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EDUCAÇÃO DIFERENCIADA E TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA NOS TERRITÓRIOS CAIÇARAS DE PARATY (RJ)1 1 . Agradecemos aos professores do Instituto de Educação de Angra dos Reis/UFF, lideranças comunitárias e ao Coletivo de Apoio à Educação Diferenciada do Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba.

Resumo

As escolas das comunidades caiçaras da Praia do Sono e do Pouso da Cajaíba, localizadas no município de Paraty (RJ), iniciaram, no ano de 2016, a oferta do ensino fundamental II com a proposta de uma educação adaptada às suas realidades. Essa iniciativa ocorre em um período em que as comunidades vêm buscando novas formas de desenvolver o turismo. O presente artigo visa discutir o processo de construção da educação escolar diferenciada e sua contribuição para o desenvolvimento do turismo. Além do estudo de referencial bibliográfico e de dados secundários, houve a participação em eventos relacionados ao tema e a realização de entrevistas semiestruturadas com representantes que vêm discutindo a proposta curricular e seu impacto no território. O estudo indica que o processo que está sendo proposto por meio da educação diferenciada pode contribuir para a organização do turismo de base comunitária, centrado em questões como autonomia e pertencimento.

Palavras-chave:
território; turismo de base comunitária; educação; caiçara; áreas protegidas

Abstract

The schools of caiçaras communities in “Praia do sono” and “Pouso da Cajaíba”, located in Paraty (RJ), initiated in 2016 to offer middle school education with the purpose of an education adapted to their realities. This initiative happens in a period when the communities are seeking new ways to develop tourism. The present article aims to discuss the construction process of the differentiated school education and its contribution to the development of tourism. In addition to the research of bibliographic references and secondary data, there was participation in events related to the theme and the implementation completion/execution of semi-structured interviews with representatives that have been discussing the curricular proposal and its impacts in the territory. The research shows that the process that is being proposed by means of the differentiated education can contribute to the organization of the community-based tourism, focused in questions such as autonomy and belonging.

Key-words:
territory; community-based tourism; education; caiçara; protected areas

Resumen

Las escuelas de las comunidades caiçaras de “Praia do Sono” y “Pouso da Cajaíba”, situadas en el municipio de Paraty (RJ), comenzaron en el año 2016 la oferta de la enseñanza fundamental II con la propuesta de una educación adaptada a sus realidades. Esta iniciativa se produce en un periodo en que las comunidades vienen buscando nuevas formas de desarrollar el turismo. Además del estudio del referencial bibliográfico y datos secundarios, ha habido la participación en eventos relacionados a la temática y la realización de entrevistas semiestructuradas con representantes que ya vienen discutiendo la propuesta curricular y su impacto en territorio. La investigación indica que el proceso que se está propuesto por medio de la educación diferenciada puede contribuir a la organización del turismo de base comunitaria, centrado en cuestiones como autonomía y pertenencia.

Palabras clave:
territorio; turismo de base comunitária; educación; caiçara; areas protegidas

Introdução e contexto

As comunidades do Pouso da Cajaíba e da Praia do Sono, localizadas na península da Juatinga, no município de Paraty, retratam a situação de muitos territórios onde vivem comunidades tradicionais, como os caiçaras do litoral sul do estado do Rio de Janeiro até o litoral do Paraná.

Até meados do século XX, os povos caiçaras viveram em relativo isolamento, tendo como base os recursos naturais locais (DIEGUES, 2000_________. O mito moderno da natureza intocada. 3 ed. Editora Hucitec: São Paulo, 2000.). A transmissão dos saberes foi ressignificada através de gerações e constitui hoje um conjunto de conhecimentos e manifestações culturais que estão presentes no cotidiano local, como as músicas e festas de Folia de Reis, Bandeira do Divino, Ciranda Caiçara, entre outros (SOARES; PEREIRA; GIÁCOMO, 2016SOARES, T. M.; PEREIRA, M. V.; GIÁCOMO, M.; Memórias e Práticas Caiçaras da Península da Juatinga. Projeto de Extensão Universitária UFRJ Raízes e Frutos - Uma Vivência nas Comunidades Caiçaras da Península da Juatinga, 2016.). Foram esses saberes que influenciaram a forma como as comunidades se relacionam com o ambiente a partir dos recursos locais, numa dinâmica complexa que envolve questões como a diversidade ambiental e cultural presente nos seus territórios (DIEGUES, 2000).

Situada em uma das principais áreas remanescentes de Mata Atlântica do país, a região apresenta aspectos relevantes sob o ponto de vista do turismo, sobretudo relacionados às suas características naturais e à cultura dos povos locais. Contudo, é uma região marcada por conflitos e disputas em relação ao uso e à ocupação do solo, como restrições ambientais, grilagem, especulação imobiliária, promovendo situações que geram diversos enfrentamentos e reprimem os habitantes, conforme é exposto nos trabalhos de Marafon (2006MARAFON, G. J. Agricultura Familiar, Pluriatividade e Turismo Rural: reflexões a partir do território fluminense. CAMPO-TERRITÓRIO: Revista de Geografia Agrária, Uberlândia, v.1, n.1, p.17-40, 2006. Disponível em:< https://goo.gl/dsPZpR>. Acessado em 1/05/2015.
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), Linhares (2010),Carvalho (2010CARVALHO, J. M. P. de. O Patrimônio Imaterial da Comunidade Caiçara do Pouso da Cajaiba e a Escola: Em busca de uma Educação Diferenciada Paraty, RJ. 2010. 125f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) - CPDA/UFRRJ, Rio de Janeiro, 2010. ) e Nohara (2016NOHARA, I. N. Atuação do Estado nas Comunidades Tradicionais Caiçaras. In: STANICH NETO, P. (org.). Direito das Comunidades Tradicionais Caiçaras. Editora Café com Lei: São Paulo, 2016, p. 49-64.).

Atividades tradicionais, como a agricultura e o extrativismo vegetal, foram reduzidas devido aos limites de uso a partir da criação de unidades de conservação. Além disso, a pesca artesanal tornou-se prejudicada devido ao impacto gerado pela pesca industrial. Por outro lado, o turismo vem se apresentando para essas comunidades como uma alternativa para a geração de renda. Porém, o desenvolvimento do turismo ocorreu de forma acelerada, evidenciando problemas como geração de resíduos e ausência de saneamento, além de suscitar questões socioculturais que precisam ser melhor compreendidas no contexto local (CARVALHO, 2010CARVALHO, J. M. P. de. O Patrimônio Imaterial da Comunidade Caiçara do Pouso da Cajaiba e a Escola: Em busca de uma Educação Diferenciada Paraty, RJ. 2010. 125f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) - CPDA/UFRRJ, Rio de Janeiro, 2010. ; BAZZANELLA, 2013BAZZANELLA, A. O Encantamento como Campo Simbólico: Uma abordagem estética das narrativas sobre a experiência do Fantástico. 2013. 190f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) - CPDA/UFRRJ, Paraty, 2013.).

Em 2007, as comunidades tradicionais caiçaras, quilombolas e indígenas da etnia Guarani Mbya presentes na região se uniram e formaram o “Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba”. Dentre as estratégias de resistência defendidas pelo Fórum, estão o desenvolvimento do turismo de base comunitária e a educação diferenciada. O turismo de base comunitária surge como uma alternativa ao modelo de turismo predatório e excludente que vem sendo produzido na região e gerando insatisfação entre os próprios comunitários. E a educação diferenciada propõe um processo educativo contextualizado com a realidade local, mas sem perder de vista as influências externas e os aspectos políticos que incidem sobre o território.

No ano letivo de 2016, as escolas Martim de Sá, na Praia do Sono, e Cajaíba, no Pouso da Cajaíba, receberam pela primeira vez em seus territórios o ensino fundamental II (6º ao 9º ano). Esta implantação tem sido orientada pela equipe do Instituto de Educação de Angra dos Reis, da Universidade Federal Fluminense (IEAR/UFF),em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de Paraty(REGO-MONTEIRO, NOBRE & OLIVEIRA, 2016; SANTOS & REGO-MONTEIRO, 2016SANTOS, L. B.; REGO-MONTEIRO, L. C. Diagnóstico socioeducacional como subsídio para a elaboração de projetos de educação diferenciada nas comunidades da Zona Costeira de Paraty- RJ. 2016/UFF.). A metodologia utilizada é semelhante a que foi utilizada por Paulo Freire quando secretário de educação (1989-1991),na prefeitura de São Paulo (SÃO PAULO, 1990). Possui como um dos aspectos principais a construção participativa em estreito diálogo com a comunidade local, de forma a garantir que a educação ofertada esteja em consonância com as suas necessidades e demandas. Neste contexto, o artigo visa apresentar e discutir o processo de construção de uma proposta de educação diferenciada e sua contribuição para o turismo de base comunitária, a partir da experiência do programa “Implantação do Fundamental II nas Escolas Caiçaras da Zona Costeira de Paraty”, desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação de Paraty e a Universidade Federal Fluminense.

Procedimentos metodológicos

Para atingir os objetivos propostos, utilizou-se como ponto de partida o levantamento, a análise de referencial bibliográfico sobre os temas da pesquisa ea análise de dados secundários, incluindo o estudo de documentos relacionados ao processo de educação diferenciada. Dentre estes documentos, destaca-se a análise da proposta curricular do ano letivo de 2016 nas escolas do Pouso e do Sono. Buscou-se observar quais elementos presentes na proposta podem promover uma maior conscientização dos aspectos histórico-cultural, socioeconômico e territorial, de forma a despertar nos jovens estudantes a reflexão sobre as identidades locais e as concepções de desenvolvimento que estejam em consonância com as premissas defendidas pela proposição do turismo de base comunitária.

Com o objetivo de compreender o contexto da proposta da educação diferenciada, um dos autores deste artigo, durante a pesquisa de mestrado em Desenvolvimento Territorial e Políticas Públicas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (BARROS, 2017),em interlocução com a equipe de professores do IEAR/UFF, participou de alguns encontros de discussão sobre a implantação da educação diferenciada nas escolas caiçaras do Pouso e do Sono, tais como: (1) reuniões do Coletivo de Apoio à Educação Diferenciada, formado por representantes do Fórum de Comunidades Tradicionais, lideranças comunitárias, professores e alunos de diversas universidades, professores do Núcleo de Pesquisa sobre Educação Diferenciada do Colégio Pedro II e professores da rede municipal de Paraty(23 de setembro e 15 de dezembro de 2016); (2) reuniões de formação dos professores (5 e 23 de setembro, 27 de outubro, 15 de novembro e 15 e 16 de dezembro de 2016).

No que diz respeito aos espaços de discussão sobre o desenvolvimento do turismo de base comunitária, destacam-se a participação nos eventos: I Encontro de Turismo de Base Comunitária da Costa Verde (23 a 25 de julho de 2015, em Tarituba, Paraty),realizado pela Secretaria de Turismo de Paraty em ação consorciada com a Fundação de Turismo de Angra dos Reis; II Encontro da Coordenação Nacional Caiçara (15 e 16 abril de 2016, na Praia do Aventureiro, Ilha Grande, Angra dos Reis),organizado pelo Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba, a Coordenação Nacional Caiçara e a Sociedade Angrense de Proteção Ecológica e, por fim, a “Partilha de Turismo de Base Comunitária”, organizada pelo Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba, em parceria com o Observatório dos Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina/FIOCRUZ (29 de setembro de 2016, em Trindade, Paraty).

A participação nestes eventos foi um caminho importante na condução da pesquisa, pois permitiu a exploração do tema e o conhecimento dos interlocutores em ocasiões diferentes de um encontro pré-agendado para a realização de uma entrevista, por exemplo. A observação e o registro dos depoimentos dos membros da comunidade durante os eventos favoreceram a compreensão sobre os posicionamentos das instituições e lideranças locais. Além da participação em fóruns e eventos locais, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com diferentes interlocutores ligados à educação escolar caiçara: duas lideranças comunitárias de cada comunidade e três professores do IEAR/UFF.

A análise das informações obtidas nos eventos e nas entrevistas buscou elucidar as principais diferenças entre a educação escolar diferenciada que está sendo proposta e a educação escolar convencional, além de compreender os elementos essenciais discutidos no currículo das escolas do Pouso e do Sono, e que podem repercutir de maneira positiva no desenvolvimento do turismo de base comunitária.

O esgotamento do turismo de massa e a proposta do turismo de base comunitária nas comunidades da Praia do Sono e do Pouso da Cajaíba

Não é incomum encontrarmos destinos turísticos que passaram por grandes transformações com a introdução da atividade turística em seus territórios. Sabe-se que a dinamização da economia local nem sempre vem acompanhada de um ambiente que promova bem-estar para os moradores locais. Outro fator de um turismo realizado sem planejamento é a degradação dos atrativos, comprometendo a própria sustentabilidade desta atividade (BURSZTYN; BARTHOLO; DELAMARO, 2009BURSZTYN, I.; BARTHOLO, R.; DELAMARO, M. Turismo para quem? In: BARTHOLO, R; SANSOLO, D. G; BURSZTYN, I (org.). Turismo de base comunitária: diversidade de olhares e experiências brasileiras. Rio de Janeiro: Letra e Imagem, 2009, p.76-91.).

A lógica com que opera esse turismo predatório se enquadra nos modelos de desenvolvimento com viés eurocêntrico, que se caracterizam por ter o lucro como seu principal objetivo e acabam por contribuir para a transformação de aspectos culturais e do conhecimento local (ESCOBAR, 2005ESCOBAR, A. O lugar da natureza e a natureza do lugar: globalização ou pós-desenvolvimento? In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e Ciências sociais. Perspectivas latino- americanas. Buenos Aires, Argentina: CLACSO, 2005 (Coleção Sur Sur). ). Além disso, um outro aspecto ressaltado por Freire (1967FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Editora Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1967, p. 65-84.) no processo de desenvolvimento, que tende a ser observado em alguns destinos turísticos, é o distanciamento dos indivíduos da capacidade de decidir e de questionar os modelos que são constituídos de fora para dentro, e que podem acabar contribuindo para a perda de identidade.

Algumas correntes de investigação do turismo vêm apresentando esses questionamentos como fundamento para o planejamento da atividade. E, ainda que alguns segmentos e/ou formas de organização do turismo, como é o caso do ecoturismo, do turismo rural ou do turismo social, utilizem os termos “eco” e “inclusivo” como estratégia de mercado, suas diretrizes buscam promover critérios de sustentabilidade no desenvolvimento da atividade. Nessa nova “roupagem” do turismo, que afeta a demanda e a oferta, é necessária uma abordagem crítica sobre os oportunismos associados à padronização dos serviços turísticos, tendo como principal objetivo a obtenção do lucro, o que acaba artificializando as vivências e as relações (ZAOUAL, 2009ZAOUAL, H. Do turismo de massa ao turismo situado: quais as transições? In: BARTHOLO, R; SANSOLO, D G; BURSZTYN, I (org.). Turismo de base comunitária: diversidade de olhares e experiências brasileiras Rio de Janeiro: Letra e Imagem, 2009, p.55-75. ).

No caso do turismo entendido como de “base comunitária”, Irving (2009IRVING, M. A. Reinventando a reflexão sobre turismo de base comunitária: inovar é possível? In: BARTHOLO, R; SANSOLO, D. G; BURSZTYN, I (org.). Turismo de base comunitária: diversidade de olhares e experiências brasileiras. Rio de Janeiro: Letra e Imagem, 2009, p.108-121. ) salienta que esse tipo de organização passa necessariamente por uma compreensão por parte da própria comunidade sobre os valores, as disputas e os desafios em jogo nesse tipo de iniciativa.

Porém, a tomada de uma consciência crítica sobre o posicionamento como sujeito, e não objeto do sistema, requer um processo de formação adequado para garantir um maior discernimento nas decisões e a melhoria na qualidade de participação política (DEMO, 1998; 2009).

Os problemas enfrentados pelo esgotamento do modelo de turismo vigente na maioria dos destinos turísticos do país também são percebidos nas comunidades do Pouso e do Sono. Essa insatisfação pode ser observada durante as entrevistas, conforme relatou a liderança comunitária e proprietária de um bar no Pouso: “O turismo caiu de paraquedas, eu acho que até hoje a gente não sabe trabalhar com o turismo. […] quem ganha dinheiro hoje são as pessoas de fora, não a gente [...] se não tiver uma organização a gente não vai muito longe, não.” (Liderança do Pouso da Cajaíba, 26 de outubro de 2016).

Em relação à Praia do Sono, um representante da comunidade comentou que o turismo se iniciou por volta da década de 1980, mas, a partir do final da década de 1990, a atividade se tornou “avassaladora”. Comentou que o tipo de turismo que é desenvolvido atualmente é preocupante, pois não respeita os costumes locais, o que tem contribuído para a “descaracterização” dos hábitos culturais da comunidade. Outro fator abordado por esta liderança foi a diminuição das iniciativas de cooperação entre as pessoas. Ela acredita que o turismo está entre os motivos que provocaram um espírito capitalista, e uma postura individualista entre as pessoas.

Tais insatisfações têm promovido um posicionamento crítico em relação aos benefícios e prejuízos do turismo. Neste sentido, ainda que esta atividade tenha colaborado para o incremento da renda dos moradores, existe um entendimento entre as lideranças entrevistadas de que parte dos turistas que frequentam as comunidades não se comporta adequadamente. Os moradores reclamam que os turistas não se preocupam com o lixo, favorecem a poluição sonora, subestimam os serviços prestados e exigem descontos inadequados nas diárias e nos produtos comercializados.

Conforme destacado anteriormente, as comunidades tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba vêm se reunindo em eventos para discutir a implantação do turismo de base comunitária em seus territórios (MENDONÇA; MORAES; CATARCIONE, 2016MENDONÇA, T. C. M.; MORAES, E. A. de.; CATARCIONE, F. L. C. Turismo de base comunitária na Região da Costa Verde (Rio de Janeiro): refletindo sobre um turismo que se tem e um turismo que se quer. Caderno Virtual de Turismo. Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 232-248, ago. 2016.). Existem diversos entendimentos sobre o conceito do turismo de base comunitária, porém há algumas premissas que aparecem com maior frequência no posicionamento de diferentes atores que discutem esta atividade. Dentre esses aspectos, destacam-se: valorização dos elementos histórico-culturais, dos saberes e dos modos de vida local; protagonismo da comunidade desde a elaboração até a execução do roteiro; a relação de interculturalidade entre os visitantes e a comunidade receptora; a valorização e a conservação da natureza; e a integração com outras atividades desenvolvidas nas comunidades (IRVING, 2009IRVING, M. A. Reinventando a reflexão sobre turismo de base comunitária: inovar é possível? In: BARTHOLO, R; SANSOLO, D. G; BURSZTYN, I (org.). Turismo de base comunitária: diversidade de olhares e experiências brasileiras. Rio de Janeiro: Letra e Imagem, 2009, p.108-121. ; MALDONADO, 2009MALDONADO, C. O turismo rural comunitário na América Latina: gênesis, características e políticas. In: BARTHOLO, R.; SANSOLO, D. G; BURSZTYN, I. (org.). Turismo de base comunitária: diversidade de olhares e experiências brasileiras Rio de Janeiro: Letra e Imagem, 2009, p.25-44. ; SAMPAIO et al., 2011SAMPAIO, C. A. et. al. Perspectiva do turismo comunitário, solidário e sustentável. In: SAMPAIO, C. A. C.; HENRIQUEZ, C.; MANSUR, C. (Org.). Turismo comunitário, solidário e sustentável: da crítica às ideias e das ideias à prática. Blumenau: Edifurb, 2011. p. 23-30. ).

Durante os eventos sobre o turismo de base comunitária realizados na região de estudo, foram bastante expressivos os posicionamentos das comunidades sobre a preocupação quanto à oferta de uma educação escolar capaz de qualificar os jovens para o desenvolvimento de iniciativas de turismo de base comunitária em seus territórios.

No que se refere aos direitos educacionais, os povos caiçaras encontram respaldo no Decreto nº 7.352, de 04 de novembro de 2010, que trata da política de educação do campo e do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PRONERA.O Decreto definiu alguns princípios, como: articulação de experiências e estudos direcionados para o desenvolvimento social, economicamente justo e ambientalmente sustentável, em conexão com o mundo do trabalho; conteúdos curriculares e metodologias adequadas às reais necessidades dos alunos do campo; e a participação da comunidade e dos movimentos sociais do campo.

Outros documentos, como as “Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica” (BRASIL, 2013), o “Plano Nacional de Educação para o decênio 2014-2024”(BRASIL, 2014) e o “Plano Municipal de Educação de Paraty para o decênio 2015-2025” (PARATY, 2015) possuem orientações curriculares, metas e estratégias relacionadas aos povos do campo.

Com objetivo de respeitar o protagonismo local na descrição de um modelo educacional que atenda às necessidades específicas dos povos tradicionais, este trabalho buscou destacar alguns aspectos que permeiam o conceito de “educação diferenciada”, como a diversidade cultural, por exemplo. Esse conceito vem sendo construído e amadurecido pelos sujeitos envolvidos na proposta, sendo também evidenciado como parte de um processo histórico de reivindicação de direitos e reconhecimento. Entretanto, os documentos acima citados destacam que o ensino ofertado requer uma adaptação às necessidades de desenvolvimento local, através de um constante diálogo com a comunidade receptora e que promova práticas sustentáveis, valorização dos saberes tradicionais e dos aspectos histórico-culturais desses povos. São esses “direitos” de adaptação do ensino ofertado que fornecem subsídios para o que vem sendo denominado de “educação diferenciada” (CARVALHO, 2010CARVALHO, J. M. P. de. O Patrimônio Imaterial da Comunidade Caiçara do Pouso da Cajaiba e a Escola: Em busca de uma Educação Diferenciada Paraty, RJ. 2010. 125f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) - CPDA/UFRRJ, Rio de Janeiro, 2010. ; HAYAMA, 2016HAYAMA, A. T. Patrimônio Cultural Imaterial e Educação Escolar diferenciada. In: STANICH NETO, P. (org.). Direito das Comunidades Tradicionais Caiçaras. Editora Café com Lei: São Paulo, 2016, p. 49-64.).

A proposta de ensino que foi iniciada no ano de 2016 nas escolas caiçaras do ensino fundamental II (6º ao 9º ano) do Pouso e do Sono vem seguindo essas orientações e princípios, conforme veremos a seguir.

O projeto de construção curricular das escolas do segundo segmento do ensino fundamental do Pouso da Cajaíba e da Praia do Sono

A proposta pedagógica que está sendo utilizada se caracteriza pela interculturalidade e por uma “educação diferenciada”, buscando uma aprendizagem significativa através dos projetos de ensino, que trazem para a escola diversos aspectos da cultura caiçara e do território.

Dentre as premissas que compõem a perspectiva intercultural, Candau (2008CANDAU, V. M. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, v. 13, n. 37, p. 45-56, jan./abr. 2008.) destaca a inter-relação entre diferentes grupos culturais presentes em uma determinada sociedade. Nessa perspectiva, as culturas não são consideradas estáticas no tempo, mas estão em um constante processo de construção e reconstrução.

No caso dos povos tradicionais, estes possuem características histórico-culturais e saberes próprios, que muitas vezes são secundarizados pela perspectiva convencional nas escolas. Porém, existe a necessidade de conciliar as características específicas desses povos com o conteúdo escolar universal presente na Base Nacional Comum Curricular, conforme a Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que determina as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Essa necessidade é expressa por Santos (2006SANTOS, B. de S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006., p. 462), quando este cita que “temos o direito a ser iguais, sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”, de forma que se evite qualquer tipo de segregação do conhecimento. Para alcançar esses objetivos, a metodologia que está sendo utilizada nas escolas do Pouso da Cajaíba e do Sono se baseia na pedagogia de projetos (HERNANDEZ, 1998HERNÁNDEZ, F. Transgressão e Mudança na Educação: os Projetos de Trabalho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.) e na pedagogia de rede temática/temas geradores (FREIRE, 1987_________. Pedagogia do Oprimido. 17ª edição. Paz e Terra: Rio de janeiro, 1987.).

Essas metodologias foram utilizadas como um caminho para incentivar uma relação dialógica com a comunidade escolar. Além disso, buscam ampliar o escopo dos currículos centrados em disciplinas que não problematizam as realidades e demandas dos educandos. Neste sentido, a proposta é a construção de um currículo escolar que contemple os anseios e desafios dos educandos de forma que contribua para a transformação social a partir de um olhar crítico e multidimensional dos modelos de desenvolvimento.

A construção da proposta curricular e de formação permanente dos educadores das escolas do Pouso e do Sono foi elaborada a partir de algumas reuniões com o “Coletivo de Apoio à Educação Diferenciada”, composto por estudantes e professores de universidades (UFF, UFRJ, UFRRJ), lideranças comunitárias e do Fórum de Comunidades Tradicionais. Chegou-se à definição do tipo de projeto que interessaria ao coletivo, sendo apresentada a proposta para a prefeitura.

O processo de construção da proposta curricular contemplou diversos encontros e reuniões envolvendo a comunidade e professores, além de diferentes atividades de pesquisa (levantamento de dados, entrevistas, sistematização) (REGO-MONTEIRO; NOBRE; OLIVEIRA, 2016). As etapas para a construção curricular seguiram uma sequência, composta por:

  • Diagnóstico sociocultural, através da aplicação de questionários pelos alunos, com a orientação dos seus professores, e de uma dinâmica aplicada aos pais e comunitários, onde se destacam as Fortalezas, Oportunidades, Fraquezas e Ameaças da comunidade e da escola.

  • Construção de rede temática, através da escolha de palavras/conceitos que foram citados com mais frequência na sondagem feita anteriormente. Nesta etapa, foram realizados os recortes de temas para a elaboração dos projetos pedagógicos.

  • Elaboração das matrizes pedagógicas e planejamento de aulas-guias.

A rede temática (Tabela 1) apresenta 4 principais eixos, que se conectam com outros conceitos e temas relacionados com a realidade das comunidades.

Tabela 1
Eixos temáticos com as palavras/conceitos presentes na rede temática

A formação dos 4 blocos temáticos serviu para orientar as matrizes de planejamento e os projetos pedagógicos. O passo seguinte foi a formação das aulas-guias, relacionando os conteúdos integradores presentes nos blocos temáticos aos conteúdos programáticos, divididos pelas áreas de conhecimento, estabelecendo assim as atividades e as tarefas como estratégias para alcançar os objetivos propostos. Através disso, foram elaboradas 4 aulas-guias que se relacionam cada uma a um projeto pedagógico: I- Projetos pedagógicos - Quem Sou Eu?; II - Cultura caiçara; III - Praia e território e IV - Guia Turístico. Nas tabelas abaixo, foram selecionados somente os principais elementos que podem ser relacionados ao desenvolvimento do turismo de base comunitária.

No projeto “Quem Sou eu?” (Tabela 2), as atividades propostas, como a aplicação de entrevistas com as pessoas idosas da comunidade e com os seus próprios familiares, a elaboração da árvore genealógica, a linha do tempo e a história da comunidade reforçada através da oralidade, colaboraram com a identificação e o fortalecimento das identidades históricas por parte dos alunos. A memória, como salienta Pollak (1992POLLAK, M. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p.200-212, 1992.), é um fenômeno construído social e individualmente no que se refere à memória herdada. Ao narrar nas histórias a luta da comunidade pela permanência nos seus territórios ou pelo acesso às políticas públicas, por exemplo, é possível que ocorra uma identificação ou projeção com o passado capaz de estreitar o sentimento de uma identidade coletiva.

Tabela 2
Conteúdos, atividades e tarefas para o projeto “Quem Sou Eu?”

Os aspectos ambientais dos territórios das comunidades do Pouso e do Sono são importantes elementos de atração para o turismo na região e foram abordados no projeto “Quem sou eu?”. O estudo desses aspectos pode potencializar a ecologia dos saberes (SANTOS, 2007_________. Para Além do Pensamento Abissal. Das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos - CEBRAP, São Paulo, nº 79, p.71-94, novembro de 2007.), valorizando não apenas o conhecimento acadêmico, mas também o conhecimento tradicional a respeito da biodiversidade local. Esse conteúdo serviu de base para os elementos trabalhados no projeto “Cultura caiçara” (Tabela 3), onde a sabedoria caiçara e de outros povos tradicionais se fizeram presentes.

Tabela 3
Conteúdos, atividades e tarefas para o projeto “Cultura caiçara

Dentre os conteúdos trabalhados, estão presentes as práticas agrícolas sustentáveis, como a agroecologia e a permacultura. De acordo com os relatos das lideranças comunitárias, o hábito de plantar foi bastante reduzido nessas comunidades. Dentre os motivos, estão as restrições impostas quanto ao uso do solo pela unidade de conservação que abrange a região e a chegada do turismo, que possibilitou aos moradores o aumento de suas rendas e a opção de comprar os alimentos em vez de produzirem. O mesmo argumento vale para os produtos extraídos da floresta, que são utilizados como alimento, medicamento ou matéria-prima para a construção de cestos e outros produtos.

Uma liderança comunitária do Pouso da Cajaíba afirma que as práticas culinárias tradicionais estão caindo no esquecimento, citando como exemplo o desconhecimento de muitos jovens em relação ao “Azul Marinho”, prato típico da culinária caiçara feito com peixe e banana.

Por outro lado, a valorização desses saberes gera a possibilidade de agregar opções de atividades turísticas, como a oferta de produtos e oficinas - como as que ocorrem no Instituto de Permacultura Caiçara - IPECA, localizado no Pouso da Cajaíba, administrado por uma das lideranças comunitárias locais.

Durante os projetos pedagógicos “Cultura caiçara” e “Praia e território”, desenvolvidos pelos professores das escolas das comunidades do Pouso da Cajaíba e da Praia do Sono, com orientação da equipe de professores do IEAR/UFF e do Fórum de Comunidades Tradicionais, foram realizadas visitas de intercâmbio envolvendo os jovens Guarani e Quilombolas da região. Estreitar as relações entre os jovens desses grupos pode contribuir para futuras parcerias de roteiros que integrem a visita a essas comunidades. Esse contato ainda possibilita a identificação de laços históricos e culturais comuns aos três grupos. Um exemplo é o processo histórico de ocupação da região da Costa Verde, marcado pelo enfrentamento com grileiros, empreendimentos imobiliários e turísticos, e a criação de unidades de conservação (CARVALHO, 2010CARVALHO, J. M. P. de. O Patrimônio Imaterial da Comunidade Caiçara do Pouso da Cajaiba e a Escola: Em busca de uma Educação Diferenciada Paraty, RJ. 2010. 125f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) - CPDA/UFRRJ, Rio de Janeiro, 2010. ; LINHARES, 2014LINHARES, J. S. S. D. Os Projetos de Etnodesenvolvimento no Quilombo do Campinho da Independência - Paraty/RJ. 2014. 109f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) - CPDA/UFRRJ, Rio de Janeiro, 2014.).

O fortalecimento da identidade territorial pode estimular a criação de objetivos e estratégias de desenvolvimento que partam da própria comunidade (POLLICEA, 2010POLLICE, F. O papel da identidade territorial nos processos de desenvolvimento local. Tradução de Andrea Galhardi Oliveira. Espaço e Cultura, UERJ, RJ, n. 27, p. 7-23, 2010.). Desta forma, o conceito de “território” se apresenta como elemento chave para essas comunidades e a sua importância se exemplifica com a presença desse termo nos conteúdos programáticos do projeto “Cultura Caiçara” e no título do projeto “Praia e Território” (Tabela 4).

Tabela 4
Conteúdos atividades e tarefas para o Projeto “Praia e Território

A praia é o lugar da pesca, do surf, do transporte das embarcações, do lazer, e um dos principais atrativos turísticos das comunidades. Por essas características, possui estreita relação com a identidade caiçara.

O tema “Praia” aparece na rede temática associada à geração de renda que, por sua vez, se subdivide em pesca e turismo, as duas principais atividades econômicas desenvolvidas nas comunidades do Pouso da Cajaíba e da Praia do Sono.

Nas matrizes de planejamento, dentre os objetivos apresentados referentes à atividade turística, destacam-se: refletir sobre as consequências e influências do turismo, que ocorre de forma desordenada no território; estudar modelos de turismo de forma sustentável e de base comunitária; elaborar o perfil dos turistas e produzir um guia turístico.

O tema turismo possuiu grande destaque, a ponto de receber um projeto (Tabela 5) para a elaboração de um guia turístico confeccionado pelos alunos com o auxílio dos professores e da equipe do IEAR/UFF.

Tabela 5
Conteúdos, atividades e tarefas para o Projeto “Guia turístico

Para a elaboração do “Guia Turístico”, foi projetada uma sequência de atividades, que integram as disciplinas de Humanas, Linguagens e Ciências Naturais e Exatas. A elaboração contou também com duas oficinas, uma de fotografia e outra de Cartografia Social.

Foram organizados trabalhos de campo pela comunidade para identificar alguns atrativos turísticos. O passo seguinte foi o desenvolvimento de textos descritivos desses atrativos para compor o guia turístico. Paralelamente a essa etapa, houve a oficina de fotografia e, posteriormente, os alunos foram divididos em grupos com a função de fotografar alguns elementos que retratem a paisagem e os elementos culturais presentes na comunidade.

Outro importante elemento para compor o guia turístico foram os mapas. Foram realizadas as oficinas de “Cartografia Social”, após o professor de humanas trabalhar com os alunos os elementos básicos que devem compor um mapa. As representações que aparecem na cartografia social são exemplos de afirmação dos modos de vida da própria comunidade e evidenciam as territorialidades que geram a identificação com o território (ACSELRAD, 2012ACSELRAD, H. Mapeamentos, identidades e territórios. In: ACSELRAD, H. (org.). Cartografia social e dinâmicas territoriais: marcos para o debate. 2ª ed. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ, 2012, p. 9-45. ).

De acordo com uma professora do IEAR/UFF, a proposta de se trabalhar a cartografia social com os alunos das escolas caiçaras do fundamental II surgiu com o projeto do Guia Turístico e com a proposta de iniciar a abordagem de desenvolvimento do turismo de base comunitária nas comunidades.

Em uma das etapas da oficina de cartografia social, os alunos tiveram contato com imagens de satélite das comunidades para identificarem a localidade dos elementos que irão compor o mapa do guia turístico. A construção participativa através do uso das novas tecnologias, cada vez mais presente nos dias atuais, possibilita uma ampliação da percepção do espaço vivido e de suas transformações, além de tornar a aprendizagem mais prazerosa, significativa e inclusiva. Por sua vez, o interesse dos jovens pelo acesso às novas tecnologias gera motivação, o que contribui para ampliar as oportunidades de aprendizagem (DEMO, 2009_________.Qualidade humana. Armazém do Ipê: Campinas, SP, 2009, p.11-22.).

Outro importante tema presente nos conteúdos programáticos refere-se à legislação que institui as diferentes unidades de conservação, tanto as de uso sustentável como as de caráter mais restritivo. A região da península da Juatinga, que abriga, entre outras comunidades, as do Pouso e do Sono, está dentro dos limites da Reserva Ecológica da Juatinga, criada pelo Decreto estadual n° 17.981, de 30 de outubro de 1992. Porém, esta categoria deixou de existir após a implantação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC, através da Lei 9.985, de 18 de julho de 2000.

Até o mês de outubro de 2017, ainda se encontrava em discussão a recategorização dessa unidade de conservação, liderada pelo Instituto Estadual de Meio Ambiente - INEA e representantes das comunidades tradicionais. Dependendo do resultado, alguns projetos de desenvolvimento socioeconômico, como a pesca, a agricultura ou o extrativismo vegetal podem ser inviabilizados. Por outro lado, a abordagem do tema das unidades de conservação pode gerar uma mobilização social associada à sustentabilidade e à proteção ambiental, que também estão presentes nas discussões conceituais sobre as iniciativas de turismo de base comunitária.

Em relação ao guia turístico que foi confeccionado, a professora da área de Linguagens colaborou na construção e revisão dos textos em Português e na tradução de algumas informações para o Inglês. Além da cartografia e dos aspectos culturais, o professor da área de Humanas colaborou junto com a professora da área de Ciências com informações a respeito das características físicas que compõem o ambiente local, como o relevo, o clima, a vegetação, a fauna, o solo e o ambiente marinho.

Para uma das professoras que compõem a equipe, o processo de construção do guia é um momento chave para que as comunidades se apropriem da gestão de um turismo responsável, para se contraporem ao turismo em larga escala que vem sendo desenvolvido nos feriados. Durante o verão, há o envolvimento de toda a comunidade na atividade turística, inclusive dos jovens que frequentam a escola.

Outro professor do IEAR/UFF destacou que o turismo de base comunitária pode valorizar os aspectos culturais nos roteiros turísticos ainda pouco explorados e, com isso, aumentar as alternativas de renda para as comunidades. Acredita que a escola pode contribuir para o desenvolvimento do turismo de base comunitária em acordo com o ensino diferenciado que tem sido ofertado, favorecendo, assim, uma proposta que gere autonomia de desenvolvimento de trabalho e renda.

Um terceiro professor que compõe a equipe do IEAR/UFF advertiu para a necessidade de a escola ter o apoio da Universidade e a participação dos pais e responsáveis para se pensar de forma coletiva em projetos futuros. Acredita que a escola, isoladamente, não tem possibilidade de gerar uma compreensão crítica a respeito da necessidade de se construir um currículo diferenciado em prol dos projetos de futuro desejados pela comunidade.

Na reunião de avaliação final do ano letivo de 2016 do coletivo de Apoio à Educação Diferenciada, houve uma importante recomendação de que é necessário investir na aproximação dos pais e responsáveis na discussão sobre os projetos da escola. Consideraram que este foi um aspecto trabalhado de forma insuficiente e que deve ser uma das principais metas para afinar a proposta da educação caiçara, ofertada nas comunidades do Pouso e do Sono.

Segundo uma das professoras do IEAR/UFF, durante as reuniões realizadas com os responsáveis dos alunos, percebeu-se que alguns pais ficavam inseguros com o fato de que o conteúdo que estava sendo proposto seria diferente do ofertado na “cidade” e, com isso, temiam que os seus filhos pudessem ser prejudicados. Para a professora, essa é uma construção ideológica muito forte, a de que “a escola da cidade é melhor” e esse debate é influenciado por diferentes concepções de educação e desenvolvimento.

A mesma lembra que um dos principais pressupostos da formação curricular é o seu caráter dinâmico, e que as bases curriculares já foram consolidadas ao longo de um processo que contou com a colaboração de professores, alunos, responsáveis pelos alunos e lideranças comunitárias. Entretanto, faz parte do processo os constantes ajustes e, para isso, é fundamental a presença desses sujeitos para compreender e apoiar a proposta de ensino da escola. Estreitar essa aproximação entre os responsáveis e a escola é um dos principais desafios a serem alcançados para a consolidação da proposta de uma educação escolar caiçara.

Considerações finais

A elaboração do currículo e das propostas pedagógicas do ensino fundamental II nas escolas Martim de Sá, na Praia do Sono, e da Cajaíba, no Pouso da Cajaíba, tem como diferencial de trabalho um processo de construção participativa em conjunto com a comunidade escolar, conforme determina a legislação para a educação do campo. Esse processo de construção foi essencial para definir os elementos presentes na rede temática, que serviram de base para orientar a construção da matriz curricular, dos projetos e das aulas-guias.

Dessa forma, o processo de discussão sobre a educação diferenciada possibilitou, no âmbito da proposta curricular, abordar elementos que identificam os saberes, a história, a cultura, as características ambientais e econômicas locais em integração com os conteúdos pertinentes às áreas de conhecimento (Humanas, Linguagens, Ciências Naturais e Exatas), caracterizando, assim, uma proposta de interculturalidade.

O envolvimento dos alunos na construção do guia turístico, considerando a inserção de fotos, mapas e textos produzidos por eles, pode contribuir para o aumento da autoestima e afirmação de identidades, na medida em que são protagonistas na elaboração de um“ conteúdo turístico” produzido a partir de suas narrativas. Além disso, essa iniciativa tende a despertar nos estudantes uma reflexão crítica sobre o planejamento da atividade turística nos seus territórios.

Essas questões evidenciam o papel da formação escolar na reflexão sobre a afirmação de identidades e formação de uma consciência crítica a respeito do modelo de desenvolvimento vigente, além de fortalecer a participação dos indivíduos em espaços de comunicação e decisão.

Conforme foi apresentado, algumas características presentes nas propostas de turismo de base comunitária, como a interculturalidade, o protagonismo da comunidade, a valorização dos aspectos históricos, culturais e a conservação da natureza vêm sendo trabalhadas na proposta curricular das escolas caiçaras nas comunidades do Pouso e do Sono.

Deve-se destacar que o acordo de cooperação técnica firmado entre a Secretaria Municipal de Educação de Paraty e o Instituto de Educação de Angra dos Reis/UFF está apenas no seu início e irá se estender até o ano de 2019, o que possibilitará oferecer uma formação continuada para os jovens que iniciaram os seus estudos no 6º ano em 2016 até o final (9º ano) do ensino fundamental.

É possível que a proposta de educação escolar diferenciada que está sendo ofertada no Pouso da Cajaíba e na Praia do Sono funcione como inspiração para outras escolas que atendam o público caiçara e em comunidades que também estejam discutindo a implantação do turismo de base comunitária em seus territórios.

Por fim, este artigo buscou evidenciar o papel da educação diferenciada na definição do modelo de desenvolvimento do turismo, considerando que a formação do indivíduo faz parte de um processo contínuo de aprendizado pautado em diferentes fontes e significados. A escola não é a única responsável pela formação, mas, sem dúvida, é uma importante aliada na busca por uma educação libertadora, onde os sujeitos possam definir e executar estratégias de desenvolvimento que promovam a autonomia e a liderança na gestão de seus territórios.

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    . Agradecemos aos professores do Instituto de Educação de Angra dos Reis/UFF, lideranças comunitárias e ao Coletivo de Apoio à Educação Diferenciada do Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    08 Fev 2018
  • Aceito
    31 Jan 2019
ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
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