Resumo
Este artigo avança nas estratégias de nomeação da água e do fogo na gramática da produção canavieira paulista - temáticas que ganham centralidade em regulamentações socioambientais direcionadas a essa produção na primeira década dos anos 2000. O universo empírico da pesquisa situa-se na região administrativa de Ribeirão Preto, cujas fronteiras abrigam a forte presença de usinas e canaviais, além da abundância hídrica de águas superficiais e subterrâneas. A hipótese é de que essa gramática opera estrategicamente respondendo a críticas socioambientais; ao passo que essas nomeações assumem diferentes facetas a depender de disputas e situações concretas. Como recursos metodológicos, destaca-se a revisão bibliográfica, o levantamento e análise documental, entrevistas semiestruturadas com representantes de usinas e associações de fornecedores de cana, bem como o acompanhamento de lives promovidas pela CETESB e pela CanaOnline.
Palavras-chave:
Ruralidades e meio ambiente; política e meio ambiente; conflitos socioambientais; meio ambiente e justificação; água e queimadas
Abstract
This article takes a closer look at the strategies for naming water and fire in the grammar of sugarcane production in São Paulo - themes that gained centrality in socio-environmental regulations aimed at this production in the first decade of the 2000s. The empirical universe of the research is located in the administrative region of Ribeirão Preto, whose borders are home to a strong presence of mills and sugarcane plantations, as well as an abundance of surface and underground water. The hypothesis is that this grammar operates strategically in response to socio-environmental criticism, while these names take on different facets depending on concrete disputes and situations. Methodological resources include a literature review, a survey and documentary analysis, semi-structured interviews with representatives of the sugar mills and sugarcane suppliers’ associations, as well as the monitoring of lives promoted by CETESB and CanaOnline.
Keywords:
Ruralities and the environment; politics and the environment; socio-environmental conflicts; environment and justification; water and burning
Resumen
Este artículo profundiza en las estrategias para nombrar el agua y el fuego en la gramática de la producción de caña de azúcar en São Paulo, temas que ocuparon un lugar central en las regulaciones socioambientales dirigidas a esta producción en la primera década de 2000. El universo empírico de la investigación se localiza en la región administrativa de Ribeirão Preto, en cuyas fronteras hay una fuerte presencia de ingenios y plantaciones de caña de azúcar, así como abundancia de aguas superficiales y subterráneas. La hipótesis es que esta gramática opera estratégicamente en respuesta a las críticas socioambientales, mientras que estas denominaciones adoptan distintos ropajes en función de disputas y situaciones concretas. Los recursos metodológicos incluyen una revisión bibliográfica, una encuesta y análisis documental, entrevistas semiestructuradas con representantes de los ingenios azucareros y asociaciones de proveedores de caña, así como el seguimiento de las vidas promovidas por CETESB y CanaOnline.
Palabras-clave:
Ruralidades y medio ambiente; política y medio ambiente; conflictos socioambientales; medio ambiente y justificación; agua y quema
Introdução
O objetivo deste artigo é analisar as formas de nomeações da água e do fogo na gramática da produção canavieira paulista contemporânea. Para tanto, o estudo lança em perspectiva as seguintes indagações: quais os comportamentos, estratégicos ou não, dos capitais atrelados ao setor sucroalcooleiro diante do debate público sobre a necessidade de regulação socioambiental de suas atividades? Historicamente identificado como agente importante na contaminação difusa de águas superficiais e subterrâneas, bem como na degradação de solos e poluição do ar via prática de queimadas desde meados da década de 1980, como o setor rompeu as primeiras décadas do século XXI em relação às expectativas da esfera público-ambiental?
Para respondê-las, o artigo apresenta um estudo realizado no estado de São Paulo, o qual atende, desde os anos de 1970, pelo maior volume de cultivo de cana do país (CONAB, 2019). O universo empírico da análise está circunscrito ao principal território produtor do estado: a região administrativa de Ribeirão Preto. Situada no centro-leste paulista, ela é marcada pela forte presença de usinas de açúcar e etanol, também se destacando pelos importantes mananciais, dentre os quais estão as águas do Aquífero Guarani.
Embora não se esgote neste recorte temporal, o estudo enfatiza o primeiro decênio dos anos 2000, quando ocorreu a formulação de regulamentações socioambientais significativas no estado, como o Protocolo Agroambiental Paulista (São Paulo, 2007b; 2008) e o Zoneamento Agroambiental (ZAA) (São Paulo, 2009). O primeiro deles objetivou a implementação de diretivas técnicas voltadas à proteção de nascentes e matas ciliares e, sobretudo, à eliminação gradual da prática das queimadas nos canaviais. Já o ZAA pode ser considerado como um desdobramento do Protocolo, propondo a divisão do território estadual em diferentes áreas propícias à exploração da cana, utilizando como um dos critérios a situação dos recursos hídricos.
Metodologicamente, a pesquisa conta com revisão bibliográfica, levantamento e análise documental e o esforço de pesquisa de campo, com a realização de quatro entrevistas semiestruturadas, entre os anos de 2021 a 2022, com representantes de usinas e de associações de fornecedores de cana da região, bem como da Associação Brasileira do Agronegócio de Ribeirão Preto (ABAG/RP). Soma-se a estes recursos metodológicos o acompanhamento de lives sobre temas concernentes ao estudo, promovidas nos anos de 2021 e 2022 pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB) e pela Plataforma CanaOnline.
Para dar conta da hipótese de que a gramática em torno da água e do fogo mobilizada pelo setor canavieiro paulista assume diferentes facetas a depender de disputas e situações concretas e opera estrategicamente respondendo a críticas socioambientais, o artigo partiu de leituras não ortodoxas das investigações de Bourdieu (2008) acerca da linguagem e da aceitabilidade dos discursos, e da noção pragmática da crítica de Boltanski e Thévenot (2020) e Boltanski e Chiapello (2020). O diálogo com estes suportes analíticos foi empreendido dentro das fronteiras da experiência brasileira de inscrição da temática ambiental no escopo das sociabilidades rurais. Deste modo, longe de um terreno para aplicação de conceitos, a história agrária nacional e o território das relações de dominação em contexto regional foram os vetores empíricos determinantes para o alcance dos limites das abordagens e para a mobilização de outros aportes analíticos. Por isso, nesse diálogo ainda foram acrescidas outras pontes teóricas, demandadas pela natureza empírica de nossos achados.
O texto segue dividido em mais quatro tópicos. Na esteira de discussões mais amplas sobre a questão ambiental em âmbito global, comentamos, no próximo tópico, a entrada da noção de sustentabilidade - via regulamentações socioambientais - no contexto produtivo do setor sucroalcooleiro paulista. Os dois tópicos subsequentes mobilizam alguns aspectos dessas regulamentações visando avançar nas estratégias de nomeação desse setor, no que toca especialmente aos usos sociais da água e do fogo. Por fim, tecemos as notas conclusivas, remarcando os principais resultados apresentados e lançando-os em diálogo com os principais estudos tomados na interlocução do artigo.
A entrada da sustentabilidade na produção canavieira paulista
As regulamentações socioambientais voltadas ao setor sucroalcooleiro paulista foram construídas em meio a discussões mais amplas - temporal e espacialmente - sobre a moderna questão ambiental (Silva; Martins, 2010). Embora não caiba aos propósitos deste texto fazer uma revisão exaustiva sobre essa temática, faz-se necessário ressaltar alguns aspectos da emergência de uma questão ambiental global que desemboca na crescente regulamentação da exploração dos recursos naturais e reforça pautas relativas à noção - ou noções - de sustentabilidade nos territórios rurais do Brasil.
Nos meandros de um cenário firmado na aparição de diferentes problemas ambientais, novas preocupações concernentes à questão ecológica tomaram corpo em níveis global e local. No caso dos territórios rurais, a questão ecológica marca conversões de ordem analítica (Jollivet, 1998), simbólica (Carneiro, 2014) e política (McCormick, 1992), sublinhando que as sociabilidades rurais estão para além das fronteiras das práticas agrícolas, e revelando novos enquadramentos para a abordagem de temas como a gestão dos recursos terra e água, o desenvolvimento territorial sustentável, as mudanças climáticas, a preservação da cultura, entre outros.
A rigor, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo no ano de 1972, marca a entrada da problemática ambiental na agenda política internacional tratando sobre a poluição das águas e dos solos (Ribeiro, 2010). Desde então, toma corpo um discurso conciliador entre conservação ambiental e desenvolvimento econômico, concretizado no emprego da categoria de “desenvolvimento sustentável”, melhor apresentada no Relatório Our Common Future (WCED, 1987).
Essa leitura, que articula as dimensões política, social e econômica para analisar a crise ambiental, prevaleceu na década de 1990, com a Rio-92. Com o objetivo de estabelecer acordos internacionais que mediassem as ações antrópicas no meio ambiente e tratassem das mudanças climáticas, um conjunto de Convenções foi projetado visando, a partir da cooperação internacional, minorar os problemas ambientais mundiais (Ribeiro, 2010).
O Brasil, sede da Conferência, destacava-se internacionalmente pelo descaso com o meio ambiente, especialmente, acerca da devastação da floresta Amazônica pelo processo de extração de madeiras e queimadas ilegais, como os efeitos nas/para as mudanças climáticas. Esta temática era sensível não apenas aos debates da Rio-92, mas os alertas sobre os perigos das alterações climáticas provocadas pelo CO2 (dióxido de carbono) emitido pela queima de combustíveis fósseis ganharam centralidade com os relatórios do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC). Na esteira dessas evidências, foi firmado o Protocolo de Kyoto, no qual as nações industrializadas se comprometeram a reduzir suas emissões de CO2.
Em paralelo, o tema das águas também se consolidou como nova pauta internacional. No mesmo período, a Conferência Internacional sobre Água e Ambiente, realizada em Dublin no ano de 1992, firmava em sua Declaração princípios que balizam ainda hoje o desenvolvimento de políticas hídricas. No que concerne aos princípios elaborados na Conferência de Dublin, ressaltamos o “2 - O aproveitamento e gestão da água deve inspirar-se em uma abordagem baseada na participação dos usuários, dos gestores e dos responsáveis pelas decisões em todos os níveis” - e o “4- A água tem um valor econômico em todos os seus usos competitivos e deve ser reconhecida como um bem econômico” (ONU, 1992, p. 04, tradução nossa), que firmaram uma nova dinâmica de gestão e de enunciação da gestão hídrica no debate público-ambiental (Cardoso, 2022; Espinoza; Martins, 2021).
Efeito dessa emergente preocupação global, houve uma expressiva assimilação das demandas e pautas ambientais em âmbito nacional. Não à toa, no início dos anos 2000, questões relativas à preocupação ambiental estavam inseridas na agenda do setor sucroalcooleiro paulista, impulsionadas e mediadas pela Secretaria estadual do Meio Ambiente. Foi em meio aos esforços de ressignificação econômica, política e simbólica do álcool combustível - alçado à classificação de etanol (Gameiro, 2017) - que foram elaboradas regulamentações visando à sustentabilidade na atividade canavieira.
O Protocolo Agroambiental Paulista1, sintomática expressão dessa conjuntura, foi assinado em 2007 entre as Secretarias da Agricultura e Abastecimento (SAA) e do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (SMA-SP) e a União da Indústria da Cana-de-açúcar (UNICA). No ano seguinte, as mesmas Secretarias firmaram o Protocolo junto à Organização dos Plantadores de Cana da Região Centro-Sul (ORPLANA). Este protocolo insere-se no Projeto Etanol Verde, criado em 2007 como parte de um dos projetos estratégicos da SMA-SP (Regra; Duarte; Malheiros, 2013).
O Protocolo Agroambiental propôs, por meio da adesão voluntária de usinas e fornecedores de cana, um conjunto de diretivas voltadas à expansão “sustentável” da produção canavieira no estado. No corpo do documento, são elencadas justificativas para sua implementação, tais como: a relevância da atividade sucroalcooleira para o desenvolvimento econômico do estado; a necessidade de um planejamento de expansão sustentável; e, por fim, o estímulo ao uso de combustíveis de fontes renováveis (São Paulo, 2007b; 2008). Dentre suas diretivas, incluíam-se a proteção de nascentes e matas ciliares, o descarte adequado de embalagens de agrotóxicos e a implementação de planos técnicos de conservação do solo e dos recursos hídricos. Sua diretiva principal dizia respeito à eliminação gradual da prática das queimadas nos canaviais, com antecipação dos prazos estabelecidos pela lei estadual nº 11.241 de 2002, de 2031 para 2017 às áreas não mecanizáveis, e de 2021 para 2014, às mecanizáveis2.
A assinatura do Protocolo Agroambiental impulsionou a mecanização do corte da cana-de-açúcar, que dispensa a queima prévia. Destarte, o protocolo contribuiu para frear a reterritorialização das queimadas, mas não a expansão canavieira sobre novas terras e águas (Cardoso; Sabadin, 2021). No amparo dessa expansão, está a classificação do estado em diferentes áreas para a exploração da cana-de-açúcar, levando em conta a situação do solo e dos recursos hídricos, proposta no ZAA, também inserido no Projeto Etanol Verde (São Paulo, 2007a).
A classificação do ZAA considerou as “condições climáticas, qualidades do ar, relevo, solo, disponibilidade e qualidade de águas superficiais e subterrâneas, unidades de conservação existentes e indicadas, incluindo áreas de proteção ambiental e fragmentos florestais”, indicadas pelo Programa FAPESP de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade (Zoneamento Agroambiental…, online), bem como as ações programadas pelo PAE Aquíferos (São Paulo, 2011). Coube a ele, então, disciplinar - usando seu próprio termo - e organizar a expansão e ocupação do solo pelo setor sucroalcooleiro, além de subsidiar a elaboração de políticas públicas voltadas às questões relacionadas ao setor. Nesse sentido, conforme a Figura 1, o ZAA subdividiu o estado de São Paulo em: áreas adequadas, que correspondem a 26% da área total; adequadas com limitação ambiental, 45%; adequadas com restrições ambientais, 28%; e, por fim, 1% foi classificado como áreas inadequadas (Zoneamento Agroambiental…, online).
Além da divisão territorial, o ZAA propôs ainda disciplinar o uso da água no processamento industrial para atender as demandas de redução no consumo de água estipuladas pelo Protocolo Agroambiental, qual seja, assumir patamares de 0,7 ou de 1m³/t de cana processada, considerando as especificidades da localização da usina (São Paulo, 2014). A fim de atingir esse objetivo, algumas medidas foram adotadas pelas usinas signatárias, como: “o fechamento de circuitos e o reuso da água, a lavagem da cana crua e a seco e o aprimoramento de processos industriais” (São Paulo, 2014, p. 46). Tais medidas sugeriam que a redução da prática das queimadas conduziria à redução do uso da água no processamento industrial - ao menos por parte das usinas signatárias que, até o ano de 2013, representavam 86% das usinas do estado (São Paulo, 2014).
Nesse mesmo período, adensaram-se nas preocupações socioambientais sobre os recursos hídricos, notadamente, as águas subterrâneas do Aquífero Guarani. Surgiram novas regulações ambientais e projetos a nível multilateral - como o Projeto Sistema Aquífero Guarani3 (2003 - 2009) - e estadual, tal qual o PAE-Aquífero, lançado no mesmo período que o PAE-Etanol Verde.
Esta retrospectiva histórica dos debates e das preocupações público-ambientais fundamentadas na emergência da moderna questão ambiental, ainda que breve, nos fornece suportes para refletirmos sobre conversões estratégicas na gramática da produção canavieira paulista. E é sobre este cenário de novas produções discursivas que nos debruçamos a seguir.
Água
Nós não utilizamos água no setor agrícola para fazer irrigação. Nossa irrigação é proveniente do processo da extração da cana para o etanol. [...] Nós usamos e utilizamos água do setor de água residuária de uma parte da usina, mais a vinhaça. A nossa irrigação é com vinhaça, não é com água (representante da Usina 1, entrevista concedida em 26/05/2022).
Eu vejo a irrigação na cana-de-açúcar de forma muito interessante, como uma tecnologia que realmente pode favorecer o setor como um todo [...] e em relação ao uso sustentável da água, eu acho que mesmo em face ao olhar mundial para a sustentabilidade, eu acho que quando a gente mostra que vai demorar mais para renovar nosso canavial, que nós estamos sendo mais eficiente, que a gente pode fazer esse uso com eficiência [...] eu acho que quando a gente mostrar isso, a gente consegue a eficiência. Então eu vejo bastante espaço e mesmo em questão de sustentabilidade (CANAONLINE, representante do Centro de Pesquisa, 2021).
Tomando como referência as análises empreendidas por Silva e Martins (2010) de que a monocultura canavieira se firma e se sustenta sob bases singulares de exploração da força de trabalho e do meio ambiente - água e terra, em particular -, a assertiva sobre a “não utilização da água no setor agrícola para irrigação” chama atenção. Dados publicizados pelo Grupo de Irrigação de Cana-de-açúcar (GIC), pelo Grupo de Irrigação e Fertirrigação de Cana-de-açúcar (GIFC) e pelo próprio setor em live (CANAONLINE, 2021), permitem extrapolar as conhecidas impressões sobre usos da água nos espaços rurais e avançar sobre as construções discursivas do setor canavieiro paulista em torno da temática.
Com efeito, as falas dos representantes da Usina 1 e do Centro de Pesquisa demonstram como a temática das águas é um campo em disputa entre os próprios pares, e que, a despeito de terem posicionamentos discursivos divergentes no que concerne à irrigação da cana, ambos os agentes a praticam, seja com água ou água residuária. Nesse sentido, a problemática dos recursos hídricos pode ser aqui abordada em termos de prática de irrigação da cana e, em interface, em termos de diferenciação classificatória estratégica entre água e água residuária.
No escopo da diferenciação entre irrigar com água ou água residuária - e fundamentados no depoimento do representante da Usina 1 -, há a tentativa de delimitar um tipo de prática inserida em regramentos ambientais e de se situar em um espaço específico de produção desse recurso hídrico - a indústria. Amparado nas diretrizes estabelecidas pelo ZAA e pelo Protocolo Agroambiental, o qual propõe o fechamento do circuito de água industrial com a reutilização de parte desse recurso a partir da fertirrigação da lavoura em conjunto com a vinhaça, percebe-se uma prática dita ambientalmente sustentável e racional por atender às normativas estabelecidas pelo Estado.
Para usar água no setor industrial, com circuito fechado, nós temos outorga, eu não me lembro agora a quantidade, mas nós temos outorga. Vou te dar um exemplo, 1 milhão de m³ de água durante 24 meses. E eu tenho ano que utilizo mais, nos meses da safra, mas não utilizamos nem 50% desse volume. Hoje nós devemos utilizar uma média de 0,58 m³ de água por tonelada de cana moída. Então é muito pouco no quesito que lá dentro do Protocolo Agroambiental se tratava de 1 m³/t de cana moída. Então a gente está bem abaixo, quase 50% do objetivo dos planos que foram idealizados lá em 2007 (representante da Usina 1, entrevista concedida em 26/05/2022).
Reforçando a visão de sustentabilidade e de adequação de conduta, o representante pontua, inclusive, utilizar uma quantidade de água menor que a prevista no Protocolo Agroambiental, de 1m³/t de cana. Nesses termos, em diálogo com a perspectiva empreendida por Boltanski e Thévenot (2020), nos deparamos com a construção de uma ordem discursiva em torno do uso da água guiada, sobretudo, pela incorporação da crítica - figurada na respeitabilidade aos parâmetros numéricos estabelecidos pelo Protocolo Ambiental para consumo hídrico - e fundamentada em uma dimensão moral que vincula uma causa ao bem comum e distante dos interesses particulares - ao frisar, inclusive, um consumo inferior ao parâmetro determinado. É, por essa via, uma nova ordem cognitiva da agroindústria canavieira que se fundamenta em discursos estratégicos capazes de responder às críticas socioambientais desde a sua incorporação e a apropriação de dispositivos de justiça para, por conseguinte, se posicionar de modo ambientalmente sustentável no debate contemporâneo.
Em paralelo, a preocupação na quebra da produção de cana-de-açúcar devido às mudanças climáticas e à insegurança hídrica faz emergir, no início dos anos 2000, o projeto “Cana pede água”, que pretende divulgar os “benefícios da irrigação dentre os agentes do setor sucroenergético e da cadeia produtiva da cana” (Cana pede Água…, online). A idealização de uma prática de irrigação da cultura canavieira com água permanece, agora conduzido pelo GIFC4, com o propósito de aumentar a produção da cana sem, necessariamente, haver a expansão territorial e garantir, ainda, a longevidade do canavial. Sob esse olhar, e fundamentada em tais justificativas, a irrigação da cana-de-açúcar traria possíveis contribuições em termos ambientais e de sustentabilidade, além de superar as projeções de quebra de rendimento em função da seca e da crise hídrica.
Ao situarmos historicamente a construção do projeto “Cana pede água”, bem como a formação do GIC, deparamos com um dos pontos de tessitura concreta da questão ambiental, repercutindo pressões para a estruturação e elaboração de políticas ambientalmente sustentáveis voltadas aos recursos hídricos. Se por um lado o setor sucroalcooleiro, em conjunto com o Estado, idealizou um ordenamento legal que “disciplina” a ocupação do solo e o uso da água industrial, de outro lado há um movimento estratégico em via de superar a definição técnica hegemônica que delimita a necessidade de aplicação de água na cana-de-açúcar em locais com baixos níveis e/ou distribuição irregular de precipitação pluvial. Situa-se, nesses meandros, a mobilização de um novo discurso em torno da produção da cana-de-açúcar, também fundamentado no uso racional da água e no aparato técnico e científico, para alcançar, assim, a sustentabilidade requerida na contemporaneidade5.
Contudo, ainda que haja o movimento de algumas usinas e agentes econômicos interessados no emprego da água na produção agrícola, tal prática fica limitada em razão da insuficiência de legislações ou instrumentos jurídicos que, efetivamente, regulem o direito de uso desse recurso. Outrossim, há uma tentativa de “diversificar, mudar o conceito da questão da legislação, tentar mudar, para tentar atrair o pessoal de usina, tentar criar, tentar fazer para usar essa água da melhor forma. Como é a irrigação” (CANAONLINE, representante da Usina 2 e conselheiro GIFC, 2021). Na justificação desta proposta está o caráter positivo da irrigação, seja para o meio ambiente (como prática sustentável), seja para a economia - “Antes [a irrigação] era vista como não viável, que não compensa no Estado de São Paulo. Hoje a gente já está vendo que, de uma forma ou de outra, em determinados momentos, está sendo sustentável e está trazendo lucro” (CANAONLINE, representante da Usina 2 e conselheiro GIFC, 2021). Ademais, no que concerne à outorga dos direitos de uso da água, prevista na Lei 9.433/97, para o representante da Unica, ela figura em um instrumento com possíveis entraves para uma prática sustentável da produção agrícola e impeditivo para a rápida obtenção de um licenciamento ambiental.
Agora a grande questão é a outorga. (...) a outorga, às vezes, é um entrave porque é demorada para se obter e não há um bom entendimento da sua obtenção quando há irrigação. Porque a irrigação não é considerada de uso prioritário, e sim a sedentarização de animais e para uso humano. (CANAONLINE, representante da Unica e gestor do GIFC, 2021).
As manobras discursivas estruturadas pela agroindústria canavieira tocam diferentes facetas e estratégias que transitam de modo fluido nesse campo para justificar ações e alçar os objetivos da acumulação do setor, tal como empreendida na hipótese deste trabalho. De modo geral, e em diálogo com as reflexões acerca do fogo a seguir, tanto o esforço em afirmar o cumprimento das orientações previstas na legislação, como o empenho em sugerir novas ou a flexibilização das regras vigentes exprimem uma prática sui generis do setor, assente em uma relação historicamente autoritária com o Estado (Silva; Martins, 2010) que, a depender de situações concretas, demanda propostas específicas capazes de enquadrá-los em uma lógica ambientalmente sustentável sem interferir na acumulação monetária.
A rigor, a diferenciação entre irrigar com água e irrigar com água residuária é expressão dessa natureza. Tomando como referência as reflexões de Hannigan (2009), o empenho de representantes do setor em formular e articular discursivamente uma realidade ambiental em torno dos recursos hídricos que, como visto, e como observam Martins, Arbarotti e Campregher (2021), será disputada discursivamente em arenas estratégicas de gestão, acaba por comprovar e reforçar uma suposta prática sustentável da agroindústria canavieira sem, no entanto, implicar em uma mudança de postura e ações efetivamente sustentáveis.
Fogo
Um incêndio não é a razão atuando. Um incêndio são as forças da natureza atuando. Vai para o lado que quer, queima o que quer, do jeito que quer, a hora que quer… Sem pensar se é um ser humano, se é um animal, se está na beira da cidade [...]. A queima controlada não é nada disso. É algo racional, pensado (representante da Socicana, entrevista concedida em 30/06/2022).
Nossa entrada na problemática do fogo nos canaviais dá-se pela diferenciação estratégica entre queima controlada e incêndio, mobilizada seja nas entrevistas semiestruturadas que realizamos com representantes do setor sucroalcooleiro, seja em veículos de informação desse setor - como lives (CANAONLINE, 2022; CETESB, 2021) e campanhas de controle, combate e prevenção de incêndios, promovidas pela Associação Brasileira do Agronegócio de Ribeirão Preto (ABAG/RP).
No trecho supracitado, a queima da palha da cana é encarada como fogo controlado, já os incêndios constituem-se no fogo que foge ao controle. Esse controle é balizado por legislações que asseguram, via um aparato técnico, a não dispersão do fogo e a manutenção de práticas agropastoris e florestais que o utilizam. Essa classificação de queima controlada, em especial, deriva do decreto federal nº 2.661 de 1998, o qual a define como:
[...] o emprego do fogo como fator de produção e manejo em atividades agropastoris ou florestais, e para fins de pesquisa científica e tecnológica, em áreas com limites físicos previamente definidos (Brasil, 1998).
Vale dizer que esse decreto é posterior ao emprego do fogo nos canaviais, muito embora venha por regulamentá-lo e legitimá-lo pela definição de critérios técnicos e burocráticos. Essa classificação, mobilizada no confronto com os incêndios - o fogo descontrolado - é igualmente nomeada por uso do fogo como método despalhador, queima da palha da cana-de-açúcar, prática agrícola das queimadas, queimadas, etc.
Grosso modo, essas queimadas diferem-se em finalidade das queimadas utilizadas no preparo da terra, como o caso da lavoura de mandioca na Amazônia (Fonseca-Morello et al., 2017); ou mesmo do manejo do fogo em áreas de relevo acidentado no Cerrado, o qual possibilita o acesso a pequenas áreas florestais destinadas à agricultura (Borges et al., 2016). Nos canaviais, o fogo previamente ao corte da cana visa eliminar palhas e folhas dispensáveis ao processamento industrial e evita a proliferação de pragas na lavoura, garantindo altos índices de produtividade às usinas e aos fornecedores.
É importante ainda pontuar que, naquele contexto, os argumentos mobilizados pelo setor para justificar o uso das queimadas voltavam-se não somente ao rendimento e eficiência nos canaviais - isto é, a seus interesses particulares -, como também à garantia de emprego dos cortadores de cana e à não utilização de agrotóxicos, a qual traria, como consequência, a contaminação da lavoura e dos lençóis freáticos (Blecher, 1989; Sabadin, 2024). Os dois últimos argumentos fazem parte de algo mais geral, de um bem comum - algo aparentemente descolado dos interesses particulares (Boltanski; Thévenot, 2020). Nessa configuração, o fogo faz parte da produção e, de 1960 até meados da década de 1990, todo o corte da cana-de-açúcar - manual ou mecanizado - seguia essa mesma lógica.
Avançando no recorte aqui priorizado - o da emergência de regulamentações socioambientais voltadas à atividade canavieira - as queimadas (ou o fogo que faz parte) passam a ser assumidas pelo próprio setor sucroalcooleiro como um alvo de eliminação gradual. A mudança de postura ante as queimadas - que não ocorre de modo unânime e imediato entre grupos e agentes desse setor -, é iniciada com o Plano de Eliminação das Queimadas, em 1997, impulsionando a introdução de máquinas colheitadeiras desenvolvidas para cortar cana crua, sem queima prévia (Gonçalves, 2001). Em contrapartida, é com a assinatura do Protocolo Agroambiental Paulista que essa mudança pautada na transição tecnológica do corte manual ao mecanizado - implicando na dispensa do uso do fogo da palha da cana-de-açúcar - é intensificada (Sabadin, 2017).
Nesse contexto, a mudança de postura mira, sobretudo, a superexploração da força de trabalho e os efeitos socioambientais da emissão de fuligem e fumaça6. Tais pontos servem de apoio para a construção das métricas do Protocolo Agroambiental, o que nos permite interpretar essa mudança pela chave da incorporação da crítica (Boltanski; Chiapello, 2020, p. 63) - ou seja, enquanto uma operação que responde “às questões levantadas pela crítica, para procurar apaziguá-la e conservar a adesão de suas tropas que poderão dar ouvidos às denúncias”.
No que concerne especificamente à problemática das queimadas, a sustentabilidade seria alcançada resolvendo esses dois argumentos. O alcance dessa mudança, no entanto, ultrapassa a resposta a esses argumentos mais locais. Amparando-a, estava a possibilidade de abertura do mercado ao combustível etanol - o combustível verde, renovável, não derivado de petróleo - , em meio ao contexto global das mudanças climáticas (Gameiro, 2017). Na esteira das discussões, as queimadas são encaradas como uma barreira que precisa ser superada a fim de alcançar maiores benefícios econômicos ao setor.
Era preciso, então, construir uma imagem e novas práticas alinhadas à nova realidade pautada na sustentabilidade da produção canavieira e convencer todos os segmentos do setor “de que aquela realidade de fogo, ela não é mais sustentável” (representante da Socicana, entrevista concedida em 30/06/22). O sustentável, no âmbito da fala da agente, denota a ideia de que essa realidade não pode mais ser mantida, sustentada. O fogo, nesse sentido, deixaria de fazer parte da atividade canavieira, de sorte que o Protocolo Agroambiental, ao propor o adiantamento dos prazos para a eliminação das queimadas no estado previstos por lei e acelerar a transição tecnológica, daria margem para que ele fosse apagado na prática e discursivamente7 - apagando, igualmente, a imagem dos trabalhadores do corte da cana-de-açúcar.
No entanto, é em concomitância ao apagamento do fogo das queimadas - isto é, com o fim dos prazos estabelecidos pelo Protocolo Agroambiental - que o debate sobre os incêndios começa a ser inflamado. Como já pontuamos, é quando a imagem do fogo das queimadas passa a atravancar seu crescimento econômico que são elaboradas estratégias - como o Plano de Eliminação das Queimadas e o Protocolo Agroambiental, por exemplo - para eliminá-las. Aos incêndios, não cabe a eliminação, mas a construção de estratégias que visem ao combate desse “inimigo”, essa “nova praga” do setor (CANAONLINE, 2022).
Se você explicar para a sociedade que aquele fogo que está acontecendo ali, hoje, pegando [...], desde 2014, na verdade, a gente tá aí com a queima eliminada aqui no estado de São Paulo, mas é difícil você explicar para a população que “olha, se você está vendo um fogo numa área de cana, ele, na verdade, é prejuízo para a usina... a usina está sendo vítima desse incêndio, ou o fornecedor de cana está sendo vítima desse incêndio” (representante da Unica, entrevista concedida em 25/10/2021).
A entrada dessa variável demanda, em paralelo às estratégias de combate a esse fogo-inimigo, igualmente a construção de justificações que possibilitem desviá-lo da imagem da produção canavieira. A diferenciação entre a queima controlada e os incêndios, frisada no depoimento de abertura deste tópico, é mobilizada para alcançar esse desvio.
Essa diferenciação também é trazida no slogan da campanha8 de “Conscientização, Prevenção e Combate aos Incêndios”, elaborada pela ABAG/RP, em parceria com usinas e associações de produtores rurais. Além de divulgar informações que visam à prevenção dos incêndios, a campanha tem como um dos objetivos mostrar que “o incêndio, que o fogo em canavial não interessa ao setor produtivo”, como pontua a representante da ABAG/RP (entrevista realizada em 12/04/2022).
A campanha foi criada em 2015, depois que em 2014 aconteceu um fogo muito grande na Mata de Santa Tereza, em Ribeirão Preto [...]. E naquele dia, a gente falou “nós precisamos fazer um trabalho de prevenção”, porque ali naquele momento, a gente já sabia que tinha a mão de um homem… É a mão do homem que foi responsável por esse fogo. Só ali na cidade que começa o burburinho, né? “Ah, foi a cana, pegou fogo”, “Foi alguém que queimou a cana…”. E nem tem mais cana perto daquela região da cidade. Mas a gente viu a necessidade de mostrar para a população que o incêndio, que o fogo em canavial não interessa ao setor produtivo.
As manobras acerca desse combate - seja via diferenciação entre queimadas e incêndios ou via campanha - acabam por reforçar o desinteresse aparente do setor em relação ao fogo descontrolado. Com efeito, o fogo, reduzido à classificação de incêndio, acaba por impedir o questionamento sobre o fogo das queimadas, mesmo que considerado residual.
Mobilizar essa diferenciação ainda tem o efeito de justificar que o interesse anterior do setor no uso do fogo era assegurado por um aparato técnico e institucional que permitia evitar os prejuízos de um incêndio. Nesse sentido, os efeitos socioambientais das queimadas parecem ser anulados quando comparados à dimensão catastrófica veiculada aos incêndios. Ademais, classificar o fogo dos incêndios como atrelado à mão de um homem contribui para afastar a atividade canavieira dessas ocorrências.
Nos meandros dessa responsabilidade sobre o fogo estendida a todos, a existência da campanha de “Conscientização, Prevenção e Combate aos Incêndios” consiste em um esforço para legitimar uma dimensão moral, a qual vincula essa responsabilidade ao bem comum. Revela, assim, a complexidade simbólica que envolve a história do fogo no Brasil, mobilizado ora como feito social, ora como fator ecológico ou desastre (Bailão, 2023).
Nesses movimentos, os princípios contemporâneos de sustentabilidade tomam a forma de balizas para a produção de discursos e, a depender de sua força, de vontades de saber sobre o comportamento socioambiental do setor sucroalcooleiro paulista. Se no caso da água, a diferenciação entre irrigação com água e irrigação com água residuária traz consigo um repertório de diferenciação com finalidade política, as modalidades queimada e incêndio também o fazem, mobilizando conhecimentos diferenciados e gramática de justificação similar, moralmente acolhida nos valores de sustentabilidade que o próprio setor angaria e produz no debate público-ambiental.
Notas conclusivas
O percurso traçado neste artigo ambicionou realçar as mudanças estratégicas na classificação da água e do fogo pelo setor sucroalcooleiro, sobretudo após o firmamento das regulamentações socioambientais que almejam a sustentabilidade de sua produção. Os resultados apresentados corroboram nossa hipótese de trabalho, de que as estratégias de mudanças nas formas de classificação não visaram apenas superar as limitações que as regulamentações ambientais impuseram à produtividade do setor, mas alargaram o escopo das concepções sobre a sustentabilidade. Ao assumir a cooperação com órgãos ambientais do estado de São Paulo, o setor torna-se parte do desenho das políticas ambientais afeitas ao seu cotidiano. Nesse movimento, fez circular novas justificações para engajar-se nas respostas às críticas socioambientais a ele historicamente destinadas.
Se a demanda ambiental global requereu normas para “disciplinar” o uso da água no processamento industrial e eliminar o uso do fogo nas plantações canavieiras, coube ao setor sucroalcooleiro adequar-se às condutas, sustentado em inovações discursivas - e também tecnológicas e práticas - que, ao fim e ao cabo, não deixam de reproduzir uma dinâmica de acumulação. Parte dessa adequação consiste, justamente, em participar da construção de uma agenda ambiental, assumindo-se enquanto um setor preocupado com a sustentabilidade, preocupado em promover o bem comum.
Nesse cenário de metamorfoses discursivas identificamos a defesa pública da cana irrigada e a diferenciação estratégica entre queima controlada e incêndio nos canaviais do estado de São Paulo - dois dos aspectos centrais do cenário de justificação moldado pelo setor. A rigor, essas novas gramáticas se sustentam, por um lado, na capacidade de argumentação dos atores sociais envolvidos e habilitados a estabelecer as condições ambientais legítimas em torno da irrigação da cana e do uso do fogo nos canaviais, tal qual as reflexões de Hannigan (2009) acerca do construcionismo social do meio ambiente, e de Bourdieu (2008) sobre a linguagem e da aceitabilidade dos discursos; e, por outro, na noção de sustentabilidade, que, como bem pontua O’Connor (1994), trata-se menos de uma questão ecológica que ideológica e política.
Neste contexto, é marcante como o capital agroindustrial se deslocou da posição de alvo da crítica para se apresentar como parte desta, mediante o controle pragmático dos termos dos debates desenvolvido no escopo dos territórios sobre águas e queimadas. Para tanto, a mobilização de competências disciplinares (técnicos de águas, agrônomos, engenheiros e advogados) foi de grande valia, permitindo ao setor um papel de destaque no debate público-ambiental dos territórios rurais.
Este processo revela um movimento estratégico - e, portanto, orientado - de incorporação da crítica ambiental pelo setor sucroalcooleiro. Ainda que com características específicas e níveis distintos de investimento em capital simbólico, resta como prática comum a iniciativa de construção de novas justificações para a regulação moral das demandas socioambientais sobre o capitalismo do século XXI.
Os resultados aqui apresentados lançam, assim, novos desafios para se pensar a complexa relação entre capitalismo e sustentabilidade ambiental. A crítica da natureza coisificada (Leff, 2014), expressão da segunda contradição do capital (O’Connor, 1994), fora atravessada por novos modos de ordenação e de enunciação dos discursos. E é justamente nestes novos modos que a ação capitalista parece obter êxito para incorporar recursos críticos, que fogem à dimensão material/econômica do capital, mas que adquire relevância como forma moral e como produção política. Assim, em diálogo com a perspectiva empreendida por Boltanski e Chiapello (2020), pode-se considerar que o espírito do capitalismo se transforma para responder às novas necessidades de justificação para a preservação do processo de acumulação. Neste caminho, os valores e representações clássicas da eficiência individual e do bem comum são “esverdeados” para novos diálogos entre agentes e instituições - neste último caso, notadamente o estado e os mercados.
Agradecimentos
Este estudo contou com financiamentos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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1
- Para uma análise sobre a construção política do Protocolo Agroambiental Paulista, ver Sabadin (2017).
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2
- Conforme essa lei - e seguindo a tecnologia das máquinas colheitadeiras de cana-, as áreas mecanizáveis são aquelas cuja declividade dos terrenos é igual ou inferior a 12%; já as não mecanizáveis possuem declividade superior a esse percentual (São Paulo, 2002).
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3
- Para uma análise sobre a construção do Projeto Sistema Aquífero Guarani, ver Cardoso (2022).
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4
- Finalizada suas atividades, o GIC impulsionou, em 2012, a formação do GIFC.
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5
- Vale pontuar que a mobilização do aparato técnico-científico extrapola as fronteiras do debate aqui proposto e atinge, como bem aborda Martins (2015), arenas políticas de governança das águas, como os Comitês de Bacia Hidrográfica, espaço que se pretende participativo e democrático.
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6
- Diversas pesquisas se dedicaram a explorar a dinâmica social e/ou ambiental da atividade canavieira no estado de São Paulo. Para uma leitura mais aprofundada acerca das condições de trabalho no corte da cana, destacamos as realizadas por Novaes (2007) e Silva (2008); e sobre os efeitos socioambientais das queimadas, as de Andrade Jr. (2016) e Ribeiro (2008).
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7
- Em números, esse apagamento é ilustrado no salto do índice da mecanização no estado de São Paulo, que sai da safra 2007/2008 com um índice de 40,7% e chega à safra 2020/21 com 96,64% (Fredo; Vicente; Baptistella, 2008; Fredo; Baptistella; Caser, 2022). No que toca à região administrativa de Ribeirão Preto, na safra 2020/21, esse índice alcança o percentual de 95,83%
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8
- A campanha carrega como slogan entre 2015-2017, “Incêndio: diferente de queima controlada”; entre 2018 e 2019, “Incêndios: Previna” e “Incêndios: Prevenir é Dever de Todos” e, mais recentemente, em 2022, “O fogo é fogo” (ABAG/RP, online).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
07 Jul 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
27 Dez 2023 -
Aceito
14 Out 2024


Fonte: São Paulo, 2009.