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A heterodiscursividade em narrativas fantásticas da tradição oral

RESUMO

Este artigo investiga a presença do heterodiscurso em narrativas da tradição oral. Para tanto, a fundamentação teórica baseia-se na perspectiva bakhtiniana, que compreende o discurso, nas narrativas literárias, como marcado pela heterodiscursividade, evidenciando uma diversidade de vozes sociais que sinalizam modos de compreensão e pontos de vista sobre o mundo. A análise do corpus, composto por duas narrativas da tradição oral, aponta, portanto, que as vozes do narrador, dos contadores tradicionais de histórias e das personagens aparecem em constante dialogicidade com as vozes sociais, orientadas por axiologias, posições e centros valorativos de ordem social, cultural e histórica. O estudo constatou, assim, formas de refletir e de refratar os acontecimentos da existência, quadros morais que os pautam e as compreensões dos modos de ser e de agir em situações concretas da vida em sociedade, em consonância com os pressupostos dialógicos da pesquisa.

PALAVRAS-CHAVE:
Heterodiscurso; Narrativas fantásticas da tradição oral; Vozes sociais

ABSTRACT

This article investigates the presence of heterodiscourse in narratives of oral tradition. Therefore, the theoretical foundation is based on the Bakhtinian perspective, which understands the discourse, in the literary narratives, as marked by heterodiscursivity, evidencing a diversity of social voices that signal ways of understanding and points of view about the world. The analysis of the corpus, composed of two narratives from the oral tradition, points out, therefore, that the voices of the narrator, of the traditional storytellers and of the characters appear in constant dialogicity with the social voices, guided by axiologies, positions and evaluative centers of social, cultural and historical order. The study thus found ways of reflecting and refracting the events of existence, moral frameworks that guide them and the understanding of ways of being and acting in concrete situations of life in society, in line with the dialogic assumptions of the research.

KEYWORDS:
Heterodiscursivity; Fantastic narratives of oral tradition; Social voices

Introdução

Ao pensar na exterioridade do mundo, nas relações e interações das mais diversas práticas sociais, desde as esferas mais simples, como numa conversa corriqueira do cotidiano em família, até as mais elaboradas, como numa participação de audiência de instrução e julgamento, compreender-se-á como os seres humanos são constituídos e constituem o mundo na e pela linguagem, numa dinâmica de múltiplas interações e inter-relações sociais. Como seres de linguagem, percebe-se que a consciência é formada por discursos, visto que a apreensão do mundo é feita discursivamente, na realidade concreta do meio social em que se está imerso, por meio do diálogo com as múltiplas vozes, numa relação constante e inacabada.

Nessa perspectiva, Mikhail Bakhtin, nos “Fragmentos dos anos 1970-1971”, ensaio inserido em Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas (2017), tece as seguintes considerações:

Tudo o que me diz respeito, a começar pelo meu nome, chega do mundo exterior à minha consciência pela boca dos outros (da minha mãe etc.), com a sua entonação, em sua tonalidade valorativo-emocional. A princípio eu tomo consciência de mim através dos outros: deles eu recebo as palavras, as formas e a tonalidade para a formação da primeira noção de mim mesmo (BAKHTIN, 2017aBAKHTIN, M. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Glossário de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017a, p.21-56., p.29).

É na e pela linguagem que se tenta compor, representar, refletir e até mesmo tangenciar o mundo exterior e a si mesmo, aquilo que se pensa, que se deseja, os acontecimentos da vida, os modos de ser e de estar no mundo. Ou, como aponta Bakhtin em Para uma filosofia do ato responsável (2017b)BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Carlos Alberto Faraco e Valdemir Miotello. 3. ed. São Carlos: Pedro & João Editores, 2017b., a linguagem nos possibilita materializar a arquitetônica do mundo da vida em torno dos centros de valor do eu e do outro, pois existimos na linguagem.

Os estudos que ora se propõem buscam dialogar e refletir sobre a linguagem literária, mais especificamente sobre a literatura oral, que, de acordo com Fernandes, em Oralidade e literatura: manifestações e abordagens no Brasil (1998, p.119-120)FERNANDES, A. G. (org.). Oralidade e literatura: manifestações e abordagens no Brasil. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 1998.:

(...) é aquela em que, durante uma performance, contemplamos vários códigos: o musical (ou seja, a literatura oral é cantada ou entoada, podendo ser acompanhada de música); o cinésico (caracterizado pelos movimentos dos autores e sua plateia); o proxémico (que regula o emprego das palavras entre os seres e as coisas); e o paralinguístico (responsável pelos fatores vocais como entonação, qualidade da voz, ruídos, risos etc.). Neste sentido, a literatura oral manifesta-se por meio de diversas maneiras: desde repentistas, que passam horas a fio pelejando entre versos, até grupos teatrais que vêm encenando lendas e contos populares.

Diante do exposto, cabe divisar, ainda, que, perante a multiplicidade, amplitude e vastidão que compõem a literatura oral (repentes, poemas, cordéis, canções, autos, narrativas orais, entre outros), o foco aqui está na tradicional arte de contar histórias, aquela que tem como central a figura do contador tradicional, o encantador de palavras. Ou, como afirma Sisto, no livro Textos e pretextos sobre a arte de contar histórias (2005, p.101)SISTO, C. Textos e pretextos sobre a arte de contar histórias. Curitiba: Positivo, 2005.:

O contador de histórias é um todo orgânico que se expressa pela voz, pelo corpo e pelas expressões faciais, como resultado de um estímulo que tem sua raiz no texto contado, mas previamente elaborado em termos de imagens, ritmo, movimentos, memória, emoção, silêncios e treinamentos.

Feitas as considerações sobre o recorte temático da investigação, é válido considerar que narrar histórias é um exercício milenar, anterior à própria escrita, presente nas mais diversas civilizações, nos inúmeros espaços geográficos e sociais, com múltiplas intenções: educar, divertir, entre outras. Uma arte cuja marca primeira reside “na condição de encantar, de significar o mundo que nos cerca, materializando e dando forma às nossas experiências” (MATOS; SORSY, 2013MATOS, G. A.; SORSY, I. O ofício do contador de histórias: perguntas e respostas, exercícios práticos e um repertório para encantar. 3. ed. São Paulo: Editora WMF/Martins Fontes, 2013., p.9).

Conforme Pimentel e Fares (2014, p.192)PIMENTEL, D. S.; FARES, J. A. O lugar das poéticas orais. Boitatá. Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL, v. 9, n. 17, 2014.:

(...) as tradições orais são anteriores aos textos canônicos e literários lidos pelo mundo inteiro, não descartamos a prerrogativa de que a literatura, quase sempre, se serviu do imaginário dos povos de culturas antigas. Visto dessa maneira, ao ter firmado o pé nas velhas tradições, a literatura não pode hesitar olhar para o ontem de sua gênese criadora, nem tampouco, negar a importância do papel que desempenharam na história da humanidade as tradições orais.

Sob essa perspectiva, muitos são os estudos que evidenciam a relevância das narrativas da tradição oral e o quanto suas contribuições permeiam distintos campos das ciências humanas, sociais e da literatura. Basta observar os inúmeros ecos da linguagem literária advindos da tradição oral para reconhecer que diversos são os clássicos da literatura mundial que se inspiraram nas poéticas orais e que têm sua gênese na oralidade.

A título de exemplo, podem-se citar alguns casos análogos, tais como: na literatura da Grécia antiga, a Ilíada e a Odisseia que, apesar de serem atribuídas a Homero devido à sua compilação e reprodução, são originariamente da tradição oral. Do mesmo modo, as cantigas trovadorescas eram transmitidas oralmente através da música. Somam-se, ainda, a esse contexto as narrativas que emergem das lendas e dos contos árabes consagrados na oralidade, que compõem uma das mais conhecidas obras da literatura universal – As mil e uma noites, nas quais se vê em cena a personagem Sheherazade, com a sua inigualável habilidade para contar histórias, dar vida e encantamento a enredos ficcionais.

Cientes das potencialidades das narrativas da tradição oral, neste estudo, objetiva-se investigar o papel do discurso nas narrativas orais fantásticas dos contadores tradicionais de histórias da cidade de Tapiramutá, situada na Chapada Diamantina, interior da Bahia. Nesse local, a prática de contar histórias faz-se presente nos mais diversos eventos e situações do cotidiano, uma singular expressão da tradição cultural do município.

Assim, como a literatura fantástica apresenta uma diversidade de entendimentos e conceituações, cabe pontuar que se tomam como norteadores os estudos e definições de Tzvetan Todorov no livro Introdução à literatura fantástica (1981). Segundo o autor, o fantástico é visto como um gênero literário, que se caracteriza pela hesitação, vacilação – não resolvida – entre uma explicação racional e uma explicação sobrenatural para certos acontecimentos estranhos. O autor adverte, ainda, que “não é possível definir o fantástico como oposto à reprodução fiel da realidade, ao naturalismo” (TODOROV, 1981TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. Tradução de M. Clara C. Castello. São Paulo: Perspectiva, 1981., p.21).

A hesitação ou a vacilação pode ser compreendida como elemento que insere a tensão, a apreensão, o medo, o espanto, a surpresa, sensações e sentimentos que se apresentam a partir de acontecimentos que irrompem nos enredos. Nesse sentido, a hesitação é um fenômeno que envolve reações não apenas do narrador e das personagens da narrativa, mas também do leitor. Para Todorov (1981, p.19-20)TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. Tradução de M. Clara C. Castello. São Paulo: Perspectiva, 1981., o fantástico exige o cumprimento de três condições:

Em primeiro lugar, é necessário que o texto obrigue ao leitor a considerar o mundo dos personagens como um mundo de pessoas reais, e a vacilar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. Logo, esta vacilação pode ser também sentida por um personagem de tal modo, o papel do leitor está, por assim dizê-lo, crédulo a um personagem, e ao mesmo tempo a vacilação está representada, converte-se em um dos temas da obra. (...) Finalmente, é importante que o leitor adote uma determinada atitude frente ao texto: deverá rechaçar tanto a interpretação alegórica como a interpretação “poética”.

Feitas essas considerações, cabe assinalar que, no que se refere à análise, parte-se da reflexão epistemológica de Bakhtin que, no ensaio “O discurso no romance”, em Teoria do romance I – A estilística (2015, p.63), considera que “(...) a própria linguagem literária – falada e escrita – já sendo única não só por seus traços linguísticos abstratos, mas também pelas formas de assimilação desses elementos abstratos, é estratificada e heterodiscursiva em seu aspecto semântico-material concreto e expressivo”.

O interesse desta análise é, portanto, o modo como as narrativas orais fantásticas se constituem e se fundamentam na heterodiscursividade, por uma diversidade de linguagens e vozes sociais que apontam para modos de compreensão e pontos de vista sobre o mundo. O corpus é formado por duas narrativas fantásticas oriundas da tradição oral, presentes no livro de Nádia Araújo, Contando do nosso jeito (2017)ARAÚJO, N. Contando do nosso jeito. Diálogos entre narrativas orais e práticas educativas. Curitiba: Appris, 2017..

1 Escolha do corpus e procedimentos metodológicos

A escolha do corpus se deu devido a situações bastante singulares, ligadas ao imbricamento que se tem com as pesquisas sobre as poéticas da tradição oral, mais precisamente, aos estudos feitos entre os anos de 2014 e 2016, sobre as potencialidades pedagógicas da inserção das narrativas orais dos contadores tradicionais no âmbito escolar. Tal investigação foi realizada no Mestrado em Educação e Diversidade – MPED, da Universidade do Estado da Bahia – UNEB.

A partir desse contexto, passou-se a observar a marcante e recorrente presença de narrativas que materializam discursos em que o fantástico ganha ênfase. Num corpus de oitenta e nove narrativas recolhidas, observou-se que cinquenta e duas delas são compostas por tais características, apresentando marcas constitutivas e reveladoras do imaginário sociocultural tapiramutense. Essa percepção é reforçada ainda mais com a elaboração e publicação do livro Contando do nosso jeito, em 2017, uma vez que a recolha e a seleção dos materiais para a construção da referida obra certificavam o amplo e diversificado índice de enredos fantásticos narrados pelos contadores tradicionais daquela cidade.

Além dos elementos fantásticos dessas narrativas, também se percebe uma grande diversidade de modos de linguagem e de discursos. Melhor dizendo, nota-se a existência do heterodiscurso (cf. Bakhtin, 2015BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. A teoria do romance I: A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário Paulo Bezerra. Organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015.) no interior desses enredos fantásticos, uma vez que se observam, nos fios discursivos, materializarem-se linguagens de diferentes esferas sociais, discursos de diversos grupos pertencentes a uma distinta gama de classes sociais, faixas etárias, profissões, gêneros e ideologias.

De igual modo, depreende-se o entrelaçamento dos discursos num constante diálogo entre si. Por vezes, o discurso do contador tradicional mistura-se ao do narrador (autor-criador)1 1 Termo utilizado por Bakhtin no texto “O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária”, escrito em 1924. Sob este viés, o autor-criador é quem dá forma ao conteúdo, constrói, reconstrói, organiza e reorganiza esteticamente o herói e seu mundo a partir da posição axiológica e dos centros valorativos do autor-pessoa. , como também das personagens, sob diferentes horizontes e centros valorativos, ora refutando e discordando, ora mostrando e confirmando, ora assimilando, numa constante interação de vozes atravessadas por diferentes pontos de vista e modos de compreender o mundo, numa ininterrupta relação de alteridade e dialogicidade.

Dessa forma, nota-se que as pistas que emergiam do próprio corpus orientavam para a necessidade de se adotar como procedimento metodológico, como eixo norteador para a análise desses textos, a perspectiva bakhtiniana. Isso porque, no estudo de uma estilística sociológica, a linguagem literária é concebida como fenômeno social, enfocando, sobretudo, a presença da heterodiscursividade, ou melhor, como o discurso heteroglóssico se apresenta em textos da literatura oral.

Para tanto, parte-se do princípio de que o heterodiscurso não é apenas um mero elemento composicional do texto literário. Trata-se de “um universo discursivo povoado por uma diversidade de linguagens e vozes sociais, que são pontos de vista específicos sobre o mundo, formas de sua compreensão verbalizada, horizontes semânticos e axiológicos” (BEZERRA, 2015BEZERRA, P. Prefácio. In: BAKHTIN, M. A teoria do romance I: A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. Organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015., p.13).

Quanto à seleção do corpus para análise, parte-se das seguintes prerrogativas: 1- tendo em vista que há diversos gêneros nas narrativas orais fantásticas, fábulas, contos, anedotas, lendas, mitos, entre outros, a investigação centra-se na heterodiscursividade, nos contos populares, uma vez que este é o gênero de maior recorrência, o mais utilizado entre os contadores tradicionais de Tapiramutá; 2- como se trata de um artigo, com um curto espaço para a discussão, não se teria como dar conta de uma quantidade muito grande de textos para análise; por essa razão, opta-se por selecionar apenas dois: “A princesa dos sete sapatos”, contado pelo senhor Manoel Souza Silva, conhecido popularmente como Pombo, e “João Borralheiro”, contada pelo senhor Nivaldo Lima de Araújo; 3- tal escolha se deu devido ao fato de em ambos aparecerem como personagem principal a figura do “borralheiro”, bem como por esses contos serem narrados por diferentes contadores tradicionais.

2 O heterodiscurso e as vozes sociais na perspectiva bakhtiniana

É inegável o poder da linguagem como acontecimento que se realiza em atos enunciativos. Nas contações de histórias, vê-se a linguagem tomar sentidos e significações múltiplas através da interação, quando, no mínimo, duas consciências interagem – a do contador e a do ouvinte/espectador.

Nesses encontros do eu com o outro, as palavras vão ganhando vida e vestindo-se de significados a partir dos contextos de enunciação, ora seguem caminhos enigmáticos e mascaram-se, ora transbordam para lugares até então insólitos, outras vezes, dançam de forma serena juntando-se a outras palavras. A contação de histórias mostra, assim, a língua em seu uso efetivo, na vocalidade performática dos contadores tradicionais, que constroem e reconstroem seus enunciados, seus enredos de discursos plurivocais, carregados de heterodiscursos, de vozes sociais.

As histórias da tradição oral são como conversas ao infinito, são enunciados constituídos na alteridade e que podem ser marcados ou não, porque são palavras que passam de boca em boca, de geração em geração, contadas por tantos outros sujeitos, em diferentes contextos, tempos e sob distintas intenções, acentuações e acabamentos, nas mais diversas situações comunicativas das esferas humanas. Por isso, vislumbram-se as narrativas como práticas enunciativas cujo entrelace entre as linguagens oral, gestual, performática e poética busca refletir, refratar e representar a vida e o mundo ou, como propõe Lima, no livro Narrativas orais: uma poética da vida social (2003, p.16)LIMA, N. C. de. Narrativas orais: uma poética da vida social. Brasília: Universidade de Brasília, 2003.: “as narrativas orais são a produção de uma poética da vida social que se origina e se sustenta da própria coletividade, num incessante movimento de interpretação das experiências coletivas por meio de alegorias e metáforas”.

Nesse sentido, ao entrever o corpus e o objeto de análise desta investigação e tendo em vista a multiplicidade epistemológica e metodológica que compõem as Ciências da Linguagem nos dias atuais, opta-se por amparar as discussões e análises sob o viés da teoria de Bakhtin, também chamada de teoria dialógica da linguagem, por ser a que tem o ângulo que melhor responde aos problemas e interrogações lançados neste estudo. Na perspectiva dialógica, a língua é percebida como elemento de reflexão e refração do sujeito, das suas impressões de mundo dentro da realidade vivenciada. Ela é vista em sua integridade concreta e viva (cf. Bakhtin, 2020BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução do russo por Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2020, p.1-20.), uma vez que o locutor se serve dela para suas necessidades enunciativas (para o locutor, a construção da língua está orientada no sentido da enunciação da fala). Coaduna com essa compreensão Cunha, no texto Artigos acadêmicos da área de história: heterovocalidade, diversidade composicional e estilística (2020, p.7)CUNHA, D. de A. C. da. Artigos acadêmicos da área de história: heterovocalidade, diversidade composicional e estilística. Investigações, Recife, v. 33, n. 2, 2020., em que tece as seguintes considerações:

Assim concebida, a língua é uma abstração, enquanto a linguagem concreta é de natureza variável em função do interlocutor, da situação, do contexto mais amplo, dos modos de recepção. A linguagem é o lugar do heterogêneo, produz sentidos na relação com os entornos, com outras semiologias e na sua circulação. A diferença entre as abordagens discursivas e linguística stricto sensu está no fato de as primeiras estudarem os modos variados de funcionamento e de circulação da linguagem, incluindo o não-verbal com toda a sua complexidade e de não se limitar às regularidades da língua.

A língua não é, pois, apenas a estrutura e a forma, um sistema abstrato de formas linguísticas; ao contrário, ela está em constante movimento, materializa-se através de enunciados concretos em situações reais de fala/escrita. Logo, a linguagem é um ato concreto, materializado na tessitura social do cotidiano, sendo, assim, um elemento contextualizado e em constante movimento.

Melhor dizendo, para a teoria dialógica, a linguagem é uma atividade que se estratifica em camadas socioaxiológicas, um fenômeno de duas faces, que presume sempre a existência de um falante e de um ouvinte – ainda que este não seja real. O seu princípio fundador são as relações dialógicas, a interação entre os interlocutores – o ouvinte e o falante, mediados pela palavra em contextos reais de uso. É sob esse prisma da linguagem, num jogo infinito de reflexos no espelho, que reflete e refrata a multiplicidade de vozes que compõem os discursos dos sujeitos, que Bakhtin, no ensaio “O discurso no romance” (2015)BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. A teoria do romance I: A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário Paulo Bezerra. Organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015., elabora uma teoria do romance, como fenômeno pluridiscursivo, heterovocal, heterodiscursivo, oferecendo a possibilidade de refletir sobre a diversidade de discursos sociais, para a combinação de estilos e linguagens que, artisticamente, compõem as narrativas literárias:

(...) através do heterodiscurso social e da dissonância individual, que medra no solo desse heterodiscurso, o romance orquestra todos os seus temas, todo o seu universo de objetos e sentidos que representa e exprime. O discurso do autor, os discursos dos narradores, os gêneros intercalados e os discursos dos heróis são apenas as unidades basilares de composição através das quais o heterodiscurso se introduz no romance; cada uma delas admite uma diversidade de vozes sociais e uma variedade de nexos e correlações entre si (BAKHTIN, 2015BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. A teoria do romance I: A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário Paulo Bezerra. Organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015., p.30).

Desse modo, Bakhtin (2015)BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. A teoria do romance I: A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário Paulo Bezerra. Organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015., ao centrar-se no caráter heterodiscursivo da prosa poética, revela como as diferentes vozes sociais povoam e dialogam no interior dos enredos. Em outras palavras, não se trata de um discurso monológico, constituído apenas da voz do autor-criador, mas de um campo fértil para as representações e misturas de vozes e enunciações. Conforme Faraco, no ensaio “Autor e autoria”, no livro Bakhtin: conceitos-chave (2020, p.40)BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução do russo por Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2020, p.1-20.:

Essa voz criativa (isto é, o autor-criador como elemento estético formal) tem de ser sempre, segundo insiste Bakhtin, uma voz segunda, ou seja, o discurso do autor-criador não é a voz direta do escritor, mas um ato de apropriação refratada de uma voz social qualquer, de modo a poder ordenar um todo estético.

O que equivale a dizer que o autor-criador, a segunda voz, vê, imagina e compreende o mundo não apenas na individualidade, na singularidade de sua linguagem, mas com os olhos de muitos outros, a linguagem é experienciada por diferentes personagens, de diferentes grupos sociais, profissões, idades e gêneros, bem como pertencentes a diferentes lugares e ambientes, quer sejam urbanos, rurais, grandes centros ou interiores isolados, atravessados, ainda, por diversos centros de valores e axiologias. Nessa perspectiva, Bakhtin sinaliza para a necessidade de se reconhecer, na estilística sociológica da prosa, a intencionalidade das palavras e das formas, uma vez que “a própria linguagem literária – falada e escrita – é estratificada e heterodiscursiva em seus aspectos semânticos concreto e expressivo” (BAKHTIN, 2015BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. A teoria do romance I: A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário Paulo Bezerra. Organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015., p.63), o que torna o discurso poético plurilíngue e povoado pelas intenções sociais de outros, dado que não se trata de uma única linguagem, mas de um diálogo de linguagens.

O prosador usa linguagens povoadas de intenções sociais alheias e as obriga a servir às suas novas intenções, a servir a um segundo senhor. Por isso, as intenções do prosador se refratam, e se refratam sob diferentes ângulos, dependendo do grau de alteridade socioideológica, de encorpadura, de objetificação das linguagens que refratam o heterodiscurso (BAKHTIN, 2015BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. A teoria do romance I: A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário Paulo Bezerra. Organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015., p.77).

Somam-se a essas questões o apontamento que o teórico faz quanto à relevância de se repensar as práticas de análise estilística das obras literárias até então centradas, exclusivamente, nos aspectos linguísticos e formais do discurso do autor, no referente. O que leva a conceber a linguagem de maneira monológica, individualizada, rumo a um novo horizonte a ser trilhado, uma nova perspectiva de análise estética do objeto, centrada “no discurso bivocal dialogizado”, a partir de um olhar que compreenda a totalidade da arquitetônica que constrói a obra estética, estabelecida pela interação entre material, forma e conteúdo.

Dito de outro modo, Bakhtin (2015)BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. A teoria do romance I: A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário Paulo Bezerra. Organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015. sinaliza para a importância de se realizar uma análise que atente para a dupla orientação que compõe a estilística das obras literárias. Tem em vista que as vozes dos outros, as vozes alheias, ora são marcadas, ora se misturam à voz do autor-criador, por vezes, de forma dissimulada, não marcada, visto que, muitas vezes, no ato criativo, o autor se utiliza de palavras de outrem, no próprio enunciado, sem necessariamente apontar traços formais (discurso direto, indireto, aspas, itálico, parênteses etc.) que marquem tal ocorrência.

3 Leituras do corpus

De início, é válido pontuar a ciência que se tem dos desafios que compõem a análise literária, a qual exige um olhar diferente da análise puramente linguística. Isso porque a linguagem literária, em sua complexidade, trabalha artisticamente com determinados espaços, tempos, ideologias, valores, crenças, enfim busca compreender o homem que fala e suas relações consigo mesmo, com o outro e com mundo, seus modos de ser, agir e significar.

Além disso, os textos narrativos favorecem a materialização e a ilustração vivaz da busca por representar a realidade, ou melhor, os mundos possíveis. Logo, a construção de significados e sentidos, a interpretação estilística de uma obra é deveras complexa, múltipla, jamais fechada, acabada. Sendo assim, existe, aqui, a consciência de que a análise das narrativas selecionadas para esta proposta será apenas uma, dentre tantas outras possíveis, a depender dos enfoques que podem ser investigados.

Cabe divisar, ainda, que como foram selecionadas duas narrativas, mais especificamente contos da tradição oral, o corpus é relativamente denso, de tal modo que não se tem o intento de realizar uma análise pormenorizada de toda a extensão das narrativas. A análise realizada foca em como os heterodiscursos, as vozes sociais, os pontos de vista emergem nos enredos e, também, a que visões de mundo essas vozes remetem.

De entrada, notam-se alguns traços comuns nos contos selecionados, dentre eles o fato de os acontecimentos narrados se enraizarem em um tempo que não está situado cronologicamente, mas em um tempo mítico, marcado, sobretudo, pelas desigualdades sociais, pela busca da ascensão social, vista, por sua vez, como uma realidade distante e até mesmo intransponível. Observa-se, também, que a voz do narrador (autor-criador) busca construir esses enredos por meio do desenho de diferentes espaços e lugares, sob sua voz, descortinando-se espaços ficcionais ora simples e rurais, ora palacianos e glamorosos, os quais buscam refratar, intencionalmente, de forma verossímil, o contexto social profundamente desigual e injusto do país.

Os dois contos, “João Borralheiro” e “A princesa dos sete sapatos”, constroem-se, assim, a partir do diálogo discursivo com a mistura de vozes: do narrador (autor-criador), das personagens e do contador tradicional, que, por sua vez, se entrelaçam a outras vozes sociais, vozes dos outros, vozes alheias. Nesse jogo, vê-se em cena, no mesmo plano narrativo, uma pluralidade de vozes que estão presentes nos enunciados dos locutores, permeadas por crenças, axiologias e valores.

Percebe-se, dessa maneira, que os enredos são construídos no entrecruzamento dos discursos indireto (na voz do narrador, autor-criador), do discurso direto (na voz das personagens) e do discurso indireto livre (nas vozes do narrador/autor-criador e do contador tradicional). Nota-se, portanto, que, no discurso indireto livre, recorrentemente, encontram-se digressões emolduradas sob a voz do contador tradicional, especialmente por meio dos seus comentários, enquanto que, sob a voz do narrador (autor-criador), apresentam-se as reflexões das ações das personagens, nessas construções, podendo-se identificar, claramente, como vozes coletivas moralizantes e julgadoras. De toda forma, são vozes e enunciações que recebem acentuação valorativa, trazem marcas das subjetividades, pontos de vista e intenções do enunciador, marcas visíveis da interação com o discurso do outro.

Identifica-se, ainda, em ambos os contos, a carga enunciativa no uso dos verbos dicendi para introduzir o discurso direto, também conhecidos como verbos de elocução/de declaração, como se pode perceber nos trechos abaixo:

Aí, João todo contente disse: – Eita diabo! Hoje eu tenho o que comê. Ia matar a preá para comer assada. Aí, a preá foi disse: – João, não me mata não, que eu te dou tudo que tu precisa na vida (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, N. Contando do nosso jeito. Diálogos entre narrativas orais e práticas educativas. Curitiba: Appris, 2017., p.59).

(...) aí, um dia ele disse: – mãe, eu hoji vô discubri cuma é que a prencesa acaba os sete par de sapato na noiti ... Aí ela disse: – vai disgramado que tu vai morrer que eu num sei quantos homi sabido, principo e tudo (ênfase com tom de voz de ironia) (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, N. Contando do nosso jeito. Diálogos entre narrativas orais e práticas educativas. Curitiba: Appris, 2017., p.48).

Nesses fragmentos, há indicadores que apontam para elementos recorrentes nos enredos dos contadores de Tapiramutá, a saber, uma das marcas estilísticas dessas narrativas é a forte presença de princesas, reinos encantados, narrativas revestidas por tramas permeadas pela luta de classes, o mundo da nobreza cheio de pompa e riquezas, frente ao mundo da pobreza, das dificuldades, das pessoas invisibilizadas. Outro ponto em comum, nos contos selecionados, é a presença da figura do “borralheiro”, o qual é caracterizado pela voz do narrador (autor-criador), com os piores adjetivos: tolo, sujo, preguiçoso, desprovido de dotes intelectuais, criado apenas pela mãe. No conto “A princesa dos sete sapatos”, por exemplo, a mãe era viúva e, no “João Borralheiro”, solteira e velha. Como se vê a seguir:

(...) aí tinha um tolo veiu ... um bestaiado veiu ... fiu de uma viúva véa, um burraêru que só vivia nu burraio ... (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, N. Contando do nosso jeito. Diálogos entre narrativas orais e práticas educativas. Curitiba: Appris, 2017., p.48).

(...) uma véa vivia sozinha com um fio que era muito priguiçoso, ele só vivia quentano fogo. (...) De tanto quentá fogo colocaram o apelido dele de João Borraêro (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, N. Contando do nosso jeito. Diálogos entre narrativas orais e práticas educativas. Curitiba: Appris, 2017., p.58)

A respeito dessas questões de caracterização das personagens, Bakhtin chama a atenção para a relação desses elementos com as intencionalidades e posições axiológicas do autor-criador e como esse todo estético-composicional se constrói e dá acabamento às personagens.

O autor acentua cada particularidade de sua personagem, cada traço seu, cada acontecimento e cada ato de sua vida, os seus sentimentos, da mesma forma como na vida nós respondemos axiologicamente a cada manifestação daqueles que nos rodeiam; (...) na obra de arte, a resposta do autor às manifestações isoladas da personagem se baseia numa resposta única ao todo da personagem, cujas manifestações particulares são todas importantes para caracterizar esse todo como elemento da obra. É especificamente estética essa resposta ao todo da pessoa-personagem, e essa resposta reúne todas as definições e avaliações ético-cognitivas e lhe dá acabamento em todo concreto-conceitual singular e único e também semântico (BAKHTIN, 2020BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução do russo por Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2020, p.1-20., p.3-4; grifos no original).

Sendo assim, a construção das personagens, especialmente dos heróis – os borralheiros, e até seus mundos estéticos –, não é apenas uma escolha ingênua, são sinalizações dos atravessamentos e diálogos valorativos sociais com a voz do narrador (autor-criador), com as suas posições axiológicas frente à própria vida, o que transcende a voz meramente pessoal. Até porque pode-se notar que os pontos de partida dessas narrativas se centram nas questões sociais. As aventuras se iniciam motivadas pela necessidade de buscar meios outros para a sobrevivência, no desejo de sair da condição de pobreza, de miséria absoluta, conformando os elementos que arquitetam o conflito gerador dessas tramas.

Sob essa ótica, o autor-criador constrói o herói. A figura do “borralheiro” é, então, uma espécie de cinderela às avessas, “preguiçoso, sujo, bobo, sem instrução”, de modo reflexivo e proposital. Sob a sua voz se veem apresentar, pelos fios do discurso, na materialidade verbal, as posições axiológicas, que refratam vozes sociais de um numeroso grupo que almeja ascender socialmente, que busca sair das péssimas condições de vida e se realizar socioeconomicamente. A bem dizer, o “borralheiro” não é apenas um homem, um ser individual, longe disso, ele representa uma coletividade que luta diariamente por direitos mínimos que garantam uma vida digna.

Observa-se, assim, no conto “João Borralheiro”, narrado pelo Senhor Nivaldo Lima, uma intersecção do mundo real com o mundo imaginário, permeada pelo encantamento da linguagem metafórica. Fica explícito, dessa forma, o diálogo do contador tradicional com as vozes do narrador (autor-criador), das personagens e, também, com as vozes sociais de grupos subalternizados, as quais refratam seus pontos de vista sobre o mundo.

Nessa mesma narrativa, é notório como o heterodiscurso, presente ao longo do enredo, dos acontecimentos da trama, enunciados na voz do narrador, mas também das falas das personagens, busca enfocar, dar ênfase às questões moralizantes, ao valor atribuído ao trabalho árduo e duro. Assim, João Borralheiro é um tipo social que representa uma parcela significativa da sociedade brasileira, um homem pobre, miserável, com baixo nível de escolaridade, sem emprego fixo e que vive à margem.

Ressalta-se, com isso, ao longo da narrativa, que a vulnerabilidade social, a condição precária vivida pela personagem principal é atribuída não a um problema de ordem social, econômica e política, mas a marginalização e a desigualdade se devem ao fato de João Borralheiro ser um homem preguiçoso, que não gosta de trabalhar e que, até para ter questões básicas da vida atendidas, tais como se alimentar, depende da mãe, a qual, não tendo uma fonte de renda digna e permanente para o próprio sustento, precisava pedir esmolas, mendigar. Vê-se, então, nas entrelinhas da trama discursiva, pela voz do narrador (autor-criador) e do contador, a representação dos valores da elite, visto que se encontram materializadas, nessas vozes, posições axiológicas que naturalizam a triste realidade social e econômica vivenciada por muitos cidadãos brasileiros ainda hoje.

Por isso, pode-se afirmar que discursos como esses contribuem para fortalecer a exclusão e a vulnerabilidade e até mesmo para perpetuar as desigualdades sociais já existentes há tantos séculos no nosso país, já que transmitem a ideia de que as vítimas é que são as culpadas, tornando-se, assim, uma estratégia discursiva a serviço dos grupos sociais hegemônicos. Como se pode notar nos trechos abaixo:

Era uma vez, uma véa que vivia sozinha com um fio que era muito priguiçoso, (...) Aí, lá vai, lá vai ...a véa zangava, a véa brigava, cafangava, mandano ele ir trabaiá, tomá um rumo na vida. Quando foi um dia, ele arresolveu botá uma roça, entrô, pegô o chapéu de paia e foi pra roça, chegô lá, jogô o chapéu no chão e marcô um pedaço do tamanho da roda do chapéu e cabô. O tamanho era aquele. Aí, começou a ajeita, capinou, limpou todinha, deixô tudo direitinho e plantô de fejão, aí então, saiu e deixô lá (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, N. Contando do nosso jeito. Diálogos entre narrativas orais e práticas educativas. Curitiba: Appris, 2017., p.58).

Depreende-se, também, nesse ponto da narrativa, que a voz do narrador (autor-criador) dialoga com vozes sociais, as quais apontam para a associação do trabalho aos valores de dignidade, progresso. Essas vozes conversam diretamente com a voz do contador tradicional, uma vez que o trabalho exposto no enredo está diretamente ligado ao ambiente rural, representado artisticamente como um espaço agrícola, que exige o labor intenso, braçal e cansativo, os quais simbolizam contextos bastante próximos e peculiares das vivências dos contadores tradicionais dessas duas histórias.

O heterodiscurso dialogizado reflete, pois, a vida dos dois contadores como sujeitos, sócio-historicamente situados, pois ambos trabalharam como lavradores a vida inteira e, mesmo aposentados, ainda mantêm o hábito de plantar feijão, banana, pequenas hortas e café em suas roças. Da mesma maneira, existe uma total conexão com a realidade do município, pois a cidade de Tapiramutá já foi uma das grandes produtoras de café da região e, atualmente, tem se destacado na produção de feijão. Para se ter uma ideia, segundo dados da Secretaria Municipal de Agricultura e Meio Ambiente, no ano de 2018, foram produzidas 2.646 toneladas.2 2 Disponível em: http://agriculturaemeioambientetapir.blogspot.com.br/. Acesso em: 10/05/2022.

Percebe-se, também, que a voz da personagem preá – a princesa sob efeito do encantamento – e a aparição dos elementos fantásticos no enredo, inseridos pela voz do narrador (autor-criador), não são meramente recursos ficcionais utilizados na composição estilística da narrativa, desprovidos de quaisquer intencionalidades. Longe disso, essa composição representa a visão dos sujeitos sociais, as suas posições axiológicas quanto às dificuldades em visualizar e concretizar a mobilidade social.

Consequentemente, nota-se o quanto as vozes do narrador (autor-criador), ao inserir os elementos fantásticos, refratam as vozes sociais que remetem a pontos de vista que compreendem o contexto marcadamente desigual, como uma realidade tão difícil, até mesmo impossível de se transpor. Refletem, desse modo, a visão de que ultrapassar as barreiras da pobreza e conseguir mudar de classe, ascender social e economicamente é algo tão distante, é como se essas pessoas vivessem em uma sociedade estratificada, na qual não é possível a mobilidade social, sendo preciso introduzir os elementos mágicos, o fantástico, para que, assim, tais mudanças ocorram.

Aí, ele pegô uma corda e fez um laço e deixô lá. Um dia ele ia olha o laço e no outro não. Num dia num pegô nada, no outo nada, e no outro também nada... Quano foi com na base de uns oito dias que João chega lá tinha uma preazinha pegada no laço. Aí, João todo contente disse: – Eita diabo! Hoje eu tenho o que comê. Ia matá a preá para comê assada. Aí, a preá foi disse: – João, não me mata não, que eu te dô tudo que tu precisa na vida. Porque a preá era uma Prencesa incantada e ele não sabia, mas João não queria sabê: – Não, eu tô com fome.

– Mais João, eu dô tudo que tu precisá.

Sim, que na merma da hora João aceitô a proposta da preazinha, aí, na força que ela tinha transformô aquele canto que eles tava num paláçu... o paláçu mais bonito do mundo, aí, João enricô, ficô rico, ficô rico mermo e esqueceu da pobre da véa mãe.

Depois dessa hora a preá que agora era prencesa fez um acordu com João: – João, nunca fali que me pegô no laço se não você vortá tudo pra o que era!

Aí, lá vai, lá vai, lá vai, João na roça com mei mundo de trabalhadô, de gado, de um tudo, era homem rico mermo, inda mais para quem era chamado João borraêro! (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, N. Contando do nosso jeito. Diálogos entre narrativas orais e práticas educativas. Curitiba: Appris, 2017., p.59).

Observa-se, ainda, a imagem simbólica de transformação, de transitoriedade, marcada pela condição financeira de João, ora rico, ora pobre, ora triste, ora feliz. Como se pode perceber no trecho abaixo:

Aí, o que aconteceu? João não teno pra onde ir, foi pra casa da véa mãe (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, N. Contando do nosso jeito. Diálogos entre narrativas orais e práticas educativas. Curitiba: Appris, 2017., p.60).

Quando ele chegô em casa a mãe toda sastifeita pergunta a ele: – Oh João, onde tu tava meu fio? João, com raiva, disse: – Ah mãe, num fale nada comigo não! Eu tô aqui é danado! Eu tava rico e agora eu tô pobre! (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, N. Contando do nosso jeito. Diálogos entre narrativas orais e práticas educativas. Curitiba: Appris, 2017., p.60-61).

Nesse exemplo, compreende-se que a caracterização das personagens, o acabamento estético dado pelo narrador (autor-criador) tem total relação com as intenções, quadros morais e concepções de ensinamento de valores: João é preguiçoso, arrogante, orgulhoso e não respeita a mãe, enquanto a preazinha/princesa é delicada, humilde, honrada com sua palavra. Logo, João, ao ser dessa forma, terá de sofrer o castigo de perder tudo. Identifica-se, assim, toda uma carga de olhares singularizados pela subjetividade do narrador (autor-criador), dialogando diretamente com comentários e justaposições do contador de histórias. São vozes reveladoras das interpretações da vida, das posições axiológicas e dos modos de compreensão do estar no mundo.

Pode-se apreender, ainda, que os atos, os diálogos estabelecidos entre as personagens, as escolhas feitas por eles, assim como as possíveis consequências do que poderão viver no futuro são orientados e acentuados pelas influências das vozes sociais, as quais são reafirmadas por meio das vozes e das posições valorativas do narrador (autor-criador), compartilhadas pelo contador tradicional. Em outras palavras, “a posição axiológica do autor-criador é um modo de ver o mundo, um princípio ativo de ver que guia a construção do objeto estético e direciona o olhar do leitor” (FARACO, 2020FARACO, C. A. Autor e autoria. In: BRAIT, B. Bakhtin: conceitos-chave. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2020., p.42).

Quanto à história “A princesa dos sete sapatos”, contada pelo Senhor Manoel Souza Silva, conhecido como Seu Pombo, vê-se delineada uma composição bastante recorrente nos contos populares: a personagem simples se sente motivada a ir em busca de descobrir os mistérios que cercam a princesa. Assim, após muitas aventuras, inteligência, esperteza e magia, consegue desvendar os enigmas e se torna um príncipe.

Conforme afirmam Matos e Sorsy (2013, p.2)MATOS, G. A.; SORSY, I. O ofício do contador de histórias: perguntas e respostas, exercícios práticos e um repertório para encantar. 3. ed. São Paulo: Editora WMF/Martins Fontes, 2013.:

Os contos populares são próprios da cultura oral, cuja origem, parece, encontra-se nos mitos primitivos, que, por muitos séculos, orientaram os homens em sua busca de conhecimento do cosmo e de si mesmos (...). No conto popular, a função dos personagens é socialmente determinada (o rei, o príncipe, o velho, o sábio, o tolo...) as imagens são sempre arquetípicas.3 3 Segundo Rocheterie (1986, p.13), os arquétipos são uma espécie de reservatório das experiências humanas acumuladas desde os primórdios do tempo. Eles estão na base de todas as civilizações, das mitologias, das religiões, dos contos, das obras de arte, das superstições, dos gestos rituais, dos sonhos, das visões, das alucinações, dos costumes, da linguagem.

Compreende-se, logo no início da trama, que essa narrativa retoma, dialogicamente, o conto A gata borralheira, de Charles Perrault. Ao longo do enredo, a voz do narrador (autor-criador) apresenta a figura do herói, um espírito aventureiro e benevolente, o borralheiro, que se confronta com a atitude gananciosa e ambiciosa dos irmãos que brigam para ficar com a herança deixada pelo pai. As personagens instituem-se, portanto, como mediadores de transmissão de ideologia e de um credo moral próprios.

Nessa narrativa, o herói “Borralheiro” representa a imagem de homem aventureiro, corajoso, desacreditado, até pela própria mãe que o desmerece, colocando-o numa posição de inferioridade, de incapacidade. O borralheiro é o arquétipo de revolucionário, aquele que subverte a ordem do seu próprio destino.

– Ela já tava condenada e ninguém via ... ninguém via como era que ela acabava, aí o pai decretô que quem discubrisse como era que a fia acabava esses sete sapato na noite que ele ai casava com ela (ênfase) ... e quem fosse que num discubrisse que ia pra forca. Aí era só cheganu e morrenu, aí tinha um tolo veiu ... um bestaiado veiu ... fiu de uma viúva véa, um burraêru que só vivia nu burraio ... aí, um dia ele disse: – mãe, eu hoji vô discubri cuma é que a prencesa acaba os sete par de sapato na noiti ... Aí ela disse: – vai disgramado que tu vai morrer que eu num sei quantos homi sabido, principo e tudo (ênfase com tom de voz de ironia) vai pra lá só vai morre e tu que é um burraêru, que nem dento de casa num entra aí eles te mata logo... Aí ele disse: – ah me deixá!... panhô o camim e viajô... (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, N. Contando do nosso jeito. Diálogos entre narrativas orais e práticas educativas. Curitiba: Appris, 2017., p.48)

No fragmento acima, vê-se a presença do heterodiscurso na linguagem do rei – o pai da princesa que realiza o decreto –, o uso de palavras que não são comuns ao vocabulário do contador popular, como, por exemplo, decretô”, “forca”, dialogando com a linguagem comum, pertencente ao círculo social do enunciador, ao seu contexto real: “um bestaiado veiu”, “mãe, eu hoji vô discubri cuma é que a prencesa acaba os sete par de sapato na noiti” (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, N. Contando do nosso jeito. Diálogos entre narrativas orais e práticas educativas. Curitiba: Appris, 2017., p.48). O discurso do contador aparece de forma indireta entre a narrativa e as vozes das personagens: “Ai pronto, o reis disse: – agora num tem jeito não tem que casa (risos) ... aí agora foro ajeita ele pra ele se torna agora príncipe... ele que era um borraeirô, e aí agora ele foi ser príncipe né (risos) ...” (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, N. Contando do nosso jeito. Diálogos entre narrativas orais e práticas educativas. Curitiba: Appris, 2017., p.51).

Através de dois tipos sociais bastante distintos, a princesa e o borralheiro, veem-se a pluralidade de consciências e linguagens interagirem, sujeitos singulares que intercambiam vozes de grupos e esferas sociais diversas, proporcionando o encontro de múltiplas inter-relações responsivas, que traduzem experiências e lugares enunciativos marcados por eixos valorativos diferentes, revelando, assim, a alteridade discursiva dessas vozes. Nesse jogo de diferenças, assiste-se à ascensão social do borralheiro a príncipe e à condenação da princesa, que precisa deixar sua diversão, suas noites de dança em palácios distantes e encantados, atitudes transgressivas para a época, para viver uma vida de mulher casada.

Vale ressaltar, ainda, que não é um casamento desejado, consensual, por amor. Aqui, a princesa irá se casar com alguém que nunca vira antes, por ordem do seu pai, um casamento arranjado, prática que era muito comum e difundida até o século XVIII, a qual variava de cultura para cultura, e, geralmente, centrava-se na ideia de transferir a dependência que a mulher tinha do pai para o noivo.

Inclusive, nota-se que, ao longo da narrativa, a princesa tem poucas e curtas falas e, nesse ponto do enredo, não aparece a sua voz. O narrador (autor-criador) é quem narra as ações do rei, seguidas por falas do borralheiro e comentários do contador de histórias. Como se pode observar abaixo:

Aí quano foi de manhã que o reis chegô e chamô ele, aí ele acordô, olho todo bambo, todo abestaiado, e o reis logo perguntô:

– E aí, como foi? Você descobriu como a princesa consegui acabá os sete par de sapato na noite?

Na mesma hora, ele pegô o saco onde tava todos os sapato e entrego ao reis e contano:

– Primêro, ela foi no Paláço de ouro. Sigundo, ela foi no Paláço de metal. Tercero, ela foi para o de aço. E aí foi contano tudo até terminá.

Aí ponto, o reis disse:

– Agora num tem jeito não! Tem que casá.

Nessa hora, foro ajeitá ele todim porque a parti daquela hora ele tinha que se torná um príncipe! O borraêro ia ser um príncipe! (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, N. Contando do nosso jeito. Diálogos entre narrativas orais e práticas educativas. Curitiba: Appris, 2017., p.51).

O que se evidencia por meio dessas escolhas enunciativas é o fato de as mulheres não terem direito a participar das decisões de suas próprias vidas. Essas vozes refratam uma sociedade em que a mulher não tem voz e nem tem como lutar contra determinadas situações, pois está totalmente submissa ao pai, depois, ao marido.

Compreende-se, ainda, que essas situações presentes nesse conto fazem notar uma espécie de similitude entre o plano alegórico, metafórico e o plano real, da vida cotidiana, na qual se materializam as falas das personagens, falas permeadas por discursos alheios, diretamente relacionadas ao meio social dos contadores. Remetem, sobretudo, ao desejo de mudar de vida, bem como expressam aspectos comportamentais da sociedade, os seus regimes e valores simbólicos, em que os conflitos e resoluções são como um mecanismo que revela as ordens e desordens sociais.

A desordem é representada pela princesa, uma mulher que gosta de viajar por mundos outros, para dançar e se divertir. Aproveitar a vida é, então, símbolo de uma atitude amoral, profana, condenável, pois fere a visão paternalista e machista do papel da mulher, vinculado ao lar, aos afazeres domésticos, a cuidar da família, marido e filhos, o que seria a própria condição feminina, submissa aos quereres e ordens do pai e, posteriormente, do marido. A ordem só é restabelecida quando o borralheiro consegue descobrir o mistério de como a princesa gastava os sete pares de sapato todas as noites.

Quano foi de manhã o reis disse: ___ É vamu lá, vamu lá (gestos) pra vê se o homi discubriu como a prencesa acaba os sete par de sapato na noite...

Tinha um palaço de aço que na leitura dizia que quano ela arrastava o pé a casa ficava toda cheia de fogo... Ela já tava condenada aos inferno já, esses palaço que ela ia tudo já era o inferno (ênfase) ela já tava condenada...

Aí, quano foi de manhã que o rei chegô e chamô ele ...ele acordô oiô todo bambo, todo bestaiado (gesto) ... ___ e aí como foi? Você discubriu como a prencesa acaba os sete par de sapato na noite? (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, N. Contando do nosso jeito. Diálogos entre narrativas orais e práticas educativas. Curitiba: Appris, 2017., p.51).

A narrativa de “João Borralheiro” também mostra a presença dessa visão machista, visto que a mulher, na história contada, é caracterizada como submissa, delicada, naturalizando o que não é natural, reiterando estereótipos e preconceitos. É natural que o homem seja arrogante, forte, orgulhoso. Aí está o diálogo das vozes sociais com a voz do narrador (autor-criador) e com o todo discursivo que compõe a narrativa, pois, para além das vozes das personagens, do narrador e do contador, veem-se em cena vozes alheias situadas histórica, cultural e socialmente, revelando concepções de mundo.

Aí, quano foi um dia, ele tava na roça e mandô a impregada da prencesa dizê a ela que queria um cuscuz, só que o milho do cuscuz tinha que sê pisado pelas mão da prencesa. Mas quando a impregada deu o recado a prencesa disse: – João, você não faça isso! Eu não vou pisá esse milho pra você cumê esse cuscuz!

Aí, lá vai, lá vai, lá vai, lá vai, a impregada chegô com o café di manhã, João foi e disse: – Quem foi que pisô esse milho pra pudê fazê esse cuscuz? A impregada disse: – Foi eu.

Aí, João foi disse:

– Infelizmente ela foi pegada num laço! (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, N. Contando do nosso jeito. Diálogos entre narrativas orais e práticas educativas. Curitiba: Appris, 2017., p.59).

Nesses fragmentos, nota-se como as vozes do narrador (autor-criador) e das personagens refletem e refratam retratos das posições de poder e classes sociais ocupadas pelas personagens. O lugar enunciativo dos ricos, que são representados pela figura de João Borralheiro e da Princesa, aparece com o uso do modo verbal no imperativo “(...) mandô, (...) tinha que sê pisado (...)”.

Já o modo de enunciar dos subalternizados, representados nesse conto pela empregada doméstica, é completamente diferente. A maioria dos seus atos é narrada em terceira pessoa pelo autor-criador e, quando faz uso do discurso direto, tal discurso é marcado por sentenças curtas, por vezes monológicas, dado que ela apenas responde e faz o que lhe é ordenado: “Foi eu”.

Percebe-se, também, como o diálogo entre as vozes do narrador e das personagens aponta para as posições axiológicas referentes aos padrões estéticos em que homens e mulheres são apresentados de forma assimétrica. Nessa narrativa, fica clara a visão de subalternidade da mulher perante o homem, pois João manda e a princesa obedece. Através da trama discursiva, valores e axiologias de uma época e de uma cultura extremamente machistas e sexistas ganham legitimação.

Pode-se afirmar, assim, que essas vozes assinalam traços culturais, identitários e ideológicos que dialogam com uma conjuntura social e econômica que, por sua vez, retrata a forma como a sociedade vê e valora homens e mulheres, em virtude do valor emotivo-volitivo que eles representam. Essas visões e valores ora são reforçados, ora são refutados e até mesmo atualizados pelas vozes dos contadores tradicionais de histórias.

Na narrativa em análise, percebe-se que as ideias e vozes do narrador (autor-criador) são compartilhadas pelo contador, e isso se dá através das suas escolhas semânticas enunciativas, dos comentários e justaposições feitos ao longo da performance: “e na minha época era assim, as mulher tinha que obedecê o marido, hoje é que as coisa tão tudo mudada, cada cabeça tem seu mundo” (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, N. Contando do nosso jeito. Diálogos entre narrativas orais e práticas educativas. Curitiba: Appris, 2017., p.59). Por meio das nuances e das sutilezas da seleção das sentenças e mesmo das palavras, as intencionalidades, as posições axiológicas e os quadros morais do contador de histórias são revelados. Tudo isso reafirma como, na e pela linguagem, busca-se representar, refratar o mundo, tentando, por meio dela, significar o outro e a si mesmos, uma vez que as construções linguageiras são impregnadas por horizontes singulares, atravessados pelo plano avaliativo espaço-temporal, que os interlocutores do ato enunciativo ocupam. No evento enunciativo em questão, tanto o contador quanto o auditório/a plateia participam ativa e responsivamente durante as contações.

Outro ponto de vista que aparece nas entrelinhas do conto “A princesa dos sete sapatos”, por meio da dialogicidade de vozes do narrador (autor-criador) e do contador tradicional, é a crença cristã, o mundo concebido pelo dualismo, pelas oposições, a luta do sagrado e do profano, do céu e do inferno, o pecado e o perdão, o castigo, a bênção, a salvação... Essas vozes estão voltadas para as verdades morais que devem ser seguidas, ensinadas e experienciadas. Na narrativa em análise, a voz do contador reitera, ao longo do enredo, o fato de que a mulher está condenada ao inferno, sendo o borralheiro o herói que desvenda o mistério, salvando-a daquele mundo. “Ela já tava condenada aos inferno já, esses palaço que ela ia tudo já era o inferno (ênfase) ela já tava condenada...” (ARAÚJO, 2017ARAÚJO, N. Contando do nosso jeito. Diálogos entre narrativas orais e práticas educativas. Curitiba: Appris, 2017., p.51).

Essas concepções têm o poder de regulamentar muitas das ações, dos atos concretos do cotidiano ou, como afirma Foucault (2014, p.94)FOUCAULT. M. Do governo dos vivos. Curso dado no Collège de France (1979-1980). São Paulo: Martins Fontes, 2014.: “O cristianismo irá atrelar fortemente o exame de si à obediência, através de um dispositivo em que três elementos estão interligados: o princípio da obediência sem fim, o princípio do exame incessante e o princípio do reconhecimento exaustivo das faltas”. Essas são formas de compreender o mundo, parte constitutiva das singularidades e subjetividades dos sujeitos situados.

Considerações finais

Neste trabalho, buscou-se fazer uma análise do papel do discurso nas narrativas orais fantásticas dos contadores populares de histórias da cidade de Tapiramutá, no interior da Bahia. Para tanto, partiu-se da reflexão epistemológica de Bakhtin, nos ensaios que constam da obra A teoria do romance I. A estilística (2015), segundo a qual o discurso, nas narrativas literárias, é marcado pela heterodiscursividade, por uma diversidade de linguagens e vozes sociais que apontam para modos de compreensão e pontos de vista sobre o mundo.

Evidencia-se, por meio das análises, que os contos da tradição oral selecionados, “João Borralheiro” e “A princesa dos sete sapatos”, são constitutivamente dialógicos, heterodiscursivos, povoados pelas vozes das personagens, as quais são marcadas e identificáveis pelo discurso direto, pela voz do narrador que, por vezes, aparece articulada à voz do contador de histórias, em discurso indireto ou no indireto livre. De igual modo, o discurso subjetivo e individual do contador surge amalgamado e atravessado pelas vozes sociais e pontos de vista que permeiam os horizontes sociais, culturais, axiológicos e históricos desses enunciadores.

Além disso, essas vozes que aparecem nas malhas dos discursos são formas de refletir e refratar os acontecimentos da existência, compreensões dos modos de ser e agir em situações da vida em sociedade, revelando os quadros morais que as pautam. Por essa razão, em muitos momentos, são retomados temas centrados em crenças religiosas, diferenças sociais, a subalternidade da mulher, que povoam os enredos dessas narrativas.

Por fim, destaca-se, neste estudo, como a literatura da tradição oral, particularmente as narrativas fantásticas, nunca se descolaram do mundo real. Essa forma de criação estética, cultural e política, materializada na voz do contador tradicional de histórias, projetada pela heterodiscursividade, coloca em cena imaginários, sistemas de pensamento, saberes e valores do mundo em que vivemos, de forma a contextualizar realidades sociais diversas. Convocam-se, assim, leitores/espectadores/ouvintes das contações de histórias a se engajarem e a refletirem sobre uma diversidade de temas e questões que colocam em pauta histórias, destinos, sentimentos, emoções, situações pessoais, e/ou coletivas.

  • 1
    Termo utilizado por Bakhtin no texto “O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária”, escrito em 1924. Sob este viés, o autor-criador é quem dá forma ao conteúdo, constrói, reconstrói, organiza e reorganiza esteticamente o herói e seu mundo a partir da posição axiológica e dos centros valorativos do autor-pessoa.
  • 2
    Disponível em: http://agriculturaemeioambientetapir.blogspot.com.br/. Acesso em: 10/05/2022.
  • 3
    Segundo Rocheterie (1986, p.13)ROCHETERIE, J. D. L. La symbologie des rêves. Paris, Imagno, 1986., os arquétipos são uma espécie de reservatório das experiências humanas acumuladas desde os primórdios do tempo. Eles estão na base de todas as civilizações, das mitologias, das religiões, dos contos, das obras de arte, das superstições, dos gestos rituais, dos sonhos, das visões, das alucinações, dos costumes, da linguagem.
  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtinina. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.

REFERÊNCIAS

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Declaração de disponibilidade de conteúdo

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

Parecer I

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

O artigo em tela, sem dúvidas, adequa-se ao tema proposto, sendo as colocações aí desenvolvidas coerentes entre si e com a teoria referenciada, conquanto o estudo não se distingua, propriamente, pela originalidade da reflexão. Outrossim, coaduna-se às regras do discurso acadêmico, apresentando clareza, correção e adequação da linguagem. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Parecer II

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

O artigo é muito bom. O tema é pertinente, está bem fundamentado do ponto de vista teórico e tanto a seleção do corpus quanto a sua análise estão corretas e trazem elementos importantes para este campo de estudos. O único aspeto menos feliz tem que ver com a questão do fantástico: está bem colocado do ponto de vista teórico, mas é depois esquecido durante a análise, embora nas considerações finais se fale em "narrativas orais fantásticas". Há ainda ligeiras gralhas e falhas de escrita que tomei a liberdade de assinalar à margem do manuscrito. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2022
  • Aceito
    21 Out 2022
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