenas que moravam na cidade, que vieram em busca de estudo, deslocados das aldeias, para fazer um grupo com todo mundo, mulheres e homens, para começar a trabalhar com música, dança, para pesquisar e criar materiais ancestrais que não são mais utilizados, como o machado de pedra, o fogo sem isqueiro, que é o que usamos hoje em dia, tudo o que se perdeu (Rita Huni Kuin, 2022).

A proposta abrange preservar a cultura local, mas também, durante os ensaios, trocar experiências e ideias sobre como viver na cidade sem ter problemas com os outros moradores e ainda “como não se influenciar nos maus caminhos dos brancos, da bebida alcoólica, festa, droga e tal.”, conta Rita (Rita Huni Kuin, 2022). O problema do consumo de álcool afeta os Huni Kuin e, de acordo com a artista, a criação do Kayatibu vem ajudando a população mais jovem contra o vício, enquanto os mais velhos resistem e não confiam na seriedade do grupo:

Quando iniciamos o grupo, diminuiu muito o consumo destas substâncias entre os mais jovens. Os mais velhos são mais difíceis, fizemos palestras e tudo, alguns deixaram, mas outros continuaram. O importante é que não deixamos evoluir entre os mais jovens (Rita Huni Kuin, 2022).

O grupo ensaia nos fins de semana, criando os próprios instrumentos, estudando os cantos sagrados e as danças tradicionais. Os jovens começam também a introduzir a ayahuasca em cerimônias realizadas nos quintais do bairro Kaxinawá e, por isso, são alvo de reclamações da vizinhança. Sendo assim, em 2016, Rita e Yaka apresentam uma proposta do Kayatibu, selecionada pelo Rumos Itaú Cultural, que contribui para a construção da sede do grupo e para outras atividades de pesquisa e realização artística. “Construímos aquele ponto de cultura, compramos o barco motorizado, alguns instrumentos, o básico pra começar”, lembra Rita (Rita Huni Kuin, 2022).

Com a inspiração da mulher jiboia, duas jovens mulheres criam o espaço do Kayatibu, que se torna o primeiro e único ponto de cultura do Jordão e referência não só para todos os Huni Kuin do bairro Kaxinawá e das aldeias da região, como também para pessoas de fora, interessadas na sua cultura e na experiência da ayahuasca. Rita e sua irmã Yaka são as primeiras mulheres Huni Kuin a percorrer, como os homens, os trajetos de exposições, eventos, cerimônias e outros projetos de arte indígena contemporânea.

O Corpo da Jiboia: Rituais, Mercado e a Domesticação de Nixi Pae

Seguindo esse caminho com determinação, a jiboia também é tema da instalação de um pufe de 15 metros (Figura 2), que Rita cria para o Museu das Culturas Indígenas, inaugurado em junho de 2022. A artista traz a jiboia, seu poder de atração e cura para o espaço educacional do museu, como referência de conhecimentos que fundamentam a sabedoria Huni Kuin.

Figura 2
Pufe da Jiboia de Rita Huni Kuin.

A jiboia é transportada para um centro urbano e leva para a floresta os visitantes do museu. Transforma com seu magnetismo e sabedoria e é transformada pelas ações e respostas das pessoas que estão ali, intercambiando conhecimento. As ações de sentar, deitar ou se aconchegar no conforto desta instalação também mudam sua forma, sua estrutura e, sendo assim, manifestam, como metáfora, toda a mudança pela qual vem passando o próprio corpo da jiboia e do povo Huni Kuin, depois do contato com os nawás, inclusive a respeito do uso do cipó e do preparo da medicina do Nixi Pae. Além do emprego entre os próprios Huni Kuin, que, segundo Rita, é muito mais rotineiro do que no passado, a frequência dos rituais realizados com os nawás em diversas partes do Brasil e do mundo cresce muito na última década. Assim, torna-se fonte de renda relevante para a população, pela oportunidade de comercializar suas artes, tecelagens e adornos, visto que, para o ritual, há apenas uma contribuição para cobrir os custos das viagens. Contudo, com a divulgação da medicina, começa uma apropriação cultural da ayahuasca, e não pelo uso ou pela condução de cerimônias entre os nawás, mas pela forma como tem sido produzida e vendida em uma escala quase industrial e, portanto, desrespeitosa:

Nawá pode fazer cerimônia, mas desde que não se aproprie. Porque tem gente mal-intencionada e que só faz para ganhar dinheiro, como forma de capitalismo. A ayahuasca é sagrada na sua forma de preparo. A gente não usa moedor de cana, ou, para passar rapé, não vai fazer no liquidificador para ir rápido. Tem uma espiritualidade, todo um rezo pra fazer (Rita Huni Kuin, 2022).

Rita explica também que, como tem muita gente explorando, “a gente não acha a planta nativa tão facilmente, então muitas vezes é plantada” (2022). De modo que, atualmente, já há uma domesticação dessa espécie, como consequência da expansão incalculável da comercialização da ayahuasca, vendida em frascos de microdoses ou em litro, entre R$ 300 e R$ 3.000, conforme a concentração e a potência do chá.

O consumo se intensifica por meio de propagandas e publicizações de modos de ser espiritualmente elevados e conectados à natureza. Na internet, com a marcação #txai, encontram-se comentários e gravações de jovens, principalmente, que aderem a, literalmente, um kit de subjetividades (Vargas; Tavares, 2018) bastante diverso, que mescla ioga, budismo, misticismos variados, além da medicina indígena.

Portanto, a necessidade de cultivo do cipó não surpreende, tendo em vista toda essa demanda e divulgação multiplicada pelas diversas mídias. Todavia, como explica Anna Tsing (2015), a natureza humana é uma relação entre espécies, uma teia de interdependências, e, desse modo, a domesticação torna-se um processo de afeto mútuo, e o corpo Huni Kuin, assim como o cipó, o Nixi Pae, se transformam e se sedentarizam em parte.

A domesticação é geralmente compreendida como o controle humano sobre outras espécies. Que tais relações podem também transformar os humanos é algo frequentemente ignorado. Além disso, tende-se a imaginar a domesticação como uma linha divisória: ou você está do lado humano, ou do lado selvagem. (Tsing, 2015, p. 184)

Ultrapassando Preconceitos: as Mulheres e as Medicinas

Com tudo isso, as novas formas de uso e do ritual da medicina transgridem paradigmas com relação à vida e às atribuições das mulheres Huni Kuin, que, indômitas, confrontam o que Rita entende como a cultura patriarcal do seu povo. A artista percebe a influência da colonização dos brancos nas relações entre homens e mulheres, mas apenas como uma transformação dos modos tradicionais de domínio sobre o campo de atuação e poder de decisão da mulher.

Quanto ao ritual da ayahuasca, apenas recentemente as mulheres começam a conduzir as cerimônias, enfrentando a oposição de algumas lideranças masculinas e pajés mais antigos, como Gilberto Kaxinawá (2016 apudLopes, 2016), que argumenta: “As mulheres não aguentam o poder do chá [...] Elas não sabem realizar nosso ritual da forma certa, tudo que elas fazem é uma imitação”. Rita discorda radicalmente dessa posição e acredita que “muitas mulheres têm mais potencial do que homens. Reconheço a força dos homens, mas as mulheres podem ser mais” (2022).

As mulheres têm importante papel também no preparo de outras medicinas e conhecimentos curativos de ervas e plantas, como é o caso de Francisca, Buni, mãe da Rita, cacique e benzedeira, que já empreendeu a dieta do Muká (a planta mais sagrada da floresta) e é conhecedora das ervas medicinais, entretanto, ainda não é comum que ocupem a posição de pajés. Na aldeia Chico Curumim, por exemplo, a médica Nãke, dra. Carminha, como é apresentada, é muito considerada pelo trabalho e conhecimento sobre plantas medicinais, que aprende com seu pai durante a vida, mas não exerce o cuidado e a cura do espírito, que são atribuições do pajé Miguel em importantes rituais e festas tradicionais Huni Kuin.

Nãke pesquisa e cultiva no local mais de 300 tipos de espécies para diferentes problemas de saúde ou para a prevenção de doenças. Plantas que também agem para o fortalecimento do corpo e do espírito e até mesmo auxiliares para o melhor desempenho em atividades do dia-a-dia, como a substância do colírio Sananga, que aguça a percepção para a caça, além de tratar conjuntivite e outras doenças oculares. Com todo o conhecimento fitoterápico e a criação do jardim medicinal, as lideranças da aldeia investem no projeto Erva Perfumosa Ni Batani, sob a orientação de dra. Carminha e de Carlos Sales, agente de saúde e seu marido, para a destilação de ervas, criação de essências e óleos medicinais para comercialização.

Muitas histórias e mitologias Huni Kuin têm as mulheres como personagens principais e fundantes do seu mundo, a começar pela mulher jiboia. Ainda assim, Rita acredita que a colonização e as raízes patriarcais da organização social Huni Kuin delimitam o espaço de atuação da mulher, que, por sua vez, esforça-se para transpor essas divisas ao ocupar atribuições tradicionalmente masculinas ou transformando a tradição, ainda que nos seus espaços convencionais de atuação, corroborando a constatação de D’Ávila Neto e Jardim (2015), ao observar a autoridade patriarcal no Brasil: “as mulheres latino americanas se tornaram modernas sem abandonar a tradição” (2015, p.160) e isso implica a “reinvenção dos seus saberes, fazeres e artes” (D’Ávila Neto; Jardim, 2015), que funcionam desse modo como táticas de resistência cultural e reconhecimento social.

A Mulher de Barro: Entre o Ideal, O Real e o Transitório

As artes e tecelagens são alguns desses espaços, caracterizados pelo trabalho feminino em reinvenção na comunidade Huni Kuin e podem ser vislumbrados a partir da tela Mulher de Barro (Figura 3). Inspirada em uma artesã que trabalha com argila e faz jarros e moringas, desenhados com figuras humanas e com os Kenes, a geometria sagrada, a história conta que a artista vive com um sobrinho muito só que, um dia, passando por uma das obras, fala: nossa tia, que bonitos esses seus barros, se fossem mulher de verdade eu me casaria. A tia lamenta que sejam apenas objetos e o dia segue. A noite chega e uma mulher desconhecida se aproxima do rapaz, dizendo que ele tinha gostado dela e por isso vinha ficar com ele. Mas ele diz que não a conhece, e ela retruca, dizendo que sim, que ela é a mulher do barro e, como escutou o que ele disse, se transformou para casar-se com ele. E, assim, rapidamente, passaram a viver juntos, a caçar e a pescar com muito cuidado, porque, como a mulher não foi ao fogo antes de se transformar, podia se desfazer com o contato com a água. “Um dia, estavam caçando e começou a chover, correram para buscar abrigo ou para procurar algo para proteger a mulher, mas ela se molhou e, assim, se desmanchou” (Rita Huni Kuin, 2022).

Figura 3
Obra A Mulher de Barro de Rita Huni Kuin.

A tela de Rita expõe elementos dessa história acerca do casamento, das escolhas, da arte, dos afazeres do dia-a-dia e, também, em uma interpretação alegórica, sobre uma mulher, criada por outra mulher, que transforma a si própria ou o que se espera que seja e faça durante sua vida, moldada por uma forma definida e limitada. Ou, alternativamente, a própria criadora do artefato de barro, enquanto manuseia a argila, sonha e encanta, com sua artesania cósmica (Deleuze; Guattari, 1997) e com a força dos kenes, uma mulher independente para esposa de seu sobrinho solitário, que ama, trabalha e faz as próprias escolhas. A artesã imprime uma força tão urgente, que tudo acontece de modo impetuoso e sua criação não consegue manter aquele aspecto por muito tempo. E, assim, volta a ser terra, pronta para novo vir a ser.

Portanto, uma história e tela de pintura que insinuam uma mulher em transformação, transitando em espaços que não são tradicionalmente seus, como vem ocorrendo na contemporaneidade entre as mulheres Huni Kuin. Rita mesmo é uma referência sobre essa transição como mulher, e, provavelmente, a sua experiência entre mundos seja substancial neste processo. Circulando com sua arte, Rita encontra uma perspectiva para criticar e almejar mudanças sobre o aspecto patriarcal da sua cultura, e ainda para entender que ela e outras mulheres são a continuidade da sua ancestralidade, mas de uma forma diferente:

É bom a gente permanecer na aldeia, mas no tempo que a gente está vivendo, com essa mudança toda global, acho importante a mulher indígena reconhecer quem ela é. No sentido de ter a oportunidade de estudar, de buscar mais conhecimento. Porque na aldeia quando você nasce cresce e vive dentro da aldeia, querendo ou não você é submissa aos pais, e, quando casa, aos maridos. Na comunidade onde vivo a cultura é muito patriarcal, então as mulheres têm pouca oportunidade (Rita Huni Kuin, 2022).

Na sua vida pessoal, como a transgressora mulher de barro, Rita escolhe com quem vai se casar, a despeito da insatisfação que isso causa a sua família. Pela tradição, ainda normalmente adotada, os casamentos são arranjados pelos pais, que escolhem as qualidades do bom marido: trabalhador, bom caçador e outras, à revelia dos interesses da futura esposa. No caso de Rita e Abraão, Shane, a tecnologia do telefone celular é o meio por onde o casal revoluciona a tradição matrimonial radicalmente:

Conheci o Abraão pela internet e fomos morar juntos e estamos aqui vivendo nossa vida, diferente da cultura. A cultura a gente não deixa de praticar. A língua, a arte, a dança, mas o modo de viver, como diz uma parenta kuaiampi: eu posso ser tudo aquilo que vocês são sem deixar de ser o que eu sou (Rita Huni Kuin, 2022).

Na cidade do Jordão, toda a população Huni Kuin usa os aparelhos celulares, e, como em todo o mundo, os jovens especialmente. Nas aldeias, por enquanto, ainda não há captação de sinal, mas, segundo Bane, irmão de Rita, na aldeia Chico Curumim, em breve, será possível acessar esta tecnologia, transformando, sem dúvida, o corpo-paisagem Huni Kuin, os rituais cotidianos e o refúgio que Rita encontra na floresta:

As pessoas falam: ah vocês vivem lá na floresta, tem que morar na maloca, mas estamos em 2022, no século XXI. Se me mandar lá pra mata, viro da mata, como tem que ser, mas aqui também estou como tem que ser. Gosto de estar na mata ou na cidade. Na vida da aldeia, a gente não tem estresse de trabalho, da tecnologia, não estamos nem ligando, a gente nem tá se importando com quem tá ou não mandando mensagem. Toma banho no rio, vai pra mata, dorme, acorda [...] na cidade às vezes é só estresse (Rita Huni Kuin, 2022).

E a vida de Rita e Shane na cidade, apesar de pequena e tranquila, é realmente agitada. A conexão com o telefone e o computador são fundamentais para o trabalho que vêm desenvolvendo juntos ou, muitas vezes, separados por longas viagens. Rita e Shane convivem há alguns anos, têm uma filha de três anos, chamada Yanai, mas vêm a se casar apenas em dezembro de 2022, em uma cerimônia tradicional Huni Kuin, com a presença da família de ambos e com o detalhe de ser registrada em uma gravação para um documentário sobre casamentos indígenas, produzido por uma plataforma digital de transmissão. Sendo assim, a vida pessoal e profissional, a tradição e a tecnologia, e ainda as relações entre homem e mulher se fundem em uma obra aberta e atemporal, transformando as matérias constituintes de um costume matrimonial secular.

Uma mudança provocada não só pelas ambições e escolhas pessoais e afetivas de um jovem casal, especialmente de uma mulher, que sente a urgência de debelar as condições consideradas patriarcais de seu povo, mas também por meio do consumo de tecnologias de comunicação, que une o casal, ao se conhecer, e que também, de certo modo, o incentiva a realizar a celebração do casamento para registro e divulgação da cerimônia tradicional em grande mídia. Mudanças que podem parecer mera submissão aos modos de vida nawá, especialmente em relação à cultura midiática e toda a sua necessária exposição, que Mbembe (2021) considera um retorno ao animismo, com o culto a si mesmo em lugar da expressão de cultos ancestrais, mas que também evidenciam as transformações intencionais da ancestralidade, que criam passagens e espaços para a mulher e para a divulgação dos trabalhos artísticos de Rita sobre as tradições e a cosmovisão Huni Kuin.

Aspectos paradoxais e inerentes às inevitáveis mudanças dos tempos e da vida, que, todavia, não criam necessariamente situações subalternas, mas cenários vulneráveis a um pensamento e modos de ser dominantes no mundo. Como a suscetível mulher de barro, ainda não queimada no forno, homens e, especialmente, mulheres Huni Kuin terrexistem com a união de folhas, palhas e fibras, moldando resistências e (re) existências em forte adobe.

A Mulher na Aldeia: a Arte e a Resistência da Alimentação Sutil

No entanto, toda essa nova escultura feminina, representada pela mulher de barro e manifesta na vida da própria Rita, não ocorre sem questionamentos entre as mulheres da comunidade, as quais, por vezes, interpelam a artista, que se posiciona a respeito da importância de cada uma nos seus espaços de ação e de vida, da seguinte forma:

O fato de ser artista, de estudar e ter graduação não me faz melhor que ninguém. Sabe por que? Porque cada pessoa tem seu dom e seu trabalho. Você é muito bonita e sábia dentro da floresta e essa é sua área. Cada uma se divide pra fazer um trabalho diferente. Eu estou saindo, buscando outras coisas e você é guardiã da floresta, com nossa medicina, nosso artesanato, nossos cantos, nossa voz, ocupando este espaço que também é importante. É importante você estar aqui (Rita Huni Kuin, 2022).

As mulheres na aldeia são responsáveis, por exemplo, pela alimentação em praticamente todas as suas etapas. A coreografia cotidiana e o tempo dispendido para a alimentação não estão marcados “somente pelos gestos do corpo que vão transformando os ingredientes em cozidos” (D’ Ávila Neto; Jardim, 2015, p. 164) no ritmo dos fogões a lenha. Os movimentos são múltiplos, simultâneos, anteriores e posteriores ao ato de comer. A refeição em si é compartilhada com a família da seguinte forma (Figura 4): as mulheres e crianças reunidas em um espaço ou maloca (assim sendo, as mulheres concomitantemente se alimentam e cuidam dos filhos) e os homens em outro lugar ou casa, fazendo a refeição, sentados no chão, em uma formação circular, e com bastante confraternização.

Figura 4
Mulheres, crianças e fogão a lenha. Refeição matinal em casa de Ayani e Bane.

Em algum momento do dia, as mulheres vão ao rio para lavar as panelas e pratos, que, vale sublinhar, não são mais de cerâmica artesanal, mas de alumínio, de plástico ou de outros materiais industrializados, adquiridos na cidade, como também a esponja e o sabão para limpeza. Com isso, a função da artesã de barro vai se desvanecendo nos dias atuais e necessariamente moldando um outro corpo-paisagem da mulher, como efeito do consumo desses produtos. Observa-se também a possível iminência de uma questão ambiental, sobre a qual um dia os Huni Kuin podem precisar se ater, relacionada à química do detergente ou sabão, ainda que biodegradável, jogado diretamente no rio Jordão, o qual abriga mais de 20 aldeias em crescimento populacional.

Na aldeia Chico Curumim, cada família tem o seu roçado, que, inicialmente, é preparado pelo homem para o plantio. As diversas espécies que compõem a dieta Huni Kuin são: mandioca, banana, mamão, melancia, cana-de-açúcar, amendoim, feijão, açaí, pupunha, batata, cará e outras plantas, semeadas em roçados de terra firme (Bai Ku In) ou em praias do rio (maxi baí) (Kaxinawá, 2015). Mas são as mulheres que acompanham a roça e trabalham no momento de colheita.

Elas vão sempre acompanhadas umas pelas outras, jamais sozinhas, às vezes auxiliadas por um homem, porque é um trabalho muito árduo e que demanda uma força excepcional. As mulheres carregam e equilibram em terrenos íngremes cerca de 30 quilos em uma bolsa, que possui uma alça central mais alongada para apoiar na testa e, assim, dividir o peso.

A alimentação básica e cotidiana tem a mandioca muito presente, tanto no alimento cozido, quanto na farinha usada em um tipo de farofa de banana. Na cidade compram-se alimentos processados e carnes. Nas aldeias, também há consumo de produtos industrializados, mas em quantidade bem menor. Lá, além dos roçados, há criação de alguns animais e a pescaria pela técnica do tinguê, muito empregada para a pesca de surubim, pirapitinga e outras espécies da região. Com a circulação do dinheiro e a oferta do produto, as comunidades também compram o pescado de um peixeiro que eventualmente passa de barco.

Figura 5
Troncos no rio Jordão à espera das chuvas para serem transportados pelo rio.

Em relação à caça, hoje em dia, há uma carência de animais de maior porte na floresta e proximidades das aldeias, como consequência da ação ilegal de madeireiros e caçadores na região (Figura 5). O comércio de madeira é proibido e, inclusive, os caminhões que transitam pela cidade trazem adesivos que alertam sobre essa ilegalidade, mas o esquema ilícito e violento também encontra seus meios e, além de afugentar os animais, segundo o cacique geral do Jordão, Siä Huni Kuin, José Osair Sales (2011), também afasta e oprime os chamados “brabos”, população Huni Kuin que ainda evita contato.

Com isso, crescem os rebanhos nas aldeias do Jordão e, no caso da aldeia Chico Curumim, a criação de aves. E, sendo assim, nota-se mais uma vez a contingência de domesticação interespécie (Tsing, 2015), causada por uma relação de exploração ambiental para consumo externo à aldeia, que vai transformando o corpo Huni Kuin, suas interações e constituições de paisagens.

Para serem consumidas aos poucos, as carnes de caça são os únicos alimentos sensivelmente salgados na dieta Huni Kuin, porque o sal conserva o produto, substituindo a defumação, tradicionalmente empregada. No mais, o paladar é muito sutil tanto em relação ao sal, quanto ao doce. No roçado, na aldeia Chico Curumim, um mamão, que, para mim, estava perfeito para o consumo, foi considerado já estragado pelas mulheres da aldeia. A banana da terra também é consumida verde, nesta perspectiva, junto à farinha de mandioca, enquanto a usada para a preparação do mingau dessa fruta é mais doce. Outro alimento com sabor mais acentuado, entre a doçura da garapa de cana e um azedinho da fermentação, é a Mabesh Muka, uma espécie de cerveja, como foi denominada, muito saborosa e feita com a mandioca.

A sutileza do sabor, o plantio e a própria caça dos alimentos conectam-se a uma delicadeza do corpo-paisagem e da arte-vida Huni Kuin, que prevalece sobre a intoxicação e o envenenamento do corpo, ofertado pelos alimentos industrializados. A forma de se alimentar e o paladar sutil ainda resiste às influências dos modos de alimentação nawá, desde a colonização do ciclo da borracha e a vida no cativeiro, até hoje em dia, diante do convívio frequente com os nawás na cidade do Jordão e, igualmente, durante viagens a trabalho. Nas festas e rituais de passagem e de cura, tais como a dieta do Muká, ou a preparação corporal para a ingestão da ayahuasca, e ainda a dieta de duas semanas para a realização do Nixpu Pima (batismo), a limitação do regime, os rezos empregados durante o cozimento e a restrição ao paladar de salgados ou doces torna evidente a relação entre a moderação ou o controle do consumo de alguns alimentos e o fortalecimento e o refinamento da sensibilidade do espírito.

Uma receita rica em energia vital e de “capacidade de sintonia com as múltiplas espécies vivas que habitam o universo” (Mbembe, 2021, p. 105), que as mulheres Huni Kuin seguem à risca, possibilitando desenvolver a inteligência corporal, o pensamento do corpo (Deleuze, 2002) e a sensibilidade às magnitudes singulares que circulam no ambiente, no mundo e no cosmos. E, todavia, assim, resistir também à captura, à modelagem do ser-consumidor do capital e de seus rastros tóxicos, inclusive alimentares, que contribuem para um processo denominado brutalismo, “que tanto tem por alvo os corpos, os nervos, o sangue e o cérebro dos humanos quanto as entranhas do tempo e da terra” (Mbembe, 2021, p. 11).

Tenho ainda em mente a dimensão molecular e química deste processo. Não será a toxidade, isto é, a multiplicação de produtos químicos e resíduos perigosos, já uma dimensão estrutural do presente? Tais substâncias e resíduos (incluindo os eletrônicos), não atacam apenas a natureza e o ambiente (o ar, os solos, as águas, as cadeias alimentares), mas também os corpos (Mbembe, 2021, p. 10).

O brutalismo, como um processo do capitalismo, para Mbembe (2021), dialeticamente, cria destrutivamente os seres e permeia processos psicossociais e ambientais com seus efeitos insalubres e patológicos. Desenvolvem-se corpos-paisagens intoxicados e sintéticos, inclusive pelas suas extensões tecnológicas, que já não pressentem, que não se defendem e se tornam vulneráveis a doenças tão físicas quanto psíquicas e sociais, como se observa hoje, de modo contundente, no Brasil, com relação à rendição de parte da população a uma realidade fabricada e paralela, desconexa e incoerente, divulgada principalmente em redes sociais e em pregações de algumas igrejas, tais como: a terra plana, o desejo de democracia pela via da ditadura militar e o negacionismo nos seus mais diversos aspectos, resultando em descalabros coletivos, como pessoas pobres defendendo o direito dos ricos de explorar a si próprios pobres, negros empunhando bandeiras racistas, mulheres com discursos misóginos, mesmo indígenas contra os povos originários e assim por diante, em uma sucessão cinética de autoflagelo.

Considerações Finais

A alimentação do povo Huni Kuin, dessa forma, também integra os elementos de resistência à colonização da cultura dominante, junto às matérias-forças da sua arte, da Mulher Jiboia e da Mulher de Barro e com a potência da tradição e da floresta. Com isso, os agenciamentos desenvolvidos a partir da arte de Rita Huni Kuin, além das suas próprias ideias e contribuições, manifestam tanto a ação decidida e fecunda do povo Huni Kuin para a retomada dos seus conhecimentos, cultura e práticas ancestrais, quanto as transformações decorrentes de um Novo Tempo de intercâmbios com outro mundo. Um mundo dominante e capitalista, concentrado no maior controle e domínio sobre as subjetividades, sobretudo através dos dispositivos midiáticos da noopolítica e da noopolítica do consumo, e reforçados pelo brutalismo, que cria suscetibilidades aos corpos-paisagens, inclusive dessa população, que, assim, vem (re) existindo em fricção, conflitos, adequações e permeabilidades com a sociedade de consumo nawá.

Mas a grande transformação no mundo Huni Kuin, ocasionada pelo consumo, desde o período de colonização até hoje, como observa em uma conversa informal a irmã de Rita, Yaka, Edilene Sales Kaxinawá, também artista talentosa, é que seu povo perde a capacidade de se comunicar com os outros animais e entidades da natureza, a partir do contato com os nawás, com o uso de roupas, de produtos diversos e de alimentos industrializados. E essa comunicação é o fundamento e alicerce de toda a sabedoria e cosmogonia Huni Kuin. Foram eles, os animais, os encantados e a floresta, que ensinaram a cantar, a plantar, a usar a força das geometrias sagradas dos Kenes, a conhecer as propriedades das plantas medicinais, o feitio do Nixi Pae e muito mais. Alguns desses conhecimentos se perdem nos tempos das correrias e do cativeiro, mas outros tantos prevalecem com a transmissão oral, também com os registros escritos e gravados que vêm sendo produzidos, além da divulgação das próprias artes e medicinas Huni Kuin. Um desses saberes, muito especial no que diz respeito às atribuições femininas dessa comunidade e à prosperidade econômica das famílias, é a tecelagem. E quem ensinou foi a aranha, mas essa é outra história e outra pintura.

Agradecimentos

A toda a família Huni Kuin do Jordão e da Aldeia Chico Curumim, à floresta e seus ensinamentos, à CAPES pela bolsa de pesquisa e ao apoio do CNPQ com a bolsa de produtividade em pesquisa - PQ2 - do professor/pesquisador Celso Sánchez Pereira.

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  • 1
    - As citações diretas de Rita Huni Kuin (2022) referem-se a entrevistas concedidas pela artista e coautora à pesquisadora e, por isso, não há a identificação de páginas para consulta. Trata-se de um arquivo pessoal.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Maio 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    16 Fev 2024
  • Aceito
    24 Ago 2024
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