Acessibilidade / Reportar erro

Trabalho docente em cursos livres de idiomas: discurso direto e a voz da hierarquia

RESUMO

Este artigo procura focalizar um aspecto da atividade do professor que atua em cursos livres de idiomas. Traz uma análise de falas de docentes sobre o seu trabalho, produzidas pelo dispositivo entrevista; mais especificamente, tematiza o processo de seleção e o treinamento que antecederam a sua contratação. As ciências da linguagem sob a perspectiva do método sociológico, tal como desenvolvido por Mikhail Bakhtin e o Círculo, serão o marco teórico da investigação, assim como a abordagem ergológica da atividade. Com relação aos recursos linguístico-discursivos empregados pelos professores nas entrevistas, é possível observar, nos fragmentos analisados neste artigo, a presença constante do discurso citado, especialmente as ocorrências de discurso direto, por meio do qual se constrói um efeito de sentido de autenticidade e se marcam as fronteiras com relação à voz da hierarquia. Ademais, a percepção autoritária da palavra alheia, seu nível de segurança ideológica e de dogmatismo também explicam o recurso ao discurso direto.

PALAVRAS-CHAVE:
Trabalho docente; Cursos livres; Discurso direto

ABSTRACT

This paper aims at focusing on an aspect of the activity of the teacher who works at private language schools. It presents an analysis of teachers’ speeches about their work. These speeches were produced during an interview, which was conceived and applied as a research instrument to generate data. More specifically, our analysis covers the process of their selection and training, which took place before their hiring. The theoretical framework of the investigation are the language sciences from the perspective of the sociological method, as developed by Mikhail Bakhtin and the Circle, and the ergological approach of the activity. In relation to the linguistic-discursive resources used by the teachers during the interviews, it is possible to observe, in the excerpts analyzed in this paper, the constant presence of reported speech, and especially the occurrences of quotations in direct speech, through which an effect of sense of authenticity is produced and the boundaries with respect to the voice of hierarchy are marked. Furthermore, the authoritarian reception of the alien word, the degree of its ideological assurance and also dogmatism explain the use of direct speech.

KEYWORDS:
Teaching Work; Private Language Schools; Direct Speech

Introdução

Na última década, vêm ocorrendo iniciativas de instâncias governamentais brasileiras no sentido de permitir que cursos livres - instituições que não se encontram no âmbito de controle dos organismos estatais da educação -, sejam responsáveis pelo ensino de línguas estrangeiras, pela produção de materiais didáticos ou pela formação continuada docente em escolas públicas de Educação Básica. Alguns exemplos dessas situações estão presentes nos mais diversos âmbitos: federal, estaduais e municipais1 1 Alguns exemplos: a contratação da Cultura Inglesa, desde 2010, pela Secretaria de Educação do Município do Rio de Janeiro para diversas atividades (selecionar docentes em concurso público, oferecer cursos de formação continuada aos professores, fornecer o material didático à rede, supervisionar as aulas de inglês); a previsão, na já revogada Lei 11.161/2005, de que a oferta de espanhol em escolas pudesse ser efetivada por meio de “Centro de Estudos de Língua Moderna”. Mais casos semelhantes podem ser vistos em Freitas (2017). . Nas escolas privadas, a oferta das línguas estrangeiras por meio de convênios com cursos livres tem sido uma prática habitual nos grandes centros urbanos.

Assim sendo, o papel educativo dessas línguas na escola, buscando uma ampliação do letramento do estudante em articulação com os demais componentes curriculares, é apagado. Reforça-se o entendimento dessas línguas como um bem de consumo, ou seja, um produto que visa a atender uma necessidade de mercado, de forma instrumentalizada, priorizando o aprendizado de determinadas habilidades, não de uma efetiva educação linguística.

Os cursos livres vêm ampliando sua presença não somente nesse campo, relacionado à Educação Básica, mas em sua atividade principal, que é a oferta de ensino não escolar de línguas2 2 Segundo dados da Associação Brasileira de Franchising, dentre as vinte e cinco maiores franqueadoras do Brasil, quatro cursos livres (ABF, 2017). . No entanto, a atuação de tais instituições é quase inexplorada nos estudos acadêmicos brasileiros. Dentre as poucas pesquisas sobre esse objeto destacam-se os trabalhos de Freitas (2010)FREITAS, L.M.A. Da fábrica à sala de aula: vozes e práticas tayloristas no trabalho do professor de espanhol em cursos de línguas. 2010. 309 f. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010., de Fernandes (2013)FERNANDES, M. S. S. Ensino regular e curso livre de idiomas: a fala do professor de espanhol sobre o seu trabalho. 2013. 132f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013. e de Souza (2016)SOUZA, C.F. Ecos do ser e do estar: um estudo discursivo acerca do trabalho do professor de inglês de cursos livres. 2016. 231 f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016..

Este texto tem o objetivo de trazer uma análise de falas de professores3 3 Aqui “professor” ou “docente” é o sujeito que dá aulas em cursos livres, independente de ter formação universitária em curso de licenciatura. que atuam em cursos livres sobre o seu trabalho (LACOSTE, 1998LACOSTE, M. Fala, atividade, situação. In: DUARTE, F.; FEITOSA, V. (Orgs.). Linguagem & trabalho. Trad. V. C. Feitosa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1998.), especificamente, sobre o processo de seleção e o treinamento que antecederam a sua contratação, produzidas por meio do dispositivo entrevista4 4 As entrevistas foram realizadas entre 2006 e 2010 (FREITAS, 2010), período anterior à criação da Plataforma Brasil e da rotina de solicitação de autorização de Comitês de Ética em Pesquisa para investigações na área de Letras, e contou com a participação de outros sujeitos, além dos pesquisadores. . As ciências da linguagem sob a perspectiva do método sociológico, tal como desenvolvido por Mikhail Bakhtin e o Círculo, serão o marco teórico da investigação (BAKHTIN, 2003aBAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: _______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003a, p.261-306., 2003b_______. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: _______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003b, p.307-335.; VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2017.), assim como os estudos sobre o trabalho, em especial a abordagem ergológica da atividade (SCHWARTZ, 1997SCHWARTZ, Y. Reconnaissances du travail - Pour un approche ergologique. Paris: PUF, 1997.).

Há poucas investigações preocupadas em analisar a situação de ensino como uma situação de trabalho do professor. Como afirma Faïta (2005)FAÏTA, D. Análise dialógica da atividade profissional. Trad. M. B. França, M. G. Di Fanti e M. Moura Vieira. Rio de Janeiro: [s.n.], 2005., o estudo dos modos pelos quais o docente se investe na realização de suas tarefas é um campo que carece de pesquisas. Tardiff e Lessard (2007)TARDIFF, M.; LESSARD, C. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. Trad. de J. B. Kreuch. 3ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2007. mostram não somente essa lacuna, mas também a falta de compreensão acerca da pertinência e da necessidade dessa abordagem da docência. Se enfocado o âmbito da língua estrangeira em cursos livres, tal carência é ainda maior, conforme mencionado anteriormente. Assim, este artigo se organiza em quatro seções: a primeira enfoca, brevemente, a complexa discussão entre linguagem e trabalho; a segunda aborda a entrevista como procedimento de produção de falas sobre (LACOSTE, 1998LACOSTE, M. Fala, atividade, situação. In: DUARTE, F.; FEITOSA, V. (Orgs.). Linguagem & trabalho. Trad. V. C. Feitosa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1998.) o trabalho docente; a terceira traz uma análise das entrevistas, em especial das ocorrências de discurso direto encontradas; a quarta apresenta as considerações finais.

1 Linguagem e trabalho

Apesar de recente, a preocupação dos linguistas com a interface linguagem e trabalho vem consolidando-se nas quatro últimas décadas. Iniciou-se na França, nos anos 80 e, na década seguinte, chegou ao Brasil, com o surgimento dos primeiros grupos de pesquisa5 5 Os primeiros grupos de pesquisa foram o Atelier - Linguagem e Trabalho (PUC-SP) e o Alter - Análise de Linguagem, Trabalho Educacional e suas Relações (criado na PUC-SP e atualmente sediado na USP). que tematizavam essa questão.

A posição central ocupada pela linguagem na atividade de trabalho é reconhecida pela Ergonomia situada, perspectiva que tem como objeto a atividade humana, o sujeito em ação laboral. Essa centralidade da linguagem faz com que ela seja alvo das preocupações de pesquisadores oriundos de campos disciplinares diversos, que buscam valorizar as falas dos trabalhadores, como sociólogos, ergonomistas, filósofos, médicos e psicólogos (BOUTET, 1993BOUTET, J. Activité de langage et activité de travail. Education Permanente, Cely-en-Bière, n.116, p.109-117, 1993.; FRANÇA, 2002FRANÇA, M. B. Uma comunidade dialógica de pesquisa - atividade e movimentação discursiva nas situações de trabalho de recepcionistas de guichê hospitalar. 2002. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2002.).

A abordagem ergológica que fundamenta esta pesquisa teve um papel relevante no amadurecimento da relação entre linguagem e trabalho. A Ergologia nasceu a partir de fins dos anos 70 e início dos 80, com as reflexões do filósofo francês Yves Schwartz. De sua união com o linguista Daniel Faïta e com o sociólogo Bernard Vuillon surgiu, em 1983, a APST - Analyse Pluridisciplinaire des Situations de Travail, na Université de Provence (Aix-Marseille I). No final dos anos 90, o grupo se desdobrou em duas vertentes, ambas engajadas na reflexão, na análise e na transformação da atividade, e uma delas, de cunho filosófico, com uma preocupação epistemológica e conceitual, é a abordagem ergológica (SCHWARTZ, 1997SCHWARTZ, Y. Reconnaissances du travail - Pour un approche ergologique. Paris: PUF, 1997.).

A concepção de linguagem do Círculo bakhtiniano (BAKHTIN, 2003aBAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: _______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003a, p.261-306., 2003b_______. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: _______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003b, p.307-335.; VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2017.) pautou perspectivas fundadoras da Ergologia por meio dos estudos de Daniel Faïta (2005)FAÏTA, D. Análise dialógica da atividade profissional. Trad. M. B. França, M. G. Di Fanti e M. Moura Vieira. Rio de Janeiro: [s.n.], 2005.. O método sociológico buscado por Bakhtin e o Círculo (BAKHTIN, 2003 aBAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: _______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003a, p.261-306., 2003b_______. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: _______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003b, p.307-335.; VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2017.) vai ao encontro da complexidade do ser humano e do seu trabalho por considerar a língua uma atividade concreta de trocas verbais, enquanto a ergologia apresenta-se como o estudo das atividades humanas que coloca os trabalhadores no centro da produção de conhecimento sobre o trabalho e, para isso, requer análises do campo linguístico-discursivo.

A abertura desse âmbito de reflexão é fundamental para a compreensão do trabalho, pois não existe atividade em que não haja algum tipo de interação verbal, mesmo que ela não faça parte da atividade stricto sensu, como em uma linha de montagem. Assim sendo, não é possível compreender e investigar o trabalho sem as contribuições provenientes das falas dos seus protagonistas, sejam produzidas em situação laboral, sejam provocadas em outros momentos e lugares. Segundo França (2002, p.60, grifo da autora)FRANÇA, M. B. Uma comunidade dialógica de pesquisa - atividade e movimentação discursiva nas situações de trabalho de recepcionistas de guichê hospitalar. 2002. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2002. “[...] a produção de conhecimento nas e sobre as situações de trabalho tem de dar lugar e ouvir a voz daqueles que têm a experiência no trabalho. São eles que sentem calor, se irritam e têm prazer no trabalho que estão fazendo”.

Nouroudine (2002, p.21-22)NOUROUDINE, A. A linguagem: dispositivo revelador da complexidade do trabalho. In: SOUZA-E-SILVA, M. C. P.; FAÏTA, D. (Orgs.). Linguagem e trabalho - construção de objetos de análise no Brasil e na França. Trad. I. Polegatto e D. Rocha. 1ª ed. São Paulo: Cortez, 2002. reforça que a linguagem deve ser vista “como parte da atividade em que constituintes fisiológicos, cognitivos, subjetivo, social etc. se cruzam em um complexo que se torne ele próprio uma marca distintiva de uma experiência específica em relação a outras”. Para isso, as investigações da interface linguagem-trabalho requerem uma análise linguística que não se restrinja à palavra e à oração e que considerem a relação entre língua e sociedade, entre enunciado e situação de enunciação, o que representa uma aproximação com a concepção de discurso do de Bakhtin e o Círculo (BAKHTIN, 2003aBAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: _______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003a, p.261-306., 2003b_______. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: _______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003b, p.307-335.; VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2017.).

A primeira tentativa de recorte metodológico da análise da linguagem em situação de trabalho foi a distinção das falas aprofundada por Lacoste (1998)LACOSTE, M. Fala, atividade, situação. In: DUARTE, F.; FEITOSA, V. (Orgs.). Linguagem & trabalho. Trad. V. C. Feitosa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1998.. Essa proposta diferencia a linguagem sobre, no e como trabalho. A linguagem sobre o trabalho é a produção de saberes sobre a atividade, seja durante a sua realização, entre os próprios trabalhadores, seja em algum questionamento posterior, como por exemplo, no caso das entrevistas realizadas para esta investigação. A linguagem como trabalho é aquela utilizada durante e para a realização da atividade, como as falas de um atendente de telemarketing ou uma exposição feita por um professor durante sua aula. Por fim, a linguagem no trabalho é aquela que não se relaciona diretamente com a execução da atividade, mas que ocorre na própria situação de trabalho, como conversas sobre temas diversos entre dois trabalhadores (LACOSTE, 1998LACOSTE, M. Fala, atividade, situação. In: DUARTE, F.; FEITOSA, V. (Orgs.). Linguagem & trabalho. Trad. V. C. Feitosa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1998.).

A distinção das falas, apesar de possuir limitações, foi pioneira e provocou um deslocamento nas análises. Segundo Lacoste (1998)LACOSTE, M. Fala, atividade, situação. In: DUARTE, F.; FEITOSA, V. (Orgs.). Linguagem & trabalho. Trad. V. C. Feitosa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1998., houve uma mudança de perspectiva, pois os pesquisadores centravam suas atenções nas falas dos operadores sobre seu trabalho e negligenciavam o papel da linguagem na própria atividade. Nouroudine (2002)NOUROUDINE, A. A linguagem: dispositivo revelador da complexidade do trabalho. In: SOUZA-E-SILVA, M. C. P.; FAÏTA, D. (Orgs.). Linguagem e trabalho - construção de objetos de análise no Brasil e na França. Trad. I. Polegatto e D. Rocha. 1ª ed. São Paulo: Cortez, 2002., por sua vez, ressalta que a complexidade do trabalho está na linguagem como um todo, traduzida de maneiras diferentes em cada um dos elementos da tripartição das falas.

No contexto de realização desta pesquisa, esse recorte metodológico é importante para explicitar que o foco de atenção estará nas falas dos professores sobre seu trabalho, por meio de entrevistas. Como afirma Nouroudine (2002)NOUROUDINE, A. A linguagem: dispositivo revelador da complexidade do trabalho. In: SOUZA-E-SILVA, M. C. P.; FAÏTA, D. (Orgs.). Linguagem e trabalho - construção de objetos de análise no Brasil e na França. Trad. I. Polegatto e D. Rocha. 1ª ed. São Paulo: Cortez, 2002., esse elemento da tripartição pode fazer emergir informações relevantes sobre a atividade.

A concepção dialógica de linguagem do Círculo de Bakhtin possibilita um estudo linguístico-dialógico de situação de trabalho que integra ao fenômeno verbal o atributo industrioso, relativo à potência humana de agenciamentos da vida. A língua é, assim, concebida como fruto do trabalho humano de interações entre sujeitos que se dão nas mais diversas esferas de atividade. Para Bakhtin (2003a, p.265)BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: _______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003a, p.261-306., o dialogismo constitutivo da linguagem está presente em cada enunciado, pois “a língua passa a integrar a vida através de enunciados concretos (que a realizam); é igualmente através de enunciados concretos que a vida entra na língua”.

Nessa perspectiva, o papel do linguista que centra seus estudos nos enunciados concretos é a de um participante daquele diálogo:

A compreensão de enunciados integrais e das relações dialógicas entre eles é de índole inevitavelmente dialógica (inclusive a compreensão do pesquisador de ciências humanas); o entendedor (inclusive o pesquisador) se torna participante do diálogo ainda que seja em um nível especial (em função da tendência da interpretação e da pesquisa). [...] Um observador não tem posição fora do mundo observado, e sua observação integra como componente o objeto observado (BAKHTIN, 2003b_______. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: _______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003b, p.307-335., p.332, grifo do autor).

Por meio da compreensão do enunciado concreto e dialógico como “real unidade da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2003aBAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: _______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003a, p.261-306., p.274), a interface entre os estudos de linguagem e os estudos do trabalho ganha uma nova dimensão: por um lado, não existe atividade humana sem uso da linguagem; por outro, não há linguagem fora de um campo da atividade humana.

2 A entrevista

A produção de falas sobre o trabalho (LACOSTE, 1998LACOSTE, M. Fala, atividade, situação. In: DUARTE, F.; FEITOSA, V. (Orgs.). Linguagem & trabalho. Trad. V. C. Feitosa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1998.) para esta pesquisa se deu, como já foi dito, por meio de entrevistas a professores de cursos livres. Após um contato e uma sondagem inicial, houve resposta positiva de 34 docentes, todos de espanhol6 6 A pesquisa tinha como foco apenas docentes de espanhol; no entanto, a parte da entrevista trazida para este artigo não aborda aspectos específicos dessa língua. , que atuavam, naquele momento, nessas instituições. Assim, foi feito o recorte da pesquisa: seriam entrevistas com professores que lecionavam em instituições privadas em sistema de franquia; os cursos selecionados seriam aqueles em que houvesse pelo menos dois professores dispostos a colaborar e que possuíssem unidades em grande número, em vários estados do país. Dessa forma, a investigação abarcaria os cursos que mais empregam professores, em função do número de filiais franqueadas.

Assim, a partir desses critérios, restaram cinco instituições, designadas com os nomes fictícios de Alfa, Beta, Gama, Delta e Ômega7 7 Uma caracterização do perfil de cada empresa se encontra em Freitas (2010). . Em seguida, foram realizadas as entrevistas, em um total de dez, pois eram dois docentes de cada instituição selecionada. Foram mais de 200 minutos de gravação, armazenados em suporte digital.

Nesta investigação, o dispositivo entrevista não é visto como a revelação de uma informação detida pelo entrevistado (DAHER, SANT’ANNA, ROCHA, 2004_______; SANT’ANNA, V. L. A.; ROCHA, D. A entrevista em situação de pesquisa acadêmica: reflexões numa perspectiva discursiva. Polifonia, Cuiabá, v.8, 2004., p.164-165), mas como um evento dialógico. Portanto, em lugar de responder às questões de pesquisa e de ser entendida como a revelação de uma verdade, assume o papel de um momento de construção de um texto, sob a ótica discursiva, que retoma situações de enunciação anteriores e que estão inacessíveis ao pesquisador. Assim, a entrevista é, também, uma atividade memorialística, já que retoma experiências pessoais vivenciadas pelo entrevistado. Pode retomar, igualmente, uma memória coletiva, na medida em que se abordam temas que dizem respeito à comunidade.

No caso desta pesquisa, retomam-se enunciados originados no local de trabalho do docente entrevistado. Assim, a massa de textos que está inacessível ao pesquisador e que surge na situação de entrevista não diz respeito apenas àquele professor, mas também aos seus colegas, coordenadores, diretores e demais sujeitos presentes em situação de trabalho. Os docentes entrevistados recuperam outras vozes, o que é constitutivo da linguagem na perspectiva dialógica, e elas são visíveis no texto produzido.

O roteiro da entrevista, adaptado da proposta de Daher (1998)DAHER, D. C. Quando informar é gerenciar conflitos: a entrevista como estratégia metodológica. The ESPecialist, São Paulo, v.19, p.287-304, 1998., foi organizado em três blocos temáticos, com um total de dezoito perguntas. Para este artigo, foram trazidas e analisadas apenas as interações geradas por duas questões8 8 O roteiro completo encontra-se em Freitas (2010). : 1) Como foi o processo de contratação pelo curso? Você sabe quais eram os requisitos exigidos? Você sabe se o procedimento de contratação é sempre o mesmo? 2) Houve algum treinamento? Você poderia descrevê-lo?

Na próxima seção, os textos produzidos nessas interações são analisados, com a atenção dirigida a determinadas atitudes verbais que se sobressaem, especialmente, os fragmentos das respostas dos professores com presença do discurso relatado. Foram analisadas, ainda, outras pistas que aparecem na materialidade linguística. Um desses aspectos diz respeito à expressividade (BAKHTIN, 2003aBAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: _______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003a, p.261-306.), ou seja, o efeito valorativo e emocional do sujeito com relação ao seu dizer, que determina a escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do enunciado, bem como as marcas das relações dialógicas visíveis na materialidade dos enunciados. Igualmente, são observados os movimentos discursivos estabelecidos entre a pesquisadora e os entrevistados, ou seja, o fluxo dialógico entre perguntas e respostas.

3 As falas sobre o trabalho

Conforme dito anteriormente, as questões aqui tematizadas dizem respeito à contratação e ao treinamento dos professores. Os docentes dos cursos Beta, Gama, Delta e Ômega relatam que foram contratados após a aprovação em uma prova escrita, em uma entrevista e em um treinamento breve. Indagados a respeito do conteúdo da prova escrita, todos os professores afirmaram tratar-se de um exame exclusivamente de proficiência na língua que queriam ensinar, o espanhol:

Professora Adriana9 – Curso Ômega10 P: Como você foi:: contratada pelo Curso? Adriana: Passei por todos os/prova escrita++ tive que fazer um treinamento e me chamaram pra trabalhar. P: Prova escrita. Qual era o conteúdo dessa prova escrita? Adriana: Bem fácil. Era::a mais difícil que eu achei foi o Beta, Ômega era o método mais fácil porque era método estrutural, né? Aquelas questões passe a frase para o pretérito indefinido? P: Só gramática? Adriana: Só gramática.
Professora Patrícia – Curso Delta P: Foi só uma entrevista então? Patrícia: Uma entrevista e uma redação. P: Uma entrevista e uma redação. Patrícia: Mas em geral no outro Delta, o da ((nome do bairro)), que eu também já dei aula lá eu tive uma prova ++ Assim enorme com coisas de vocabulário que eu não lembrava, acho que ninguém ia lembrar daquilo, uma lista enorme de falsos amigos++ que você tinha que dizer o que era, sabe? ((risos))

Alguns, inclusive, mencionam que a prova se assemelharia ou seria um exemplar do DELE, um dos exames internacionais de proficiência em língua espanhola:

Professora Gabriela – Curso Beta P: Entendi. Aí você foi indicada e chegando lá você fez uma prova ? Gabriela: Fiz, uma prova estilo:: DELE+ Superior, uma prova bem :: bem árdua. P: Sei. Quais eram os conteúdos dessa prova? Gabriela: Conteúdos em si? P: De maneira geral, era uma prova de gramática, era uma prova / Gabriela: Não, não. Era estilo DELE, mesmo. Compreensão auditiva, tinha comprensión lectora, tinha::+ tava bem divididinha, assim, gramática :: era bem estilo DELE, mesmo. Parecia que eles/ me pareceu que eles pegaram um dos exemplares da prova do DELE Superior de anos anteriores e aplicaram. P: Sei. E:: mas não tinha nenhum conteúdo de didática, por exemplo, como ensinar? Gabriela: Não.
Professora Aline – Curso Gama P: Mas aí como você foi contratada? Teve que fazer algum teste, alguma coisa? /.../ Aline: Isso. Tem uma prova. P: Como é que é essa prova? Aline: Atualmente a prova, ela tem um nível como se fosse do DELE. Superior. É, assim, basicamente uma cópia. Quando eu fiz era uma prova num nível bastante básico.

Uma seleção de professores organizada a partir de uma prova que contempla apenas conteúdos relacionados à proficiência linguística do candidato reflete a concepção dessas instituições acerca das competências necessárias ao exercício da docência. Nessa perspectiva, está apto a ser professor - ou, pelo menos, a participar das etapas seguintes da seleção - qualquer sujeito que tenha resultado satisfatório em um exame que mede a aplicação de determinados conhecimentos de língua, especialmente aqueles da norma-padrão. Esse fato desconsidera elementos da formação profissional na área da educação e vai ao encontro da presença, bastante frequente, de professores não licenciados em atuação nos cursos livres (FREITAS, 2010FREITAS, L.M.A. Da fábrica à sala de aula: vozes e práticas tayloristas no trabalho do professor de espanhol em cursos de línguas. 2010. 309 f. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.; FERNANDES, 2013FERNANDES, M. S. S. Ensino regular e curso livre de idiomas: a fala do professor de espanhol sobre o seu trabalho. 2013. 132f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.; SOUZA, 2016SOUZA, C.F. Ecos do ser e do estar: um estudo discursivo acerca do trabalho do professor de inglês de cursos livres. 2016. 231 f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016.).

Nenhum entrevistado manifestou uma crítica explícita ao procedimento de contratação por meio de um exame de proficiência, o que indicaria que esse é um fato naturalizado. No entanto, observa-se no âmbito linguístico-discursivo que a qualificação dessas provas, por parte de algumas professoras, aponta para uma desvalorização do seu conteúdo. Patrícia diz que a prova continha “coisas de vocabulário que eu não lembrava, acho que ninguém ia lembrar daquilo, uma lista enorme de falsos amigos++ que você tinha que dizer o que era” e, em seguida, ri. Esse riso constrói um efeito valorativo, uma expressividade que remete ao seu descrédito com relação aos conteúdos abordados no exame e à sua validade na seleção de professores (“acho que ninguém ia lembrar daquilo”).

Adriana diz que a prova era “bem fácil” e Aline que “era uma prova num nível bastante básico” e que “atualmente a prova, ela tem um nível como se fosse do DELE Superior”. Gabriela afirma que é “uma prova estilo:: DELE+ Superior, uma prova bem:: bem árdua”. Assim, enquanto Adriana e Aline manifestam um tom crítico em relação à prova pela sua facilidade, Gabriela hesita ao buscar um qualificativo adequado para o exame e opta por “árdua”, ou seja, cansativa, penosa. Para uma prova de seleção, ser “árdua” não seria uma qualificação negativa, pois indica a escolha dos melhores, daqueles que conseguem superar as dificuldades encontradas. Do mesmo modo, Aline, ao comparar a prova de hoje com a que fez no passado, estabelece uma oposição entre básico/superior (“Atualmente a prova, ela tem um nível como se fosse do DELE. Superior. É, assim, basicamente uma cópia. Quando eu fiz era uma prova num nível bastante básico”) que indica uma qualificação melhor da atual (“superior”). Finalmente, a afirmação de que a prova é uma simples “cópia” de um exame preparado por outra instituição com a finalidade única de avaliar proficiência, indica um entendimento de incapacidade dos cursos para construírem seus próprios meios de seleção docente.

Com relação às entrevistas, poucos professores mencionaram seu conteúdo. Alguns relataram que seriam como provas orais. A professora Carla, do curso Beta, afirma:

Professora Carla – Curso Beta Carla: Assim, eu deixei o currículo. Me chamaram pra fazer a prova, uma prova escrita que era uma prova de gramática, vocabulário etc. Eu fui aprovada na prova aí fiz a entrevista. Em Espanhol. Aí::/ P: Com quem? Carla: Com a coordenadora de Espanhol. Na época, uma das coordenadoras de Espanhol. P: Hum hum. Carla: E ela::: falou um pouco sobre o meu currículo, pegou o meu currículo e falou: “Ah, o que que você / Ah, me explica um pouco sobre as suas experiências, o curso que você fez” e não sei o quê.

Para abordar a entrevista, a professora recupera a voz da coordenadora por meio do discurso direto (“E ela::: falou um pouco sobre o meu currículo, pegou o meu currículo e falou: ‘Ah, o que que você/ Ah, me explica um pouco sobre as suas experiências, o curso que você fez’ e não sei o quê.”). Assim, constrói-se um efeito de sentido de autenticidade. Diz Volóchinov (2017, p.255)VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2017.: “em primeiro lugar, a principal tendência da reação ativa ao discurso alheio pode preservar a sua alteridade e a sua autenticidade”. O recurso ao discurso relatado, seja ele direto ou não, é visto em vários fragmentos das falas dos professores. A voz ali presente e que pode ser recuperada é a da hierarquia, especialmente, em forma de prescrições.

Além disso, também a partir de Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2017. é possível analisar o recurso ao discurso relatado, especialmente o discurso direto, a partir de outro viés, que coexiste e se relaciona com a busca de autenticidade: a reprodução da voz da hierarquia costuma ter fronteiras nítidas, como as existentes no discurso direto, o que marca um distanciamento maior do citante com relação ao dito pelo citado. Diz o autor (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2017., p.261-262): “Quanto mais intensa for a sensação de superioridade hierárquica da palavra alheia, tanto mais nítidas serão suas fronteiras e menos penetrável ela será pelas tendências de comentadoras e responsivas”. Essa sensação de hierarquia no discurso se relaciona com o vínculo entre ele e a sociedade:

Já essas formas [de comunicação discursiva] estão inteiramente determinadas pelas relações de trabalho e pelo regime sociopolítico. Em uma análise mais detalhada, veríamos a enorme importância do aspecto hierárquico nos processos da interação discursiva e a influência poderosa da organização hierárquica da comunicação nas formas do enunciado (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2017., p.109, grifo do autor).

O enunciado é poderosamente influenciado pela organização hierárquica da comunicação que, por sua vez, tem suas formas determinadas pelas relações de produção e pela formação político-social. Dessa forma, a hierarquia presente no trabalho se vê plasmada na comunicação e aparece por meio do discurso direto na fala dos professores.

Afirma ainda Volóchinov (2017, p.256-257)VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2017.:

À medida que o dogmatismo da palavra aumenta e a percepção compreensiva e avaliativa deixa de admitir matizes entre a verdade e a mentira, entre o bem e o mal, as formas de transmissão do discurso alheio se despersonificam [...]. A precisão e a inviolabilidade das fronteiras entre o discurso autoral e o discurso alheio atingem seu limite máximo.

Portanto, a percepção autoritária da palavra alheia, seu nível de segurança ideológica e de dogmatismo explicam também o recurso ao discurso direto, com a retomada do dito pela hierarquia que, como se verá, é muito frequente nas entrevistas dos professores.

No que diz respeito ao treinamento, os docentes mencionam configurações diversas. No curso Gama, ele é realizado apenas pela franqueadora; no Beta, há dois treinamentos, o da franqueada e o da franqueadora; no Delta, relata-se a existência apenas do treinamento da franqueada; no Ômega, cada professor mencionou a existência de um deles, um só fez o da franqueada, outro somente o da franqueadora.

O relato da professora Carla reflete o procedimento mencionado pela maioria dos professores dos cursos Beta, Gama, Delta e Ômega com relação ao evento. A exceção estaria no primeiro treinamento realizado na franqueada:

Professora Carla – Curso Beta Carla: Aí passando na entrevista, a gente fez um treinamento ++ que se dividiu em duas partes. Primeiro a gente fez um treinamentozinho é:: lá em ((nome do bairro)) mesmo, que eles já preparavam um pouco como era o curso, o que que/ o que que consistia, como era a metodologia do curso e tudo. A gente ficou uns dois ou três dias lá em ((nome do bairro)). /.../ Depois a gente foi pra ((nome do bairro)). Em ((nome do bairro)) a gente teve o treinamento geral. Todos, todas as franquias, no caso, do Rio de Janeiro, faziam o treinamento em ((nome do bairro)). A gente ficou três dias lá com o ((nome do responsável)), que é o responsável por::+++ é:: avaliar todos os professores do país. Então ele explicou a metodologia, a gente fez algumas, a gente preparou alguns, algumas partes de aula pra apresentar lá na hora. E no último dia de:: de treinamento, foram três dias, no último dia de treinamento, a gente:: um dia antes a gente recebia a aula que a gente deveria preparar e no último dia a gente apresentava essa aula. /.../ A prova-aula. Toda a aula, como seria com, com todo o processo de aula, assim++ com/ com todas as etapas da aula. E depois o ((nome do responsável)) fazia uma avaliação. A gente não ficava sabendo diretamente da avaliação dele, quem falava com gente era a coordenadora de Espanhol. /.../ E a gente ficava ou não ficava. Aí ele aprovava ou não aprovava +++ Ou aprovava com ressalvas: “Ah, ta aprovada, mas é bom que, que... É bom que/ é bom fazer outro treinamento ...”. /.../ O treinamento na filial não é toda filial que faz. Isso eu soube depois. O pessoal de ((nome do bairro)) fez o treinamento até pra preparar melhor os professores pra não irem++ direto pro treinamento em ((nome do bairro)). P: Agora, conta mais desse treinamento . Como é que era? Você chegava lá e ele falava de que? De metodologia o tempo todo...? Carla: O ((nome do responsável pelo treinamento )) explicava como era a metodologia do Beta . A metodologia comunicativa, os PASSOS da aula, ele tinha um plano de aula. A primeira coisa que ele fazia era dar uma aula. Isso dava uma hora e quinze mais ou menos... /.../ ...dando a aula, com alguns professores que serviam de voluntários pra serem alunos. /.../ E ele entregava pra gente o plano de aula. É:: A metodologia do Beta tem algumas etapas: ambientação, sensibilização, sistematização, prática ... E ele explicava cada passo. Como devia ser uma aula pra vocabulário, como deveria ser uma aula de, pra leitura, como deveria ser uma aula pra gramática etc.

A fala da professora apresenta uma oposição entre o “treinamentozinho” realizado na franqueada, no qual preparavam “um pouco” os candidatos e que servia de preparação prévia ao treinamento geral da franqueadora, quando o docente aprenderia a metodologia comunicativa e os procedimentos adotados pela instituição com “o responsável por::+++ é:: avaliar todos os professores do país”. O segundo é o decisivo, aquele que determina a contratação ou não do professor após uma prova de aula.

Carla encena a fala do responsável pelo treinamento nesse momento de decisão acerca de quem conseguirá o emprego (“Ah, ta aprovada, mas é bom que, que... É bom que/ é bom fazer outro treinamento...”), que ela mesma afirma não ter presenciado (“A gente não ficava sabendo diretamente da avaliação dele, quem falava com gente era a coordenadora de Espanhol”). A voz da hierarquia aparece em diversos momentos das entrevistas, em especial, na forma de discurso direto, coincidindo com a análise de Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2017.. Na fala de Carla, além do fragmento citado no parágrafo precedente, identifica-se a reprodução da voz que prescreve; nesse caso, a do responsável pelo treinamento, representante da franqueadora: “E ele explicava cada passo. Como devia ser uma aula pra vocabulário, como deveria ser uma aula de, pra leitura, como deveria ser uma aula pra gramática etc”. Há aqui marcas de outra voz na qual se destacaria a modalidade deôntica (CERVONI, 1998CERVONI, J. A enunciação. Trad. L. Garcia dos Santos. São Paulo: Ática, 1998.) com o emprego do verbo “dever” manifestando obrigação, embora matizado pelo uso do condicional “deveria”.

Esse modelo de treinamento descrito por ela é muito semelhante ao mencionado por quase todos os professores entrevistados: dois ou três dias de atividades, com a apresentação do método e do material didático, uma aula-modelo e uma prova-aula.

Diz o professor Rafael, do curso Ômega:

Professor Rafael – Curso Ômega P: /.../ Como é que era o treinamento? Rafael: Tá. É:: era a moça, a/ a moça, a coordenadora mostrou pra gente o livro, deu pra gente um livro e a gente tinha que acompanhar as aulas que ela dava pra gente. Que, ou seja, passo a passo. No, no texto vocês fazem isso, repetem dessa forma, aqui vocês fazem essa pergunta, bem :: passo a passo mesmo, bem receita de bolo . E aí você :: fazia aquilo e acho que com três semanas/ dois dias já dando aula, os outros dois dias da semana a gente ia apresentar aulas pra ela. E aí nessa apresentação de aulas imagino eu ela:: ela observando ali se a gente tinha entendido bem a receita de bolo que ela passou pra gente, assim. Eu, na época, eu só me lembro que eu pensei assim: não vou ser cha/selecionado. E mesmo porque eu sou não muito de seguir receita de bolo, assim, não consigo, né:: eu sou bem mais interativo, eu pulo etapas, faço coisas, assim, que eu acho que funciona e enfim, da minha cabeça.

O modelo de treinamento relatado parece semelhante ao descrito por Carla. No entanto, percebe-se sua visão crítica com relação ao evento: “bem receita de bolo” é como ele qualifica o que era ensinado no curso, expressão repetida três vezes em um fragmento de poucos segundos de duração. Dessa forma, estabelece uma relação entre o treinamento recebido e um gênero instrucional bastante estável, composto por alguns “ingredientes” e um “modo de fazer” que, se seguido à risca, garantiria a concretização do objetivo daquele que o segue: fazer um bolo. No caso do curso Ômega, com os materiais proporcionados pela instituição e seguindo o passo a passo indicado pela responsável pelo treinamento, o professor conseguiria dar uma boa aula.

Rafael estabelece uma dicotomia entre o que seria o desejo dos prescritores, ou seja, que todos seguissem a “receita de bolo”, e suas características pessoais, que seriam avessas a isso (“E mesmo porque eu sou não muito de seguir receita de bolo”). Portanto, institui uma relação de oposição: professor que segue a “receita de bolo” vs professor “interativo” e que “pula etapas”. Além disso, aparece na fala de Rafael a desvalorização do trabalho do professor pelo curso ao prescrever uma aula como uma “receita de bolo”, algo que é entendido como estável, que não sofreria variações. Assim, ao rebelar-se contra a receita, Rafael busca valorizar o seu trabalho, mostrar que reinventa sua atividade a partir de suas experiências. Na verdade, fazer um bolo, como todas as outras atividades, tampouco se resume à aplicação do prescrito na sua receita. Rafael expressa essa diferença prescrito/realizado ao dizer que “faço coisas, assim, que eu acho que funciona e enfim, da minha cabeça”. Sua aula “funciona” porque ele faz coisas da sua “cabeça”, ou seja, regula a atividade por meio da gestão das variações com as quais se depara.

Assim como na fala de Carla, a voz do responsável pelo treinamento aparece no relato de Rafael: “No, no texto vocês fazem isso, repetem dessa forma, aqui vocês fazem essa pergunta”. O caráter injuntivo da voz alheia recuperado pelo professor por meio do discurso direto se manifesta no uso do presente com valor de ordem (“fazem”, “repetem”). A voz da hierarquia, como diz Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2017., aparece reproduzida com fronteiras nítidas para marcar um distanciamento maior do citante com relação ao dito pelo citado.

Gabriela, professora do Beta, relata o treinamento que fez na franqueada e o material que recebeu durante sua realização:

Professora Gabriela – Curso Beta P: Como, você podia descrever o treinamento? +++ O que é que era, exatamente? Gabriela: Era uma professora, já experiente no curso, já devia estar trabalhando lá há uns sete anos, ela:: a priori, ela dava uma aula, né:: ela falou: gente, eu vou dar, eu vou pegar uma unidade do livro e vou falar pra vocês como seria mais ou menos uma aula. Ela ministrava a aula em si e:: ela ministrava a aula em si e depois falava com a gente: a aula é assim. Só que depois ela foi esmiuçando a metodologia: ah, como é que se faz um pré calentamiento, como é que se faz uma producción++ e/e as práticas que ela utilizava lembravam as práticas que eu estou vendo agora nesse curso de atualização. Ela::/ela deu uma ajuda:: /.../ P: De como atuar no seu trabalho . Você recebeu ((algum tipo de manual de instruções))? Gabriela: Ah, eu recebi do Beta . Era:: eram ideias, assim, gerais. Nada assim muito específico de metodologia. Você tem que agir assim, assim, assado. Bem receita de bolo . E ao longo do treinamento é que a professora foi falando essas técnicas que a gente trabalhou aqui, por exemplo. Foi técnica da pelota, técnica da estrella, foi assim.

Nas respostas dadas, observa-se uma abundância de discurso relatado. A professora recupera prescrições presentes no momento do treinamento (“ela falou: gente, eu vou dar, eu vou pegar uma unidade do livro e vou falar pra vocês como seria mais ou menos uma aula”, entre outras) e na apostila recebida durante esse curso (“Você tem que agir assim, assim, assado”). Em quase todos os fragmentos se vê uma injunção, seja por asserção (“a aula é assim”), seja por mandato (“você tem que”).

Repete-se na fala de Gabriela a comparação já vista no texto de Rafael com a “receita de bolo”. No entanto, a apreciação da professora parece revelar tons menos críticos, apesar da carga pejorativa dessa expressão, pois compara o curso de treinamento com o curso de atualização que fazia naquele momento (“a professora foi falando essas técnicas que a gente trabalhou aqui”).

No curso Alfa, o procedimento de contratação de professores é significativamente diferente dos demais. Além da entrevista realizada na unidade onde o candidato deseja lecionar, o principal requisito mencionado pelos professores é a realização de um curso oferecido pela instituição, com duração de dois semestres. Além disso, o professor, para ser contratado, deve ter feito um curso regular no Alfa:

Professora Andreia – Curso Alfa Andreia: Eu fiz Esp 2, não me adaptei com o método; aí não, não quis fazer mais; fiz o Esp 7 depo::is por causa do ((nome do marido)), que já trabalhava lá; e aí fiz o Esp 7 porque, pra trabalhar lá, obrigatoriamente, no Alfa é uma coisa muito fechada, TEM que fazer o curso de lá; aí fiz o Esp 7, o Esp 2 e o curso pra professores. Depo::is, agora eu passo por processo seletivo nas outras unidades que seria uma:: entrevista falando na língua espanhola. Falando em espanhol.

Diz a professora que “pra trabalhar lá, obrigatoriamente, no Alfa é uma coisa muito fechada, TEM que fazer o curso de lá”. Ao qualificar o Alfa como “uma coisa muito fechada”, indica-se que ele não aceita elementos ou pessoas de fora, e que apenas estão aptos a exercer a docência em suas unidades aqueles que passaram previamente pelas suas salas de aula. A voz da hierarquia se vê na fala da professora nesse enfático “TEM que fazer o curso de lá” com o sentido de necessidade. Manifesta-se na fala de Andreia uma determinada visão do curso Alfa como uma instituição que busca autovalorizar-se e que utiliza seus próprios cursos, tanto o regular quanto o destinado aos futuros professores, como um elemento publicitário: o curso é tão bom que forma seus próprios professores e não aceita docentes de outras proveniências.

O diploma de graduação não altera inteiramente essa circunstância:

Professora Andreia – Curso Alfa P: Hum, entendi. Mas eles não exigem, como você disse, a graduação de espanhol... Andreia: Não exige a graduação. E professores graduados são obrigados a fazer dois semestres de cursos para professores; que é um curso onde eles ensinam/ é/ que eles ensinam a dida::tica da metodologia, como usar, essas coisas todas.

A movimentação discursiva que se segue a esse fragmento encaminha o diálogo no sentido da consideração do curso para professores oferecido pelo Alfa como um treinamento:

Professora Andreia – Curso Alfa P: Entendi. Então, é +++ Além/ e você pode dizer que esse curso foi um treinamento? Andreia: É um treinamento . É como usar o equipamen::to e essas coisas toda, voltar ::, adiantar ::, repetir a imagem. É um treinamento.

O curso é, então, descrito como um lugar de aprendizagem acerca da manipulação dos muitos aparelhos utilizados no Alfa durante as aulas (“É como usar o equipamen::to e essas coisas toda, voltar::, adiantar::, repetir a imagem”). A professora é assertiva e afirma duas vezes que “é um treinamento”.

Em uma passagem um pouco mais adiante na entrevista, a Andreia diz:

Professora Andreia – Curso Alfa P: Alguma/algum tipo de instrução: no seu trabalho você precisa chegar tal hora... Andreia: Ah, sim! Essas coisas a gente recebe no curso P: Hum hum Andreia: Chegar dez minutos antes da aula começar pra ligar todo o equipamento pra quando o aluno chegar já ta tudo ligado; o ar condicionado ligado também, porque essa coisa do ar é muito importante pra eles, eles dizem que tem que tá um ambiente limpo, arrumado, essas coisas todas. P: Hum hum. Andreia: Verificar se a sala se foi limpa.

Reforça-se nesse trecho a função prescritiva do curso de treinamento, pois, entre seus conteúdos encontra-se uma série de prescrições que abarcam âmbitos não pedagógicos, como a limpeza e apresentação física da sala de aula. Para referir-se a tais tarefas, a professora recorre ao discurso relatado, recuperando a voz da professora de didática: “Chegar dez minutos antes da aula começar pra ligar todo o equipamento pra quando o aluno chegar já tá tudo ligado; o ar condicionado ligado também”, “Verificar se a sala se foi limpa”. A voz da professora de didática é identificada com uma voz institucional, marcada por meio de “eles”: “porque essa coisa do ar é muito importante pra eles, eles dizem que tem que ta um ambiente limpo, arrumado, essas coisas todas”.

No entanto, no movimento seguinte, o sentido que se vinha construindo até então se reconfigura:

Professora Andreia – Curso Alfa P: Que mais que vocês fazem além de preparar aula, aprender a mexer ... Andreia: É, são dois períodos de Literatura + Espanhola e Hispâ::nica porque o curso regular não trabalha com literatura e::: dois períodos de::: gramática também, mas uma gramática mais puxada porque no curso a gente:: é:: não fala que há um pretérito perfeito, a gente fala passado consumado. Então nesse curso pra professores vai falar pretérito perfeito, assim, os pretéritos compostos, dar os nomes++ reais++ o nome da gramática . /.../ Uma é didática, são dois períodos: didática 1 e didática 2. P: Entendi. Andreia: Literatura 1, Literatura 2 e Língua 1 e Língua 2. Eu só fiz o primeiro período ++ entendeu? P: Entendi. Andreia: Que como eu já fazia faculdade e o método não é uma coisa difícil de aprender ++ aí eu já fui como++ se tivesse terminado o curso por isso, porque as matérias que eu tive na fac/ faculdade compensaram essa Língua e Literatura que eu:: tinha que fazer lá. P: Entendi. E quanto, qual a carga horária desse curso? Andreia: Eram duas horas+ cada crédito. Duas horas de língua, duas horas de Literatura e duas horas de Didática, semanais.

O curso, que parecia um treinamento em torno de questões não pedagógicas, muda de natureza. O método da instituição é qualificado como algo que não é “difícil de aprender” e o curso passa a ser descrito como uma atividade de um ano de duração, com carga horária de 6h semanais e com disciplinas de Língua, de Literatura e de Didática. É, portanto, uma maneira de buscar substituir a formação universitária do professor, que claramente compete com ela. Não se trata de prescrever ao professor a aula de acordo com os procedimentos e com o livro didático utilizado, como se viu com relação às demais franqueadoras, mas de dar ao professor uma formação que concorre parcialmente com a proporcionada pela licenciatura. Há, então, uma desvalorização da formação universitária, já que “professores graduados são obrigados a fazer”. Percebe-se que, para o Alfa, o seu curso para professores substitui a formação universitária de docentes, mas o inverso não ocorre, já que graduados devem realizá-lo.

No entanto, a fala da professora Andreia, apesar de reproduzir em muitos fragmentos a voz da instituição, desconstrói as prescrições do Alfa quanto à contratação de professores. Primeiramente, ela afirma não ter feito todo o curso regular; em seguida, diz que, como é estudante de graduação, tampouco fez os dois períodos do curso para professores, afirmativa que se seguiu de um riso de burla das normas. Desse modo, a seleção de professores do curso Alfa, que parecia rigorosa dentro dos seus próprios critérios, torna-se um espaço no qual a transgressão é possível e fácil.

Considerações finais

O trecho de Bakhtin (2003a, p.297)BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: _______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003a, p.261-306., abaixo transcrito, é bastante explicativo com relação ao diálogo entre a fala dos professores na entrevista e o que se diz sobre o trabalho docente:

Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra “resposta” no sentido mais amplo): elas os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta.

Portanto, os enunciados produzidos nas entrevistas aqui analisadas dialogam de maneira estreita com todos os demais enunciados relacionados à educação e, especificamente, ao ensino de língua estrangeira.

Em primeiro lugar, a seleção não segue pautas relacionadas aos conhecimentos acadêmicos dos estudos de linguagem e da educação e não valoriza as experiências prévias dos candidatos. O que se vê, nos enunciados produzidos pelos docentes, é que a seleção reproduz padrões do senso comum e se limita a um teste de proficiência como principal critério. Pressupõe, portanto, que não é necessária uma formação na área de didática de línguas, o que facilita a adesão desse profissional ao material e à metodologia da instituição.

Em segundo lugar, o treinamento é referido pelos professores como um momento obrigatório e de prescrição. Ele tem a função de dar a conhecer os procedimentos e o material didático da instituição. Difere o curso para professores do Alfa, que compete com a formação universitária de professores.

Com relação aos recursos linguístico-discursivos empregados pelos professores nas entrevistas, é possível observar, nos fragmentos analisados neste artigo, a presença constante do discurso citado, especialmente as ocorrências de discurso direto, por meio do qual se constrói um efeito de sentido de autenticidade e se marcam as fronteiras com relação à voz da hierarquia. Ademais, a percepção autoritária da palavra alheia, seu nível de segurança ideológica e de dogmatismo também explicam o recurso ao discurso direto (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2017.). Foram observadas, ainda, ocorrências de risos, de ironias e de outras manifestações apreciativas.

Dessa forma, a atenção estava voltada para a expressividade do dito, ou seja, o efeito valorativo e emocional do sujeito com relação ao seu dizer, que determina a escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do enunciado, e às marcas das relações dialógicas que são visíveis na materialidade dos enunciados.

Segundo a Ergonomia situada, a fala sobre o trabalho retoma prescrições. Embora nas entrevistas os docentes recuperassem, com alguma frequência, a voz oficial tanto da franqueada quanto da franqueadora, em outros momentos traziam outras prescrições, procedentes de lugares variados e nem sempre heterodeterminadas. São enunciados que dialogam com a educação, especialmente, com a educação linguística, valorizando iniciativas que demonstram maior autonomia docente, buscando fugir da tentativa de padronização e das imposições que são características das grandes franqueadoras de cursos livres.

  • 1
    Alguns exemplos: a contratação da Cultura Inglesa, desde 2010, pela Secretaria de Educação do Município do Rio de Janeiro para diversas atividades (selecionar docentes em concurso público, oferecer cursos de formação continuada aos professores, fornecer o material didático à rede, supervisionar as aulas de inglês); a previsão, na já revogada Lei 11.161/2005, de que a oferta de espanhol em escolas pudesse ser efetivada por meio de “Centro de Estudos de Língua Moderna”. Mais casos semelhantes podem ser vistos em Freitas (2017)_______. Cursos livres e escolas: relações (in)oportunas. In: MAZZARO, D.; SILVA, E.R.; RIBEIRO, F.A. Língua espanhola, suas literaturas e culturas na educação básica brasileira. Alfenas: Unifal/APEMG, 2017. No prelo..
  • 2
    Segundo dados da Associação Brasileira de Franchising, dentre as vinte e cinco maiores franqueadoras do Brasil, quatro cursos livres (ABF, 2017ABF. Perfil das 50 maiores franquias no Brasil. Disponível em: <http://www.abf.com.br/wp-content/uploads/2017/02/Perfil-das-50-maiores-franquias-no-Brasil.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2017.
    http://www.abf.com.br/wp-content/uploads...
    ).
  • 3
    Aqui “professor” ou “docente” é o sujeito que dá aulas em cursos livres, independente de ter formação universitária em curso de licenciatura.
  • 4
    As entrevistas foram realizadas entre 2006 e 2010 (FREITAS, 2010FREITAS, L.M.A. Da fábrica à sala de aula: vozes e práticas tayloristas no trabalho do professor de espanhol em cursos de línguas. 2010. 309 f. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.), período anterior à criação da Plataforma Brasil e da rotina de solicitação de autorização de Comitês de Ética em Pesquisa para investigações na área de Letras, e contou com a participação de outros sujeitos, além dos pesquisadores.
  • 5
    Os primeiros grupos de pesquisa foram o Atelier - Linguagem e Trabalho (PUC-SP) e o Alter - Análise de Linguagem, Trabalho Educacional e suas Relações (criado na PUC-SP e atualmente sediado na USP).
  • 6
    A pesquisa tinha como foco apenas docentes de espanhol; no entanto, a parte da entrevista trazida para este artigo não aborda aspectos específicos dessa língua.
  • 7
    Uma caracterização do perfil de cada empresa se encontra em Freitas (2010)FREITAS, L.M.A. Da fábrica à sala de aula: vozes e práticas tayloristas no trabalho do professor de espanhol em cursos de línguas. 2010. 309 f. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010..
  • 8
    O roteiro completo encontra-se em Freitas (2010)FREITAS, L.M.A. Da fábrica à sala de aula: vozes e práticas tayloristas no trabalho do professor de espanhol em cursos de línguas. 2010. 309 f. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010..
  • 9
    Por motivos éticos, os nomes dos docentes aqui registrados são fictícios.
  • 10
    Os critérios das transcrições foram adaptados de Marcuschi (2003):
    • - pausas - +

    • - truncamento brusco - /

    • - ênfase ou acento forte - MAIÚSCULAS

    • - alongamento de vocal - ::

    • - comentário do pesquisador - (( ))

    • - indicativo de eliminação - /.../

    • - sobreposição de vozes - [ ]

REFERÊNCIAS

  • ABF. Perfil das 50 maiores franquias no Brasil Disponível em: <http://www.abf.com.br/wp-content/uploads/2017/02/Perfil-das-50-maiores-franquias-no-Brasil.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2017.
    » http://www.abf.com.br/wp-content/uploads/2017/02/Perfil-das-50-maiores-franquias-no-Brasil.pdf
  • BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: _______. Estética da criação verbal Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003a, p.261-306.
  • _______. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: _______. Estética da criação verbal Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003b, p.307-335.
  • BOUTET, J. Activité de langage et activité de travail. Education Permanente, Cely-en-Bière, n.116, p.109-117, 1993.
  • CERVONI, J. A enunciação Trad. L. Garcia dos Santos. São Paulo: Ática, 1998.
  • DAHER, D. C. Quando informar é gerenciar conflitos: a entrevista como estratégia metodológica. The ESPecialist, São Paulo, v.19, p.287-304, 1998.
  • _______; SANT’ANNA, V. L. A.; ROCHA, D. A entrevista em situação de pesquisa acadêmica: reflexões numa perspectiva discursiva. Polifonia, Cuiabá, v.8, 2004.
  • FAÏTA, D. Análise dialógica da atividade profissional Trad. M. B. França, M. G. Di Fanti e M. Moura Vieira. Rio de Janeiro: [s.n.], 2005.
  • FERNANDES, M. S. S. Ensino regular e curso livre de idiomas: a fala do professor de espanhol sobre o seu trabalho. 2013. 132f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.
  • FRANÇA, M. B. Uma comunidade dialógica de pesquisa - atividade e movimentação discursiva nas situações de trabalho de recepcionistas de guichê hospitalar 2002. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2002.
  • FREITAS, L.M.A. Da fábrica à sala de aula: vozes e práticas tayloristas no trabalho do professor de espanhol em cursos de línguas. 2010. 309 f. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
  • _______. Cursos livres e escolas: relações (in)oportunas. In: MAZZARO, D.; SILVA, E.R.; RIBEIRO, F.A. Língua espanhola, suas literaturas e culturas na educação básica brasileira Alfenas: Unifal/APEMG, 2017. No prelo.
  • LACOSTE, M. Fala, atividade, situação. In: DUARTE, F.; FEITOSA, V. (Orgs.). Linguagem & trabalho Trad. V. C. Feitosa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1998.
  • NOUROUDINE, A. A linguagem: dispositivo revelador da complexidade do trabalho. In: SOUZA-E-SILVA, M. C. P.; FAÏTA, D. (Orgs.). Linguagem e trabalho - construção de objetos de análise no Brasil e na França Trad. I. Polegatto e D. Rocha. 1ª ed. São Paulo: Cortez, 2002.
  • SCHWARTZ, Y. Reconnaissances du travail - Pour un approche ergologique Paris: PUF, 1997.
  • SOUZA, C.F. Ecos do ser e do estar: um estudo discursivo acerca do trabalho do professor de inglês de cursos livres. 2016. 231 f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) - Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016.
  • TARDIFF, M.; LESSARD, C. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas Trad. de J. B. Kreuch. 3ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.
  • VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    26 Maio 2017
  • Aceito
    01 Nov 2017
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bakhtinianarevista@gmail.com