Acessibilidade / Reportar erro

SILVA, A.; COSTA, E. (Orgs.). Livro didático: olhares dialógicos. Campinas, SP: Pontes Editores, 2017. 169 p.

SILVA, A.; COSTA, E.. Livro didático: olhares dialógicos. Campinas, SP: Pontes Editores, 2017. 169 p.

A Análise Dialógica do Discurso - ADD, fundada nos escritos do filósofo russo Mikhail Bakhtin e seu Círculo (V. Volochínov e P. Medvedev), reúne um complexo conjunto de pensamentos e ideias a respeito do funcionamento da linguagem que, pela diversidade de temas e conceitos discutidos, não pode ser considerada nem como uma análise puramente linguística, nem puramente sociológica, mas como uma filosofia da linguagem.

Embora o filósofo russo tenha centrado esforços em compreender a linguagem tomando como objeto de análise a obra estética, o aporte teórico deixado por ele tem se revelado como uma rica base de investigação linguística a respeito dos mais variados objetos e fenômenos, a partir dos quais é possível compreender e/ou explicar a rede sócio-histórico-ideológica que constitui a linguagem em suas mais variadas formas: verbal, visual, sonora etc. Os conceitos de dialogismo, polifonia, enunciação e enunciado concreto, gêneros do discurso, carnavalização, arquitetônica e ideologia são apenas alguns dos temas basilares da obra bakhtiniana, que, de acordo com Sobral (2009, p.106)SOBRAL, A. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2009., formulam “mais do que uma teoria estética, uma teoria da cultura”, podendo muito bem ser entendida como uma “teoria estético-cultural” ou uma “poética sociológica”.

É nesse cenário que surge a coletânea Livro didático: olhares dialógicos, organizada por Anderson Silva e Elizangela Costa, reunindo o resultado de diferentes pesquisas de mestrado e doutorado1 1 Todas as pesquisas foram orientadas por Beth Brait, no LAEL/PUC-SP, e os autores atuaram como membros-estudantes do Grupo de Pesquisa/PUC-SP/CNPq Linguagem, Identidade e Memória. , que tomam por base teórica a concepção dialógica da linguagem. São ao todo cinco investigações, sob diferentes perspectivas, a respeito do objeto livro didático. Na apresentação da obra, Enfrentando o livro didático dentro e fora da sala de aula, Beth Brait faz um apanhado a respeito de cada uma dessas investigações e aponta para a importância da publicação de pesquisas acadêmicas, para que seus resultados não fiquem restritos apenas à leitura da banca e de seus orientadores, permanecendo nas bibliotecas, digitais ou não, das universidades. O anseio pela divulgação desses importantes estudos foi o que motivou os autores e organizadores da obra a buscarem maior visibilidade para os resultados de suas pesquisas, fazendo-os circular para além da academia, com a publicação dessa coletânea, que, de acordo com Beth Brait, “procura interligar livro didático e análise dialógica do discurso” (p.13), como veremos a seguir, com a descrição de cada um desses estudos.

O primeiro estudo, intitulado Um edital de compra de livro didático e sua arena discursiva, de autoria de Maria Tereza Rangel Arruda Campos, apresenta parte dos resultados da dissertação de mestrado da autora, em que ela investiga o contexto de produção do livro didático a partir de uma análise minuciosa a respeito das diferentes vozes presentes em um edital de compra de livros didáticos de língua portuguesa para o Ensino Médio, publicado em 2005. A autora debruça-se, especialmente, sobre o embate de vozes que envolvem o ensino de literatura, lançando um olhar dialógico sobre as polêmicas aí envolvidas. O estudo mostra como um simples edital de compra, que tende a ser um documento objetivo, pelo menos é nisso que acreditamos, pode abrigar uma arena discursiva recheada de vozes que se complementam, se opõem, entram em controvérsia. Essas vozes são capazes de revelar muito mais do que as informações necessárias à avaliação e compra dos livros didáticos, pois, como mostra a pesquisadora, há um embate ideológico e de interesses presente no edital, que, de acordo com Campos, alcança “editoras, professores, diretores, pais de alunos, os próprios alunos, acadêmicos e agentes do Ministério da Educação, que estabelecem um debate vivo, o qual coloca em jogo alguns rumos importantes das políticas públicas voltadas à educação brasileira“ (p.37).

O próximo estudo, Um zoom na imagem: verbo-visualidade em livros didáticos, de Elizangela Costa, apresenta os resultados de parte da investigação desenvolvida em sua tese de doutorado, a partir do que ela chama de primeiro zoom na imagem, metáfora escolhida para denominar a aproximação dos dados em busca de respostas para suas questões de pesquisa. Costa investiga como se dá o tratamento de enunciados verbo-visuais em livros didáticos de língua portuguesa e de que forma esse tratamento poderá contribuir ou não para a formação de um leitor crítico. Após apresentar um panorama sobre a teoria dialógica da linguagem, referencial teórico que embasou sua investigação, a pesquisadora aborda questões relativas ao livro didático e sobre o tratamento dado à leitura nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, para só então adentrar de fato na análise a respeito da verbo-visualidade presente nos livros analisados.

Ao todo foram analisados oito volumes, pertencentes a duas coleções diferentes, Português: para viver juntos e Português: linguagens, dos quais Costa fez um mapeamento dos gêneros discursivos visuais e verbo-visuais encontrados, bem como dos textos que compunham essas coleções, a fim de compreender qual a posição desses gêneros nos livros e de que forma eles são mobilizados nas atividades de leitura. Os resultados revelaram uma baixa incidência da verbo-visualidade nos oito volumes de livros analisados e, ainda, a existência de pouca diversidade desses gêneros, o que se agrava pelo fato de raramente serem encontrados em posição de leitura. Esse cenário pode ser explicado, conforme a autora, pelo fato de os Parâmetros Curriculares Nacionais não contemplarem o estudo e estratégias de leitura de enunciados verbo-visuais e, além disso, pelas forças mercadológicas e de produção que, de certa forma, se sobrepõem ao pedagógico, quando deveria acontecer o contrário.

O terceiro estudo, intitulado Sinais de pontuação: documentos oficiais e livros didáticos em diálogo, resultado da tese de doutorado de Anderson Silva, mostra como se dá o ensino da pontuação presente nos livros didáticos, no que concerne a questões voltadas para o letramento e a autoria. O pesquisador começa por discutir o conceito de enunciado concreto, de Bakhtin e o Círculo, partindo, logo após, para a análise das recomendações para o ensino de gramática e, mais especificamente, do item pontuação, presente nos documentos oficiais, os quais servem de base para a elaboração das propostas de ensino que compõem os livros didáticos. Investido, portanto, de lentes dialógicas, o pesquisador faz um estudo detalhado a respeito da pontuação em 16 coleções aprovadas pelo Programa Nacional do Livro Didático - PNLD 2010 (Ensino Fundamental - Anos Finais), referente ao triênio 2011-2013.

As conclusões a que Silva chegou a partir do diálogo travado entre os documentos oficiais e livros didáticos revelaram que a qualidade dos materiais didáticos cumpre um importante papel nos resultados da educação brasileira. Além disso, Silva constatou “que há diretrizes mais gerais sobre o ensino da gramática, mas nada sobre conteúdos específicos, caso, por exemplo, dos sinais de pontuação” (p.101). Silva aponta como uma possível solução para o problema, a iniciativa, em curso na época, por meio do PNE (BRASIL, 2014), de estabelecer uma Base Nacional Comum, com a indicação dos conteúdos mínimos nacionais, agindo como balizadores para a elaboração de novos editais e, consequentemente, das propostas dos livros didáticos.

O quarto estudo, intitulado Análise do artigo de opinião em livros didáticos, de Isabel Fernandes, consiste nos resultados de sua dissertação de mestrado, em que a pesquisadora investigou o deslocamento do gênero artigo de opinião da esfera jornalística para a esfera escolar. Também embasada nos preceitos bakhtinianos - em que os gêneros são tomados de acordo com o campo de atividade e com as condições específicas de produção e de circulação, mediante a finalidade de cada campo/esfera de atividade, em termos do conteúdo temático, forma composicional e estilo -, a pesquisadora busca compreender como esse gênero (artigo de opinião), que circula em outra esfera, é mobilizado nos materiais didáticos e no ambiente escolar e quais são as implicações desse deslocamento do gênero para o ensino de Língua Portuguesa.

Para tanto, Fernandes lança-se em uma análise detalhada das seções de produção de texto, que compreendem o ensino de gêneros do discurso, de três livros didáticos. A autora conclui que o tratamento dado ao gênero nos livros analisados e, por conseguinte, na esfera escolar, acaba por fragmentar o que em si é indissociável, isto é, o conteúdo temático, a forma composicional e o estilo. O estudo revela como centro do trabalho de leitura e compreensão do gênero artigo de opinião, a construção composicional, seguida do estilo de linguagem e do conteúdo temático. Para a pesquisadora, seria mais produtivo um trabalho com artigos de opinião “como enunciados concretos, considerados em sua totalidade, de modo que o texto pudesse ser compreendido em sua esfera de origem” (p.128). Além disso, Fernandes considera importante que o livro didático busque “recuperar o contexto de produção, circulação e recepção nas atividades de leitura, partindo do reconhecimento do artigo de opinião na esfera jornalística” (p.128).

Por fim, o leitor de Livro didático: olhares dialógicos encontrará o quinto e último estudo que compõe a obra, intitulado Autoria e concepção dialógica de discurso: um livro didático para universitários, resultado da tese de doutorado de Cláudia Garcia Cavalcante. A pesquisadora toma como objeto de estudo o livro didático Prática de texto para estudantes universitários - PTEU, de autoria de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, ambos amplamente reconhecidos como importantes estudiosos da obra de Bakhtin e o Círculo no Brasil. Cavalcante, fundamentada na concepção bakhtiniana de autoria - que distingue o autor-pessoa (autor empírico, pessoa física a quem se atribui a assinatura da obra) do autor-criador (posição axiológica, que organiza arquitetonicamente o todo discursivo) -, considera, para fins de análise, o autor-criador (Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza), buscando investigar se o autor, “comprovadamente bakhtiniano em sua obra teórica, promove, com seu livro didático, um espaço de construção de autoria e contribui para o ensino da escrita de estudantes universitários” (p.133). O foco da análise recai sobre o texto de Apresentação do livro de Faraco e Tezza, em suas duas versões: a primeira, de 1992 e a vigésima, de 2001, considerando a concepção do autor a respeito de língua, linguagem e ensino. Para tanto, Cavalcante apresenta ao leitor a concepção a respeito de língua, linguagem e ensino de cada um desses autores separadamente, buscando mostrar o lugar de onde falam, isto é, as posições sócio-históricas que agem na construção autoral do livro didático PTEU.

Os resultados do estudo de Cavalcante revelam que o livro didático de Faraco e Tezza cumpre com objetivo de se “desvincular das tão frequentes e comuns apostilas xerocadas” (p.160), que, conforme aponta a pesquisadora, “na visão do autor, mostravam-se ineficientes pela falta de um posicionamento teórico-metodológico consistente acerca do conceito de língua, linguagem e ensino” (p.160). PTEU, como revela a análise de Cavalcante, “possui um destinatário participante que não apenas é levado em consideração na construção desse enunciado didático como participa do diálogo responsivamente por meio de marcas linguísticas ao longo do texto” (p.162). Além disso, conforme destaca Brait na apresentação, “o objeto de ensino texto é apresentado como um dos tópicos mais relevantes, revelando uma noção de texto como ‘realidade discursiva’” (p.15).

A obra Livro didático: olhares dialógicos consiste em uma importante publicação que, sem sombra de dúvidas, traz valiosas contribuições para aqueles que se dedicam ao estudo da linguagem e que buscam compreender como é possível unir teoria dialógica e ensino, visto que os estudos de Bakhtin não estavam propriamente voltados para questões pedagógicas, mas para uma filosofia da linguagem. Valer-se de seu complexo pensamento e saber mobilizá-lo de forma produtiva na análise de materiais didáticos não é uma tarefa simples. É isso que os cinco pesquisadores envolvidos nessa coletânea fazem magistralmente, ao elegerem o livro didático como objeto de suas investigações, lançando olhares dialógicos sobre diferentes aspectos que envolvem esse objeto, que, conforme alerta Brait, “tem sido produzido em profusão no Brasil e, por vezes, sem os resultados que em princípio a Educação esperaria dele” (p.7).

O leitor de Livro didático: olhares dialógicos encontrará nessa coletânea importantes respostas para questões que, embora sejam constantemente debatidas no cenário da educação brasileira, ainda não foram de fato resolvidas. Esse é o caso, por exemplo, do tratamento dado a conteúdos específicos, como os sinais de pontuação, ou do tratamento do gênero, conforme mostram os estudos sobre os gêneros verbo-visuais e sobre o artigo de opinião. Além de se deparar também com questões sobre as quais sequer tenha imaginado, devido à complexidade envolvida, como revela o estudo sobre a arena de vozes presentes em um simples edital de compra de livros didáticos. Ou então, sobre a questão da autoria na produção de um livro didático para universitários elaborado por autores considerados como importantes expoentes da obra de Bakhtin no Brasil. A leitura dos textos reunidos nessa coletânea instiga a curiosidade de conhecer esses estudos na íntegra. Além de, no caso de pesquisadores, sempre ávidos por respostas, permitir que conheçam um pouco de cada pesquisa e, assim, fazer escolhas a respeito da leitura que poderá trazer maiores contribuições para a solução de suas questões de pesquisa.

A ideia de reunir pesquisas acadêmicas em uma coletânea, a fim de publicá-las, revela-se como um caminho produtivo para que venham a público importantes descobertas científicas, que poderiam contribuir significativamente com a sociedade, mas que, como sabemos, muitas vezes permanecem entre os muros das universidades. Fato este apontado por Beth Brait, quando inicia o texto de apresentação de Livro didático: olhares dialógicos dizendo “Quantas dissertações e teses, que consumiram anos de pesquisa de seus autores e orientadores, jazem esquecidas nas prateleiras das bibliotecas, virtuais ou não, sem ter mais que os componentes da banca de defesa como leitores?” (p.7). A obra ora resenhada, portanto, surge como uma promessa para que essa triste realidade deixe de existir, de forma que as pesquisas acadêmicas passem a ter maior visibilidade e possam cumprir com seu papel social. A coletânea Livro didático: olhares dialógicos surge como uma de muitas outras publicações, pelo menos é o que se espera, que, assim como esta, possam contribuir, de forma ampla, tanto para o desenvolvimento de outros estudos científicos, quanto para a circulação desses estudos dentro e fora do âmbito acadêmico.

  • 1
    Todas as pesquisas foram orientadas por Beth Brait, no LAEL/PUC-SP, e os autores atuaram como membros-estudantes do Grupo de Pesquisa/PUC-SP/CNPq Linguagem, Identidade e Memória.

REFERÊNCIAS

  • SOBRAL, A. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin Campinas, SP: Mercado de Letras, 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2019

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2018
  • Aceito
    18 Ago 2018
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bakhtinianarevista@gmail.com