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População e mudança climática: dimensões humanas das mudanças ambientais globais

RESENHA

População e mudança climática: dimensões humanas das mudanças ambientais globais* * HOGAN, D. J.; MARANDOLA Jr., E. (Orgs.). Campinas: Núcleo de Estudos de População (NEPO/UNICAMP), 2009, 292 p. ISBN 978 85-88258-12-9

Rafael D'Almeida Martins

Doutorando em Ambiente & Sociedade, Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Autor para correspondência Autor para correspondência: Rafael D'Almeida Martins Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM) Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Rua dos Flamboyants, 155 – Cid. Univ. Zeferino Vaz, Campinas – SP CEP 13083-867, Brasil E-mail: rafael@cepps.org.br

As mudanças climáticas passaram em curto espaço de tempo para o centro do debate público como o maior desafio do séc. XXI (GIDDENS, 2008, 2009). Apesar de cientistas expressarem preocupações com o aquecimento global há várias décadas, tem sido difícil para os governos e a população em geral encarar o assunto com a devida seriedade, dados a complexidade do tema e o caráter abstrato e incerto de muitas dessas mudanças e seus conseqüentes impactos.

O avanço da ciência do clima e a contundência dos dados divulgados no último relatório do Painel Intergovernamental para a Mudança do Clima (IPCC em inglês; SOLOMON et al., 2007; PARRY et al., 2007; METZ et al., 2007) somados aos esforços de Al Gore com o filme "Uma Verdade Inconveniente" (direção de Davis Guggenheim, 2006) contribuíram para elevar a consciência pública sobre os perigos do aquecimento global. A coincidência (ou não) de diversos desastres também ajudou. Do dia para a noite, o furacão Katrina transformou New Orleans em ruínas, no país mais rico e poderoso do mundo; na Europa, não menos rica e poderosa, uma onda de calor matou mais de 30.000 pessoas em 2003. Mesmo que esses episódios não tenham tido relação direta com a mudança climática, foram sinais visíveis do poder da natureza e do tamanho de nossas vulnerabilidades, alertando para o fato de que tempos piores poderão estar por vir.

No centro do debate está o comportamento humano que, por meio de diversas atividades, gera emissões crescentes de CO2, CH4, e de demais gases de efeito estufa. Apesar da natureza antropogênica da discussão, as ciências humanas ficaram à margem do debate científico durante muitos anos. Mesmo que de maneira tardia em relação às ciências naturais e exatas (DRUMMOND, 2006; HOGAN, 2007), pesquisadores das ciências humanas dedicaram-se à compreensão de atividades humanas que levam às mudanças ambientais globais e como elas variam ao longo do tempo, espaço e demais escalas, como forma de prever as conseqüências e os impactos dessas mudanças para agricultura, saúde e economia, por exemplo.

No Brasil, somente nos últimos anos verifica-se um corpo crescente de atividades de pesquisa na direção do estudo das dimensões humanas das mudanças climáticas (HOGAN; TOMALSQUIM, 2001; HOGAN, 2007). Tais fatos, entre tantos outros, são tratados no capítulo introdutório "População e mudanças ambientais globais" do livro "População e mudança climática: Dimensões humanas das mudanças ambientais globais" (Núcleo de Estudos de População – NEPO/UNICAMP, 2009, 292 p.) organizado por Daniel Joseph Hogan e Eduardo Marandola Jr, ambos da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). O livro contribui com o debate fornecendo elementos para as ciências humanas pensarem o desafio das mudanças climáticas a partir de uma perspectiva populacional. Por meio de um rico repertório de abordagens teóricas e metodológicas distribuídas ao longo de seus capítulos, o livro busca cobrir algumas das diversas dimensões humanas das mudanças climáticas baseando-se na contribuição de pesquisadores de disciplinas como demografia, sociologia e geografia, dentre outras, preocupados com a relação entre ambiente e população.

O livro está dividido em três partes. Na primeira, composta por três capítulos, os autores apresentam elementos teórico-metodológicos para a análise da vulnerabilidade socioambiental, extremos climáticos e desastres naturais. Em "Tangenciando a vulnerabilidade", Marandola Jr. (p. 29-52) ressalta a aplicação variada do conceito de vulnerabilidade para operacionalizar a pesquisa das dimensões humanas, chamando a atenção para a necessidade de se discutir esse e outros conceitos com precisão. A partir de uma abordagem interdisciplinar, o autor promove um diálogo entre conceitos-chave, como os de vulnerabilidade, adaptação e resiliência, para pensar a relação população-ambiente no âmbito da mudança climática em uma sociedade contemporânea permeada por risco e perigos.

No capítulo "Mudanças climáticas, extremos atmosféricos e padrões de risco a desastres hidrometeorológicos", Nunes (p. 53-73) mostra que, apesar do alto grau de incerteza que cerca a relação entre as mudanças climáticas e os eventos extremos, as alterações no ambiente que não levam em conta as especificidades dos processos físicos têm contribuído sistematicamente para o aumento do número de desastres. A autora destaca a característica multiescalar dos desastres naturais e a dificuldade de propor respostas efetivas dadas a complexidade desses fenômenos e suas interações com elementos físicos e sociais. Assim, por tratar-se de um processo contínuo e construído diariamente, o combate aos desastres naturais deve levar em conta a mudança climática e a vulnerabilidade das populações para uma gestão do risco que minimize os impactos desses eventos na economia e no bem-estar humano.

Alves (p. 75-105), em "Metodologias de integração de dados sociodemográficos e ambientais para análise da vulnerabilidade socioambiental em áreas urbanas no contexto das mudanças climáticas" aborda essas metodologias de integração de dados sociodemográficos e ambientais para a análise da vulnerabilidade socioambiental, utilizando técnicas de geoprocessamento a partir de quatro estudos de caso da Metrópole de São Paulo. Destaca-se, nessas pesquisas, a dificuldade de se integrar diferentes dados (sociodemográficos e ambientais) e o desafio de converter variáveis e unidades que, a princípio, não são compatíveis. Entretanto, com cenários de mudança climática e aumento de intensidade e freqüência de eventos extremos, o avanço no desenvolvimento dessas metodologias para identificação e caracterização dessas áreas vulneráveis tornam-se uma prioridade para os estudos sobre população e ambiente.

A segunda parte do livro, intitulada "População e Desenvolvimento", também conta com três trabalhos que trazem a discussão sobre população e mudança climática para contextos específicos. Em "População, consumo e mudança climática", Mello (p. 109-135) discute o binômio consumo e mudança climática, apresentando alguns métodos e modelos de inter-relação entre população e ambiente. Por meio de uma densa argumentação teórico-metodológica, o autor busca mostrar como diferentes estilos de vida, padrões de produção e consumo e escolhas individuais articulam-se e desdobram-se em mudanças globais.

Carmo e Silva (p. 137-157), no capítulo "População em zonas costeiras e mudanças climáticas: redistribuição espacial e riscos", chamam a atenção para a necessidade de medidas de adaptação e redução de vulnerabilidades nas zonas costeiras do Brasil, como conseqüência dos prováveis impactos da mudança climática nessas regiões, especificamente a elevação do nível do mar e a variação de ocorrência de eventos extremos. Tendo em vista esses riscos, os autores discutem a zona litorânea brasileira e apontam caminhos para avançar na identificação e caracterização de quem reside nessas áreas. Ressaltam a necessidade de enfrentar esse desafio, levando-se em conta a dimensão espacial, social e demográfica dessas regiões.

Em "Os potenciais efeitos das mudanças climáticas sobre as condições de vida e a dinâmica populacional no Nordeste Brasileiro", Queiroz e Barbieri (p. 159-186) discutem a vulnerabilidade socioeconômica em relação à mudança climática das populações residentes nessa região, a segunda mais populosa e também a mais pobre, em termos de estratégias de adaptação e capacidade adaptativa. Espera-se, a partir da análise dos dados, que a região nordeste seja afetada negativamente pela mudança climática, diminuindo o ritmo de crescimento econômico de estados e municípios nordestinos, aumentando, assim, a necessidade de políticas públicas específicas para a região. A pesquisa integrou modelos econômicos e demográficos para criação de cenários de fluxos migratórios e redistribuição populacional até 2050. Cenários dessa natureza, de longo-prazo, são escassos na literatura por conta da dificuldade de combinar variações climáticas com variáveis econômicas e demográficas, porém mostram-se fundamentais para o planejamento de estratégias e políticas de adaptação.

Estimativas recentes apontam que desde 2008, pela primeira vez na história, mais da metade da população mundial vive em áreas urbanas (UNFPA, 2007). Dessa forma, pensar e analisar as cidades e o processo de urbanização sob a perspectiva da mudança climática torna-se mandatório neste novo contexto. A terceira parte do livro, "Urbanização e mudanças climáticas", vai nessa direção apresentando um conjunto de análises sobre áreas urbanas. O capítulo "Perspectivas para a adaptação frente às mudanças ambientais globais no contexto da urbanização brasileira: cenários para os estudos de população", de autoria de Ojima (p. 191-204), trata da dificuldade de incorporar os cenários de mudança climática na agenda de políticas urbanas tanto em termos de mitigação quanto de adaptação. Em relação às cidades brasileiras, o autor mostra a situação preocupante de carências de infra-estrutura urbana (como, por exemplo, na cobertura de abastecimento de água e esgoto) combinadas com altos níveis de vulnerabilidade social, econômica e ambiental. Dessa forma, a necessidade de adaptação coloca-se como uma pressão a mais em sistemas urbanos que já se encontram estressados.

Vargas e Freitas (p. 205-222), no capítulo "Regime internacional de mudanças climáticas e cooperação descentralizada: o papel das grandes cidades nas políticas de adaptação e mitigação", buscam, no regime internacional do clima, elementos para discutir a adesão de governos subnacionais em uma cooperação internacional descentralizada na questão da mudança climática. Essa abordagem urbana para a governança do clima está intrinsecamente relacionada à criação e ao desenvolvimento de redes transnacionais de governos locais que, apesar de relativamente recentes e ainda insipientes no mundo em desenvolvimento, apresentam grande potencial de inovação em termos de políticas de mitigação e adaptação.

Em "Mudanças climáticas: entre a coesão e a fragmentação dos assentamentos humanos, os conflitos e as transformações da paisagem na Baixada Santista", Young (p. 223-247) apresenta um estudo de caso sobre a forma de ocupação dessa região, argumentando que mudanças de paisagens alteram o ambiente e, conseqüentemente, o clima. Trata-se de uma abordagem que preenche uma lacuna na literatura, que carece de estudos que integrem a análise da paisagem urbana com a gestão integrada da cidade em termos de infra-estrutura, logística e eficiência energética.

O capítulo de Assis e Abreu (p. 249-275) "Mudanças climáticas locais no município de Belo Horizonte ao longo do século XX" discute as relações entre o processo de urbanização e o clima na capital mineira. A partir da análise de séries históricas de parâmetros meteorológicos do município, os autores mostram alterações climáticas locais provocadas pela urbanização e pelo aumento demográfico, destacando a participação tímida dos estudos climáticos no planejamento urbano, apesar do clima ser uma das dimensões mais importantes do ambiente citadino.

Por fim, no posfácio "Mudanças climáticas e cidades: contribuições para uma agenda de pesquisa a partir da periferia", Costa (p. 279-283) defende a necessidade de uma agenda de pesquisa sobre cidades e mudanças climáticas que seja referenciada no debate internacional, apesar do pouco acúmulo e da baixa incidência do tema nos estudos urbanos brasileiros. Para isso, segundo a autora, faz-se necessário reconhecer desigualdades presentes na sociedade, ter clareza do papel do país na economia globalizada, além de desafiar pressupostos e conceitos que embasam a atual regulação urbanística e ambiental das cidades.

A compreensão mais robusta da mudança climática, a partir de uma perspectiva populacional, demanda conhecimentos oriundos do diálogo entre as dimensões climáticas, ambientais, sociais, políticas, econômicas e demográficas que devem ser relacionadas a processos e políticas nos níveis locais, regionais e internacional. O livro em questão traz uma importante contribuição à comunidade científica brasileira interessada nas dimensões humanas das mudanças climáticas e oferece um cardápio cheio de abordagens, conceitos e métodos, além de agendas de pesquisa a serem perseguidas pelos estudos em ambiente e sociedade e população e ambiente.

Recebido: 5/1/2010. Aceito: 22/1/2010.

  • DRUMMOND, J. A. A Primazia dos Cientistas Naturais na Construção da Agenda Ambiental Contemporânea. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 21, n. 62, p. 5-25, out. 2006.
  • GIDDENS, A. The Politics of Climate Change Cambridge: Polity Press, 2009.
  • GIDDENS, A. The Politics of Climate Change London: Policy Network, 2008.
  • HOGAN, D. J.; TOMALSQUIM, M. T. (Orgs.). Human Dimensions of Global Environmental Change. Brazilian Perspectives Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Ciências (ABC), 2001.
  • HOGAN, D. J. Human dimensions of global environmental change. Ambiente & Sociedade, v. 10, n. 2, p. 161-166, jul./dez. 2007.
  • SOLOMON, S. et al. Climate Change 2007 The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Fourth Assessment Report of the IPCC Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
  • PARRY, M. et al. Climate Change 2007 Impacts, Adaptation and Vulnerability. Contribution of Working Group II to the Fourth Assessment Report of the IPCC Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
  • METZ, B. et al. Climate Change 2007 Mitigation of Climate Change. Contribution of Working Group III to the Fourth Assessment Report of the IPCC Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
  • UNITED NATIONS POPULATION FUND (UNFPA). State of World Population 2007. Unleashing the Potential of Urban Growth Nova York: UNFPA, 2007, 108 p.
  • Autor para correspondência:
    Rafael D'Almeida Martins
    Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM)
    Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
    Rua dos Flamboyants, 155 – Cid. Univ. Zeferino Vaz, Campinas – SP
    CEP 13083-867, Brasil
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    HOGAN, D. J.; MARANDOLA Jr., E. (Orgs.). Campinas: Núcleo de Estudos de População (NEPO/UNICAMP), 2009, 292 p. ISBN 978 85-88258-12-9
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Abr 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009
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