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Nossos pareceristas: os bastidores da produção científica

Toda compreensão é dialógica.

V. N. Volóchinov

Assim, a compreensão completa o texto: ela é ativa e criadora.

Mikhail Bakhtin

Nem sempre a produção científica gozou da visibilidade que tem neste momento, quando aguardamos diagnósticos, tratamentos e vacina para a pandemia de COVID-19 que tomou conta da humanidade. Ainda que haja os negacionistas (e ainda os terraplanistas!), há o tácito reconhecimento social da importância da ciência em nossas vidas. Mais ainda: amplia-se o reconhecimento da necessidade de acesso de toda a sociedade ao conhecimento, destacando-se a importância da Ciência Aberta - a Open Science. No entanto, o processo da produção científica não é simples. Visto de fora, talvez alguns pensem que o cientista exerce um trabalho solitário. Porém nada mais contrário à realidade: o fazer científico requer o outro, o olhar do outro; requer a leitura, a compreensão e o diálogo com o outro. Em todos os campos do saber! E muito especialmente em nossa área, a esfera dos estudos da linguagem, essenciais à comunicação e compreensão entre os homens.

Esse diálogo de textos e discursos é parte integrante do processo de elaboração de um artigo acadêmico. A pesquisa e escrita do artigo é apenas o primeiro passo de sua produção, pois a ciência precisa ser comprovada, sua qualidade deve ser atestada pelos pares. Isto é, sem os inúmeros e incansáveis pareceristas (ad hoc ou do Conselho Editorial) que se disponibilizam a avaliar os artigos submetidos à Bakhtiniana (e também a outros periódicos de qualidade), sacrificando seu tempo em prol da divulgação do conhecimento - e visando a um mundo melhor -, um periódico de excelência não existiria.

Na vasta obra do Círculo podemos encontrar vários trechos que tratam do diálogo entre textos, tal como ocorre na interação entre artigos e pareceres. Ao longo desse processo, o cientista/parecerista promove, com o artigo acadêmico que recebe para avaliar, um diálogo de modo especial: é o encontro de dois sujeitos, do texto a ser avaliado - sujeito expressivo e falante (cf. Bakhtin, 2010BAKHTIN, M. Apontamentos 1970-1971. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p.337-358. , p.59) - com o avaliador. O diálogo se dá em torno daquele artigo para o qual se solicitou um parecer (o Círculo diria que ele é o “herói” ou “personagem” do enunciado). Na interação com esses sujeitos - artigo e autor, o parecerista realiza uma compreensão responsivo-ativa: ele interroga, faz objeções, sugere complementações, concorda, refuta ou rejeita afirmações... Sua compreensão é ativa e criadora. Por isso, quando, numa eventual segunda rodada de pareceres, o artigo retorna ao parecerista revisado pelo autor, por vezes este segundo responde ao parecerista não apenas no texto, complementando e/ou corrigindo o que foi apontado/sugerido, mas também justificando o não acatamento de uma ou outra sugestão. E há até aqueles que, no texto final, agradecem aos pareceristas anônimos pela leitura e sugestões apresentadas. Esse diálogo entre autores e pareceres é extremamente produtivo, mesmo quando o artigo não é aprovado, isto é, quando ocorre a discordância ativa. Bakhtin nos ensina:

Só sob uma inércia dogmática da posição não se descobre nada de novo em uma obra (aí, o dogmático continua com o mesmo conhecimento que já possuía, não pode se enriquecer). O sujeito da compreensão não pode excluir a possibilidade de mudança e até de renúncia aos seus pontos de vista e posições já prontos. No ato da compreensão desenvolve-se uma luta cujo resultado é a mudança mútua e o enriquecimento (2010, p.378).

Assim, é esse importante aspecto da produção científica que permite o desenvolvimento da ciência e ainda a existência de periódicos de qualidade, aos quais Bakhtiniana se junta, ao publicar os artigos que compõem seus quatro números anuais. É graças a esse ativo processo dialógico entre pares que, neste número, temos a presença de 09 artigos e uma resenha, os quais passamos a apresentar.

Nosso primeiro artigo - A concepção da palavra em Mikhail Bakhtin no contexto da crítica literária contemporânea, é assinado por Elina Sventsitskaya (Таврическии национальныи университет, Учебно-научныи институт филологии и журналистики, Кафедра славянскои филологии и журналистики, Киев, Украина [Universidade Nacional de Tavria, Instituto Científico e Pedagógico de Filologia e Jornalismo, Kiev, Ucrânia]). A autora se dedica a uma densa reflexão teórica em torno da palavra artística, na intersecção entre a crítica literária e a linguística, definindo características de cada uma das abordagens, com forte apoio em conceitos da obra de Mikhail Bakhtin e o Círculo. Da Ucrânia passamos a Córdoba, Argentina, com o artigo de Ariel Gómez Ponce (Universidad Nacional de Córdoba - UNC, Facultad de Ciencias Sociales, Córdoba, Argentina), Quem tem medo de Lotman e Bakhtin? Duas leituras semióticas do medo. Seu objetivo é pensar a materialização do medo na explicação de fenômenos culturais. Para isso mobiliza a produção tardia desses importantes filósofos russos, Mikhail Bakhtin e Yuri Lotman, articulando princípios e motivos que seriam sistematicamente atualizados na relação entre laços sociais e medo, questão extremamente atual.

O próximo artigo é do Brasil, de Anderson Salvaterra Magalhães e Daniel Eduardo Candido (ambos da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, São Paulo, Brasil). Em O tilintar dos cálices de Cristo, Chico/Gil e Criolo: a questão da ética num brinde dialógico, novamente temos uma profunda reflexão teórica a respeito de conceitos bakhtinianos - o grande tempo e as áreas semânticas da existência -, para compreendermos novos sentidos e acentuação ético-semântica de duas canções brasileiras que dialogam através do tempo, compostas a partir da expressão bíblica “Afasta de mim este cálice”.

Dois importantes temas da educação são tratados a seguir: a alfabetização e a leitura literária na nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Médio. Cecília Maria Aldigueri Goulart (Universidade Federal Fluminense- UFF, Faculdade de Educação, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil) e Maria Cristina Corais (Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro- ISERJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil) assinam Alfabetização, discurso e produção de sentidos sociais: dimensões e balizas para a pesquisa e para o ensino da escrita. Trata-se de resultado de pesquisa que teve como horizonte compreender como podem ser concebidas metodologias de alfabetização sob a perspectiva discursiva. Os relatos das professoras alfabetizadoras e os exemplos de trabalhos que realizam com as crianças tornam o texto especialmente saboroso, ao mesmo tempo em que indicam a importância de que a própria vida das crianças, na interação social de sujeitos e linguagens, se sobreponha ao trabalho realizado tradicionalmente na aquisição da escrita.

O texto de Marcel Alvaro Amorim (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro - IFRJ, São João de Meriti, Rio de Janeiro, Brasil; Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Faculdade de Letras, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil) e Victor Alexandre Garcia Souto (Curso Superação, PCS, online, Brasil) intitula-se A ressignificação da leitura literária e do leitor-fruidor na BNCC: uma abordagem dialógica. Sob a perspectiva dialógica de análise do discurso desenvolvida a partir da obra do Círculo de Bakhtin, o artigo questiona as noções de fruição e leitor-fruidor na BNCC, visando à compreensão do modo como é proposta a leitura literária nesse documento oficial e sugerindo atitudes responsivas, históricas, sociais, culturais e ideológicas em relação ao trabalho com a literatura na escola.

Os próximos artigos examinam questões sociais relacionadas ao poder, à mulher e ao racismo. Rusanil dos Santos Moreira Júnior e Rita de Cássia Souto Maior (ambos da Universidade Federal de Alagoas -UFAL, Faculdade de Letras, Maceió, Alagoas, Brasil) abordam As relações dialógicas e os discursos envolventes sobre a condição histórico-social de uma mulher amante. Os autores mostram como as relações dialógicas e a compreensão responsivo-ativa presentes no discurso de uma mulher-amante, “subserviente, dependente, culpada e destruidora de lares”, renomeiam e ressignificam um discurso envolvente sobre aquela relação amorosa. A análise crítica do discurso é o fundamento teórico-metodológico tanto do texto de Daniele de Oliveira (Universidade Federal da Bahia -UFBA, Instituto de Letras, Salvador, Bahia, Brasil) e Viviane de Melo Resende (Universidade Nacional de Brasília - UNB, Instituto de Letras, Brasília, Brasil), Branquitude, discurso e representação de mulheres negras no ambiente acadêmico da UFBA; como do artigo de Cecilia Molinari de Rennie (Universidad de la República, Departamento de Historia y Filosofía de la Ciencia, Montevidéu, Uruguai), Capitalismo publicitário: uma análise crítica dos cartões promocionais de LEMCO do início do século XX. No primeiro, as autoras apresentam formas importantes de perpetuação do racismo pelas elites simbólicas, analisando o discurso de estudantes brancos da universidade soteropolitana. No segundo, a autora uruguaia recupera cartões comerciais de uma campanha de marketing da virada do século XX, mostrando, por meio de análise, como seus discursos contribuíram para a hegemonização do capitalismo burguês.

Finalmente, Gabriel Dvoskin (Universidad de Buenos Aires - UBA, Facultad de Filosofía y Letras, Instituto de Lingüística, Buenos Aires, Argentina) subscreve Discurso relatado e posicionamentos ideológicos: a distribuição social do saber e do poder no discurso midiático. No artigo, o autor analisa discursos de dois periódicos portenhos que fizeram a cobertura do conflito social gerado pela ocupação de escolas por estudantes do ensino médio, ocorrido na Cidade de Buenos Aires, em setembro de 2017. E Fatima Bianchi (Universidade de São Paulo - USP, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - FFLCH, São Paulo, São Paulo, Brasil), no artigo O aparente descaso de Dostoiévski com a linguagem, revela como o autor russo transcende as regras literárias estabelecidas, em termos de linguagem e o estilo da época, mostrando a grande inovação realizada por ele na forma literária em seu romance de estreia, Gente pobre.

A resenha deste número dá a conhecer a nossos leitores o importante trabalho de Adail Sobral, A filosofia primeira de Bakhtin. Roteiro de leitura comentado, publicado pelo Mercado de Letras, Campinas, SP, 2019, é redigida por Vera Lúcia Pires (Universidade Federal da Paraíba - UFPB, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, João Pessoa, Paraíba, Brasil).

Nosso costumeiro balanço fecha este Editorial. Este número apresenta 11 textos de 16 autores, representantes de 14 instituições diferentes, sendo quatro estrangeiras (Universidade de Tavria, Kiev/Ucrânia; Universidad Nacional de Córdoba, Argentina; Universidad de la República, UDELAR, Uruguai; Universidad de Buenos Aires, UBA, Argentina) e nove nacionais (UNIFESP, UFF, ISERJ , IFRJ - São João de Meriti, UFRJ, UFAL, UFBA, UNB, UFPB e USP). Convidamos, pois, os leitores a saborear e incluir em suas pesquisas este conjunto que, mais uma vez, dá ao periódico Bakhtiniana a oportunidade de participar ativamente da vida cultural e acadêmica brasileira e internacional. A quantidade de submissões, assim como sua rigorosa seleção, realizada por competentes e colaborativos pareceristas do Conselho e ad hoc, permitiu chegar a este excelente resultado: Bakhtiniana mantém-se firme no compromisso de sempre criar possibilidades dialógicas entre a pesquisa ligada aos estudos da linguagem. Nesse sentido, agradecemos, mais uma vez, o inestimável e constante apoio, auxílio e reconhecimento do MCTI/CNPq/Chamada CNPq Nº 19/2019 - Programa Editorial/, Proc. 441854/2019-2, e da PUC-SP, por meio do Plano de Incentivo à Pesquisa (PIPEq) / Publicação de Periódicos (PubPer-PUCSP) - 2020, Solicitação 14663.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. Apontamentos 1970-1971. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p.337-358.
  • BAKHTIN, M. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017. p.57-79.
  • VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020
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